ANJOS NA AMÉRICA - joinville.ifsc.edu.brjoinville.ifsc.edu.br/~luciana.cesconetto/Textos...
-
Upload
phungtuong -
Category
Documents
-
view
216 -
download
1
Transcript of ANJOS NA AMÉRICA - joinville.ifsc.edu.brjoinville.ifsc.edu.br/~luciana.cesconetto/Textos...
de
TONY KUSHNER
ANJOS NA AMÉRICA
Fantasia gay sobre temas nacionais americanos
PRIMEIRA PARTE:
O MILÊNIO SE APROXIMA
Tradução de Isa Mara Lando
Adaptação de Cristóvão de Oliveira
Setembro 2008
PERSONAGENS
ROY M. COHN, advogado bem sucedido de
Nova York, poderoso e influente manipulador na
política conservadora da era Reagan.
JOSEPH PORTER PITT, ou JOE, chefe de
gabinete do Juíz Theodore Wilson do Tribunal
Federal de Apelação, Segunda Zona.
HARPER AMATY PITT, mulher de Joe,
agorafóbica, levemente viciada em Válium.
LOUIS IRONSON, digitador no Tribunal de
Apelação, Segunda Zona.
PRIOR WALTER, namorado de Louis.
Ocasionalmente trabalha num bufê ou como
decorador de clubes; em outros períodos vive
muito modestamente mas em grande estilo com
um pequeno pecúlio.
HANNAH PORTER PITT, mãe de Joe;
atualmente mora em Salt Lake City, vive da
pensão do falecido marido, um militar.
BELIZE, ex-travesti e ex-amante de Prior.
Enfermeiro diplomado. Seu nome verdadeiro é
Norman Arriaga; Belize é o nome do travesti
que pegou.
O ANJO, quatro emanações divinas, Fluor,
Fósforo, Lúmen e Candela, manifestas em Um:
o Principado Continental da América. Ela tem
magníficas asas de um cinza metálico.
RABINO ISIDOR CHEMELWITZ, rabino judeu
ortodoxo.
MR. LIES, amigo imaginário de Harper, agente
de viagem. Lembra um músico de jazz no estilo
de vestir e falar, sempre com um grande
distintivo na lapela que diz IOTA (International
Order of Travel Agents, Ordem Internacional
dos Agentes de Viagem).
HOMEM NO PARQUE
A VOZ, a voz do Anjo.
HENRY, médico de Roy
EMILY, enfermeira
PRIOR I, fantasma de um Prior Walter morto
no século XIII. É um fazendeiro medieval
ríspido e taciturno, com sotaque gutural de
Yorkshire.
PRIOR II, fantasma de um Prior Walter morto
no século XVII. É um londrino sofisticado, com
sotaque britânico educado.
O ESQUIMÓ
MULHER DO SOUTH BRONX
ETHEL ROSENBERG
NOTAS DO AUTOR
ESCLARECIMENTO: Roy M. Cohn, o
personagem, é baseado no falecido Roy M.
Cohn (1927-1986), que foi absolutamente real;
a maioria dos atos atribuídos ao personagem
Roy, tais como suas confabulações ilegais com
o Juíz Kaufmann durante o julgamento de Ethel
Rosenberg, estão nos registros históricos. Mas
este Roy é uma obra de ficção dramática; suas
palavras são minha invenção, e liberdades
foram tomadas.
NOTAS SOBRE A ENCENAÇÃO: A peça se
beneficia de um estilo despojado de
apresentação, com um mínimo de cenários e as
mudanças de cena feitas rapidamente (sem
blackouts!), empregando o elenco assim como
contra-regras – o que leva a um espetáculo
impulsionado pelos atores, como deve ser. Os
momentos de mágica – o aparecimento e
desaparecimento de Mr. Lies e dos Fantasmas,
a alucinação de Livro e o final – devem ser
plenamente realizados, como acontecimentos
de maravilhosa ilusão teatral – o que significa
que se os fios aparecerem, todo bem, e talvez
seja bom que apareçam, mas ao mesmo tempo
a mágica deve ser absolutamente estupenda.
PRIMEIRO ATO
PÉSSIMAS NOTÍCIAS
Outubro-Novembro 1985
ATO I, CENA 1
Últimos dias de outubro. Rabino Isidor
Chemelwitz, sozinho no palco com um pequeno
caixão. É um caixote de madeira tosca fechado
por dois pinos também de madeira, um nos pés
e outro na cabeceira, que seguram a tampa.
Sobre o caixão estende-se um xale de orações
com uma Estrela de Davi bordada; à cabeceira
arde uma vela ritual. Fala sonoramente, com
um pesado sotaque da Europa Oriental,
consultando sem constrangimento uma folha
com anotações dos nomes da família.
RABINO ISIDOR CHEMELWITZ
Meus amigos, bom dia. Eu sou o Rabino Isidor
Chemelwitz, do Lar dos Israelitas Idosos do
Bronx. Estamos aqui nesta manhã para prestar
nossos respeitos na passagem de Sarah
Ironson, devota esposa de Benjamim Ironson,
também falecido, mãe carinhosa e extremosa
de seus filhos Morris, Abraham e Samuel, e de
suas filhas Ester e Raquel; querida vovó de
Max, Mark, Louis, Lisa, Maria... ahn... Lesley,
Angela, Doris. Luke e Eric. (Olha o papel mais
de perto) Eric? E isso é nome judeu? (Dá de
ombros) Eric. Uma família grande e cheia de
amor. Estamos todos aqui reunidos para honrar
esta boa e virtuosa mulher. (Olha para o
caixão)
Esta mulher. Eu não conheci esta mulher. Não
posso descrever exatamente suas qualidades,
nem fazer justiça às suas verdadeiras
dimensões. Ela era... Bom, no Lar dos Israelitas
Idosos tem muitas assim, velhas, e eu converso
com elas, mas, pra falar a verdade, com esta
não. Ela preferia o silêncio. Então, eu não
conheço ela. Mas, por outro lado, conheço. Ela
era... (Toca o caixão)
... Não uma pessoa, mas uma categoria inteira
de pessoas, aqueles que atravessaram o
oceano, que trouxeram para a América as
aldeias da Rússia e da Lituânia – e como nós
lutamos, e como nós brigamos, pela família,
pelo lar judaico. Sua avó carregou o Velho
Mundo nas costas através do oceano, num
navio, e chegou com ele aqui, no Brooklyn, e
aquela terra é matéria dos vossos ossos, e
vocês passam para os seus filhos essa terra,
esse lar e essa antiga, muito antiga cultura.
