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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS WILSON COÊLHO ANTONIN ARTAUD: A LINGUAGEM NA DESINTEGRAÇÃO DA PALAVRA Vitória 2005

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

WILSON COÊLHO

ANTONIN ARTAUD: A LINGUAGEM NA DESINTEGRAÇÃO DA PALAVRA

Vitória 2005

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WILSON COÊLHO

ANTONIN ARTAUD: A LINGUAGEM NA DESINTEGRAÇÃO DA PALAVRA

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do grau de Mestre em

Estudos Literários, do Programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade

Federal do Espírito Santo. Orientador: Fernando Mendes Pessoa.

Vitória 2005

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Ficha Catalográfica

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

DEFESA DE DISSERTAÇÃO

COÊLHO, Wilson. Antonin Artaud: a linguagem na desintegração da palavra. Dissertação de Mestrado em Estudos Literários. UFES. 2005. Dissertação aprovada em ______ de____________________de 2005 BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Fernando Mendes Pessoa – UFES Membro Orientador

Prof. Dra. Ana Paula Kiffer – PUC-RJ Membro Titular

Prof. Dr. Jorge Luiz do Nascimento – UFES Membro Titular

Prof. Dr. Sérgio da Fonseca Amaral Membro Suplente

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Dedicatória

Primeiramente, à Berenice, por tudo; especialmente pelo amor e tolerância às minhas

crueldades e, ademais, por partilhar dessa maravilhosa experiência.

Aos meus filhos Uyara, Tahina, Jaciendy e Oiran por me ajudarem a compreender melhor o

mundo.

A todos os loucos.

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Agradecimentos

A todos os professores que desde o ensino primário fazem parte desse meu percurso.

Ao companheiros do Grupo Tarahumaras que em muito contribuíram na pesquisa sobre o

teatro de Antonin Artaud, em especial, Edmilson Maestri que com grande força “encarnou”

o poeta francês em minha peça Antonin Artaud – Atos de Crueldade, bem como, Cláudio

Deppes, no espetáculo Para acabar con el juício de diós, inclusive, pela apresentação em

Santiago do Chile, num campo de futebol para um público aproximado de 8 mil pessoas.

Ao grande amigo Gilbert Chaudanne por compartilhar de muitas traduções e pesquisa,

desde a poesia até o cinema de Artaud, passando pelo teatro e a metafísica da loucura ou a

loucura da metafísica.

A Catherine Faudry que desde sua pesquisa em Grenoble e sua entrevista com o

Tarahumaras nos incentivou levar adiante a empreitada.

A Silviano Santiago, Marco Lucchesi, Oscar Gama, Beto Murta, Romildo Almeida, Nilson

Camizão, Natalia Branco, Ene Zopelari, Berenice Pahins e tantos outros que participaram

do projeto de “Centenário de Antonin Artaud” na ilha batizada de Artaudville.

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A Rozi de Sá pelo grande presente: o volume XII de Oeuvres Complètes de Antonin

Artaud, da Gallimard, onde se encontra o poema “Ci-gît” que é pedra fundamental desse

trabalho.

A todos que de uma forma ou de outra contribuíram e ainda contribuem para a pesquisa

não termine nunca.

“eram palavras

que existiam ou não existiam

diante da urgência premente de uma necessidade: a de suprimir a idéia,

a idéia e seu mito, e de fazer reinar em seu lugar

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a manifestação tonitroante dessa explosiva necessidade:

dilatar o corpo de minha noite interna.”

Antonin Artaud, em Obras Completas, vol. XIII

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO, 11 2. NA FRONTEIRA ENTRE CI-GÎT E GUERNICA, 19

2.1. GUERNICA (Ilustração), 27 2.2. AQUI JAZ, 28

3. TRATAMENTO CRUEL OU CIRURGIA ONTOLÓGICA?, 47

4. PALAVRA, 70

4.1. ENTRE A ESCRITA E A FALA, 83 4.2. NÃO À SINTAXE COMO UM A PRIORI, 89

4.3. NEGAÇÃO DE ESTILO E GÊNERO, 94 5. CONCLUSÃO, 98 6. CRONOLOGIA, 105

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 113

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RESUMO

O propósito dessa dissertação é investigar o valor e o significado da palavra em Antonin Artaud, desde a sua obra literária até o teatro, passando pelo cinema, cartas, desenhos e suas tentativas de teorizar a respeito da linguagem artística, bem como, sua postura frente ao mundo como um homem que coloca o próprio corpo na fogueira de suas indagações. Apesar de o poema Ci-Gît estar colocado como tema de referência para a pesquisa, outros textos também são, de certa forma, analisados, na medida em que interessam na fundamentação e esclarecimento de como Artaud persegue uma poética para além da limitação e particularização da arte dividida em gêneros, estilos e categorias. Não se trata de uma visão mitificadora ou mistificadora de Artaud, mas – muito pelo contrário – a sua humanização, não no sentido do humano idealizado, mas do homem que se faz humano a partir do gesto de existir existindo, ou seja, transcendendo o mero fato de haver nascido e ser compreendido ou aceito como homem a partir de definições sócio-biológicas.

PALAVRAS-CHAVE: Palavra. Linguagem. Desintegração. Gênero. Estilo.

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RÉSUMÉ

La dissertation est une recherche sur la valeur et la signification du mot chez Antonin Artaud, autant dans son oeuvre littéraire que dans son théâtre, en passant par le cinéma, les lettres, les dessins et leurs tentatives de theoriser concernant le langage artistique, ainsi que, sa position devant au monde comme un homme qui place le corps lui-même dans le feu de ses recherches. Bien que le poème Ci-Gît soit placé comme théme de référence pour la recherche, d‟autres textes aussi sont, d'une certaine forme, analysés, dans la mesure où ils intéressent le fondement et à partir duquel Artaud poursuit une poétique au-delà de la limitation et particularisation de l'art divisé dans des types, styles et catégories. Il ne s'agit pas d'une vision mythique ou mistificatrice d'Artaud, mais - bien au contraire - son humanisation, non dans le sens de l'humain idéalisé, mais de l'homme qui se fait humain à partir du geste d'exister en existant, c'est-à-dire, en dépassant le simple fait d'être né et être compris ou être accepté comment un homme à partir de définitions sócio-biologiques.

MOTS-CLÉS: Mot. Langue. Désintégration. Type. Style.

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INTRODUÇÃO

Toda verdadeira linguagem é incompreensível,

como a bofetada do claque-dente;

ou o claque (bordel) do fêmur dentado (em sangue).

Antonin Artaud

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A tentativa de associar a obra escrita do poeta francês Antonin Artaud à literatura

pode parecer um reconhecimento daquilo que é óbvio para um autor que, somente

pela Gallimard, tem aproximadamente 20.000 páginas impressas. Mas – por outro

lado – considerando sua postura frente à literatura tal e qual esta tem sido social e

culturalmente aceita no Ocidente, limitá-lo à condição de escritor literário seria um

ato de injustiça. Antonin Artaud, que segundo alguns de seus discursos,

especialmente em correspondências para Rolland de Renéville e Jean Paulhan,

tem como referência a forma de escrita de Heliogábalo (romance) e Os Cenci

(dramaturgia), não acredita naquilo a que até então se convencionou “literatura”

afirmando que a mesma serve apenas para falsificar o jogo que existe na relação

entre nós e uma dada situação. Para ele, uma situação basta-se por si mesma e,

no sentido em que somos simplesmente informados de algo em que a atrocidade

(a crueldade) seja suficientemente eloqüente, não há a necessidade de reforçá-la

com artifícios literários.

Apesar da luta em relação à palavra ser travada, principalmente, em O Teatro e

seu Duplo, não se trata de uma afirmação de que o espaço de discussão da

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linguagem em Artaud esteja reduzido ao âmbito teatral, tendo em vista que

praticamente em todos os seus escritos, desde a ficção até a teoria, passando

pelas correspondências e textos avulsos, a questão da palavra ocupa um lugar e

uma atenção de destaque. Também não se pode afirmar que a palavra em Artaud

seja totalmente recusada e, tampouco, condenada à morte.

Faz-se necessário ressaltar que o estilo cristalizado lhe causa horror e, mesmo

que em muitas das vezes seja flagrado utilizando-se de uma espécie de estilo do

qual abomina, ele queima todos os seus manuscritos e guarda apenas aqueles

que lhe “recordam uma sufocação, um ofegar, um estrangulamento, ocorridos em

uma região obscura, pois isso é verdadeiro”1.

Ao queimar seus manuscritos, como aconteceu diversas vezes em sua vida,

significa dizer que Artaud se insurge na tentativa de emprestar ou empregar

novos valores à linguagem, ou seja, coloca-se pela necessidade de desintegrar a

palavra, considerando que a idéia de desintegração tem um peso enorme no

pensamento artaudiano, principalmente, no que diz respeito à tentativa de quebrar

os juízos e conceitos de uma civilização adoecida pela ocidentalidade cristã. Para

ele, nesse movimento de ruptura ou tentativa de estabelecer uma linguagem, há

três níveis de desintegração da palavra. A palavra, aqui, não deve ser entendida

como um ajuntamento de letras, sílabas e vocábulos, mas como o verbo mesmo.

1 VIRMAUX, 1990, p. 93.

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Primeiramente, essa desintegração se dá no plano da escrita mesmo, a partir da

idéia da possibilidade de se escrever como se fala ou escrever simples e sem

alegorias, ou seja, escrever como se tem vontade de falar. Nesse sentido, faz-se

necessário compreender, em Artaud, a relação entre a escrita e a fala. Não

somente no seu discurso estético, mas, também, a partir de seus textos mesmos,

aqueles entendidos como “literários”, independente de seus formatos de contos,

poemas, crônicas, cartas, peças, críticas, desenhos, etc. Daí, a escrita não se

resume a um mero exercício de vontade de falar e, tampouco, esta se dá como a

“fala” da vontade, mas a vontade e a fala-escrita-fala são o mesmo, ou seja, a

verdadeira manifestação do espírito, isenta da necessidade dos artifícios e

maneirismos comuns à chamada literatura e à arte do “bem dizer”.

O segundo momento da desintegração, considerado como conseqüência

necessária e evidente, se dá na sintaxe, ou seja, na forma gramatical como as

palavras são usadas dentro das frases, bem como, as relações das frases entre si.

Mas não se trata de uma guerra contra a sintaxe, porém uma recusa à sujeição de

um pensamento à sintaxe. Significa afirmar que na escrita, para Artaud, há que se

estabelecer uma espécie de suspensão, próxima a da fenomenologia, no que diz

respeito à formação da consciência. Mas trata-se de suspender a forma gramatical

que é quase sempre colocada anterior e como uma camisa-de-força ao

pensamento. Equivale à idéia de que, conforme o discurso artaudiano, a sintaxe

não dever ser considerada como um a priori para aquilo que se quer dizer. Há

uma recusa em se sujeitar o pensamento à sintaxe, considerando a escrita como o

sopro do espírito.

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No terceiro plano, existe a necessidade de desintegração do estilo ou a suposta

arte de bem dizer. É dizer que quando algo tem que ser dito, para Artaud, fica

quase impossível enquadrá-lo num conceito pré-determinado. A exemplo disso,

sua obra é diversificada e na maioria dos casos é quase impossível distinguir as

fronteiras entre um gênero literário e outro (poesia, romance, crônica, peça de

teatro, ensaio, “carta”, etc), ou seja, aquilo que Artaud persegue, em sua essência,

está presente em todas as formas com que ele se manifesta.

Artaud nos deixou um documento maior, que nada mais é que uma Arte poética. Reconheço que ele aí fala do teatro, mas o que está em causa é a exigência da poesia de uma tal forma que ela poderá se realizar somente recusando os gêneros limitados e afirmando uma linguagem mais original... então não se trata mais somente do espaço real que o palco nos apresenta, mas de um outro espaço...?

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Não é por acaso que, em determinado momento, ele afirma que: “o mais

importante nos acontecimentos atuais, não são os acontecimentos em si mesmos,

mas o estado de ebulição moral no qual eles mergulham o espìrito dos homens”.

Apesar de ter eleito o poema Ci-Gît, em função da proposta de demonstrar a

tentativa de Artaud em instaurar a linguagem na desintegração da palavra, em

muitos casos, também não se pode negar a contribuição que outros textos e

outros autores podem e devem servir de objetos para ilustrar sua demarche. Por

exemplo, no texto radiofônico de fevereiro de 1948, Para acabar com o julgamento

de deus, defendendo a idéia de um corpo sem órgãos, Artaud reclama ao homem

a necessidade de passar por uma cirurgia. Não uma cirurgia medicinal, uma mera

2 VIRMAUX, 1970.

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intervenção física, mas uma cirurgia ontológica onde o homem deve perder toda a

sua carne e, a partir de seu osso (estrutura ou essência), recriar-se a si mesmo.

Enfim, aí está o problema colocado, ou seja, como raspar essa carne de

maneirismos literários para se chegar ao osso, à escrita verdadeira? Como Artaud

se propõe – e até que ponto consegue – desintegrar a linguagem corrente para

suscitar uma linguagem diferente e indestrutível? Como se conjugar a palavra-

ação e a palavra-paixão?

Pois o fim que é o princípio. E este fim é ele mesmo quem elimina

todos os meios.3

Objetivamos com este estudo compreender a especificidade das noções de uma

literatura diferenciada dos artifícios e maneirismos literários, bem como, a

possibilidade de discutir sobre uma escrita que está para além do discurso do

estilo cristalizado, cujos elementos acreditamos estarem presentes na obra

Antonin Artaud, tomando como base seu poema Ci-Gît (Aqui Jaz) traçando assim

uma congruência entre seus escritos e sua direção em prol de novos valores da

linguagem. Mais especificamente, esta pesquisa tem como objetivos – a partir do

poema Ci-Gît – analisar a estruturação e seus mecanismos de formação (forma e

ação) da palavra, bem como, averiguar os indicativos dessa tendência

3 ARTAUD, 1989, p. 84.

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desarticuladora presente em suas cartas, tanto naquelas em que se utiliza de um

discurso existencial quanto naquelas de suas inquietações teóricas.

Como metodologia, inicialmente, buscando indicar – de forma esquemática – o

caminho a ser percorrido para compreender o percurso artaudiano na escrita,

entendida como a possibilidade de interação e integração de gêneros literários

tendo a poesia como espinha dorsal, vimos eleger como primeiro passo a tentativa

em mostrar de que modo se sustenta a visão de Artaud sobre os estilos, bem

como, as etapas e resultados de sua luta contra o uso formal da palavra. A

exemplo de sua luta contra ao que convencionalmente entendemos por palavra,

ou a favor da palavra-sopro do espírito, Artaud se socorre do recurso à glossolalia

que, diferentemente da onomatopéia ao imitar o som de coisas e animais, não tem

compromisso com esta espécie de lógica induzida pelo óbvio. Abaixo, esse

pequeno movimento do que aqui se subentende por movimento de glossolalia:

nuyon kidi nuyon kadan

tara dada i i ota papa ota strakman tarma strapido ota rapido ota brutan otargugido ote krutan (ARTAUD, 1989, p. 81)

A seguir, também como método de abordagem, vimos necessário delinear a idéia

da crueldade, não como um absurdo ou “como os imperadores assìrios mandando

sacos de orelhas humanas, narizes e narinas bem cortadas pelo correio”, mas da

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crueldade como o caminho para realizar, conforme Artaud, uma cirurgia ontológica

em direção a novos valores na linguagem.

Por outro lado, para melhor abrangência do tema em questão, existe ainda a

preocupação de estender a pesquisa a outros estudiosos, simpatizantes e críticos

literários, tanto como ponto de apoio e contribuição para executar o tema

evidenciado quanto para abrir um caminho que sirva de trilha e suporte novas

investigações sobre Artaud e seu percurso na literatura.

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FRONTEIRA ENTRE CI-GÎT E GUERNICA

“O que você pensa que um artista é? Um imbecil que só tem olhos se for pintor,

ou ouvidos se for músico, ou uma lira em todos os níveis de seu coração se for um poeta,

ou apenas músculos, caso seja um pugilista?” Pablo Picasso

“O difícil é encontrar de fato

o seu lugar e restabelecer a comunicação consigo mesmo.

O todo está em floculação das coisas, no agrupamento de toda essa pedraria mental

em torno de um ponto que falta justamente encontrar.” Antonin Artaud

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Ci-gît (Aqui jaz), título de um poema de Antonin Artaud (Marseille, 1896 – Paris,

1948) que, apesar de escrito em 1947, somente no ano de 1974 foi publicado em

sua primeira edição, pela Gallimard, no volume XII de suas obras completas. O

poema tem duas versões, a primeira de 13 e, a segunda, de 9 páginas, em versos

livres.

Guernica, título de um quadro de Pablo Picasso (Málaga, 1881 – Mougins, 1973),

inspirado no bombardeio da cidade basca de Guernica y Luno e, pintado em 1937,

nas cores preta, cinza e branca, com as medidas de 3,50 x 7,80 m, foi resultado

de uma encomenda do governo espanhol para seu pavilhão na Exposição

Internacional de Paris.

Num primeiro momento, pode parecer absurda a tentativa de se estabelecer um

parentesco ou relação entre o poema Ci-gît, de Antonin Artaud, e o quadro

Guernica, de Pablo Picasso. No que pese terem sido contemporâneos, há que se

levar em conta que a mesma história que os referenda como partícipes e convivas

de um mesmo tempo e espaço e, considerando a primeira e segunda grandes

guerras, os movimentos políticos-culturais na Europa e etc., também os distingue

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quanto aos objetos de suas preocupações imediatas, bem como, a repercussão

dessas obras em questão junto aos críticos e ao público.