(Pequena pausa)
Vocês nunca poderão fazer a travessia que ela
fez, pois essas Grandes Viagens neste mundo
não existem mais. Mas, cada dia de vossas
vidas, esse percurso de quilômetros entre
aquele lugar e este aqui, vocês atravessam.
Todos os dias. Compreendem? Essa trajetória
existe dentro de vocês.
Então...
O que ela foi? Ela foi o último dos moicanos.
Logo... Logo... Todos os velhos vão estar
mortos.
ATO I, CENA 2
Mesmo Dia. Roy e Joe no escritório de Roy. Roy
numa impressionante mesa de trabalho, sem
nada exceto um sistema telefônico muito
elaborado, fileiras e fileiras de botões com luzes
que piscam, bipam e apitam incessantemente,
fazendo uma música caótica sob a conversa de
Roy. Joe está sentado, esperando. Roy conduz
seus negócios com grande energia, impaciência
e abandono sensual: gesticulando, gritando,
adulando, cantarolando baixinho, manipulando
o fone, o aparelho e o botão de espera com
virtuosismo e amor.
ROY – (Apertando um botão) Espera aí, fica na
linha. (Para Joe) Eu queria ser um polvo, um
puta dum polvo. Oito braços enormes, com
todas aquelas ventosas sugando. Sabe como é?
JOE – Não, eu...
ROY – (Apertando um botão) Ailene? É o Roy,
Roy Cohn. Poxa, mas que jeito de
cumprimentar... Ô, Ailene, pensei que os
éramos amigos... Tá, Sra. Soffer, escuta, a
senhora não precisa ficar assim... Desse jeito a
senhora vai piorar, a senhora não devia berrar
assim, olha que vai estourar uma porção de
veiazinhas na sua cara... Sra. Soffer, eu já pedi
desculpa dezesseis vezes... (Enquanto ela fuzila
de raiva, Roy tapa o fone com a mão e fala com
Joe) Escuta, isso aqui vai demorar um
pouquinho, espera aí. (Volta para a Sra. Soffer)
Ahn hã, ahn hã... Não, eu já disse pra senhora,
não foram férias, fui a trabalho, eu tenho
clientes no Haiti, Sra. Soffer... Escuta, Ailene,
VOCÊ ACHA QUE EU SOU O ÚNICO ADVOGADO
NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE QUE PERDEU O
DIA DA AUDIÊNCIA? Puta merda, não precisa
fazer um... Espera aí, fica na linha. (Aperta o
botão de pausa). Sua BRUXA!
JOE – Anh, acho que eu cheguei na hora errada.
ROY – Hora errada? Mas esta é a hora certa!
(Botão) Boneca, me liga com o... Puta merda,
pera aí... (botão, botão) Alô? Sim. Ah, Juiz,
desculpa fazer o senhor esperar, é que... Ah, é
a Sra. Hollins, desculpa confundi... Gostando de
Nova York? Sim tá certo muito bem então são
quantos ingressos, querida? Sete. Pra ver o
quê? Cats, Forty-Second Street? Não, a Gaiola
das Loucas a senhora não ia gostar, vai por
mim, olha que eu sei. Ô, merda... Espera aí,
fica na linha. (botão, botão) Boneca, me vê sete
entradas para Cats ou para qualquer outro
troço. Qualquer negócio difícil de conseguir, sei
lá qual peça, não tô nem aí. (botão, para Joe)
Você já viu a Gaiola das Loucas?
JOE – Não. Eu...
ROY – Fabuloso. Melhor coisa da Broadway. De
todos os tempos. (Botão) Quem? Ah, meu Deus
do céu, Harry. Será que eu tenho que fazer
tudo sozinho? Tudo? Fala com esse filho da
puta, Harry, e não me liga mais nessa linha, tá,
eu já te avisei!
JOE – (começa a se levantar) Roy, ahn, é
melhor eu esperar lá fora ou...
ROY – (Para Joe) Senta aí. (Para Harry, ao
telefone) Espera: olha aqui Harry, eu te pago
pra esperar! Vou te foder, seu imbecil! (Botão)
Idiota, babaca. (Instantaneamente, filosófico) E
Então, como vão as coisas lá no Tribunal? Como
vai o Juiz?
JOE – Mandou lembranças. Ele me deu muitas
responsabilidades.
ROY – Sei, Como escrever as decisões dele e
assinar o nome dele.
JOE – Bom...
ROY – Ele é um bom sujeito. E você está dando
uma cobertura admirável.
JOE – Bem, obrigado, Roy, eu...
ROY – (Botão) Alô? Quem? E quem é o merda
que está falando? (botão, botão) Harry? Pois é,
Harry! Essa é a beleza da lei! (botão) E aí,
boneca, conseguiu? Cats? Bleah! (botão) Cats.
É sobre uns gatos. Gatos que cantam, gatos
que dançam, a senhora vai adorar. Nove horas.
Teatro sempre é às nove. (botão) Turistas de
merda. (botão) O quê? Espera aí, fica na linha.
(botão) Sra. Soffer? Sra... (botão) Ah, meu
Deus, puta que pariu...
JOE – (junto com Roy) Roy, eu gostaria muito
mesmo se...
ROY – (falando junto) Ô boneca, ela estava na
linha um minuto atrás, vê se... (o telefone
começa a fazer três barulhos diferentes ao
mesmo tempo. Roy esmurra os botões) Agora
fodeu!
ROY –AH, MEU DEUS DO CÉU, PUTA QUE
PARIU!!!
JOE – Roy!!!
ROY – (no telefone) Um minuto. (botão) O que
foi?
JOE – Você podia fazer o favor de não dizer o
nome de Deus em vão? (pausa) Desculpa, tá?
Mas por favor. Pelo menos enquanto eu
estiver...
ROY – (ri. Depois) Ok. Desculpa. (aperta um
botão) Ô minha filha, manda essa gente toda se
foder. Diga que eu morri. Atende a Sra. Soffer e
diga que estou providenciando tudo. Eu vou
ligar pra ela. EU VOU LIGAR PRA ELA! Ela tem
quatrocentas vezes mais que isso enfiado no...
Sim, fala pra ela que eu falei isso! (botão)
Então, Joe?
JOE – Desculpa, Roy, eu só...
ROY – Não, não, não, não... Os princípios são
importantes, eu respeito os princípios, eu não
sou religioso mas eu gosto de Deus e Deus
gosta de mim. Batista, católico?
JOE – Mórmon.
ROY – Mórmon. Delicioso. Absolutamente
delicioso. Só mesmo na América. (tempo) O
que você acha de ir pra Washington trabalhar
no Departamento de Justiça? Você será
Assessor de Alguma Coisa Importante.