A priori, eleitos como foco de análise, o poema Ci-gît e o quadro Guernica, Artaud

sai em prejuízo numa relação direta com Picasso. Mas esse suposto prejuízo não

se dá no sentido de um pré-julgamento ou de uma hierarquização na qualidade

das obras, considerando que os elementos que definem e/ou constituem a

demarche e o percurso de criação de cada uma delas em quase nada podem ser

comparadas. Isto posto, equivale a afirmação de que uma comparação entre

obras de arte implica numa sustentação em conceitos estéticos que dizem mais

respeito aos instrumentos de medida utilizados para a avaliação do que a arte

mesma como um fenômeno entre o objeto criado e o artista criador. Aqui, trata-se

de uma referência ao fato de que o citado poema de Artaud, até hoje, permanece

quase que completamente desconhecido, tendo em vista que até então a maior

atenção dispensada – pela maioria dos estudiosos e/ou aficionados por ele – se

reduz à sua atuação no teatro, passando pelo cinema e, quiçá, na discussão e

considerações sobre a loucura. A propósito, não existe – pelo menos publicada –

uma única tradução do poema Ci-Gît no Brasil e, se há em Portugal ou em outro

país de lingua portuguesa, não a consegui localizar. Tive que fazer a tradução

recorrendo-me ao volume XII das obras completas de Artaud editado pela

Gallimard, em sua primeira edição, no ano de 1974.

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Quanto a Picasso, o quadro Guernica é um dos mais conhecidos e – sem dúvida

alguma de seus méritos – considerado um dos mais representativos do século XX.

Praticamente, não existe um único livro de história da arte moderna, com

abrangência das artes pláticas, onde Picasso e, em especial, Guernica não seja

citado com relevância e, no mínimo, como ilustração e garantia de sua importância

na história da pintura. Obviamente, cabe ai uma ressalva e, de certa forma, uma

tentativa de fazer justiça ao mérito de Picasso nesta obra. Na maioria das vezes, o

valor da mesma está atribuído à questão político-histórica. Mas por mais

verdadeiro que seja o discurso de Picasso contra a pintura feita para decorar

apartamentos, bem como, sua afirmação da mesma como um “instrumento de

guerra para ataque e defesa contra o inimigo”, há algo de inegável em Guernica: o

seu valor como obra de arte, ou seja, aquilo que há de universal e que supera a

mera definição da obra a partir de elementos periféricos, os meramente técnicos e

conceituais que a compõem.

Em Guernica, Picasso abre mão das cores e, de certa forma, é visto como alguém

que se aproxima das fotografias da imprensa daquele momento. E não é por

acaso que, devido a sua estética, foi mal recebido por alguns setores da chamada

esquerda. Mas isso não significa que Picasso tenha se limitado às influências de

sua época como um tempo fixado no espaço, considerando que, como herdeiro

de esquemas arcaicos, primitivos e anteriores à pintura clássica, em Guernica há

uma forte demonstração de outras fontes na história da pintura que, manuseadas

de maneira mais ou menos “conscientes”, passeia desde a simbólica herança

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ancestral até o cubismo, passando pelo automatismo até os temas da

tauromaquia.

A partir dessas observações, do ponto de vista plástico, é que Guernica assume o

seu caráter de obra mais representativa do século XX, considerando que nessa

única pintura se abre a possibilidade de reconhecimento, onde se revelam

diversas tendências estéticas, aparentemente inimigas, como o Realismo, o

Cubismo, o Surrealismo, o Naîf e alguns outros estilos. E, conforme Joùsep Palau

i Fabre:

Mesmo se pessoalmente somos mais seduzidos pelas obras de Modigliani, Matisse, Klee, Braque, Kandinsky, Miró e outros, nenhuma dessas pinturas podem exibir uma tela onde se possa revelar uma diversidade também

notória de correntes pictóricas.4

Levando adiante a idéia de parentesco e similitude entre Ci-gît, de Artaud, e

Guernica, de Picasso, também se faz necessário estabelecer ou distinguir alguns

elementos dessa aproximação. Se insistirmos na afirmação de que Guernica, no

caso da pintura, pode ser considerada a obra mais representativa do século XX,

também, no caso da poesia, Ci-Gît assume o seu lugar no espaço como o poema

que, aparentemente pela maneira como se desenrola e se desordena, soa como

um absurdo diferenciado daquilo que a convenção estabeleceu como óbvio ou

como a “normalidade” para o discurso estético da ideologia do belo.

4 FABRE, 1984. Poeta catalão, Joùsep Palau i Fabre, por muito tempo (durante o regime de Franco)

morou na França, onde – entre 1946 e 1948 – encontrava-se freqüentemente com Artaud. Nos textos dos

números especiais em que apareceram “Artaud”, das revistas 84 e K, ele assinou “O Alquimista”. Suas obras

foram reunidas na Espanha, há alguns anos, sob o título Poemas da Alquimia.

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Assim como em Guernica Picasso busca estabelecer diálogos e confluências de

diversos estilos, Artaud, também, à priori, em Ci-Gît se insurge a partir de três

formas de linguagem, a saber: o francês normativo, a gíria e as emissões

glossolálicas. Mas apesar de Artaud se servir indistintamente dessas três

possibilidades de aproximação entre diferentes linguagens, não significa que as

mesmas não formem um conjunto e, tampouco, que se coloquem como uma

espécie de unidade, pois elas se dão de forma dialogal e, quiçás, como um conflito

em si mesmo, considerando que cada uma delas guarda em si mesma os traços

característicos que implicam nas conotações culturais que, em muitas vezes, são

díspares, distintas e distantes: eqüidistantes.

Mesmo no que diz respeito às numerosas vezes em que Artaud se utiliza da

língua francesa acordada como oficial, há que se ressaltar que ele não a emprega

de uma forma engessada e linear. Eis ai um elemento afirmativo em sua proposta

de linguagem na desintegração da palavra, pois em Artaud a palavra não se trata

de um em si, considerando que a cada vez que ele a utiliza, mesmo entendida

como uma peça no tabuleiro do francês normativo, há uma mudança de jogo. E,

pelas variadas formas como ele a emprega, especialmente, no poema Ci-Gît, há

diversos níveis de leitura, tanto na escrita ela mesma, como pela voz, passando

pela sonoridade. O mesmo movimento se dá quando Artaud se utiliza da gíria. Ele

nos transporta para o povo, de onde ele fala e devolve-se a si mesmo e leva o

leitor ao seu lugar de origem, a herança do povo marselhês. Não significa dizer

que ele o faça de uma maneira sábia ou distanciada e alegórica, considerando

que a gíria em Artaud é uma possibilidade da fala viva e direta.

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25

No caso do emprego das glossolalias, além das inúmeras tentativas de atribuir

essa linguagem ao fato de Artaud ter passado uma grande parte de sua vida em

manicômios como uma pessoa com problemas mentais, bem como, por ter sido a

família de Artaud/Nalpas descendente de uma linhagem de homens de negócios

portuários migrados de Esmirna, na Turquia, para Marselha, parece injusto

acreditar na idéia de que...

... respirava-se o ar de intensas mestiçagens de povos: gregos, turcos, italianos e franceses. Artaud cresceu nesse mundo de vários idiomas. Em sua família, costumava se exercitar a riqueza poliglota, destacadamente, a avó Marriette Nalpas (Neneka), que falava grego como uma das língua cotidianas. Certamente, é dessa mestiçagem que advém a tentativa de criação de suas glossolalias, uma língua capaz de se falar e ser entendida em qualquer lugar.

5

Soa-nos insipiente e redutora a tentativa de limitar a glossolalia artaudiana à sua

árvore genealógica, considerando que o poeta busca e alcança, para além de um

sincretismo ou uma espécie de esperanto, a emissão de vozes, o uivo, o grito do

homem primitivo, o estado de barbárie que o homem atual – atado aos grilhões da

mentalidade civilizada – finge ter superado.

Assim, a linguagem poética de Artaud se essencializa em três níveis, a saber: a

expressão bárbara, a giria popular (diferente dos jargões dos especialistas) e a

língua entendida como apurada. Para Artaud, cada uma das três maneiras com

que ele se expressa, não forma um estilo em si mesmo, mas são maneiras

5 GALENO, 2005.

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diferentes de manifestar o homem numa sociedade distinta de si mesma e que,

embevecida de um francês usual, através do exercício de liberdade de sua frase

lógica e racional, rompe as fronteiras da lógica formal e se atreve ao irracional,

entendido aqui, não como algo fora dele mesmo, mas como um delírio da razão.

Eu, Antonin Artaud, sou meu filho, meu pai, minha mãe, e eu; nivelador do périplo imbecil onde se ferra o engendramento, o périplo papai-mamãe.

E a criança, fuligem do cu da vovozinha, muito mais que do pai-mãe.

(...)

Pois o fim que é o princípio. E este fim

é ele mesmo quem elimina todos os meios.

(...)

dekantala dakis tekel ta redaba ta redabel de stra muntils o ept anis o ept atra

6

Caminhando, ainda um pouco mais, nas trilhas de uma possível analogia entre Ci-

Gît e Guernica, convém obsevarmos que há um paralelo em suas pegadas,

embora ambas persigam um mesmo devir: a desintegração do eu. Mas na

empreitada em prol dessa comparação, faz-se necessário perceber a existência

de dois movimentos distintos entre Ci-Gît e Guernica, respectivamente,

6 ARTAUD, 1989.

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centrífugos e centrípetos. É dizer que, se em Guernica, Picasso desenvolve um

movimento de integração, a partir dos elementos previamente fragmentados de

uma idéia central, em Ci-Gît, Artaud nos convida a um processo de desintegração.

Em Guernica, há uma espécie de ajuntamento e busca de unidade do ser, daquilo

que nos parece espalhado a partir de uma idéia do que já esteve unido, ao passo

que, no poema Ci-Gît, predomina o sentido do esfarelamento do eu original.

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28

AQUI JAZ7

Eu, Antonin Artaud, sou meu filho, meu pai,

minha mãe,

e eu;

nivelador do périplo imbecil onde se ferra o engendramento,

o périplo papai-mamãe

e a criança,

fuligem do cu da vovozinha,

7 ARTAUD, Antonin. Ci-gît in Oeuvres completes, vol XIII. Paris: Gallimard, 1989, pp. 75-

100. Trad. Wilson Coêlho.

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muito mais que do pai-mãe.

Esse que quer dizer que antes de mamãe e

papai que não tinham pai nem mãe,

diz-se,

e de onde os quais os haviam

tirado,

eles,

quando eles se transformaram nesse cônjuge

único

que nem a esposa nem o esposo

pude ver assentado ou de pé,

antes desse improvável buraco

que o espírito busca em si mesmo por nós,

para nos

enojar um pouco mais de nós mesmos,

era aquele corpo inutilizável

feito de carne e de esp' louco,

aquele corpo enforcado, de antes dos piolhos,

suando sobre a impossível mesa

do céu

seu odor calejado de átomo,

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30

seu rogomeuse8 odor de abjeto

detritus

expulso do sono

do Inca de mutilados dedos

que por idéia tinha um braço

mas que no lugar da mão tinha apenas uma palma

morta, por ter perdido seus dedos

à força de matar reis.

Antes de tudo isso, DIGO9 pois

era a avareza

era essa rabugice

causa do ventre ao céu

bufete

e que caminhou,

hediondo,

7 vezes 7 anos,

7 trilhões de anos,

8 Não consegui traduzir esse termo. Numa edição da Editorial Fundamentos, o tradutor

espanhol Ramón Font traduziu como “aguardentoso”, mas por eu não saber os motivos que permitiram tal aventura, preferi deixar a palavra como está. 9 Aqui Artaud escreve DIZJE e, entendendo se tratar de uma inversão de JE DIS, me atrevi

a substituí-lo por DIGO.

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31

segundo a lascada

aritmética

da antiga goemancia10,

até que tetas em sangue

ejetadas

da cinza oca

que mina do firmamento

jorrando enfim essa criança

maldita do homem

e do inferno mesmo,

mas que deus

mais feio que Satã

eleito para passar a perna

no homem

e ele chamou ser a essa

criança que tem

um sexo entre seus dentes.

10

Tradução livre de goémantie. O termo, repetido 7 vezes por Artaud, remete à Cabala, à magia, à

feitiçaria. A Goétie (bruxo ou mágico que pronuncia encantações lúgubres e, por extensão, charlatão,

impostor) é uma espécie de magia pela qual se invoca forças maléficas, uma feitiçaria demoníaca, uma forma

de magia negra.

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32

Porque uma outra criança era

verdadeira,

era real,

sem avó

que o tivesse eleito com todo

seu ventre,

de toda sua bunda

de cachorro fedido,

saído sozinho

da mão em sangue

do Inca mutilado dos

dedos.

Aqui tocando os címbalos de ferro tomo o

caminho profundo das meretrizes no esôfago

do olho direito

sob o túmulo do plexo rígido que

sobre a estrada faz uma curva para

libertar a criança legítima.

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33

nuyon kidi

nuyon kadan

tara dada i i

ota papa

ata strakman

tarma strapido

ota rapido

ota brutan

otargugido

ote krutan

Porque eu fui Inca mas não rei.

kilzi

trakilzi

faildor

bara bama

baraba

mince

etretili

TILI

te belisca

na falzourchte

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34

de todo ouro,

na ruína

de todo corpo.

E não havia sol nem ninguém,

nem um ser bem na frente de mim,

não, nenhum ser que me tuteava11.

Eu não tinha mais que alguns fiéis que não cessavam

de morrer por mim.

Quando eles estiveram demasiado mortos para viver,

eu não mais que raivosos,

os mesmos que estavam de olho em seu posto,

combatendo ao lado deles

bastante covardes para lutar contra eles.

Mas quem os tinha visto?

Ninguém.

Myrmidons da Perséphone

11

Em francês existe o verto tutoyer que significa o trato a alguém de modo familiar, ou seja, pelo pronome tu.

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35

Infernal,

micróbios de todos os gestos ocos,

catarros otescos de uma lei morta,

quistos dos que se violam entre si,

línguas de avarentos

fórceps

raspados sobre sua urina

mesma,

latrinas da morta ossosa

que perfura sempre o mesmo

vigor

morno,

do mesmo fogo,

cujo antro

inovador de um nó

terrível,

enclausurado

de vida mãe,

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36

é a víbora 12

de meus ovos.

Pois o fim que é o princípio.

E este fim

é ele mesmo

quem elimina

todos os meios.

E agora

Vós todos, os seres,

Tenho a vos dizer que vós tende sempre feito

Cagar.

E vades vis fazer

engrupir13

a peruca

da punheta14,

chatos15

da eternidade.

12

Aqui há um jogo de palavras que a tradução prejudica, ou seja, Artaud usa no verso anterior a expressão vie mère (vida mãe) e, em contraposição, nesse verso ele escreve vipère (víbora) que tem o mesmo som e a mesma escrita que vie père (vida pai). 13

Artaud escreveu engruper e, como não encontrei uma tradução, utilizei o termo engrupir que considero mais apropriado, tendo em vista que significa: enganar, lograr e passar a perna em, conforme Dicionário Popular Brasileiro, de J. Fernando, São Paulo: Ícone, 1987. 14

Tradução livre de papougnête. 15

Piolhos de púbis.

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37

Eu não me encontrarei uma vez mais com

Os seres que engoliram o cravo de vida.

E eu me encontrei um dia com os seres que

engoliram o cravo de vida,

- tão cedo perdi minha teta matriz,

E o ser me torceu sob ele

e deus me transportou à ela.

(O PORCALHÃO)

Assim que se é

tiraram de mim

papai e mamãe

e a fritura de Ji em

grito16

ao sexo (centro)

do grande estrangulamento,

de onde foi tirada essa crença17

semeando caixão18

16

Cri, em francês, significa grito, mas aqui, como em diversos outros lugares, Artaud faz um jogo com as palavras Ji e cri para uma referência a Jesus Cristo. 17

Há aqui também um jogo entre cruz + sêmen (croi sement) e, ao mesmo tempo, temos o som de cruzamento (croisemente). 18

Artaud aqui escreve de la bière, que também pode ser cerveja.

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38

(morta)

e da matéria,

que dá vida

a Jizo-cri19

quando do esterco de

eu morto

Foi tirado

o sangue

com o qual se doura

toda vida usurpada,

fora

É assim que:

o grande segredo da cultura indiana

é de reconduzir o mundo a zero,

sempre,

ou melhor

1º demasiado tarde que mais cedo,

2º isso que quer dizer

19

Idem, a idéia do grito (cri).

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39

mais cedo

que demasiado cedo,

3º isso que quer dizer que o mais tarde não

pode voltar no caso que mais cedo tem comido

demasiado cedo,

4º isso que quer dizer que m tempo

o mais tarde

é esse que precede

e o demasiado cedo

e o mais cedo,

5º e que precipitado seja mais cedo

o demasiado tarde

que não diz palavra

está sempre lá,

que ponto por ponto

desencaixa

todos os mais cedo.

Comentário

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Eles vieram, todos os porcalhões,

depois o grande desajustado,

manifestado de baixo até em cima

1º om-let cadran

(isso cochichado:)

Vós não sabíeis isso

que o estado:

OVO

era o estado

anti-Artaud

por excelência

e que para envenenar Artaud

mão há nada

como bater

um bom omelete

nos espaços

visando o ponto

gelatinoso

que Artaud

procurando o homem a fazer

foi

como uma peste horrível

E é esse ponto

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que se remete nele,

nada coma um bom omelete

forrado de veneno, cianureto, alcaparras,

transmitido pelo ar a seu cadáver

para desarticular Artaud

no anátema de seus ossos

PENDURADO SOBRE O INTERNO

CADASTRO.

e 2º palaoulette tirant

largalalouette te titrant

3º tuban titi tarftan da e da

cabeça te visam

4º lomonculos du frontal poince

e da pinça te putando

ele balança ao patrão fétido

esse capitalista arrogante

dos limbos

nadando aa direção do recolhimento

do pai-mãe ao sexo infantil

a fim de esvaziar o corpo iateio,

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inteirameate de sua matéria

e de a colocar no lugar, quem?

Aquele que o ser e o nada

fez,

como se deu a fazer pipi

E ELES, TODOS SE MANDARAM.

Não, fica a verruma horrenda,

A verruma-crime,

essa horrenda,

velbo cravo, genrão20 ,

desviação em proveito do genro falso

da dor serrada do osso,

Não vê que o genro falso,

é Jiri-cri,

já conhecido no México

bem antes de sua fuga à Jerusalém sobre um burro,

e o crucificamento de Artaud no Gólgota

Artaud

que sabia que não há espírito

20

Tradução livre de gendron, tendo em vista que, logo abaixo, Artaud se utilize do termo gendre que em português quer dizer genro.