JOE – Como?
ROY – É um cargo influente, com bastante
poder. É só eu pegar o telefone, fazer uns
contatos...
JOE – Eu nem consigo dizer o quanto eu
agradeço, Roy, eu tô meio... Atordoado, quer
dizer... Obrigado, Roy. Mas eu preciso pensar
um pouco. Preciso falar com a minha mulher...
ROY – Sua mulher, claro. Fala com sua mulher.
ATO I, CENA 3
Mais tarde no mesmo dia. Harper sozinha em
casa. Está ouvindo rádio e falando sozinha,
como costuma fazer. Ela fala com o público.
HARPER: Quando você vê a camada de ozônio,
pelo lado de fora, lá de cima de uma nave
espacial, ela parece um halo azul claro, uma
auréola bem delicada, brilhante, vibrante,
rodeando toda a atmosfera, em volta da terra.
Cinqüenta quilômetros acima da nossa cabeça,
uma camadinha fininha de moléculas, cada uma
com três átomos de oxigênio. Mas por toda a
parte, as coisas estão desmoronando, as
mentiras se revelando, os sistemas de defesa
se desintegrando... É por isso, Joe, que eu não
deveria ser deixada aqui sozinha. (pequena
pausa) Eu gostaria de viajar. Deixar você aí, se
preocupando. Eu mandaria cartões postais com
selos estranhos e mensagens instigantes: “Mais
tarde, talvez!”... “Nunca mais...” (aparece Mr.
Lies, um agente de viagem) Ai, que susto!!!
MR. LIES: Dinheiro, cheque ou cartão?
HARPER: Eu me lembro de você. Você é de Salt
Lake City. Foi você que vendeu as passagens de
avião quando nós viemos pra cá. O que você
está fazendo aqui no Brooklyn?
MR. LIES: Você disse que queria viajar... (se
apresentando) Mr. Lies. Da Ordem Internacional
dos Agentes de Viagem. Nós mobilizamos o
globo, nós lançamos as pessoas à deriva, nós
agitamos as massas e enviamos nômades
rodopiando pelo planeta. Somos adeptos do
movimento, do fluxo, do ir e vir. Dinheiro,
cheque ou cartão? Qual é o seu destino?
HARPER: Antártida, talvez. Quero ver o buraco
na camada de ozônio. Eu ouvi no rádio...
MR. LIES: (tirando da pasta um terminal de
computador) Posso arranjar uma excursão com
guia. Pra já?
HARPER: Logo mais. Talvez logo mais. Sabe,
aqui não me sinto segura. As coisas não estão
muito certas comigo. Acontece… uns negócios
estranhos...
MR. LIES: Por exemplo?
HARPER: Bom, como você, por exemplo.
Aparecendo de repente, sem mais nem menos.
Bom, olha só: meus sonhos vêm falar comigo.
MR. LIES: É o preço de não se ter raízes. Enjôo
de viagem. Só existe um remédio: continuar em
movimento.
HARPER: Eu sinto que alguma coisa vai
acontecer. Estamos em 1985. Quinze anos até o
terceiro milênio. Talvez Cristo volte. Talvez as
sementes sejam plantadas, talvez haja uma
colheita... Companheirismo, amor e proteção.
Segurança contra o que está lá fora. Ou quem
sabe, chegarão os desastres, chegará o final e o
céu desabará e haverá tempestades e chuvas
de luz venenosa. Ou quem sabe a minha vida
está ótima, quem sabe o Joe me ama e é só
loucura minha pensar que não, ou talvez não,
talvez seja ainda pior do que tudo que eu já sei.
Eu quero saber e talvez não. O que me mata,
Mr. Lies, é esse suspense.
MR. LIES: Sugiro umas férias.
HARPER: (ouvindo algo) É o elevador. Ah, meu
Deus, eu devia me arrumar, eu... Escuta. Você
tem que ir embora, você não devia estar aqui,
você nem sequer existe.
MR. LIES: Quando resolver é só me chamar...
HARPER: Vai! (o agente de viagem desaparece
enquanto Joe entra)
JOE: Benzinho? Benzinho? Desculpe o atraso.
Eu tava só... Por aí. Andando. Você está
zangada?
HARPER: Fiquei um pouquinho ansiosa.
JOE: Bicota. (beijam-se) Não tem nenhum
motivo pra ficar ansiosa. (tempo) Então. Você
gostaria de mudar pra Washington?
ATO I, CENA 4
Mesmo dia. Louis e Prior do lado de fora do
velório judaico, sentados num banco, ambos
com trajes elegantes para um enterro,
conversando. A cerimônia fúnebre para Sarah
Ironson acaba de terminar e Louis está prestes
a ir para o cemitério.
LOUIS: Que cerimônia esquisita. Aquele
rabino...
PRIOR: Que peça rara! Quero que ele faça o
meu enterro. (lhe dá um abraço) Coitadinho do
Louis. Que pena que a sua avó morreu.
LOUIS: Desculpa que eu não te apresentei
pra... Eu sempre fico tão enrustido nessas
reuniões de família.
PRIOR: Você fica todo macho. (imitando-o) “Oi,
prima Dóris, lembra de mim, eu sou o Lou, filho
da Raquel”. Lou, não Louis, porque você prefere
“Lou”. E, por falar nisso, meu bem, a sua prima
Dóris é sapatão.
LOUIS: Não. Mesmo?
PRIOR: Você não repara em nada. Se eu não
tivesse passado os últimos quatro anos
chupando seu pau, eu podia jurar que você não
é gay.
LOUIS: Hoje o seu humor está péssimo.
(pausa)
PRIOR: (tira o paletó, arregaça a manga mostra
a Louis uma mancha roxa escura no lado de
baixo do braço, perto do ombro) Veja.
LOUIS: Isso é só uma veiazinha que
arrebentou.
PRIOR: Não é o que dizem as autoridades
médicas.
LOUIS: O quê? (pausa. Segura o braço de Prior)
Fala!
PRIOR: Sarcoma de Kaposi, baby. Lesão
número um. Olha só. O beijo cor de vinho do
anjo da morte. A Lesão Estrangeira. A Lesão
Americana.minha mancha negra.
LOUIS: Pára!
PRIOR: Não acha que estou lidando bem com a
coisa? Eu vou morrer.
LOUIS: Vai nada!
PRIOR: Solta meu braço.
LOUIS: (agarrando Prior, ferozmente) Não!
PRIOR: Ah, baby, eu não consigo achar um jeito
de te poupar. Não existe muralha como a dos
duros fatos científicos. Sarcoma de Kaposi. É
um jogo duro.