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mas um corpo

que se refar como a engrenagem do codáver dentado,

na grangrena

do fêmur

adentro.

dakantala

dakis tekel

ta redaba

ta redabel

de stra muntils

o ept anis

o ept atra

da dor

suada

no

osso.

Toda verdadeira linguagem

é incompreensível

como a bofetada

do claque-dente;

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ou o claque (bordel)

do fêmur dentado (em sangue).

Da dor minada do osso

qualquer coisa nasceu

que veio a ser o que foi espírito

para desoxidar na dor motriz,

da dor

essa matriz

uma matriz concreta

e o osso,

o fundo do tufo

que vem a ser o osso.

Moral

Não te fatigue mais que o necessário, mesmo tendo

que Fundar uma cultura sobre a fadiga de teus ossos.

Moral

Quando o tufo foi comido pelo osso

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que o espírito corroía por detrás,

o espírito abriu a boca em excesso

e recebeu por detrás

da cabeça

um golpe capaz de dessecar seus ossos;

então,

ENTÃO,

então

osso por osso

a igualação sempiterna voltou

e girou o átomo elétrico

antes de fundir ponto por ponto

Conclusão

Para mim, simples

Antonin Artaud,

não há como enganar

quando não se é mais que um homem

ou que

deus.

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Eu não creio a nem pai

nem mãe,

já na pas21

papai-mamãe,

natureza,

espírito

ou deus,

satã

ou corpo

ou ser,

vida

ou nada,

nada que esteja fora ou dentro

e muito menos a boca de ser,

buraco de um esgoto brocado de dente

onde se olha todo o tempo

o homem que mama sua substância

em mim, para me tornar um papai-mamãe,

e se refazer numa existência

livre de mim

21

Não há tradução.

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sobre meu cadáver

retirado

do vazio

mesmo,

e fungado

de tempo

em tempo.

Eu digo

como por cima

o tempo

como se o tempo

não fosse frito

não fosse cozido frito

de todos os descascados

do umbral,

reembarcados no seu ataúde.

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TRATAMENTO CRUEL OU CIRURGIA ONTOLÓGICA?

Este texto que não se parece com nenhum

texto conhecido, com efeito não está escrito.

Mas ele está lá, muito mais que muitas coisas

escritas, quero dizer que há estranhos golpes

de tesoura a frio entre todas as palavras espectrais

emitidas pelos interlocutores, como um homem

que tem vontade de permanecer à margem

do ser e em fazer saltar para dentro a vontade

de elocução. Antonin Artaud

Se por um lado o próprio Artaud afirma que “aqueles que vivem, vivem dos

mortos”22, convém levarmos em conta a observação de Alain Virmaux de que

Artaud não era um morto qualquer, mas com o devido cuidado para que a

22

ANTONIN ARTAUD, " Alienação e Magia", em Artaud, o Momo, Bordon, 1947, p.56.

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possibilidade de conhecer o homem de forma crítica não se confunda num mero

processo de mitificação, ou seja, não correr o risco de constitui-lo a partir do “fim

último dos mitos e sua forma perfeita” que sustenta “a veneração unânime de um

nome e a ignorância unânime do que ele recobre”23.

O surgimento do “mito” Artaud se deu principalmente em virtude do teatro, onde

ele é considerado o homem-teatro e supostamente o espaço em que é mais

conhecido, mas torna-se uma tarefa um tanto quanto difícil dissociá-lo de suas

outras atividades. Podemos, inclusive, indagar se o Viajante, o Momo, o

Peregrino, o Poeta e tantos outros não sejam apenas mais alguns papéis

interpretados pelo ator Antonin Artaud. E as suas loucuras não poderiam ser para

ele uma forma de viver o teatro tal e qual o concebia? Se suas obras literárias

“Heliogábalo”24 e “Viagem ao Paìs dos Tarahumaras”25 podem ser consideradas

as mais distanciadas do teatro, ou “não-teatrais”, é importante salientar que o

próprio Artaud afirmava que a vida de Heliogábalo – como todo poder – era

extremamente teatral e, ademais, ali já estão contidas as mesmas lutas

metafísicas contra os Princípios, as violências sanguinárias e a ruptura de tabus

sexuais como o incesto que – mais tarde – seria um elemento preponderante na

23

ALAIN VIRMAUX, "Artaud e o Teatro", Perspectiva, coleção Estudos, 2ª ed., São Paulo, 1990, p.

4. 24

"Heliogábalo ou o Anarquista Coroado", escrito em 1932/34 a partir de uma pesquisa de Artaud,

recorrendo a uma bibliografia de aproximadamente 50 títulos sobre História da Antiguidade, foi publicado em

1934 pelo editor Denoël 25

Os textos que compõem a Viagem ao País dos Tarahumaras foram escritos entre outubro de 1936,

começando com A Montanha dos Signos, quando Artaud ainda estava no México, até 12 de fevereiro de 1948,

com o Rito do Tutuguri, um mês antes de sua morte na França. No entanto, sua publicação somente se deu aos

20 de novembro de 1955.

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composição do personagem central de sua polêmica peça “Os Cenci”26. Quanto a

“Viagem ao Paìs dos Tarahumaras”, não estão ali, também representadas, as

visões de Artaud sobre o teatro que – conforme Alain Virmaux – pudesse curar o

homem através de seus “ritos sagrados, de sublimação do Mal pelo excesso, de

cerimônias que pudessem recorrer a todos os sentidos”27, etc?

Assim, sua vida e sua obra são um todo intrinsecamente ligado mas, trespassando

esse limite da quase impossibilidade de falar de Artaud apenas no que se refere

ao teatro propriamente dito sem mutilá-lo, tentaremos dizer de sua relação

estabelecida com o teatro, não como um gênero limitado, porém a partir de sua

idéia de um teatro que reivindica a poesia, uma linguagem original e outro espaço

de representação capaz de superar o palco formal e que – de certa forma – faz-se

presença marcante na sua tentativa de comunicar o mundo, ao mundo e pelo

mundo.

A vida é queimar perguntas. Não concebo uma obra isolada da vida. Não amo a criação isolada.

Também não concebo o espírito isolado de si mesmo. Cada uma de minha obras, cada um dos planos de mim próprio, cada uma das florações glaciares de minha alma interior goteja sobre mim.

Reconheço-me tanto numa carta escrita para explicar o estreitamento íntimo do meu ser e a castração insensata da minha vida, como num ensaio exterior a mim próprio, que me surja como uma gestação indiferente do meu espírito (...).

Todas estas páginas se arrastam como pedaços de gelo no espírito. Perdoe-se-me a minha liberdade absoluta. Recuso-me a estabelecer diferenças

26

Peça polêmica de Artaud, inspirada em Shelley e Stendhal, a partir de um caso verídico de

assassinatos, estupro e morte do Conde Francesco Cenci, apresentada pela primeira vez aos 6 de maio de

1935, no Teatro Folies-Wagram, com música de Roger Désormière, cenografia e trajes de Balthus. 27

ALAIN VIRMAUX, "Artaud e o Teatro", Perspectiva, coleção Estudos, 2ª ed., São Paulo, 1990, p.

18.

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entre qualquer um dos momentos de mim mesmo. Não reconheço no espírito nenhum plano

28.

Apesar do engajamento de Artaud no teatro estar datado de 1920, em Paris, há

testemunhas que afirmam a existência de um projeto anterior, quando – com 20

anos de idade e ainda em Marselha – ele preparava um “teatro espontâneo” com a

intenção de apresentá-lo nos pátios das fábricas. Esta proposta é uma espécie de

presságio se considerarmos a perspectiva de Antonin Artaud tanto na vida quanto

na obra de explodir a pirâmide social, ou seja, romper radicalmente com as idéias

de evolução e hierarquia.

Existem muitas especulações em torno dos motivos que realmente puderam fazer

do teatro o objeto de interesse de Artaud. Primeiramente, pelo ponto em comum,

levando em conta o conflito, tanto como elemento constante na vida de Artaud

quanto como elemento básico e imprescindível na ação dramática, ou seja, uma

espécie de identificação e reconhecimento através do outro, o espelho. Não se

trata do espelho dos narcisos adoentados e asfixiados pela subjetividade, mas o

espelho dos que se atrevem ao terrível e cruel encontro do homem consigo

mesmo, o homem diante da angústia que é a sua humanidade, a sua

mundaneidade. Noutro momento, o teatro se lhe apresenta como a necessidade

de comunicar-se com o mundo e fazer-se aceito pelos homens, onde poderia

28

ANTONIN ARTAUD, O Pesa-Nervos, tradução de Joaquim Afonso, Hiena Editora, Lisboa,

1991.

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52

manifestar seus diversos talentos de poeta, cenógrafo, ator e diretor ou – como

disse Armand-Laroche – o teatro poderia “tornar-se, enfim, esse cavalo de Tróia

que o introduziria na cidadela dos vivos”29. Uma imprescindível necessidade de

ser reconhecido pelos outros homens, reunir uma multidão e apresentar-se a ela

para recolher seus aplausos e, mesmo, suas vaias. Depois – numa fase que

consideramos mais "madura" ou objetivamente numa perspectiva mais criadora,

Artaud reivindicava o teatro da recriação e terapêutica do homem. O teatro como

instrumento e meio de ação sobre o mundo e sobre o homem, mas uma ação que

pudesse transcender ao autor, ao ator e ao público comum das salas tradicionais.

... o teatro não é essa parada cênica onde se desenvolve virtual e simbolicamente um mito mas esse cadinho de fogo e de verdadeira carne onde anatomicamente

pela trituração de ossos, de membros e de sílabas os corpos se refundem, e se apresenta fisicamente e ao natural o ato mítico

de fazer um corpo.30

Defendia o teatro como um ente onde o Ser pudesse se re-velar, um teatro capaz

de propiciar o des-velamento exercendo ao mesmo tempo um papel terapêutico e

de recriação. Terapêutico pela crueldade, a cura pela destruição que, por um lado,

o ator representa a sua vida e, por outro, o espectador deve ter os seus nervos

triturados, um teatro eletro-choque. Na recriação, o homem deveria submeter-se a

uma cirurgia e mudar o corpo para mudar o mundo, mas não se trata de uma

cirurgia medicinal e – sim – de uma operação ontológica. Essa nova fase é a que

perdurou até o fim de sua vida, pois acabou por impregnar todos os seus escritos,

29

ARMAND-LAROCHE, "Antonin Artaud et son Double", Ed. Pierre Faulac, Périgueux, 1964, p. 135. 30

Fragmento do poema O Teatro e a Ciência, publicado em L'Arbalète (Marc Barbezat), nº 13, verão

de 1948, pp. 15-24.

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onde já não mais podia conceber a palavra não-dramatizada ou o texto sem

conflito. Seus textos estão repletos de vozes, gritos, sussurros e explosões

que não obedecem as exigências comuns da forma escrita, mas as da

respiração dramática, onde a fala do homem não é um mero conjunto tipográfico

e, tampouco, um simples valor discursivo, mas – sim – um elemento que o homem

utiliza para se comunicar com todo o corpo, no corpo e mesmo para negar este

corpo, contra o corpo curtição. A dramaticidade é tão marcante nos textos de

Artaud que, mesmo numa simples leitura, podemos perceber a presença de um

interlocutor, ora surdo e silencioso, ora violento e acusador, com quem estabelece

uma parceria ou um antagonismo, como é o exemplo de “Van Gogh”, “Artaud, o

Momo”, “Aqui Jaz” e também nas suas cartas públicas ou particulares e tantos

outros escritos. Outro aspecto interessante e particularmente referente ao teatro é

a tendência de Artaud à dualidade, freqüente na maior parte de seus escritos: “O

Teatro e seu Duplo” (“O Teatro e a Cultura”, “O Teatro e a Peste”, “A Encenação e

a Metafìsica”, “Teatro Oriental e Teatro Ocidental”), “O Teatro e os Deuses”, “O

Teatro e a Anatomia”, “O Teatro e a Ciência”, “O Teatro e a Psicologia”, “O Teatro

Alfred Jarry e a Hostilidade Pública”, “O Teatro e a Crueldade”, etc. Como se pode

observar, esse dualismo varia entre o conflito, a aliança ou a identificação, mas

em qualquer dos casos é uma oposição no diálogo que se estabelece frente a

frente: Artaud diante de si, diante de seu duplo, diante do outro ou dos outros.

Falar do teatro preconizado por Artaud significa distingui-lo em suas duas

vertentes: a destruição do teatro existente e a edificação de um novo teatro. É

claro que são dois caminhos para um mesmo destino, mas não se chega a esse

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destino por nenhum deles em separado, porque estes não estão isolados e

somente podem propiciar a representação de sua unidade se utilizados de forma

dinâmica, ou seja, através do constante e permanente ir e vir de um ao outro.

Assim, pela destruição do teatro existente, se faz necessário rejeitar o teatro como

divertimento, recusar a “representação” e o teatro como mimetismo aristotélico,

desprezar a psicologia, a intriga e o repertório, não se sujeitar à encenação

tradicional, verista ou ilusionista e, por fim, relegar o verbo. Em contrapartida, pela

edificação de um novo teatro que seja capaz de transformar a vida, é preciso

apelar a um espetáculo total, invocar uma linguagem teatral fundada no corpo e na

inspiração, buscar a ressurgência do teatro como cerimônia mágica ou mística,

trabalhar por um teatro de comunicação e de “cura cruel” e ir ao encontro a uma

renovação da vida através do teatro. Desta forma, Artaud se diferencia dos outros

homens de teatro de sua geração que fazem do teatro um fim em si mesmo. Para

Artaud, “o teatro destina-se a todos os que enxergam no teatro não um fim, mas

um meio” e interessa a “todos que se inquietam com uma realidade da qual o

teatro é apenas um signo”, porque “é preciso acreditar num sentido da vida

renovado pelo teatro no qual o homem, impavidamente, torna-se o senhor daquilo

que ainda não existe, e o faz nascer”. Para melhor definir o projeto de Artaud seria

necessário que a palavra “drama” substituìsse o termo “teatro”, levando em conta

que o termo teatro pode ser confundido com uma série de atividades, usos e

limitações do palco tradicional dos quais – talvez pelo fracasso em suas tentativas

de concretizar suas visões – ele propôs uma espécie de renúncia.

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Em prol de uma abordagem mais próxima do dinamismo das propostas de Artaud,

tentaremos demonstrar algumas pequenas fragmentações analíticas de seu

pensamento a partir do “Teatro da Crueldade”. A maioria dos dramaturgos e

teatrólogos tem se equivocado ao limitar a crueldade ao significado imediatista de

um teatro de sangue e terror, pois não se trata de compreender ou atribuir a esse

teatro uma crueldade pura e absolutamente física ou moral, mas de uma

crueldade relacionada ao sofrimento da existência e à miséria do corpo humano,

ou seja, trata-se de uma crueldade ontológica. Essa mesma crueldade pode se

socorrer do sangue e do terror, mas apenas como um meio provisório, pois sua

essência reside na metafísica e está na base da condição humana. Este

pensamento reforça a idéia de destruição, mas – ao mesmo tempo – prepara o

terreno da possibilidade e abre um espaço para a reconstrução, onde “o teatro é

na realidade a gênese da criação”. Mas a caracterìstica fundamental e que

sustenta a distinção da crueldade é o “rigor quase cientìfico que visa a eficácia

terapêutica por meio de um tratamento cruel; a procura das contradições

destruidoras através de recurso sistemático à dissonância”.

Tudo que está no amor, no crime, na guerra ou na loucura, deve ser devolvido pelo teatro para que este recupere sua necessidade.

O amor cotidiano, a ambição pessoal, as intrigas do dia-a-dia, só têm valor quando ligados a essa espécie de horrendo lirismo que existe nos Mitos aos quais coletividades inteiras deram seu consentimento"

31.

Quando se refere ao “Teatro e seu Duplo", assim como em relação à crueldade,

Artaud se torna vítima da visão simplificadora e redutiva do entendimento de sua

31

ANTONIN ARTAUD, Escritos de Antonin Artaud, col. Rebeldes e Malditos, tradução, seleção e

notas de Cláudio Willer, L&PM, Porto Alegre, 2ª ed., 1983.

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proposta. Há três tipos de interpretação. A primeira, pelo não entendimento claro

do conflito artaudiano, Artaud é colocado como um esquizofrênico dividido em si

mesmo e, assim, justifica-se a utilização que faz dos manequins representando os

duplos dos personagens. A segunda interpretação o limita a importância dada às

doutrinas ocultistas pela sua referência à magia, onde estabelece a relação entre

o teatro e a alquimia. Na terceira e mais comum interpretação, é dito que Artaud

define o teatro através da expressão poética, o que o torna mais poeta que teórico

de teatro. O que parece equivocado é estabelecer esse antagonismo, quando – na

verdade – para Artaud, o teatro é o duplo da vida e a vida é o duplo do verdadeiro

teatro. É claro que Artaud é um apaixonado pelas metáforas e pela linguagem de

um encanto especial, mas isso não nos credencia a interpretá-lo reduzido à

contemplação platônica de uma realidade transcendente e invisível. Para melhor

exemplificar as visões poético-teatrais de Artaud em “O Teatro e seu Duplo”,

podemos citar o transe, mas não se trata do transe de uma histeria tresloucada e

tampouco na cegueira de um organismo descontrolado, porém trata-se de

resgatar um dionisismo menos deificado, menos idealizado, onde entrar em transe

seja possível a partir de métodos calculados, como o estudo de sociedades

primitivas pode provar, que se realizam por intermédio de ritos religiosos precisos,

onde nada é deixado ao acaso das improvisações, conforme observação de

Artaud sobre os balinenses. Algo bastante distinto e livre daquilo que nos dias que

correm pretendem os neo-asfixiados pelo pó da pós-modernidade do "performático

demais" (sic).

Mais em busca de uma solidariedade espiritual que de uma pesquisa

estética, Artaud citou diversas vezes em seus últimos escritos: Villon, Baudelaire,

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Poe, Nerval, Rimbaud, Kierkegaard, Van Gogh, Hölderlin... mas foi em Sófocles,

Ésquilo, Eurípedes e, mais precisamente, em Sêneca é que encontrou certos

elementos de sua visão de teatro. Quanto aos elizabetanos, Artaud diz que “se em

Shakespeare o homem, às vezes, se preocupa com aquilo que o ultrapassa, trata-

se sempre, em definitivo, das conseqüências dessa preocupação do homem, quer

dizer, da psicologia” como visão degradada de mundo e, ainda mais, acusa o

próprio Shakespeare como “responsável por essa aberração, por essa

degradação” do teatro. Num certo sentido, Artaud comunga com a idéia do escritor

irlandês Oscar Wilde quando afirmou que a mediocridade dos ingleses se devia ao

fato de lerem apenas dois livros: Shakespeare e a Bíblia. Mas, noutro momento,

Artaud também admitia que na falta de coisa melhor, alguma coisa dos

elizabetanos fosse possìvel, tanto que pensou em fazer um papel em “Macbeth”,

dirigida por Baty, tentou produzir “Ricardo II” e planejou encenar “Arden de

Feversham”, também de Shakespeare, porém apócrifa e adaptada pelo

contemporâneo francês André Gide.

No entanto, alguns dramaturgos e poetas alemães lhe pareciam mais próximos e

interessantes para a sua crueldade e, em especial, Büchner, Kleist e Hölderlin.

Büchner (1813-1837), considerado o seu irmão de sangue, o impressionou

bastante com “Woyzeck” “por seu espìrito de reação contra os nossos princìpios”.

A afinidade de Artaud com Kleist (1777-1811) estava em sua obra carregada mais

de ação que de literatura, a exemplo das peças “Famìlia Schroffenstein” e “Robert

Guiskard” colocadas em destaque no programa do teatro da Crueldade, pois

considerava o autor um “homem de teatro, homem teatral no duplo sentido da

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palavra”. Hölderlin (1770-1843), por sua vez, era reconhecido e reivindicado por

Artaud como um irmão de maldição. Hölderlin, antes mesmo de Artaud, havia

recusado a poesia como um jogo ou uma mera distração e reivindicava a criação

como uma operação mágica, afirmando que "é em vão que, tanto num estado

demasiadamente subjetivo como num estado demasiadamente o objetivo, o

homem busca alcançar sua determinação, que consiste em conhecer a si como

uma unidade contida no divino, harmonicamente oposto, bem como o divino, o

próprio, harmonicamente oposto como a unidade contida dentro de si mesmo.

Pois isso só é possível mediante uma sensação bela, sagrada, divina"32.

Juntamente com Roger Vitrac (1899-1952) e Robert Aron, Artaud criou o Teatro

Alfred Jarry. A princípio, pode-se imaginar que o nome Alfred Jarry não passe de

uma referência honorífica, considerando que os dadaístas e os surrealistas o

tinham como um de seus precursores. Se os dadaístas e os surrealistas são

atraídos por Alfred Jarry (1873-1907) pela sua “expressão de um inconsciente em

estado selvagem”, para Artaud, parece também de grande importância a invasão

do irracional em “Ubu-Rei”, bem como, “a agressão do público e o escândalo da

representação, a destruição das principais convenções teatrais, sendo a

linguagem nobre substituída por um estilo vulgar, gaiato e estúpido” e,

principalmente, por recusar ao mesmo tempo o naturalismo e o ilusionismo que

está na base do pensamento artaudiano. O Teatro Alfred Jarry existiu de 1926 a

1930, tendo montado apenas quatro espetáculos. Uma das montagens, com

32

FRIEDRICH HÖLDERLIN, "Reflexões", Relume Dumará, São Paulo, 1994, p. 46.

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somente duas apresentações, foi “O Sonho” de Strindberg. Curiosamente, o

Teatro Alfred Jarry não encenou nenhuma peça de Alfred Jarry.

Poder-se-ia dizer que – numa primeira fase – entre os dramaturgos que puderam

“incitar” Artaud, está Pirandello (1867-1936). Artaud havia interpretado dois

pequenos papéis nas duas primeiras peças de Pirandello representadas na

França: “A Volúpia da Honra”, montada por Dullin (1885-1949) em 1922 e, “Seis

Personagens à Procura de um Autor”, encenada por Pitoëff (1884-1939), em 1923.

Artaud se impressiona por Pirandello, principalmente, em “Seis Personagens”,

onde percebe a aventura pirandelliana do ir e vir da vida ao teatro, da máscara ao

rosto, do personagem ao autor, o que – de forma bem mais complexa – mais

tarde se torna a idéia do duplo e até a utilização dos manequins do teatro

artaudiano. Talvez influenciado por Roger Vitrac que considerava Pirandello

apenas um mero “sucesso de teatro”, Artaud renuncia a sua admiração e,

inclusive, passa a acusar este teatro por se utilizar de uma certa concepção

psicanalìtica ou, conforme ele mesmo, “esta concepção do homem mergulhado no

êxtase diante de seus monstros pessoais”.

Se se pretende estabelecer uma relação entre Artaud e os futuristas, é importante

avaliar até que ponto a afirmação é verdadeira. Por exemplo, em 1910, o pré-

futurista ou precursor do futurismo, D‟Annunzio, propõe um gigantesco “Teatro de

Festa”, com palco hemisférico, envolvendo parcialmente o público. Depois, já em

1916, o futurista Pierre Albert-Birot funda a revista SIC, onde publica um manifesto

do “Teatro Núnico”(do grego nûn = agora) que queria ser a doutrina do presente,

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do atual e, portanto, do “moderno”. Albert-Birot, em seu manifesto, prevê uma sala

circular com o público no centro e os atores espalhados no recinto sobre uma

plataforma giratória. Albert-Birot relata o desejo de “comunicar uma vida intensa e

inebriante aos espectadores” e, ainda se diz recusar a psicologia, a intriga, o

realismo e a imitação. Enfim, Albert-Birot descreve uma série de elementos que

definem um culto aos processos de discordância e ruptura. Como se pode ver, há

uma proximidade de Artaud com os futuristas, ou seja, pontos em comum onde se

diz respeito a estabelecer um novo espaço teatral e um novo relacionamento entre

espetáculo e espectadores, mas – ao mesmo tempo – é criado um abismo.

Porque onde os futuristas pensam um novo homem, eles o pretendem através de

um agradável delírio, num jogo de prazer quase infantil de exploração e da

descoberta e lidam com o homem em plena saúde, ao passo que Artaud quer a

invenção de uma forma dolorosa de expressão para construir este novo homem

por si mesmo e diante de si mesmo.

Eu deveria ter especificado o uso muito particular que faço dessa palavra e dizer que a utilizo não num sentido episódico, acessório, por gosto sádico e perversão do espírito, por amor dos sentimentos estranhos e das atitudes malsãs, portanto não num sentido circunstancial, não se trata de modo algum da crueldade-vício, da crueldade efervescência de apetites perversos e que se expressam através de gestos sangrentos, como excrescências doentias numa carne já contaminada; mas, pelo contrário, de um sentimento distanciado e puro, um verdadeiro movimento do espírito, calcado sobre o gesto da própria vida e na idéia de que a vida, metafisicamente falando e pelo fato de admitir a extensão, a espessura, a condensação e a matéria, admite, por consequência, o mal e tudo o que é inerente ao mal, ao espaço, à extensão e à matéria.

33

Para se tirar uma certa “originalidade” de Artaud, muitos teóricos têm estabelecido

um parentesco entre ele, o inglês Edward Gordon Craig (1872-1966) e o suiço

33

ARTAUD, 1984.

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Adolph Appia (1862-1928). Do que eles têm em comum, uma coisa é indiscutível:

o fracasso. É claro que todos eles lutaram insistentemente para concretizar suas

intenções, mas na realidade pouco ou quase nada conseguiram. Assim como

Artaud, Appia e Craig também rejeitaram a tradição do realismo histórico na

cenografia. Outro ponto de convergência é a rejeição que todos eles têm pelos

nossos dramaturgos limitados a escritores de palavras e que somente assimilaram

o teatro a um gênero de palavras, ou – conforme Artaud – que condenava o teatro

ocidental submisso à ditadura exclusiva da palavra, a vida passa além e está

antes da palavra da representação fixa e imóvel. Craig e Appia, assim como

Artaud, também criticavam a separação entre o dramaturgo e o encenador, pois

acreditava ser impossível fazer nascer uma arte viva sem acumular as duas

funções, a de autor e criador ao mesmo tempo incumbidos da manipulação direta

da cena. Outra analogia se dá na medida em que Appia e Craig têm uma visão

“totalitária” do espaço cênico, na expressão corporal do ator-bailarino, no poder

sugestivo da iluminação, no valor sonoro da palavra e, enfim, a tentativa de uma

linguagem cênica para uma eficácia sobre o espectador. Até ai, tudo bem, mas os

caminhos se bifurcam quando podemos perceber que Appia e Craig tomam a

estrada para uma espécie de “reteatralização” do teatro pelo surgimento de uma

nova Arte de ordem estética, ao passo que Artaud se envereda em direção ao seu

objetivo de ordem espiritual, enfim, o teatro ligado à “metafìsica”. Afora essa

diferença, o que pesa sobre Artaud para muitos teóricos é o seu tom “messiânico”

e o não reconhecimento da anterioridade de Appia e Craig. Por soberba ou

ignorância? Por ignorância é quase impossível, considerando que tendo

trabalhado com Lugné-Poe, Dullin e Pitoëff não poderia desconhecer Appia, Craig

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e tantos outros, inclusive, escrevera em 1922 que “as conquistas de Gordon Craig,

de Appia, de todos esses libertadores do teatro, vão finalmente encontrar na

França um lugar para se manifestar”.

Atento a todo movimento que entende como uma possibilidade renovadora do

teatro, Artaud faz elogios aos balés russos que acreditava “terem devolvido à cena

o sentido de cor”. Quanto aos teatros russo e alemão, enfatiza a substituição de

um teatro psicológico por um teatro de ação e de massas, inclusive, revela seu

desejo de dispensar atores profissionais, pois “na Rússia são os operários que

representam milagrosamente o Rei Lear”. Levando em conta os grandes

reformadores russos e alemães do teatro, convém pelo menos resumir em que

sentido conseguiram impressionar Artaud. O valor de Stanislavski (1863-1938)

está para Artaud por ele ter se preocupado, além das improvisações, em “levar o

irreal à cena” e encontrar formas para atuar “inconscientemente sobre o

espectador”. A admiração por Meyerhold (1874-1940) se dá pelo seu trabalho

realizado junto a Stanislavski, pela sua recusa à literatura e a divisão entre palco e

platéia, bem como, pela importância atribuída ao corpo do ator, assim como Appia,

na mesma utilização arquitetônica e dinâmica do cenário. Piscator (1893-1966) o

impressiona por ter buscado uma modificação técnica do aparelho cênico em prol

de conferir ao espetáculo um valor de rito e comunhão. E Reinhardt que – apesar

de ter introduzido o palco na platéia – não se contentou por acreditar que o teatro

devia transformar a vida. Enfim, há muitos outros que não se sabe ao certo se

Artaud os conheceu, mas é fato que muito têm em comum, não na totalidade,

porém na tentativa de transformar o teatro a partir de um projeto de novos valores

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para utilização do texto, a ocupação de espaços, etc. Como exemplo, podemos

citar Bertolt Brecht (1898-1956). Há aqueles que o colocam em confronto com

Artaud, entendendo de uma forma limitada que este buscava simplesmente um

teatro de participação, frenesi e irrealismo, enquanto Brecht seria resumido a um

teatro do “distanciamento”, didático e ligado à história. Seria equivocado colocá-los

em universos irreconciliáveis, principalmente, se levarmos em conta o roteiro de “A

Conquista do México”, onde Artaud persiste na concepção de um teatro mágico,

ao mesmo tempo em que se insere no teatro polìtico denunciando “a questão

terrivelmente atual da colonização”. Há um estudo de 1969 – por Guy Scarpetta –,

intitulado “Brecht e Artaud” e publicado em “La Nouvelle Critique”, onde o autor:

... tenta demonstrar que na elaboração de um teatro materialista, a contribuição de Artaud é pelo menos tão decisiva quanto a de Brecht e provoca uma destruição mais radical do que todo teatro anterior”. Quanto aos franceses, apesar de ter trabalhado com muito deles, Artaud os relega para não ser confundido com a “obscura vanguarda da época.

34

Mas convém observarmos que, nessa suposta “elaboração de um teatro

materialista”, Artaud se difere de Brecht e de tantos outros, o que, inclusive, o fez

se afastar do movimento surrealista por ter se tornado “marxista”, considerando

que, mesmo se diferindo da catarse aristotélica, seu “materialismo” não tem

compromisso com o distanciamento ou estranhamento didático brechtiano. O

materialismo de Artaud não é um discurso sobre a matéria, mas é a matéria/corpo

se manifestando como linguagem, onde – se existe uma espécie de logicidade na

mesma, não é algo anterior à experiência, ou seja, a lógica não passa de uma

leitura do fenômeno.

34

VIRMAUX, 1990.

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Mesmo não admitindo a tal “originalidade” de Artaud, o que não se pode negar é a

sua contribuição e influências deixadas aos dramaturgos e encenadores atuais.

Têm-se afirmado que o teatro de Eugène Ionesco e Samuel Beckett devem a

Artaud, sobretudo, no que diz respeito à linguagem. Façamos uma analogia a

partir das palavras do próprio Ionesco, reivindicando a “deslocação, a

desarticulação da linguagem”, com o objetivo de “conduzir o teatro para além

dessa zona intermediária que não é nem teatro, nem literatura”, mas “fazer um

teatro de violência, retornar ao insustentável”. Nestas palavras, podemos

reconhecer um certo toque artaudiano se levarmos em conta que no texto “A

Encenação e a Metafìsica”, Artaud diz que “trata-se de substituir uma linguagem

de natureza diferente. Uma linguagem concreta e física de um homem que

blasfema e vê subitamente materializar-se diante de si, em traços reais, a imagem

de sua blasfêmia”, bem como, noutro momento deste mesmo texto, insiste pelo

“aparecimento de um Ser inventado, feito de madeira e de tecidos, inteiramente

recriado, não respondendo a nada, e no entanto, inquietante por natureza, capaz

de reintroduzir no palco um pequeno sopro desse grande medo metafísico que

está na base de todo teatro antigo”.

Num estudo mais aprofundado, “Os Sepultados no Teatro de Eugène Ionesco”,

Simone Benmussa constata diversos outros elementos que podem confirmar essa

influência e, inclusive, cita que Ionesco conseguiu a “linguagem fìsica” tão

almejada por Artaud, bem como, a utilização de “objetos verdadeiros” e

manequins. Quanto ao parentesco de Samuel Beckett, apesar da dupla Pozzo-

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Lucky e sua “agonia da linguagem”, vai muito além das semelhanças técnicas.

Conforme Morvan Lebesque, Artaud e Beckett são os representantes mais

autênticos do Teatro do Inferno. Só que um deles (Artaud) era um viajante

intrépido, enquanto que o outro (Beckett) hesita ainda no limiar. O primeiro

simboliza o precursor surpreendente, aquele que viu o segundo sol (Paulhan), o

morto-vivo no século, testemunho de uma raça ignota. O segundo, em pé diante

do portal da morte, ainda não passa de um guardião, impiedoso e lúcido,

registrando nossa decomposição”. Enfim, a tragédia do homem-teatro-Artaud

parece ter exercido maior influência em Beckett que propriamente “O Teatro e seu

Duplo”.

Não somente Ionesco e Beckett, mas todos os autores de teatro dos anos 40 e 50,

chamados “vanguarda”, pode-se dizer que trazem essa influência de Artaud. É

claro que, com exceção de Arthur Adamov, nenhum desses dramaturgos

reconhece essa influência. Às vezes, um ou outro admite, mas somente do ponto

de vista técnico do teatro. Henry Pichette, por exemplo, cujo teatro é chamado de

“Teatro de Ruptura”, está caindo na mesma linha do Teatro da Crueldade (teatro

do Incêndio, teatro da Virulência), onde busca a ruptura com a antiga linguagem,

desintegração da palavra e até mesmo o lirismo violento de seus brados de

revolta. Mas esses brados de revolta que por muitas vezes lhe renderam a

comparação, não chegam a atingir a pura selvageria dos de Artaud, com sua

violência e seus eletro-choques, pois não passam de uma revolta tipicamente

“francesa”, comedida e educada, apesar do incêndio e da virulência.

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Arthur Adamov sempre se declarou abertamente em sua ligação com Artaud, de

quem era amigo. Seu teatro recusa o puro diálogo, contém uma atmosfera de

violência e terror, presença de objetos e imagens concretas, além dos ritmos e

progressões da encenação já previstos nos textos de suas peças. Uma das

primeiras peças de Adamov, “A Invasão”, é considerada em parte inspirada na

morte de Artaud. E, se Arthur Adamov ficou mais conhecido por seu teatro político,

não se trata de um abandono a Artaud, mas – sim – de uma evolução dentro do

universo do teatro artaudiano. Bem, existem muitos outros, como Michel de

Ghelderode, Jean Tardieu, Jean Genêt, Armand Gatti, Jean Vauthier, Romain

Weingarten, etc., que direta ou indiretamente são considerados por terem sofrido

uma clara influência, mas – ao mesmo tempo – seria improdutivo citá-los aqui,

pois mereceriam um estudo mais aprofundado e específico para detectarmos o

que eles têm realmente em comum com Artaud, bem como, o que os separa.

Em 1966, Sartre declarou que “se o teatro, como diz Artaud, não é uma arte, se

ele libera como um ato as forças terríveis que dormem em nós, se o espectador

não é senão um ator em potencial, que sem demora vai entrar na dança com toda

a violência que será desencadeada nele, então Artaud parou no meio do caminho.