LOUIS: Vai te fuder! (soltando) Vai te fuder, vai
te fuder!
PRIOR: Ah, isso sim é o que eu gosto de ouvir:
uma reação madura.
LOUIS: Quando foi que você descobriu?
PRIOR: Eu não podia te contar.
LOUIS: Por quê?
PRIOR: Fiquei com medo, Lou. De você me
deixar. (Tempo)
LOUIS: Tenho que ir enterrar minha avó.
PRIOR: Lou? (pausa) Depois você volta pra
casa?
LOUIS: Depois eu volto pra casa.
ATO I, CENA 5
Mesmo dia, mais tarde. Cena dividida: Joe e
Harper em casa; Louis no cemitério com o
Rabino Isidor Chemelwitz e o caixãozinho.
HARPER: Washington? Tenho que pensar.
JOE: Claro.
HARPER: Fala que não.
JOE: Você não disse que ia pensar?
HARPER: Nós somos felizes aqui.
JOE: Bom, isso não é bem verdade.
HARPER: Bem, somos felizes dentro do
possível. Felizes de mentirinha. Melhor que
nada.
JOE: Harper, está na hora de mudar algumas
coisas.
JOE: Eu quero ir pra algum lugar onde tenha
alguma coisa boa acontecendo...
HARPER: Não acontece nada de bom em
Washington. A gente vai esquecer os
ensinamentos da igreja
HARPER: E eu tenho que acabar de pintar o
quarto.
JOE: Você está pintando esse quarto há mais de
um ano!
HARPER: Eu sei... É que não consigo tempo pra
acabar...
HARPER: Tenho medo de entrar lá sozinha. Eu
escutei alguém lá dentro. Metal raspando na
parede. Talvez um homem com uma faca.
JOE: Não tem ninguém no quarto, Harper.
HARPER: Tem alguma coisa nesse lugar que...
me arrepia.
JOE: Quantos comprimidos hoje?
HARPER. Nenhum. Um. Três. Só três.
*****
LOUIS: (Apontando o caixão) Por que só tem
dois pininhos de madeira pra segurar a tampa?
RABINO: Assim ela pode sair mais fácil, se ela
quiser.
LOUIS: Eu passei anos fingindo que ela estava
morta. Quando telefonaram avisando que ela
tinha morrido, foi uma surpresa. Eu já tinha
abandonado a velha.
RABINO: Mais afiado que o dente da serpente é
um filho ingrato. Shakespeare. Rei Lear.
LOUIS: Rabino, o que dizem as Escrituras
Sagradas sobre alguém que abandona alguém
que ele ama numa hora de grande necessidade?
RABINO: Por que alguém faria isso?
LOUIS: Porque precisa fazer. Talvez porque não
consiga, ãhn, incorporar a doença na sua visão
das coisas, de como as coisas devem ser.
Talvez o vômito... as feridas, a doença... talvez
deixem ele apavorado, talvez... ele não seja
muito bom pra lidar com a morte.
RABINO: As Escrituras Sagradas não têm nada
a dizer sobre alguém assim.
LOUIS: Rabino, eu tenho medo dos crimes que
eu possa cometer.
RABINO: Por favor, rapaz. Quer confessar?
Melhor procurar um padre.
LOUIS: Mas eu não sou católico, sou judeu.
RABINO: Pior pra você, búbale. Os católicos
acreditam no perdão. Os judeus acreditam na
culpa. (dá uns tapinhas afetuosos no caixão)
*****
JOE: Olha, seis anos atrás o mundo parecia
estar numa decadência terrível, sem esperança,
cheio de problemas insolúveis, crimes,
confusão, fome...
HARPER: Mas ainda é assim. Agora mais do que
antes. Tem um buraco na camada de ozônio...
JOE: Você... Você acha isso porque nunca sai lá
fora, Harper. E você tem problemas emocionais.
Você fica em casa o dia inteiro, se
atormentando com coisas imaginárias...
HARPER: Eu saio, sim! Eu saio. Você não sabe
o que eu faço.
JOE: Você não fica em casa o dia todo?
HARPER: Não.
JOE: Fica sim.
HARPER: Isso é o que você pensa.
JOE: Aonde você vai?
HARPER: Aonde VOCÊ vai quando você sai pra
andar por aí? (pausa, daí com raiva) E eu NÃO
TENHO problemas emocionais!!!
JOE: Desculpa.
HARPER: E se eu tenho problemas emocionais,
é por viver com você. Ou então...
JOE: Desculpa, benzinho, eu não tive a intenção
de...
HARPER: Ou se você acha que eu tenho, você
nunca devia ter se casado comigo. Você com
todos esses segredos e mentiras!
JOE: Eu quero estar casado com você, Harper!
HARPER: Pois não devia querer! Não devia,
nunca!
JOE: (pausa) Ei, benzinho. Ei, benzinho...
Bicota... (beijam-se)
HARPER: Hoje eu ouvi no rádio como se faz pra
chupar.
JOE? O quê?!?
HARPER: Quer tentar?
JOE: Você não devia ouvir essas coisas.
HARPER: Mórmon pode chupar, sabia?
JOE: Harper!
HARPER: Era uma velhinha judia, com sotaque
alemão. (tempo) É a hora certa. Pra fazer um
bebê. (Joe lhe dá as costas. Pausa) Daí teve um
programa sobre os buracos na camada de
ozônio. Em cima da Antártida. A pele queima,
os pássaros ficam cegos, os icebergs derretem.
O mundo está chegando ao fim.
ATO I, CENA 6
Primeira semana de novembro. No banheiro do
Tribunal Federal de Apelação do Brooklyn; Louis
está chorando em cima da pia; entra Joe.
JOE: Ah! Ãhn... Bom dia.
LOUIS: Bom dia, doutor.
JOE: (vê Louis chorando) Desculpa, eu... Não
sei o seu nome.
LOUIS: Não se incomode. Digitador. O último
degrau da escada. O lixo do lixo.
JOE: (estende a mão) Joe Pitt. Eu trabalho com
o Juiz Wilson...
LOUIS: Ah, eu sei disso. Advogado Joseph Pitt.
Chefe de gabinete.
JOE: Você está bem?
LOUIS: Ah, estou sim. Obrigado. O senhor é
muito legal.
JOE: Não sou tão legal assim.
JOE: Quê que houve?
LOUIS: Esquece. Olha, é muita bondade sua.
(começa a chorar de novo) Desculpa, desculpa,
estou com um amigo doente...
JOE: Puxa, que chato.