Efetivamente, é preciso colocar o espectador, caso queiramos ser lógicos como

Artaud, na presença de um acontecimento verdadeiro: isso quer dizer que desta

vez a crença dever ser total. Nesse sentido, a realização contemporânea do

Teatro da Crueldade é o que denominaremos Happening”35. Primeiramente, é

interessante observar que Sartre se equivoca por ter manifestado uma opinião

35

J.-P. SARTRE, Le Point, "mensário nacional de estudantes", Bruxelas, janeiro de 1967, nº 7.

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sobre o Teatro da Crueldade baseando-se quase que unicamente nos manifestos

do Teatro Alfred Jarry. Depois, quando se refere ao “Teatro e seu Duplo”, parece

não ter entendido muito bem que a intenção de Artaud em subverter a relação

palco-platéia não significa necessariamente a preocupação com o espectador em

primeiro plano. Outro deslize de Sartre é ignorar algumas das exigências de um

teatro artaudiano, ou seja, para além da não repetição não se deve omitir o rigor

quase científico do espetáculo, o imprevisto objetivo, etc. Se é que podemos

afirmar a existência de semelhanças entre o happening e o Teatro da Crueldade,

acertadamente, tais semelhanças são insignificantes e não passam de fenômenos

exteriores.

Entre os chamados “herdeiros” de Artaud, está Peter Brook, considerado um dos

poucos homens que, conscientemente, mais se aprofundaram nos escritos

cênicos do autor de “O Teatro e seu Duplo”. Brook, numa primeira fase, tentou dar

vida aos textos de “O Teatro e seu Duplo”, treinou atores metodicamente nas

técnicas do teatro oriental, bem como, se utilizando de um processo de ruptura na

formação psicológica tradicional. Este trabalho era desenvolvido em espaços

privados, considerando que objetivava apenas “um exercìcio de reconstituição

histórica” e não se tratava de mostrar um sentimento sobre Artaud. Noutra fase,

Peter Brook e sua equipe resolveram aplicar os ensinamentos de Artaud a partir

de textos contemporâneos, como “Os Biombos”, de Jean Genêt, e “Marat Sade”,

de Peter Weiss. Esta última foi a peça que mais o aproximou das propostas de

Artaud, tendo em vista que a mesma lhe oferecia mais possibilidades de explorar

a loucura, o crime e um jogo físico dos atores em prol de uma angústia

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propriamente metafísica, além do jogo de espelhos que de certa forma induzia o

espectador. Depois, Brook partiu para o Happening e – mesmo tendo aberto

muitas portas para uma renovação do teatro em profundidade, como no caso de

Édipo, de Sêneca – Artaud já estava em outros planos.

O Living-Theatre, conforme Jean-Jacques Lebel, foi o “único grupo que até aqui

teve coragem de aplicar as idéias de Artaud”36. Apesar do Living-Theatre, através

de seus fundadores Julian Beck e Judith Malina, já desenvolverem um trabalho

desde 1946 e, somente em 1958 terem conhecido “O Teatro e seu Duplo”,

afirmam que o “espectro de Artaud” havia se tornado seu mestre, passando a ser

a musa jamais ausente em seus sonhos.

Nesta pesquisa em Artaud, montaram diversos espetáculos, mas foi em

“Frankenstein”, adaptado do romance de Mary Shelley é que puderam explorar e

englobar mais artaudianamente a dança, o ritual religioso e o psicodrama.

Buscaram, como queria Artaud, renunciar à superstição teatral em relação ao

texto. Fizeram uma “colagem” da Bìblia à Cabala, passando por Ezra Pound, Walt

Whitman, etc., onde as palavras tinham por necessidade extrapolar o sentido

meramente gramatical em prol de sua sonoridade e incidências. Por outro lado,

Julian Beck utiliza a droga como meio de investigação, ao passo que Artaud tenha

se relacionado com a mesma apenas por uma necessidade individual de

sobrevivência psicológica e psíquica. Numa perspectiva mais aprofundada –

levando em conta o fenômeno-happening como "reflexo do mal-estar da

36

J.J. LEBEL, Le Happening, Dossier des Lettres Nouvelles, Denoël, 1966.

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sociedade industrial capitalista" ou, ainda, ligado a outras manifestações de

sensibilidade americana como "as angústias psicomísticas da Beat Generation"37

– o Living-Theatre está bem mais próximo da influência dadaìsta que de “O Teatro

e seu Duplo” e, no mais, ainda está outra vez distanciado por se propagar como

um teatro libertário, pacifista e de vida comunitária, como uma espécie de

sociedade alternativa muito em voga nos anos 60 e 70.

Quanto a Jerzy Grotowski, é interessante observar que – apesar de grandes

coincidências de seu trabalho com os preceitos de “O Teatro e seu Duplo” –

somente veio a conhecer os textos de Artaud em 1964, ou seja, quando já tinha

formado suas próprias concepções técnicas através de suas experiências no

Theatr Laboratorium. A coincidência de Grotowski e Artaud também se dá pelo

abandono do “trampolim que era o texto”, a investigação de uma linguagem fìsica

sobre o corpo do ator, o transe, o rigor, etc. No entanto, também vão se distanciar

as propostas quando Grotowski, mesmo se dizendo incrédulo, está repleto de

ressonâncias cristãs. Depois, enquanto para Artaud “o ator é ao mesmo tempo um

elemento de primeira importância (...) e uma espécie de elemento passivo e

neutro”, ou seja, não mais que um elemento entre tantos outros que compõem o

espetáculo, para Grotowski, o ator é o centro de tudo. E se Grotowski submete o

ator às meras técnicas de domesticação de músculos e nervos, práticas de hata-

ioga, ioga chinesa, psicanálise, etc., Artaud – por sua vez – detesta a ioga, a

37

François KOURILSKY, Le Théâtre aux États-Unis, ed. La Renaissance du Livre, col. Dionysos,

1967.

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psicanálise e preza “uma vontade desesperada e trágica de forjar um corpo

finalmente puro e regenerado”, o corpo sem órgãos.

Enfim, todo o empreendimento teatral de Artaud passa pelo empreendimento

poético, ou seja, a reinvenção do teatro passa antes de mais nada por uma

reinvenção da linguagem, porque para ele o teatro deve ser igualado à vida, não a

vida individual, considerando que a individualidade humana não passa de um

simples reflexo, pois

O interessante nos acontecimentos atuais não são os acontecimentos em si mesmos, mas o estado de ebulição no qual eles mergulham os espíritos, o grau de tensão extrema. É o estado de caos consciente no qual não cessam de nos envolver (...). Pois bem, é dessa atualidade patética e mítica que o teatro se desviou, e é com justa razão que o público se desinteressa de um teatro que ignora a realidade a esse ponto

38.

É dizer que a contribuição de Antonin Artaud não se dá pela mera sistematização

de um novo teatro pronto e acabado para responder às inquietudes daqueles que

não mais se contentam com o caduco teatro tradicional, mas – sim – pela

provocação aos que necessitam assumir a si mesmos como um instrumento de

ação sobre o mundo para mudá-lo, recriando o homem e curando-o, sim, pela

destruição.

38

ALAIN VIRMAUX, "Da Condenação do Teatro Ocidental", in Artaud e o Teatro, Perspectiva, 2ª

ed.,. São Paulo, 1990.

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PALAVRA

As palavras que empregamos me têm sido

passadas e eu as emprego, mas não para me

fazer compreender, não para terminar

de me esvaziar, então, por que?

Antonin Artaud

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Afora seus poemas nos tempos em que era ainda um colegial em Marselha,

possuindo uma boa cultura poética e particular admiração por Edgar Allan Poe,

num certo sentido e, apesar do volume de suas obras editadas pela Gallimard e

reconhecida por um razoável público-leitor, a porta de entrada de Antonin Artaud

no mundo da literatura dá-se imediatamente pela censura. Tudo começou quando

– a 1º de maio de 1923 – enviou um conjunto de poemas para serem publicados

na Nouvelle Revue Française, a publicação literária periódica mais importante da

França. Jacques Rivière, então diretor da revista, agradecendo o envio dos

poemas e justificando a recusa em sua publicação, escreve a Artaud: “Senhor,

sinto muito não poder publicar seus poemas na Nouvelle Revue Française”. Na

verdade, a crítica de Jacques Rivière demonstra a mentalidade dominante da

época nos meios literários, bem como, uma certa resistência ao modo de escrever

dos surrealistas., embora havemos de convir que, nesta fase, Artaud realmente

tem uns poemas sofríveis, principalmente, os incluídos no Tric-trac du ciel.39

SOBRE UM POETA MORTO

Sua alma de poeta, ái, havia partido Entre os sons exemplares e góticos de uma tarde E maravilhosamente entre negras maromas O sol inclinava sua amarelada querena

Então, tinha vindo na minha melancolia Ver os restos deste homem divino e ver A Beleza onde se forma como uma pousada O Sublime Pensamento incontestável e florido. Os órgãos do mar faziam um barulho de multidão, Os cabos rangiam com um barulho de ondulação Entre as chamas de ouro dos círios que choravam.

39

Conforme Gérard Duruzoi, em Artaud, l’aliénation et la folie, (p. 58) nos textos deste poeta,

publicados antes da Correspondance avec Jacques Rivière, tanto no prefácio de Maeterlink (I, 244) quanto no Tric-trac du ciel (I, 251), há uma certa preocupação em demonstrar que havia lido muito e que podia “escrever bem”, assim como, ser capaz de tentar certas imagens “originais”, como acontece com o prefácio de doutor Edouard Toulouse em Au fil des préjugés (I, 242).

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E vozes ascendiam do veludo e do ouro Da grande embarcação que das processions decoravam Aos sons muito suaves assoprando às flautas da morte.

40

Mas, graças ao próprio Jacques Rivière é que Artaud vai ter uma oportunidade de

expor de maneira mais convincente os processos que dão origem à sua escrita, na

famosa carta em que ele responde ao poeta dizendo que seus poemas “me

provocaram grande interesse em conhecer o seu autor” (...).41 A partir desse

momento se inaugura uma interessante e proveitosa correspondência entre o

autor e o editor. E, nesse “confronto”, na questão da linguagem como uma luta

pela auto-expressão, surge um paradoxo, ou seja, é justamente no gesto de

declarar-se incapaz de exprimir seu pensamento que Artaud desenvolve com

“brilho e lucidez” o pensamento sobre a incapacidade ou, melhor, o impoder de

pensar.

A importância dessa Correspondência com Jacques Rivière, que durou mais de

um ano, é tão relevante e reveladora que o editor acaba por se convencer de que

os poemas devem ser publicados e, para tanto, faz uma proposta a Artaud. Mas,

conforme proposta de Jacques Rivière, a publicação dos poemas de Artaud

deveria vir acompanhada da correspondência entre os dois, considerando que –

apesar de seus poemas serem “vagos” e sem “forma” – suas cartas refletiam

sobre o pensamento com uma profunda e “extraordinária precisão”.

40

Sur un poète mort, transcrito por Gérard Durozoi, em Artaud, l’aliénation et la folie, p. 57, tradução

de Wilson Coêlho. 41

ARTAUD, OC, I, 23.

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Sofro de uma terrível doença do espírito. Meu pensamento foge-me de todas as maneiras possíveis, do simples fato do pensamento em si mesmo ao fato externo de sua materialização em palavras. As palavras, a conformação das frases, o fio interior dos pensamentos, as simples reações da mente – estou sempre em busca de meu ser intelectual. Quando, por isso, ocorre apoderar-me de uma forma, embora imperfeita, anoto-a, receoso de vir a perder toda a idéia. Estou abaixo de meu próprio nível, bem o sei, sofro com isso, mas prefiro submeter-me a morrer de vez.

42

Como podemos observar, são atávicas as raízes do „problema‟ ou questão de

Artaud com a palavra, onde o ontológico precede o estético. Não é por acaso que

inúmeros são os escritos e os escritores que, ao mencionarem a obra deste poeta,

enfatizam a sua relação com a palavra. Mas, na maioria das vezes, o fazem

equivocadamente, principalmente, quando essa faz referência se dá em relação

ao teatro. Obviamente, entre o teatro e a poesia, é muito mais fácil admitir o

primeiro sem o uso da palavra, considerando a possibilidade de se utilizar dos

recursos da mímica ou, mesmo sem um texto pré-determinado, através da

dramaturgia como movimento, como ação dramática, a performance, o improviso,

etc, ao passo que – a respeito da poesia – parece absurdo vislumbrar a idéia de

um poema sem palavras. É quase como supor uma página em branco, mesmo

que essa página em branco pudesse se dar como uma possibilidade do

acontecimento.

Primeiramente, convém compreendermos que a palavra não passa de um mero

acordo de aceitação social que fazemos para a suposta designação de objetos,

sejam eles concretos ou abstratos. Isso significa afirmar que todo símbolo ou toda

palavra são signos arbitrários, no sentido de que nenhuma palavra em si mesma

42

ARTAUD, OC, I, 30.

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dá conta de re-presentar ou tornar presente à nossa consciência aquilo que ela

discursa ou pretende se referir de um determinado objeto, ou seja, há um abismo

entre o que a palavra nomeia e o objeto que é nomeado.

Aqueles para quem certas palavras têm um sentido, e certas maneiras de ser, aqueles que mantêm tão bem os modos afetados, aqueles para quem os sentimentos têm classes e que discutem sobre um grau qualquer de suas hilariantes classificações, aqueles que crêem ainda em “termos”, aqueles que remoem ideologias que ganham espaço na época, aqueles cujas mulheres falam tão bem e também essas mulheres que falam tão bem e que falam das correntes da época, aqueles que crêem ainda numa orientação do espírito, aqueles que seguem caminhos, que agitam nomes, que fazem bradar as páginas dos livros,

- são os piores porcos. 43

Mas em Artaud, independentemente do teatro ou da literatura, naquilo a que nos

referimos em relação à palavra, o que está em foco não é o conglomerado de

vocábuios e, sim, a poética no sentido de criação (poiesis). Porque a palavra, em

Artaud, não deve ser unidimensionada, planificada e, tampouco, uma intenção

pré-determinada ou uma mera ficção. A palavra é um mergulho no caos, quebrada

e fragmentada, onde convivem as forças da gênese e da destruição, uma ruptura

entre as fronteiras do eu e do mundo. É a palavra-sintoma, palavra-corpo de uma

realidade não codificada. Não a palavra dada como uma herança de conceitos e

categorias estanques, mas a palavra que se dá. Pois cumpre-se salientar que o

que está em questão não é uma negação absoluta da palavra, mas o poeta,

“denunciando” o hiato que se abre entre suas intuições poéticas e a concretização

dessas intuições em forma verbal, reivindica que a mesma (a palavra) não caia

presa de reiterações de categorias preexistentes, considerando que, conforme

Alex Galeno, referindo-se a Artaud, em sua Carta ao parque dos sábios:

43

ARTAUD, 1991: 64.

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As palavras transformaram-se em exercícios retóricos na

comunicação acadêmica. As áreas do conhecimento são fatiadas em gramáticas herméticas, específicas e não comunicáveis umas com as outras. Disseminam-se idéias e regras, que determinam a sobrevivência no parque àqueles apenas capazes de aprenderem a conjugação de seus

verbos e a deglutição dos conceitos.44

Porque a poesia deve ser entendida também como uma espécie de cosmogonia,

levando em conta que – para Artaud – a ação poética não passa de uma repetição

do ato mítico da criação, onde o jogo de forças utilizado nos processos mentais de

escrever trazem à tona os elementos que são presentes na origem do cosmos,

onde o poeta queima a si mesmo (crueldade), por intermédio das formas que

emergem das palavras como expressões temporárias e que – mesmo através de

palavras, aceitas como tal – criam espaços exteriores à palavra. Mas essa

cosmogonia de Artaud trata-se também de colocar o homem como um

„microcosmo‟, capaz de trazer em si mesmo os processos de criação e destruição

do universo. Daí é que se possibilita a instauração de uma outra linguagem que é

mais eficiente e originária. A linguagem que se estabelece para aquilo que está na

base de toda poesia que se dá como uma espécie de impoderável ruido da

criação, onde – através das imagens transportadas pelos nervos – a carne se faz

verbo. Mas nesta carne que se faz verbo, desenvolve-se a linguagem do corpo

que não apenas ocupa um vazio, mas trata-se de um não-lugar que se faz espaço,

uma poética da carne que se movimenta como numa espécie de thanatographie.

O verdadeiro pensamento, aquele que não se limita à reiteração das categorias preexistentes, o pensamento criador, nasce nos vácuos, nos novos espaços. Criar espaços para que nasça o pensamento, eis um dos

44

GALENO, 2005.

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sentidos da poesia artaudiana. (...) ... não nos referimos apenas à palavra que ocupa o espaço físico como som, ritmo etc. (...) ... materialidade da palavra, mas o problema do espaço extrapola essa perspectiva. (...) ... não se trata apenas do espaço fìsico, „real‟, mas de um „outro espaço‟, anterior à própria linguagem, que a poesia atrai, libera, resguarda, através das palavras que dissimulam essa espécie de silêncio. (...) ... esse vazio prenhe de possibilidades, prestes a se desdobrar, nos remetendo sempre a esse trânsito entre ser e não-ser.

45

O sentido de palavra em Artaud se dá na não-palavra, ou seja, para que a palavra

exista faz-se necessário que a mesma se despoje de sê-la enquanto tal. Em certo

sentido, dá-se como um existencialismo, considerando que – ao se fazer palavra –

a palavra não se sustenta de uma função ou um significado a priori. A palavra é

uma pá que lavra, é uma pá diante do terreno baldio e desconhecido da

existência, onde se cria sulcos para uma tentativa de conhecimento e apreensão

disso que não sabemos o que é, desse vir a ser do espírito que se manifesta,

mesmo através de recursos da glossolalia como, por exemplo, em Pour en finir

avec le jugement de dieu (Para acabar com o julgamento de deus46):

O reche modo

to edire di za tan dari do padera coco

47

Enquanto acontecimento, essa maneira de manifestação do espírito se dá como

uma linguagem, considerando que – na medida em que busca uma dissolução dos

códigos de representação mumificados – Artaud busca outras categorias que

sejam capazes de romper com essas que estruturam nossa mentalidade ocidental,

45

QUILICI, 2004. 46

Artaud faz questão que deus seja escrito com letra minúscula. 47

ARTAUD, OC. Vol. XIII, 1974, p. 84.

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repleta de automatismos e espiritualmente engessadas. Trata-se de uma busca

dos “princìpios”, uma ontologia, espécie de sondagem da experiência originária

que a cultura do Ocidente, até então, tem sufocado ao ser humano. Portanto se,

em Artaud, a carne se faz verbo, não se trata do verbo como uma palavra em si,

mas do verbo em movimento, através da palavra-ação (palavração), palavra-

sopro, essa palavra carne que se faz linguagem. Mas convém observarmos que,

em Ci-gît , o poeta afirma que

Toda verdadeira linguagem

é incompreensível como a bofetada do claque-dente; ou o claque (bordel) do fêmur dentado (em sangue).

48

A palavra, em Artaud, como na fenomenologia, é uma intencionalidade, ou seja,

ela é um ato visando algo, uma busca da consciência. A palavra é uma

consciência, mas assim como na fenomenologia não existe uma consciência pura

e toda consciência é consciência de algo, também a palavra não é a pura palavra.

A palavra é a palavra de. E neste momento é que se manifesta a glossolalia.

Porque as palavras da glossolalia não estariam colocadas como palavras

absolutas, mas como a linguagem dos Anjos, aquela que aparentemente não tem

sentido e que, na verdade, faz do não-sentido um sentido superior. É um ato de

palavração que se faz no palavrear-se. No momento mesmo em que é escrita, no

momento em que é lida, no momento em que é pronunciada, porque quando a pá

lavra, ela é o que é no instante e no modo em que está lavrando. Nessa lavoura,

48

ARTAUD, 1989, p. 95.

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ou nesse ato de lavrar em Artaud, a palavra se transfigura rompendo com os

significados, onde se estilhaça juntamente com o autor desafiando seus próprios

limites. Neste sentido, na tentativa de tornar as coisas tangíveis pela imagem,

Artaud se insurge como uma espécie de „pirata‟ que quer afundar os navios da

guarda-marinha da consciência pré-determinada e, ao mesmo tempo, atacar as

polícias do pensamento. Revolto-me, logo, existo, como Camus em, L’homme

revolté, “je me révolte, donc nous sommes”..

Martin Esslin, em Artaud, ao comentar a afirmação do poeta de que “Se faz frio,

ainda sou capaz de dizer que faz frio, mas pode acontecer também que seja

incapaz de dizê-lo...”, conclui que as três palavras

“eu sinto frio”, pareciam a Artaud incapazes de transmitir o que realmente experimentava ao sentir frio. Para comunicar emoção, substância da poesia, só palavras abstratas não eram suficientes. Daí a poesia utilizar aspectos concretos da linguagem, que se comunicam diretamente ao corpo, elementos tais como a qualidade musical das palavras, a natureza sensual dos sons de que são feitas, a qualidade rítmica do poema que ativa diretamente os ritmos do próprio corpo: o latejar do sangue e a enorme multidão de associações não-verbais inerentes à linguagem e ativadas pela palavra.

49

Trata-se de um atrevimento em habitar – desnudado do ornamento dos órgãos –

no umbigo de seus próprios limbos, quando já não existem fronteiras entre si

mesmo e as alteridades. É o sopro materializado, não como o sopro divino para

animar o objeto de barro pronto e acabado e, tampouco, o sopro do anjo ordenado

a matar o ímpio. Mas em Artaud é a palavra-sopro, a palavra ganhando corpo, que

49

ESSLIN, 1976, p. 66.

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trespassa a si própria e, ao mesmo tempo, se deixa atravessar por outros e novos

sopros, povoada de sensações, pulsações e rítmos que inauguram espaços, como

um rito entre vida e morte, um gingado da existência no processo de implosão e

explosão da pirâmide disfarçada de berço e de túmulo em uma civilização que se

pauta nesses termos. Trata-se de um movimento onde os fonemas superam a

linguagem formal, a partir de um dinamismo interno do corpo que impulsiona a

expressão da palavra, para além do universo de significados estáticos. São

fonemas próximos da respiração, do grito arrancado do corpo, com jogos de

sonoridade, passando pela abracadabragem. Uma palavra lida em todos os

sentidos. Um princípio de escrita que, por fim, acede à via total. Mas o princípio e

o fim são os mesmos, considerando que o princípio só é principio se tiver um fim,

não como uma finalidade ou um fim em si mesmo, mas um fim que já existe no

princípio como proposta e objetivo. Da mesma maneira, um fim que só pode ser

fim se puder ser a plenitude da realização do objeto do princípio.

... latrinas da morta ossuda

50

que traspassa sempre o mesmo vigor morno,

do mesmo fogo, cujo antro inovador de um nó

terrível enclausurado de vida mãe é a víbora

51

de meus ovos.

Pois o fim que é o princípio. E este fim

50

No verso de Artaud, está escrito: “latrines de la morte osseuse”. A palavra “osseuse poderia ser traduzida como “ossosa”, mas preferi “ossuda” por entender que é mais coerente com a linguagem do poeta. 51

Aqui há um jogo de palavras que a tradução prejudica, ou seja, Artaud usa no verso anterior a expressão vie mère (vida mãe) e, em contraposição, nesse verso ele escreve vipère (víbora) que, apesar da escrita diferente, tem o mesmo som de vie père (vida pai).

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é ele mesmo quem elimina todos os meios.

52

É dizer que a palavra não é um mero elemento que – num processo de

empilhamento de palavras sobre outras palavras – compõe uma construção do

pensamento, considerando que o pensamento se dá na medida em que a palavra

é colocada, como uma dissolução da idéia que distingue a forma do conteúdo. O

que tampouco significa que a palavra seja entendida apenas como um veiculo que

tem por finalidade transportar uma idéia. Trata-se, não da palavra do ente, mas da

palavra do ser através do ente com e pelo corpo que, na medida em que é

revelada, nega-se como “obra” e, consequentemente, como literatura. É a palavra

não-palavra, impregnada de tensão, um grito ontológico, o que implica afirmar

que, conforme Cassiano Sydow Quilici:

O grito não é necessariamente a emissão de um som inarticulado e estridente. A palavra pode ser „palavra-grito‟, se é resposta primeira a esse impacto originário, a essa apreensão da vida como „crueldade‟. (...) Não apenas a dor física e psiquica, possivelmente associada aos diversos problemas de saúde de Artaud, mas também a dor ontológica, de sentir o pensamento e a própria existência se desgarrando continuamente. A „palavra-grito‟ emerge desse impacto e ao mesmo tempo o acolhe, garantindo a conexão entre a expressão e a „vida‟.

53

É dizer que o grito, para Artaud, provém da “finura das medulas”, o cerne da carne

que se faz verbo, a carne geradora de pensamento. Os caminhos do pensamento

refeitos a partir das vibrações de sua língua como uma apropriação secreta e

profunda da dor de existir. Não se trata de um intelecto centralizado no cérebro,

mas de uma mente que habita o que é a própria carne. Uma espécie de

52

ARTAUD, 1989, 83-84. 53

QUILICI, 2004.

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aproximação de Shopenhauer em “As dores do mundo” e, também, em “O mundo

como vontade e representação”, quando afirma que o mundo é vontade e que, o

intelecto, entendido como a consciência, serve apenas para reprimir ou justificar

essa vontade que está na carne.

O tempo em que era uma árvore sem órgãos nem função, mas de vontade e árvore de vontade que anda, voltará. Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo, ingestão, assimilação, incubação, excreção, o que existiu criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam ao domínio da vontade decisora, a vontade em que cada instante decide de si, porque assim era a árvore humana que anda, uma vontade que decide a cada instante de si, sem funções ocultas, subjacentes,

[que o inconsciente rege. 54

Enfim, depois da idéia de desintegração da palavra, esta entendida como uma

categoria pronta e acabada que se elege absoluta, temos três movimentos, ou

seja, (a) a relação entre a escrita e a fala, propondo o corpo sem órgãos, (b) a

recusa de uma sintaxe a priori como uma proposta de corpo sem carne ou o

retorno ao osso e, como desfecho ou complemento da tríade, (c) a negação do

estilo e do gênero, como a carne que nasce do osso. Não se trata apenas de um

fim, mas o fim e o começo.

No processo de destruição surge a possibilidade da reconstrução. É aqui que o

homem, a partir de seu osso, vai se recriar, livre de todos os maneirismos e das

54

ARTAUD, 1998.

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superficialidades da escrita. É o reencontro do pensamento com sua gênese. O

ato criador que faz com que o ser se revele a partir do homem, nas passagens do

ser ao não-ser e, enfim, ao devir, como uma possibilidade do homem recriado do

osso, da sua própria estrutura. Assim se revela o verdadeiro espírito artaudiano,

onde a poesia se dá na peleja entre a linguagem e seus formatos, nas vibrações

sonoras, um abismo aberto entre o homem e seus duplos.

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84

ENTRE A ESCRITA E A FALA

(CORPO SEM ÓRGÃOS)

Estas notas que os imbecis julgarão

do ponto de vista da seriedade

e os sabidos do ponto de vista da língua

são um dos primeiros modelos, um dos primeiros

aspectos disso que eu entendo pela

Confusão da minha língua. Elas se dirigem

ao confuso do espírito, aos afásicos

pela parada da língua.

Antonin Artaud

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85

Primeiramente, a desintegração da palavra, em Artaud, se dá no plano da escrita

mesmo, ou seja, para ele, entre o “pensamento” e a expressão existe o estado

não formulado e pré-verbal, como uma possibilidade de, conforme Esslin,

“encontrar meios e modos de transpor o espaço em branco e entre esse

pensamento amorfo, ainda não criado e sua expressão”. A partir da idéia da

possibilidade de se escrever como se fala ou escrever simples e sem alegorias,

abre-se um espaço para se escrever como se tem vontade de falar e, nesse

sentido, faz-se necessário compreender, em Artaud, a relação entre a escrita e a

fala. Não somente em seu discurso estético, mas, também, a partir de seus textos

mesmos, aqueles entendidos como “literários”, independente de seus formatos de

contos, poemas, crônicas, cartas, peças, críticas, desenhos, etc. Daí, a escrita não

se resume a um mero exercício de vontade de falar e, tampouco, esta se dá como

a “fala” do desejo, do espontâneo, mas a fala da vontade, do que está em

potência. Uma vontade que, ao se realizar na fala-escrita-fala, é o mesmo, ou

seja, a verdadeira manifestação do espírito isenta da necessidade dos artifícios e

maneirismos comuns à chamada literatura e à arte do “bem dizer”. Porque a

poesia não pode se limitar a um mero exercício de psitacismo55, ou seja, uma

perturbação psiquica de uma repetição de palavras sem se ter em mente as idéias

que as mesmas representam.

Nesse sentido, parece que – se, conforme alguns teóricos da literatura, esta é

dividida entre o normativismo e o descritivismo – Artaud não está em nenhuma

dessas possibilidades ou, caso contrário, não há como separar esses “modos de

55

Do grego, Psittacos, papagaio.

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ser”. Compreendendo a atitude normativa como a que diz o que deve ser e como

se julgar o literário do não-literário, bem como, a atitude descritivista como a que

diz o que é a literatura aberta às especulações, pode-se afimar que Artaud não

admite esse normativismo esquemático muito mais preocupado com as normas

em si do que com o objeto em questão que é deixar falar o espírito. É por isso sua

recusa em admitir a palavra que engessa e mumifica o espírito, acreditando na

necessidade de “despedaçar a linguagem para tocar a vida”.56 E desse

despedaçamento da linguagem, Artaud chega mesmo, nos últimos tempos de

Rodez e Ivry, a não mais escrever sem desenhar ou desenhar sem escrever.

Porque o verdadeiro trabalho está nas nuvens. Palavras, não, placas áridas de um sopro que dava som pleno mas lá onde o Último Julgamento poderia distinguir os valores, as evidências

quanto ao texto, no sangue mudado de qual maré eu poderia fazer entender a corrosiva estrutura, eu digo entender a construtiva estrutura, lá onde o desenho ponto por ponto não a restituição de um furado, do avanço de uma perfurada nas profundezas do corpo sempiterno latente. 57

Mas, pelo outro lado, também vale observar que o poeta não pode ser visto como

um partidário do descritivismo, considerando que a poética artaudiana, por mais

que se queira afirmar pelo despedaçamento, não abre mão de um certo rigor.

Porque para se chegar ao “corpo sem órgãos”, é necessário o rigor do ritual. Mas

pode-se compreender que, em Artaud, a idéia de ritual significa não apenas

56

ARTAUD, OC, IV, 18. 57

ARTAUD, 1995, 56.

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colocar este descritivismo-categoria em xeque, considerando que a mesma

também se trata de uma representação e, ainda conforme Artaud, que a vida é a

origem da impossibilidade de representar o não-representável.

Por mais que o ritual proposto por Artaud se pareça solto e descomprometido com

um determinado fim aparente, ele (o rito) tem sua ordem interna e, mesmo no

transe, trata-se de um conjunto de atos e práticas. Ao preço de “perder” a

literatura, Artaud assume a vida como possibilidade criadora. Mas Artaud sabe

enfim que pretende também a literatura como um “corpo sem órgãos”, obsessão

recorrente em toda sua obra. Os órgãos são o que estraga, o que perverte a

noção de homem, porque eles vão na direção da idéia de unidade, mas essa

unidade está impregnada do pensamento europeu cristianizado e mumificado.

Daí a negação da literatura e, muito mais, sua afirmação da inutilidade da obra.

Onde outros propõem obras eu não pretendo senão mostrar o meu

espírito. A vida é queimar perguntas. Não concebo uma obra isolada da vida. Não amo a criação isolada.

Também não concebo o espírito isolado de si mesmo. Cada uma das minhas obras, cada um dos planos de mim próprio, cada uma das florações glaciares da minha alma interior goteja sobre mim.

(...) É preciso acabar com o Espírito, tal como com a literatura. Afirmo

que o Espírito e a vida comunica a todos os níveis. Gostaria de fazer um Livro que perturbasse os homens, que fosse como uma porta aberta e os conduzisse onde nunca teriam consentido ir, uma porta simplesmente conectada com a realidade.

58

Há também que se distinguir o processo de despedaçamento e o “corpo sem

órgãos” em Artaud. Não se pode confundir os momentos e instâncias em que cada

58

ARTAUD, 1991.

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uma dessas ações se dão. Obviamente, existem algumas confluências,

considerando que tanto a idéia do despedaçamento quanto a do “corpo sem

órgãos”, existe uma vontade da reconstrução e a crueldade. Aqui, crueldade e

vida podem ser apenas duas formas de dizer do mesmo: “eu disse crueldade

como poderia ter dito vida” 59 e, ainda, “uso a palavra crueldade no sentido do

apetite de vida”60, mas isso não tem nada a ver com uma questão particular da

vida, mas com uma condição inexorável da existência que deve ser encarada de

frente, uma forma direta de se colocar em jogo, sem subterfúgios, em prol do

homem e sua necessidade de alcançar uma nova condição que, conforme já

também citado por Quilici:

Eu deveria ter especificado o uso muito particular que faço dessa palavra e dizer que a utilizo não num sentido episódico, acessório, por gosto sádico e perversão do espírito, por amor dos sentimentos estranhos e das atitudes malsãs, portanto não num sentido circunstancial, não se trata de modo algum da crueldade-vício, da crueldade efervescência de apetites perversos e que se expressam através de gestos sangrentos, como excrescências doentias numa carne já contaminada; mas, pelo contrário, de um sentimento distanciado e puro, um verdadeiro movimento do espírito, calcado sobre o gesto da própria vida e na idéia de que a vida, metafisicamente falando e pelo fato de admitir a extensão, a espessura, a condensação e a matéria, admite, por consequência, o mal e tudo que é inerente ao mal, ao espaço, à extensão e à matéria.

61

E, no sentido desta crueldade, há o “despedaçamento” da linguagem para que

outra linguagem possa ser construída, no percurso do saber para o não-saber

como outra forma dinâmica de saber. Assim, Artaud carrega consigo, para o outro

e para si mesmo, esse ato de crueldade, esse furor iconoclasta que quer implodir

tanto a pirâmide hierárquica quanto a parede que separa o lado de dentro do lado

59

ARTAUD, OC: IV, 110. 60

ARTAUD, OC: IV, 98. 61

ARTAUD, OC: IV, 110.

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de fora, derrubar a fronteira que quer apartar a arte do espírito. Assim, o poeta se

utiliza diversos recursos, desde o despedaçar do silêncio até o rompimento com

os padrões estabelecidos, passando pela glossolalia, os recursos onamatopáicos,

a espacialização do texto na página, a instituição de tipografias, os brancos e

espaçamentos inadvertidos, as rasuras no léxico francês e, é claro, as explosões.

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90

NÃO À SINTAXE COMO UM A PRIORI

(CORPO SEM CARNE OU O RETORNO AO OSSO)

Todos os termos que escolhi para pensar

são para mim termos no sentido próprio da palavra,

de verdadeiras terminações, de meus resultados

mentais, de todos os estados que eu fiz subir

ao meu pensamento. Eu sou realmente localizado

pelos meus termos, e se digo que sou localizado pelos

meus termos, é que eu não os reconheço como

válidos no meu pensamento. Eu estou realmente paralisado

pelo meu pensamento, eu não posso fazê-lo

passar por estes termos, tão contraditórios

a si mesmo, tão paralela, tão equivocados que eles

possam ser, sob penalidade de me render a

estes momentos de pensar.

Antonin Artaud

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Mas nesse movimento de desintegração, depois de ter proposto o “corpo sem

órgãos”, convém-nos lembrar que Artaud propõe, agora, uma raspagem da própria

carne, ou seja, o corpo sem carne, o imundo, como uma espécie de estar “fora do

mundo”, entendida esta carne como referência significante de um território

localizado. Artaud opta pelo não-nomeado, o completamente outro e

desconhecido, unidades de articulação, “essas sìlabas que invento”, livres de

todas as codificações. O estranho diante de si mesmo e do nada, transbordando

os limites da linguagem e exigindo novas formas de compreender o mundo, livre

de todos as codificações até então concebidas e aceitas. Porque ao se

compreender a carne como corpo, essa deve ser raspada, tendo em vista as

“representações” acordadas como categorias estruturantes de nosso

funcionamento mental, onde o social define os limites entre o humano e o não-

humano.