LOUIS: Pois é, o senhor é muito gentil. Três
colegas seus já viram esta cena trágica e você é
o primeiro que se preocupa. Ah, esses
advogados do Reagan, machistas cretinos sem
coração.
JOE: Isso é injusto.
LOUIS: O quê? Sem coração? Machistas? Do
Reagan? Advogados?
JOE: Eu votei no Reagan. Duas vezes.
LOUIS: Duas vezes?!? Uau, olha só. Um
Republicano gay.
JOE: Eu não sou... Esquece.
LOUIS: Republicano? Não é Republicano? Ou...
JOE: O quê?
LOUIS: O quê?
JOE: Gay. Eu não sou gay.
LOUIS: Ah, desculpa. (assoa o nariz com
barulho)
LOUIS: Bom, às vezes a gente percebe pelo
jeito da pessoa falar... Quer dizer, você tem um
jeito de falar assim...
JOE: Não tenho não. Jeito de quê?
LOUIS: De Republicano. (pequena pausa. Joe
sabe que Louis está mexendo com ele; Louis
sabe que ele sabe. Joe resolve tomar um
pouquinho de coragem).
JOE: (olhando em volta para ver se não tem
ninguém) Eu pareço mesmo? Eu tenho jeito...?
LOUIS: De quê? Jeito de...? Republicano, ou
de...? E eu?
JOE: Você o quê?
LOUIS: Tenho jeito de...?
JOE: Jeito de...? Estou confuso.
LOUIS: Sei. Meu nome é Louis. mas meus
amigos me chamam de Luísa. Trabalho na
Digitação. Obrigada. (Louis estende a mão para
Joe; Joe estende a sua. Louis se esquiva e dá
um beijinho no rosto de Joe e sai).
ATO I, CENA 7
Uma semana depois. Cena de sonho mútuo.
Prior está numa fantástica mesa de
maquiagem, em sonho, se maquiando. Harper
está tendo uma alucinação provocada pelos
comprimidos. Ela tem isso de vez em quando.
Por algum motivo, Prior apareceu nesta
alucinação. Ou foi Harper que apareceu no
sonho de Prior. É confuso, desconcertante.
PRIOR: A gente quer passar pela vida com
graça, com elegância, desabrochando... A gente
quer... Mas é tão raro a gente conseguir o que a
gente quer. É ou não é? Não. A gente não
consegue. A gente se fode, se ferra, a gente...
Morre com trinta anos, roubados...
HARPER: (aparecendo) O que você está fazendo
na minha alucinação?
PRIOR: Eu não estou na sua alucinação. Você é
que está no meu sonho.
HARPER: Você está maquiado.
PRIOR: Você também.
HARPER: Mas você é homem.
PRIOR: (fingindo choque e horror, faz um gesto
de cortar a garganta com o batom e morre,
fabulosamente trágico. Então): A gente sempre
é traída pelo tamanho das mãos e dos pés.
HARPER: Você não é... Você é o meu... Um tipo
assim de amigo imaginário?
PRIOR: Não. Você já não está bem crescidinha
pra ter amigos imaginários?
HARPER: Eu tenho problemas emocionais. Tomo
muitos comprimidos
PRIOR: Que comprimidos são esses que você tá
falando?
HARPER: Válium. Eu tomo Válium. Montes de
Válium.
HARPER: Eu não sou viciada. Sou contra os
vícios, e eu nunca... Bom, eu nunca bebo. E
nunca tomo drogas. Menos Válium.
PRIOR: Menos Válium. Punhados de Válium.
HARPER: Os mórmons não podem ter nenhum
tipo de vício. E eu sou mórmon.
PRIOR: E eu sou homossexual.
HARPER: Ah! Na minha igreja não acreditamos
em homossexuais.
PRIOR: Na minha igreja não acreditamos em
mórmons. (Harper ri)
HARPER: O que eu não entendo é o seguinte:
se eu nunca te vi na vida, e acho que nunca te
vi, então você não devia estar aqui, nesta
alucinação. Porque pela minha experiência, a
mente gera alucinações, mas não é capaz de
inventar nada, nada do que já não exista, que
não tenha entrado pela experiência do mundo
real. A imaginação não é capaz de criar nada de
novo. Ela só recicla as coisas que já existem,
junta tudo de outro jeito e fabrica visões. Tô
falando coisa com coisa?
PRIOR: Considerando as circunstâncias... Tá.
HARPER: Esta é a alucinação mais deprimente
que eu já tive.
PRIOR: Desculpe. Eu me esforço pra ser
divertido.
HARPER: Eu não posso esperar que uma pessoa
que esteja assim tão doente me divirta.
PRIOR: Como é que você sabe?
HARPER: É o limiar da revelação. Isso acontece.
A gente vê coisas... Enxerga por dentro. Você
vê alguma coisa em mim?
PRIOR: Você é incrivelmente infeliz.
HARPER: Ah, grande coisa. Você encontra uma
viciada em Válium e deduz que ela é infeliz.
Isso não conta.
PRIOR: Seu marido é homossexual.
HARPER: (pausa) Ah, ridículo. (pausa. Daí bem
baixinho) É mesmo?
PRIOR: (dá de ombros) Limiar da revelação.
HARPER: Bom, eu não gosto das suas
revelações. O Joe é um homem muito normal,
ele... Ah, meu Deus! Meu Deus. Ele... Escuta,
os homossexuais costumam fazer, assim,
longas caminhadas?
PRIOR: Sim, costumamos. Altas caminhadas.
HARPER: Tenho que ir embora, voltar. Alguma
coisa acaba de... se despedaçar.
PRIOR: Eu sinto muito. Eu sempre digo: “a
verdade que se foda!”. Mas, em geral, é a
verdade que fode com a gente.
HARPER: Eu vejo mais alguma coisa em você...
PRIOR: Ah,é?
HARPER: Dentro de você, bem lá no fundo, tem
uma parte de você completamente livre de
doença. Eu enxergo isso.
PRIOR: Isso... não é verdade.
HARPER: Limiar da revelação. Tenho que voltar.
(ela desaparece)
PRIOR: As pessoas vão e vêm tão depressa
aqui... (para si mesmo, olhando no espelho)
Acho que não tem nenhuma parte minha que
não tenha sido infectada. Meu coração está
bombando sangue poluído.
(começa a tirar a maquiagem com as mãos,
borrando tudo. Uma grande pena cinzenta cai
de cima. Prior pára de borrar a maquiagem e
olha para a pena. Vai até ela e a apanha do
chão).
UMA VOZ: (é uma voz incrivelmente bela) Olha
para o alto!