O corpo é uma multidão excitada, uma espécie de caixa de fundo falso que nunca mais acaba de revelar o que tem dentro E tem dentro toda a realidade. Querendo isto dizer que cada indivíduo existente é tão grande como a imensidão inteira, e pode ver-se na imensidão inteira.

62

Este segundo momento da desintegração, considerado como conseqüência

necessária e evidente, se dá na sintaxe, ou seja, na forma gramatical como as

palavras são usadas dentro das frases, bem como, as relações das frases entre si.

Mas não se trata de uma guerra ou postura absoluta contra à sintaxe, porém uma

recusa a sujeição de um pensamento à sintaxe. Uma rejeição da sintaxe como

uma camisa de força para a manifestação do espírito. Isto significa abolir a

62

Última aparição de Artaud numa conferência de Artaud, intitulada “Tête a Tête”.

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sintaxe? Não! Mas usar a sintaxe até o limite onde ela não possa mais ser um

divisor de águas entre o pensamento e o não-pensamento, entre a linguagem e o

silêncio, entre a escrita e o desenho e entre a música e o grito. Significa afirmar

que na escrita, para Artaud, há que se estabelecer uma espécie de suspensão,

próxima a da fenomenologia, no que diz respeito à formação da consciência. Mas

aqui trata-se de suspender a forma gramatical que é quase sempre colocada

anterior e como uma espécie de fôrma para o pensamento congelado. Equivale a

idéia de que, conforme o discurso artaudiano, a sintaxe não dever ser considerada

como um a priori para aquilo que se quer dizer. Há uma recusa em se sujeitar o

pensamento à sintaxe, considerando a escrita como o sopro do espírito ou, como

ele mesmo diz em “O Pesa-nervos”, “esses estados que nunca são nomeados,

essas situações iminentes da alma, ah, esses intervalos do espìrito”.

Eu sou, parece, um escritor. Mas o que escrevo? Eu faço frases. Sem sujeito, verbo, atributo ou complemento. Eu aprendi palavras, elas me ensinaram coisas. A minha vez de ensiná-las uma maneira de novo comportamento. Que o pommô de tua tuve patán teu estrumêne um bivilt aní vermelho ao lumestan do cadastro utrán. Isso quer dizer que o útero da mulher vira vermelho, quando o Van Gogh o

louco protestador do homem se mete em marcha dos astros de um [demasiado

soberbo destino. E isso quer dizer que é tempo para um escritor fechar a loja e deixar a carta

escrita para a carta. 63

Conforme observado no capítulo anterior, além das variadas formas como Artaud

emprega a palavra, especialmente, no poema Ci-Gît, há diversos níveis de leitura,

63

ARTAUD, 1995, p. 60. Poema escrito em 1947 e publicado pela Gallimard, no Luna-Park, no 5, outubro de 1979.

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tanto na escrita ela mesma, como pela voz, passando pela sonoridade, onde ele

se utiliza do francês normativo, a gìria, a “desconstrução” da sintaxe a priori e,

enfim, a glossolalia. Considerando o homem como resultado de suas vivências e

ações que o fazem transcender ao seu mero nascimento, não se pode negar que

o emprego da glossolalia não tenha em Artaud algumas chispas de sua vida

pregressa: uma infância onde transitava entre as intensas mestiçagens de povos

gregos, turcos, italianos e franceses, destacadamente, o grego falado

cotidianamente pela avó Mariette Nalpas64, bem como, resquícios de sua estada,

numa grande e considerável parte de sua vida, em diversos manicômios tratado

como uma pessoa supostamente com problemas mentais, com outras pessoas

também portadoras de problemas mentais. A partir daí, a glossolalia artaudiana é

compreendida por muitos de seus críticos quase como um esperanto, ou seja, a

possibilidade de uma língua ser entendida em qualquer lugar.

Mas reduzir a esses termos a glossolalia artaudiana é cair numa armadilha muito

frágil e se tornar presa de psicologismos e sociologismos baratos. Nessa direção,

para justificar os “delìrios” e movimentos da glossolalia, seria até mesmo possível

que algum crítico ou biógrafo aventureiro lhe atribuisse, devido ao contato com o

turco, uma herança sufista dos Derviches, cuja dança, de rodopios embriagantes,

procurava colocar os iniciados em harmonia com o movimento dos astros,

induzindo-os, dessa forma, a um estado de êxtase místico. Pelo lado grego, ainda

poderia ser-lhe agregado a influência de Dioniso, conhecido como o deus do vinho

e da embriaguez, o deus estrangeiro esquartejado (despedaçado) pelos Titãs.

64

Muitos dos escritos de Artaud são assinados como Nalpas.

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Mas tudo isso pode não passar de conjecturas que procuram o significado de uma

coisa fora dela, pois em Artaud, a glossolalia65 não se resume a um mero

fenômeno histórico e/ou sobrenatural em que o poeta é capaz de falar diversas

línguas ou línguas desconhecidas e, tampouco, trata-se da produção de uma

linguagem inventada com vocabulários e sintaxes fixos. Na glossolalia artaudiana,

os significados das palavras são flutuantes e significam no momento mesmo e em

cada vez que se realizam com eficácia, quando o texto se realiza materialmente

na relação entre o corpo de seu intérprete com a carne do auditor.. Novamente,

aqui a idéia de que a pá lavra e que, muitas das vezes, ao ato de lavrar, se torna

uma pá lava, a língua do vulcão, a língua de fogo, como o Espírito Santo dos

cristãos, a fala-língua de várias línguas. Da glossolalia às glossolalínguas.

schramm tau cromant schraum tau cramant schramm tau schraumant schraum tau schramment schramm tau schramment schraum tau schraumment schraum tau schramment schraum tau schraumment

66 De acordo com Cristiano Florentino, ao comentar esses versos que Artaud

escreve a partir do sobrenome de sua ex-noiva belga Cécile Schramme, esse

poema glossolálico

... cria o efeito de um mantra, essa sílaba, palavra ou verso que se repete indefinidamente, gerando um canto, um rito sonoro que alcança uma música mágica e encantatória que está fora da impostura do signo. Mais uma vez, o poeta enlaça, num único evento, voz e escrita, corpo e letra.

67

65

Do grego glossa, língua + laleo, falar. 66

ARTAUD, 1983: 226. 67

FLORENTINO, 2005.

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NEGAÇÃO DE ESTILO E GÊNERO

(A CARNE NASCE DO OSSO)

O estilo me causa horror e eu percebo que

quando escrevo eu o faço sempre, então

queimo todos os manuscritos e não me

restam mais que me venha um sufocamento,

ofegante, um estrangulamento em não sei quais

basfonds porque aquilo que é verdadeiro.

Antonin Artaud

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No terceiro plano, existe a necessidade de desintegração do estilo ou do

estabelecimento de alguns formatos aceitos como a suposta arte de bem dizer.

Equivale afirmar que quando algo tem que ser dito, para Artaud, fica quase

impossível enquadrá-lo num conceito ou modelo pré-determinado. Como exemplo

disso, sua obra é diversificada e na maioria dos casos é quase impossível

distinguir as fronteiras entre um gênero literário e outro (poesia, romance, crônica,

peça de teatro, ensaio, “carta”, etc), ou seja, aquilo que Artaud persegue, no

sentido de sua essencialização, está presente em todas as formas com que ele se

manifesta, uma poética do pensamento, do Espírito que resulta dos atritos da

carne, da existência.

Eu não concebo nenhuma obra separada da vida. Eu não gosto da criação separada. Eu não concebo tampouco o

espírito como separado de si próprio. Cada uma das minhas obras, cada um dos planos de mim mesmo, cada uma das florações glaciais de minha alma interior baba sobre mim.

Eu me reencontro tanto em uma carta escrita para explicar a contração íntima de meu ser e a castração insensata de minha vida, quanto em um ensaio que é exterior a mim mesmo, e que se me aparece como uma gravidez indiferente de meu espírito.

68

Faz-se importante frizar que, além de sua contribuição para uma episteme menos

ligada aos cânones no combate aos princípios racionalistas das chamadas obras-

primas, Artaud, a partir de seus escritos em forma de cartas, desenvolve um

modo mais ensaístico para a criação poética, a discussão científica e a elaboração

literária, como uma espécie de nova lógica que não tem necessariamente que

obedecer as leis da racionalidade moral, mas que se funda e se apresenta

68

ARTAUD, 2004: 207.

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justamente como a possibilidade do olho em estado selvagem, o olhar desnudo

dos conceitos..

Admitindo que, em Artaud, a carne se faz verbo e, ainda, que ele escreve com

todo o corpo, faz-se necessário compreender sua luta pela descolonização desse

corpo. E essa descolonização se dá como vontade de despedaçar os organismos

que têm servido de enquadramento para o corpo. Trata-se de um movimento para

que o poeta possa criar espaços para a vida, considerando que, para Artaud, o

organismo aqui não representa a estrutura biológica, mas implica numa operação

social sobre o corpo que até então o tem tornado funcional e dócil e, até mesmo,

conforme Chaudanne, um “corpo-curtição”, contra os fenômenos profundos do

corpo.

No ambiente do culto ao corpo são e belo que estamos vivendo

atualmente, a proposta de Artaud de passar de novo na mesa de cirurgia para reconstruir seu corpo que saiu errado das mãos do Criador, opõe-se radicalmente ao narcisismo da saúde corporal; porque,para Artaud, este corpo tão falado não é o corpo curtição, não é o cadinho de chispas dionisíacas, não é o lugar geométrico do prazer sempre recriado.

(...) ... Artaud gesticula na fogueira de seus ossos flamejantes e cria um espaço ossificado onde o Gólgotha e a hierarquia celeste desmoronam na singularidade de Artaud-le-Momo (Artaud-o-pirado), do homem que não foi filho do homem, do homem que não foi filho de Deus, de um dos poucos homens que foi filho de si mesmo, e filho da cristalização tão procurada no meio da carne relaxada.

69 Ainda no que diz respeito à relação de Artaud com o corpo, neste estágio, depois

de ter passado pela definição do que para ele significa a palavra, bem como,

“Entre a escrita e a fala (corpo sem órgãos), “Não à sintaxe como um a priori

(corpo sem carne ou retorno ao osso)” e, finalmente, “Negação de estilo e gênero

69

CHAUDANNE, 1989.

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(A carne nasce do osso)”. Neste percurso se completa a dicotomia

destruição/construção. É dizer que para compreender Artaud nesta trilogia convém

uma análise mais atenta ao que afirma Paule Thévenin sobre Le retour d’Artaud le

Momo. Para essa atriz e grande amiga do poeta, tendo inclusive participado das

gravações de Pour en finir avec le jugement de dieu, juntamente com Antonin

Artaud, Maria Casarés e Roger Blin, Le retour d’Artaud le Momo é como um

poema concreto que possui órgãos e que deve ser compreendido, ao mesmo

tempo, tanto numa leitura horizontal quanto vertical. De acordo com Durozoi, este

poema

“... tem uma lìngua e gengivas, um nariz e orelhas, um ventre e um ânus, um pênis e testítulos, uma vagina e um útero; enfim, ossos, joelhos e uma forte mão”

70, indicando assim até que ponto o poema é (re)constituição

voluntária do próprio corpo, é dizer, um corpo no qual os órgãos já não são alienantes, mas que estão, pelo contrário, re-inscritos como convém, “um corpo apertado e sem encetadura”. Daì o recurso de Artaud, sobretudo nos textos escritos depois de Rodez não as palavras compostas ou levadas ao seu sentido etimológico, senão construídas agora por fonemas (no sentido linguístico estrito: unidades de articulação sem significação).

71

70

Paule Thévenin citada por Durozoi, p. 219. 71

DUROZOI, Gérard. Artaud: l’aliénation et la folie. Paris: Larousse.

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CONCLUSÃO

Igualmente a poesia absoluta é a essência

metafísica, não que ela exprima idéias

extremas, mas porque ela é estas idéias extremas,

devolvidas à atividade, ela exprime os estados

intelectuais decisivos, retoma este poder

de dissociação, de despenduramento.

Antonin Artaud

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Afirmar que uma conclusão não chega a concluir ou pôr termo a um objeto em

questão, quando se trata de uma pesquisa, pode parecer uma tautologia,

considerando que o fim de uma investigação abre novas portas para a indagação

e novas questões surgem a partir do resultado obtido, principalmente, porque – ao

elegermos um tema – tantos são os outros que nos passam à margem. Mas isso

que passa à margem também não significa uma anulação, levando em conta que,

à miude, muitos dos elementos que supostamente escaparam ao foco central de

nosso objeto acabam sendo convocados para justificar e sustentar a idéia

estrutural, a partir de um diálogo quase que permanente, mesmo que pela

negação.

No caso de Antonin Artaud, fechar a questão como um entendimento definitivo soa

próximo de uma impossibilidade, tendo em vista duas realidades que se abrem. A

primeira, pelo caráter polifacético desse personagem que transitou pelos mais

diversos caminhos. Sua vida e obra quase se confundem e ambas são repletas de

pegadas muitas vezes e, aparentemente, contraditórias, mas é justamente nesses

momentos em que afloram as contradições é que Artaud se revela, de qualquer

lugar onde se encontre. Desde o palco às telas, como ator e diretor de teatro e

cinema, passando por roteirista, desenhista, poeta, escritor, cenógrafo, teórico das

artes e, ademais, um ser humano inquieto que provocou ao munto da psiquiatria

repensar critérios para dirimir os limites entre a sanidade e a loucura. Depois, no

que diz respeito mesmo ao tema proposto para esta pesquisa, torna-se ainda mais

complexo, considerando que esta, a palavra, transpõe diversas perspectivas e

transcende às definições da mesma como um amontoado de letras e fonemas,

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bem como, não se resume ao objeto escrito, mas se revela e se rebela a partir da

sonoridade, do movimento e, ainda, por se manifestar no pensamento como um

percurso pelo não-pensar, uma espécie de metafísica experimental.

Muito mais que um levantamento bibliográfico como tentativa de suporte para a

exploração do tema, esse trabalho é resultado de outras experiências, de uma

pesquisa de campo in loco, através de montagens de espetáculos, oficinas em

presídios, visitas a manicômios e, ao mesmo tempo, debates com especialistas,

interessados e acadêmicos. Uma trajetória de 24 anos, ou seja, desde 1982,

quando comecei a escrever a peça Antonin Artaud – atos de crueldade, com a

qual fui classificado em 1º lugar no VIII Concurso Capixaba de Dramaturgia, tendo

recebido o prêmio “Cláudio Bueno Rocha”, no ano de 1987. Ainda neste mesmo

ano, foi fundado o Grupo Tarahumaras, cujo nome é uma homenagem ao povo do

México visitado por Artaud em 1936. Daí em diante, todo o trabalho do grupo,

leituras, pesquisa de corpo, música, história, etc, foi em função da montagem do

espetáculo premiado.

Nesse processo de montagem, passaram mais de duzentos atores para, no final,

conseguirmos apresentar o espetáculo com 16 atores, num sistema de coringa,

interpretando 84 personagens. Apesar de irrelevante para a história do grupo,

insiro a informação devido ao tema que aqui exploramos, consta que neste

primeiro espetáculo, ao participar de um festival72, Antonin Artaud – atos de

crueldade recebeu os prêmios de “Melhor Texto”, “Melhor Espetáculo” e “Melhor

72

IV FECATE – Festival Capixaba de Teatro, realizado em Vitória, 1988.

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Direção” e, ainda, indicação de Melhor Ator, além de elogios, inclusive, na

imprensa local, por parte de Gerd Bornheim representando o corpo de jurados.

Isto posto, o percurso para a realização desta obra (dissertação) ultrapassa, em

muito, as necessidades para tal. E é justamente nesse ponto que sempre nos

pareceu residir o maior problema, ou seja, o que fazer com todos os frutos

colhidos quando a fome seleciona a sua forma de se saciar? E, na tentativa de

saciar essa fome, quais os frutos seriam os mais nutritivos? Os mais amargos ou

os mais agradáveis ao paladar? Nesse sentido, este trabalho tenta conciliar a

fome com a vontade e a necessidade de comer.

Num primeiro momento, entendido como uma forma de introduzir o tema Antonin

Artaud: a linguagem na desintegração da palavra, fez-se necessário esclarecer

uma espécie de itinerário por onde cursaria o processo da pesquisa, ou seja,

definir a proposta e metodologia que serviria de referência para o alcance de tal

objetivo.

Depois, tendo em vista a tentativa de associar a investida de Artaud na produção

de uma arte, não somente do ponto de vista teórico, mas como uma prática de

vida, um existencialismo, tornou-se imprescindível estabelecer uma conexão entre

outras tendências de manifestação da atividade criadora e, por umas e outras

razões como a contemporaneidade e a coincidência de alguns fatores sociais,

bem como, o aspecto de ruptura de linguagem, nada melhor do que Guernica, de

Picasso. Uma possibilidade de estabelecer relações ou aproximações – mesmo

que em alguns aspectos contraditórios e antagônicos – entre as formas de

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linguagem que aproximam e distanciam Antonin Artaud e Pablo Picasso, através

de suas obras, respectivamente, o poema Ci-gît (Aqui jaz) e a tela Guernica. Na

analogia entre o poema de Artaud e a tela de Picasso, o objeto em questão é a

utilização por parte de ambos de diferentes linguagens que, de certa forma e

aparentemente, parecem irreconciliáveis. Daí, uma analogia entre duas obras

díspares e, ao mesmo tempo, similares como manifestações da necessidade do

homem no seu tempo.

No momento seguinte, tornou-se indispensável explorar um pouco adiante as

trilhas de Artaud num campo bem mais abrangente que o da literatura e, ainda,

buscar em seu conturbado trajeto os diálogos entre estilos e gêneros para que, de

certa forma, nos permitisse estabelecer vínculos entre muitos dos elementos de

sua inquietude nos mais variados formatos de manifestação da arte, bem como,

buscar contribuir para uma melhor compreensão da relação ou "parentesco" de

Antonin Artaud com muitos de seus contemporâneos considerados como

"vanguarda". Ao mesmo tempo, persistiu a pretensão de desmitificar a idéia que

se tem de Artaud como um homem unicamente de teatro, tendo em vista sua

atuação em diversas outras áreas e, sobretudo, sua contribuição no pensamento

em prol de sua imprescindível necessidade de se comunicar com o mundo. Trata-

se de uma referência ao Tratamento cruel ou cirurgia ontológica, onde – mais que

uma espécie de radiografia – existe a tentativa de explorar a questão do

significado do cruel e do ontológico em Artaud. Pode-se dizer que, essas

categorias, foram utilizadas muito mais como apêndices de sustentação da

pesquisa do que um aprofundamento propriamente dito, embora persista a

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tentativa de afirma que, em Artaud, o cruel se distingue do trágico, considerando

que enquanto o segundo se estrutura na fatalidade, num mundo organizado e

pronto a se cumprir, o primeiro, trata-se de um mundo aberto como possibilidade

da realização do fenômeno. Da mesma forma, no que diz respeito ao ontológico,

também não há nenhuma intenção de se esgotar a questão, se é que existe a

possibilidade de que algo se esgote, mas a proposta é mostrar que a cirurgia,

mais que uma operação que se realiza na carne, esbarra na questão primeira do

homem: a questão do ser, a existência para além dos conformismos e definições

sejam das teorias biológicas, sociais e/ou psicológicas.

No campo da palavra, que é o cerne da questão aqui colocada, trata-se de uma

busca de distinguir a compreensão da mesma do ponto de vista da abordagem

artaudiana, como forma de demonstrar onde e em que momento se realiza a

ruptura como o senso comum, ou seja, como é que, em Artaud, a palavra, para

além de um mero termo, se dê como ação. Daí, sua demarche ou modos de sua

concretização, a partir do corpo sem órgãos (relação entre o corpo e a fala), o

corpo sem carne ou retorno ao osso (não à sintaxe como um a priori) e a carne

nasce do osso (negação de estilo e gênero).

Enfim, Antonin Artaud: a linguagem na desintegração da palavra, é um processo

de quase rastreamento da palavra, em Artaud, visando encontrar, tanto no

discurso quanto na poesia mesma, os elementos da desintegração. Mas esse

movimento não significa que, ao encontrarmos um exemplo de ação

desintegradora da palavra tenhamos, assim, fechado a compreensão de um

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sistema em si mesmo, considerando que o problema deve ser sempre retomado a

cada vez que se invista numa tentativa de nova leitura dessa palavra artaudiana

que se apalavra no fenômeno, no momento em que acontece. Na verdade, se

existe mesmo a necessidade de uma conclusão, fica aqui a idéia de que agora se

inicia um trabalho.

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CRONOLOGIA

1896 – 4 de setembro, às 8 horas da manhã, nasce Antonin Marie Joseph Artaud,

em Marseille, à Rua Jardim des Plantes, 4, filho de Antoine Roi Artaud e

Euphrasie Artaud que, quando solteira, usava o sobrenome de Nalpas.

1901 – Artaud sofre um ataque de meningite.

1905 – Aos 21 de agosto, morre Germaine, a irmã mais nova de

Artaud, nascida aos 13 de fevereiro de 1905.

1906 – Artaud quase morre afogado durante temporada em Esmirna, com a avó

materna Mariette (Miette ou Neneka) Schili (ou Chili, Schily, Chilé).

1910 – Lança no Collège du Sacré Couer, uma revista literária, onde publica seus

primeiros poemas, com o pseudônimo de Louis des Attides.

1915 – Numa crise de depressão, Artaud destrói todos os seus escritos e faz dá

de presente os livros. Passa o primeiro período num sanatório, em La Rougière,

perto de Marseille.

1916 – Convocado para o serviço militar, em Digne, nove meses mais tarde é

dispensado por motivo de saúde.

1916-1918 – Período em que passa em sanatórios e estações de cura, como St.

Dizier, perto de Lion, Lafoux-les-Bains (Gard) e Divonneles-Bains (Ain).

1918 – Passa uma temporada em Bagnères-de-Bigorre (Pirineus) e, no fim do

ano, vai para o sanatório de Le Chanet, perto de Neuchâtel, na Suiça, aos

cuidados de Dr. Dardel, até 1920.

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1919 – Em maio, começa a tomar láudano para aliviar as dores de cabeça.

1920 – Chega à Paris, em março, quando é entregue aos cuidados de Dr.

Edouard Toulouse, em Villejuif. Neste mesmo ano, começa a colaborar na revista

literária Demain, de Dr. Toulouse. Em agosto, tem um poema e um artigo

publicado no Demain. No fim do outono, Lugné-Poe lhe oferece um papel numa

peça no Théâtre de l‟Oeuvre.

1921 – Aos 17 de fevereiro, no Théâtre de l‟Oeuvre, estréia como ator num

pequeno papel de um personagem mudo em Les Scrupules de Sganarelle, de

Henri de Régnier. Em outubro, através de seu tio, Louis Nalpas, diretor artístico da

Société des Ciné-Romans, obtém uma entrevista com Firmin Gémier, que o

recomenda a Chales Dullin. Este lhe oferece trabalho em sua oficina, o Atelier. Na

companhia de Dullin, no outono, conhece Genica Athanasiou (1897-1966), por

quem se apaixona.

1922 – Aos 2 de março, na peça Moriano et Galvan, representa o papel do rei

Galvan, de Arnoux, além de desenhar o cenário e o figurino. Em 20 de junho,

representa A vida é sonho, de Calderón de la Barca, no papel de Basílio, o rei da

Polônia, quando também cria o cenário e o figurino. No mês de julho, durante a

Exposição Colonial de Marseille, assiste ao espetáculo de um conjunto de

dançarinos cambojanos, numa réplica do Templo de Angkor. Em outubro, a

companhia de Charles Dullin se muda para o teatro da Place Dancourt, em

Montmartre, tornando-se o Théâtre de l‟Atelier. E, aos 20 de dezembro, interpreta

Tirésias, em Antigone, de Cocteau, com Gênica Athanasiou no papel-título,

cenário de Picasso e figurino de Coco Chanel.

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1923 – Coordena os textos de uma antologia de escritos de Dr. Toulouse, Au Fil

des Préjugés. Em 2 de fevereiro, Artaud publica o primeiro número de sua revista

literária, Le Bilboquet. Ainda em fevereiro, no dia 15, representa o papel de

boneco grotesco em Monsieur Pygmalion, de J. Grau, no Théâtre de l‟Atelier. Abril:

entra para a Comédie de Champs-Elysées, grupo de Pitoeff. No primeiro dia de

maio, Artaud inicia sua correspondência com Jacques Rivière que será concluída

aos 8 de junho de 1924. Aos 4 de maio, Artaud publica seu primeiro volume de

poemas, o Tric-Trac du Ciel, por Kahnweiler. Aos 26 de dezembro, na Comédie

des Champs-Elysées, interpreta o papel de Jackson, em Quem Leva a Bofetada,

de Andreiev.

1924 – 26 de março: faz o papel de um robô em Rur, de Copek, sob a direção de

Theodore Kommissarjevsky, na Comédie Champs-Elysées. Abril: aparece no filme

Faits Divers, de Claude Autant-Lara. Verão: participa no filme Surcouf, de Luitz-

Morat, na Bretanha e visita Berlim para trabalhar na UFA. Início de setembro:

publica, na Nouvelle Revue Française, sua correspondência com Jacques Rivière.

Aos 7 de setembro, falece seu pai e sua mãe passa a residir em Paris. Em

outubro, adere ao movimento surrealista.

1925 – 15 de janeiro: colabora com o número 2 de La Révolution Surréaliste. 26

de janeiro: assume a direção do Bureau de Pesquisas dos Surrealistas.. 15 de

abril: publicação do número 3 de La Révolution Surréaliste, com coordenação de

textos feita por Artaud, que escreveu quase todas as matérias da edição. 28 e 29

de maio: dirige Au Pied du Mur, de Aragon, no Vieux Colombier. 3 a 11 de junho:

participa da filmagem de Graziella, de Marcel Vandal, em locação na Itália

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(Prócida, perto de Nápoles). Visita Pompéia e Roma. 23 de julho: publicação de

L’Ombilic des Limbes. 1 de agosto: publicação de Le Pèse-Nerfs. Excursão a

Carteret (Mancha) com Roger Vitrac. Agosto: participa da filmagem de Le Juif

Errant, de Luitz-Morat.

1926 – Fundação do Théâtre Alfred Jarry (com Roger Vitrac e Robert Aron, e

suporte financeiro de Madame Allendy). Novembro: publicação do Primeiro

Manifesto do Théâtre Alfred Jarry, em La Nouvelle Revue Française. Fim de

novembro: rompe com os surrealistas.

1927 – Primavera: troca de idéias com Jacques Maritain. Participação no filme

Napoléon, de Abel Gance, no qual faz o papel de Jean-Paul Marat. 1 e 2 de junho:

primeiros espetáculos do Théâtre Alfred Jarry no Théâtre de Grenelle: Le Ventre

Brulé ou La Mère Fole, de Artaud; Gigogne, de Max Robur (isto é, de Robert

Aron); e Les Mystères de l’Amour, de Vitrac. Junho: Carl Theodor Dreyer oferece a

Artaud o papel do jovem monge em seu filme La Passion de Jeanne d’Arc.

Experimenta fazer tratamento psicanalítico com o Dr. René Allendy. Outubro:

participação no filme Verdun, Visions d’Histoire, de Léon Poirier. Novembro: a

Nouvelle Revue Française publica o roteiro de Artaud para o filme La Coquille et le

Clergyman. Dezembro: visita Cannes.

1928 – 14 de janeiro: segunda produção do Théâtre Alfred Jarry, na Comédie des

Champs-Elysées: o filme A Mãe, de Pudovkin, e um ato da peça Partage de Midi,

de Claudel. 18 de fevereiro: estréia de La Coquille et le Clergyman (direção de

Germaine Dulac), no Studio des Ursulines. Artaud e Desnos criam um tumulto

para protestar contra a alegada má interpretação das intenções de Artaud pela

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diretora. 22 de março: faz uma conferência na Sorbonne sobre L’Art et la Mort. 2 e

9 de junho: terceira produção do Théâtre Alfred Jarry: Dream Play, de Strindberg,

no Théâtre de l‟Avenue. Tumultos provocados pelos surrealistas. Participa da

filmagem de L’Argent (baseado em Zola), de Marcel Herbier. 24 e 29 de

dezembro: quarta e última produção do Théâtre Alfred Jarry: Victor ou les Enfants

au Pouvoir, de Roger Vitrac, na Comédie des Champs-Elysées.

1929 – 5 de janeiro: terceira apresentação do espetáculo de Victor. Fevereiro-abril:

participa da filmagem de Tarakanova, dirigido por Raymond Bernard, nos estúdios

de Nice. 26 de abril: registra sua adaptação de The Master of Ballantrae, de R. L.

Stevenson, na Association des Auteurs du Film. 17 de abril: Denoel publica L’Art et

la Mort.

1930 – Julho-agosto e outubro: permanece em Berlim para trabalhar em filmes, na

versão de Pabst da Ópera dos Três Vinténs, de Brecht.

1931 – Janeiro-março: participa da filmagem de Faubourg Montmartre, de

Raymond Bernard. Participação na filmagem de La Femme de Nuit (direção de

Marcel Herbier). Maio: participa da filmagem de Les Croix (direção de Raymond

Bernard, baseado no romance de Dorgelès). Julho: assiste ao espetáculo de

danças de Bali na Exposição Colonial, no Bois des Vincennes. Fim de sua ligação

com Josette Lusson. Publicação da tradução livre feita por Artaud de The Monk,

de M. Lewis. 10 de dezembro: faz uma conferência na Sorbonne sobre La Mise-

em-Scène et la Métaphysique.

1932 – Fevereiro: publicação de La Mise-em-Scène et la Métaphysique na

Nouvelle Revue Française. Projeto de um teatro patrocinado pela Nouvelle Revue

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Française. Fevereiro-março: atua como assistente de Louis Jouvet na produção de

La Patissière du Village, de Alfred Savoir. Abril-maio: em Berlim, para filmar Coup

de Feu à l’Aube (direção de Serge de Poligny). Faz a adaptação de Thyestes, de

Sêneca. Outubro: o Primeiro Manifesto da Crueldade é publicado na Nouvelle

Revue Française. Dezembro: no hospital, para um tratamento de desintoxicação.

1933 – Março: início da amizade com Anais Nïn. Abril: completa o manuscrito de

Héliogabale. 6 de abril: faz uma conferência na Sorbonne sobre Le Théâtre et la

Peste. Segundo Manifesto da Crueldade. Escreve o roteiro La Conquête du

Mexique.

1934 – 6 de janeiro: faz a leitura de La Conquête du Mexique e de Richard II, de

Shakespeare, numa soirée dada por Lise Deharme em cursos para o Teatro da

Crueldade. Publicação de Héliogabale. Verão: em locação na Argélia para

filmagem de Sidonie Panache (direção de Henri Wullschleger). Atua também nos

seguintes filmes: Liliom (direção de Fritz Lang); Koenigsmarck (direção de Marcel

Tourneur); Lucrèce Borgia (direção de Abel Gance), no qual tem memorável

participação no papel de Savanarola. Outubro: publicação de Le Théâtre e la

Peste pela Nouvelle Revue Française.

1935 – Fevereiro: faz a leitura do manuscrito de Les Cenci na residência de Jean-

Marie Conty. 6 de maio: estréia de Les Cenci no Folies-Wagram. 22 de maio:

último espetáculo de Les Cenci. Outono: conhece Cécile Schramme.

1936 – 9 de janeiro: parte de Paris para Antuérpia. 10 de janeiro: parte de

Antuérpia no navio Alberville. 30 de janeiro: chega a Havana. 7 de fevereiro:

desembarca em Vera Cruz. Abril: deixa a Cidade do México em viagem para a

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Sierra Tarahumara. Começo de outubro: regressa da Sierra Tarahumara. 31 de

outubro: deixa o México no navio Mexique. 12 de novembro: chega a St. Nazaire.

Escreve Les Nouvelles Révélations de l’Être. Noivado com Cécile Schramme.

1937 – Março: tratamento para desintoxicação, em Paris. Abril: renova o

tratamento de desintoxicação em Sceaux. Maio: visita Bruxelas. 18 de maio:

conferência desastrosa em Bruxelas; rompimento do noivado com Cécile

Schramme. 28 de julho: publicação de Les Nouvelles Révélations de l’Être como

panfleto anônimo. 1 de agosto: publicação, sem nome de autor, de D’um Voyage

au Pays des Tarahumaras pela Nouvelle Revue Française. 14 de agosto: chega a

Cobh, na Irlanda. 17 de agosto: parte de Galway para as Ilhas de Aran. 23 de

agosto: escreve de seu alojamento, a duas horas a pé de Kilronan, na ilha de

Inishmore. 2 de setembro: no Imperial Hotel, em Galway. 8 de setembro: parte de

Galway para Dublin. 30 de setembro: chega ao Havre, no vapor Washington, sob

prisão e em camisa-de-força e é entregue às autoridades francesas.

1938 – 7 de fevereiro: publicação de Le Théâtre et son Double. 12 de abril:

transferido para o hospício de Sainte Anne, em Paris. Dezembro: no hospício de

Quatre-Mares, em Sotteville-lès-Rouen.

1939 – 27 de fevereiro: transferido para o asilo de Ville-Évrard.

1943 – 22 de janeiro: deixa o asilo de Ville-Evrard e se transfere temporariamente

para o asilo “rural” de Chézal-Benoît. 11 de fevereiro: chega ao asilo de Rodez

(Aveyron) e é posto sob os cuidados do Dr. Gaston Ferdière.

1944 – 10 de maio: reedição de Le Théâtre et son Double.

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1945 – 25 de novembro: publicação de Au Pays des Tarahumaras.

1946 – 19 de março: liberado do asilo de Rodez para breve estada nas

vizinhanças. 8 de abril: GLM publica Lettres de Rodez. 26 de maio: retorna a

Paris. Passa a residir, como paciente voluntário, no hospital para doentes mentais

do Dr. Delmas, em Ivry. 6 de junho: vernissage da exposição de trabalhos de

grandes artistas, doados para obtenção de recursos financeiros para Artaud, na

Galerie Pierre (dirigida por Piesse Loeb). 7 de junho: espetáculo em benefício de

Artaud no Théâtre Sarah-Bernhardt.

1947 – 13 de janeiro: Artaud participa numa série de leituras públicas de poesia:

Tête-à-tête, no Viex Colombier. Janeiro: visita a Exposição Van Gogh, na

Orangerie. 19 de julho: leitura pública de sua poesia na Galerie Pierre, onde se

realiza uma exposição de seus desenhos. 15 de setembro: lançamento oficial de

Artaud le Mômo (o livro realmente ficou disponível a partir de 15 de dezembro). 25

de setembro: data (oficial) de lançamento de Van Gogh, le Suicidé de la Societé

(disponível nas livrarias em torno de 15 de dezembro). 28 de novembro: gravação

de Pour em Finir aved le Jugement de Dieu. 15 de dezembro: publicação de Ci-Gît

(de fato disponível a partir de meados de janeiro de 1948).

1948 – 16 de janeiro: data em que deveria ser irradiado Pour em Finir avec le

Jugement de Dieu, programa cancelado na véspera. 5 de fevereiro: audição da

gravação de Pour em Finir avec le Jugement de Dieu por um júri de eminentes

figuras literárias, que recomendaram sua irradiação. 4 de março: Artaud é

encontrado morto em seu quarto no pavilhão do hospício de Ivry, à rue de la

Mairie, 23, Ivry. 8 de março: sepultado sem ritos religiosos no cemitério de Ivry.

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