PRIOR: (olha pra cima, não vê ninguém) Ei?
A VOZ: Olha para o alto!
PRIOR: Quem é?
A VOZ: Prepara o caminho!
PRIOR: Não estou vendo nada...
(há uma dramática mudança de luzes, vindas
de cima)
A VOZ: Levanta os olhos, olha para o alto
Prepara o caminho
A infinita descida
Um sopro no ar
Flutuando
Gloria a...
(Silêncio)
PRIOR: Ei! Então é isso? Eeeeeeiii!!! Mas que
merda?... (ele abraça a si mesmo) Por que eu?
Por quê? Ah, eu não tô me sentindo nada bem,
viu? Nada bem mesmo.
ATO I, CENA 8
Aquela noite. Cena dividida. Harper e Joe em
casa; Prior e Louis na cama.
HARPER: Onde você estava?
JOE: Andando por aí.
HARPER: Eu queimei o jantar.
JOE: Desculpe.
HARPER: Não o meu jantar. O meu estava
ótimo. O seu jantar. Botei de volta no forno,
liguei no máximo e fiquei olhando até queimar.
Ainda tá quente. Muito quente. Você quer?
JOE: Você não precisava fazer isso.
HARPER: Eu sei. É que eu achei típico de uma
dona de casa com distúrbios mentais, carência
sexual e viciada em Válium. Daí eu queimei o
seu jantar.
JOE: Quantos comprimidos?
HARPER: Um monte. Não mude de assunto.
JOE: Eu não vou...
HARPER: EU QUERO SABER AONDE VOCÊ
ESTAVA! QUERO SABER O QUE ESTÁ
ACONTECENDO!
JOE: Acontecendo com o quê? O emprego?
HARPER: Não é o emprego!
JOE: Eu falei com o Roy...
HARPER: Não é o...
JOE: Mas você não fala coisa com coisa sobre
nenhum assunto, então...
HARPER: CALA A BOCA!!!
JOE: Você tem alguma coisa pra me perguntar?
Pergunta! VAI!!!
HARPER: Me conta sem eu precisar perguntar.
Por favor.
JOE: Isso é uma loucura, eu não...
JOE: Eu sei perfeitamente quando você toma
Válium. Você não fica nada bonita.
HARPER: Eu tenho uma coisa pra te perguntar.
JOE: Então PERGUNTA! PERGUNTA! Que
inferno...
HARPER: Você é homossexual? (pausa) É ou
não é? Se você tentar fugir eu boto seu jantar
de volta no forno e ligo o fogo tão alto que o
edifício inteiro vai encher de fumaça e todo o
mundo vai morrer sufocado. Juro por Deus que
eu faço isso. Agora responde à pergunta!
JOE: E se eu... (pequena pausa)
HARPER: Então responda, por favor. E aí a
gente vê.
JOE: Não. Não sou.
*****
LOUIS: Como você está?
PRIOR: Duas manchas novas. Minha perna dói.
Tenho proteína na urina, é o que diz o médico,
mas sei lá que porra isso quer dizer. Bom, de
qualquer jeito não devia estar lá, a tal da
proteína. Já tô com o traseiro ardendo de tanta
diarréia e ontem eu evacuei sangue.
LOUIS: Tenho horror dessa história. Não me
conta...
PRIOR: Você fica tão abalado que eu acabo te
consolando. É mais fácil. Mas o que acontecer
de grave eu não vou te contar.
LOUIS: Evacuar sangue me parece bem grave.
PRIOR: E eu tô te contando.
LOUIS: E eu tô agüentando.
PRIOR: Me fala sobre o seu trabalho.
LOUIS: Eu estou agüentando! (começa a
chorar)
PRIOR: Ah, isso não tá dando certo... Me fala
mais sobre o seu trabalho.
LOUIS: Você não vai morrer.
PRIOR: Como foi seu dia?
LOUIS: Prior?
PRIOR: Hmmm?
LOUIS: Você me ama?
PRIOR: Sim.
LOUIS: E se eu caísse fora dessa? Você ia me
odiar pra sempre? (Prior beija Louis na testa)
PRIOR: Sim.
*****
JOE: Acho que a gente devia rezar. Pedir ajuda
de Deus. Pedir juntos pra ele.
HARPER: Deus não quer falar comigo. Tenho
que inventar gente pra conversar comigo.
JOE: Você tem que insistir.
HARPER: Esqueci qual é a pergunta. Ah, sim:
Meu Deus, meu marido é...?
JOE: (ameaçador) Pára. Pára! Estou te
avisando. (pausa) Que diferença faz? Que eu
seja uma coisa lá dentro, lá no fundo, por mais
errada ou mais feia que seja? Contanto que o
meu comportamento seja como eu sei que deve
ser. Decente. Correto. Só isso aos olhos de
Deus!
HARPER: Não. Isso é conversa de mórmon. Eu
odeio isso. Joe me conta!
JOE: Só posso te dizer que eu sou uma boa
pessoa. Uma pessoa muito boa!
HARPER: Eu vou ter um bebê.
JOE: Mentira.
HARPER: Mentiroso é você.
JOE: Você está mesmo...?
HARPER: Não. Sim. Não. Sim. Sai de perto de
mim. Agora nós dois temos um segredo.
*****
ATO I, CENA 9
Terceira semana de novembro. Roy e Henry,
seu médico, no consultório de Henry.
HENRY: Ninguém sabe qual é a causa. E
ninguém sabe qual é a cura. A melhor teoria até
o momento é que a culpa é de um retrovírus, o
HIV. Vírus da Imunodeficiência Humana. Ele
entra na corrente sanguínea através de um
corte, ou de um orifício. Os anticorpos não
conseguem proteger o organismo contra esse
vírus. O sistema imunológico pára de funcionar.
O corpo fica exposto a uma enormidade de
infecções causadas por micróbios. Como o
Sarcoma da Kaposi. Essas manchas. Esse seu
problema na garganta. Esses gânglios. (pausa)
ROY: Muito interessante, Dr. Sabe-Tudo. Mas
por que porra você está me dizendo tudo isso?
HENRY: (pausa) Bem, eu acabo de retirar uma
dessas três manchas, e o resultado da biópsia
provavelmente vai dizer que é um sarcoma de
Kaposi. E você está com os gânglios inchados
no pescoço, na virilha, nas axilas... É outro
sinal, adenopatia. E você tem candidíase oral, e
talvez uma micose em dois dedos da mão
direita. Então é por isso...
ROY: Essa doença...
HENRY: Síndrome.
ROY: Seja lá o que for. Ela atinge mais os
homossexuais e os viciados em drogas.
HENRY: Em geral. Os hemofílicos também
correm riscos.
ROY: Então por que você está insinuando que
eu...?
HENRY: Eu não...
ROY: Eu não sou viciado em drogas.
HENRY: Ora, Roy...
ROY: O quê? “ora, Roy”, o quê? Você acha que
eu sou viciado? Henry, tá vendo alguma marca?
HENRY: Isso é absurdo.
ROY: Fala!
HENRY: Falar o quê?
ROY: Fala: “Roy Cohn, você é...”
HENRY: Roy.
ROY: “Você é...” Vai! E não é “Roy Cohn, você é
viciado em drogas”. “Roy Marcus Cohn, você
é...” Vamos, Henry. Começa com “H”! Começa
com o “H”. Henry, e não é “hemofílico”! Anda!
HENRY: O quê que você está fazendo, Roy?
ROY: Fala! Diz aí: “Roy Cohn, você é
homossexual”! (pausa) E eu vou te perseguir
sistematicamente, destruir tua reputação em
todo o estado de Nova York, Henry.
HENRY: Roy, você é meu cliente desde 1958.
Tirando as plásticas faciais eu já tratei você de
tudo, desde sífilis...
ROY: Que eu peguei de uma puta em Dallas.
HENRY: Desde sífilis até verrugas venéreas. No
seu ânus. Que você pode ter pego de uma puta
em Dallas, mas a puta não era do sexo
feminino. (pausa) Roy Cohn, você é... Roy
Cohn, você já fez sexo com homens muitas e
muitas vezes e, um deles, ou vários deles, te
contaminou. Você está com AIDS.
ROY: AIDS. (pausa) Não é quem eu como ou
quem me come que importa. Mas quem vai
atender o telefone quando eu ligar, quem me
deve favores. Pra quem não compreende isso,
eu sou homossexual porque eu durmo com
homens. Mas homossexuais são aqueles que
trabalham na câmara e não conseguem aprovar
uma merda de uma lei contra a discriminação
social! Homens que não conhecem ninguém
importante. Homens que não têm poder
nenhum. Isso se parece comigo, Henry?
HENRY: Não.
ROY: Não! Porque eu tenho poder! Muito poder,
Henry! Eu posso pegar esse telefone, discar uns
quinze números e sabe quem vai atender?
HENRY: O presidente da república.
ROY: Não! Melhor que isso: a mulher dele!
HENRY: Impressionante.
ROY: Não quero que você fique impressionado.
Quero que você compreenda. Roy Cohn não é
homossexual. Roy Cohn é um heterossexual,
Henry, que trepa com homens.
HENRY: Ok, Roy.
ROY: E qual é o meu diagnóstico, Henry?
HENRY: Você está com AIDS, Roy.
ROY: Não, Henry, não! AIDS é o que têm os
homossexuais. Eu tenho câncer no fígado!
(pausa)
HENRY: Bom, Roy, seja lá o que for a merda
que você tem, é muito sério. E eu não tenho
porra nenhuma pra te dar. A Secretaria da
Saúde lá em Washington tem um remédio novo
chamado AZT, com uma lista de espera de dois
anos. Então, vê se pega o telefone, disca
aqueles quinze números, e fala pra Primeira
Dama que você precisa entrar num tratamento
experimental pra câncer no fígado, porque você
pode chamar isso do que quiser, mas a verdade
é que é uma péssima notícia.
FIM DO PRIMEIRO ATO
SEGUNDO ATO
IN VITRO
Dezembro 1985 – Janeiro 1986
ATO II, CENA 1
À noite, terceira semana de dezembro. Prior
sozinho no chão do seu quarto; ele está muito
pior.
PRIOR: Louis, Louis, acorda, por favor, ah meu
Deus! (Louis entra correndo) Está me
acontecendo um negócio horrível, não consigo
respirar...
LOUIS: (saindo) Vou chamar a ambulância.
PRIOR: Não, espera...
LOUIS: Espera o quê? Porra, você tá louco?
Ah, meu Deus, você tá pegando fogo! Sua testa
tá pegando fogo! Vou chamar a ambulância.
PRIOR: Não quero ir pro hospital, não quero ir
pro hospital, por favor, me deixa ficar aqui
deitado, é só eu...
LOUIS: Não, Prior! Ah, meu Deus, levanta...
PRIOR: NÃO ENCOSTA NA MINHA PERNA!!!
LOUIS: A gente precisa... Ah, meu Deus... Isso
é tão louco...
PRIOR: Eu vou ficar legal, é só eu ficar aqui
deitado, Lou, falando sério, é só eu conseguir
dormir um pouquinho... (Louis sai) Louis? NÃO!
NÃO! Não chama, você vai me mandar pro
hospital e eu não vou mais voltar, por favor,
Louis, por favor, eu te imploro, baby, por
favor... (berra) LOUIS!!!
LOUIS: (em off, histérico) QUER CALAR A
BOCA, PORRA?!
PRIOR: (tentando levantar) Aaaah!!! Preciso...
ir no banheiro. Espera. Espera um pouco, é só
eu... Aaaah! Ah, meu Deus. (ele caga nas
calças)
LOUIS: (voltando) Prior? Eles vão chegar daqui
a... Ah, meu Deus!
PRIOR: Desculpa, desculpa...
LOUIS: Quê que aconteceu... Quê que...?
PRIOR: Tive um acidente. (Louis vai até ele)
LOUIS: Isso é sangue!
PRIOR: É melhor você não encostar nisso aí...
Não encosta em mim... Eu... (desmaia)
LOUIS: (baixinho) Ah, socorro. Ah, me ajuda.
Ah, meu Deus, meu Deus, me ajuda. Eu não
posso, não consigo, não consigo...
ATO II, CENA 2
Mesma noite. Harper está sentada em casa
sozinha, com as luzes apagadas. Mal
conseguimos vê-la. Joe entra, mas não acende
a luz.
JOE: Por que você está sentada no escuro?
HARPER: Escutei aquele barulho no quarto
outra vez. Eu sei que tinha alguém lá. Quem
sabe deitado na cama, debaixo da coberta, com
uma faca na mão. Joe eu, ahn, estou pensando
em ir embora.
JOE: Não vai. Por favor. Fica. A gente pode
consertar as coisas. Eu rezo para isso
acontecer.
HARPER: Quando você reza, o que você pede?
JOE: Peço pra Deus me despedaçar, me
esmigalhar em pedacinhos e começar tudo de
novo.
HARPER: Ah, por favor, não peça isso... No
mundo inteiro, inteirinho, você é a única pessoa
que eu amo, que eu já amei. E eu te amo
terrivelmente. Terrivelmente. Posso inventar
tudo, qualquer coisa, mas não posso achar que
isso é invenção.
JOE: Você vai... Você vai mesmo ter bebê?
HARPER: Já tinha que vir, e nada de sangue. Na
verdade, não sei. Acho que não seria uma coisa
boa. Quem sabe o sangue não veio porque eu
tomo comprimidos demais. Quem sabe eu vou
dar à luz uma pílula, heim? Eu acho que você
devia ir pra Washington. Sozinho.
JOE: Eu não vou te deixar, Harper.
HARPER: Talvez não. Mas eu vou te deixar.
ATO II, CENA 3
Uma da madrugada. Louis e uma enfermeira,
Emily, estão sentados no quarto de Prior no
hospital.
EMILY: Agora ele vai ficar bem.
LOUIS: Não vai não.
EMILY: É. Acho que não. Eu dei uma coisa pra
ele dormir.
LOUIS: Dormir profundamente?
EMILY: Em órbita, nas luas de Júpiter.
LOUIS: Bom lugar pra se estar.
EMILY: Qualquer lugar é melhor que aqui. Você
e ele são... Hã?
LOUIS: Sim. Eu e ele somos hã.
EMILY: Pra você isso deve ser um inferno.
LOUIS: É sim: um inferno.
EMILY: Ele parece um cara legal. Bonito.
LOUIS: Não. Não desse jeito. Bom, é sim. Ou
era. Sei lá.
EMILY: Nome esquisito, Prior Walter. Como
quem diz: “o Walter prévio, o Walter antes
desse aqui”.
LOUIS: Muitos Walters existiram antes desse
aqui. Prior é um nome muito antigo, numa
família muito antiga.
EMILY: E isso hoje é importante?
LOUIS: Bem, é antigo. Muito antigo. Coisa que
em certos círculos impressiona.
EMILY: Não no meu círculo.
LOUIS: Você já ouviu falar da Rainha Matilda?
EMILY: Não, história antiga sempre me deixou
louca.
LOUIS: Matilda bordava enquanto Guilherme o
Conquistador estava na guerra. Ela esperou por
ele, ficou bordando durante anos. E, se ele
tivesse voltado da guerra quebrado e derrotado,
ela o teria amado ainda mais. E, se ele tivesse
voltado mutilado, feio e cheio de infecções, ela
o teria amado ainda mais. E ela nunca pediria a
Deus “por favor que ele morra se não puder
voltar pra mim inteiro e saudável, capaz de
levar uma vida normal!” Se ele tivesse morrido,
ela enterraria o seu coração com ele.
EMILY: Puxa, que história...
LOUIS: Será que ele vai dormir a noite inteira?
EMILY: No mínimo.
LOUIS: Vou indo.
EMILY: É uma da manhã. Onde você vai a
essas...
LOUIS: Eu sei que horas são. Vou dar uma
volta... O ar da noite é bom pra... Ir ao parque.
EMILY: Cuidado.
LOUIS: É. Perigo. Diga pra ele, se ele acordar e
você ainda estiver de plantão, fala tchau pra
ele. Diz que eu tive que ir embora.
ATO II, CENA 4
Uma hora depois. Cena dividida: Joe e Roy num
bar chique (hétero); Louis e um Homem numa
área do Central Park. Joe e Roy estão sentados
num bar, que tem luzes fortes. Joe tem um
prato de comida na frente mas não está
comendo. Às vezes Roy estica o braço e pega
com o garfo pedacinhos do prato de Joe. Roy
está bebendo pesado. Joe não bebe nada. Louis
e o Homem estão lançando olhares um ao
outro, ambos alternando interesses e
indiferença.
JOE: Ela começou a tomar comprimidos depois
que perdeu a criança. Ahn, ou melhor... Não,
ela já tomava comprimidos antes disso. Ela veio
de uma família horrível. Muita bebida, violência.
Ela nunca fala sobre isso. Só fala que o céu vai
despencar, que tem alguém com uma faca
escondido no quarto... Monstros. Mórmons.
Todo mundo acha que os Mórmons não vê de
famílias assim, que não é esse o
comportamento que nós devemos ter, mas
temos... Estou te aborrecendo?
ROY: Não, por favor. Sinceramente. Que é isso,
água tônica?
JOE: O que me assusta é que talvez o que eu
mais ame na Harper é a parte dela que está
mais longe da luz, do amor de Deus; Eu não
posso deixá-la aqui. Eu sou responsável por ela.
ROY: Porque ela é sua esposa.
JOE: Ela não suportaria Washington.
ROY: Então deixe ela ficar aqui.
JOE: Ela vai desmoronar se eu for embora.
ROY: Então leve ela pra Washington.
JOE: Não dá, Roy. Não consigo. Ela precisa de
mim.
ROY: Escuta, Joe. Em matéria de divórcio eu
sou o melhor advogado do país.
JOE: Washington não pode esperar?
ROY: Joe, cada um faz o que precisa fazer.
Você faz o que você precisa fazer. Você. Deixa
a vida dela ir pra onde ela for. É melhor pros
dois. Alguém deve conseguir o que quer.
*****
HOMEM: O que você quer?
LOUIS: Quero que você me coma, me
machuque, me tire sangue.
HOMEM: Eu quero.
LOUIS: É?
HOMEM: Quero te machucar.
LOUIS: Me come.
HOMEM: Mesmo?
LOUIS: Com força.
HOMEM: Ah, é? Você andou se comportando
mal? (pausa. Louis ri baixinho)
LOUIS: Muito mal. Muito mal.
HOMEM: Precisa de um castigo, garoto?
LOUIS: Sim. Preciso.
HOMEM: Sim, o quê? (pequena pausa)
LOUIS: Ahn, eu...
HOMEM: Sim o quê, garoto?
LOUIS: Ah, sim senhor.
HOMEM: Quero que você me leve pra tua casa,
garoto.
LOUIS: Não, não posso.
HOMEM: Não o quê?
LOUIS: Não, senhor, não posso... Eu não moro
sozinho.
HOMEM: O seu casinho sabe que hoje você está
com um homem, heim, garoto?
LOUIS: Não senhor... Meu casinho não sabe...
HOMEM: Seu casinho sabe que você...
LOUIS: Vamos mudar de assunto, tá? Podemos
ir pra sua casa?
HOMEM: Eu moro com meus pais.
LOUIS: Ah...
*****
ROY: A pessoa que vence na vida, vence. O
trunfo mais precioso que se tem na vida, a meu
ver, é a capacidade de ser um bom filho. Você
tem isso, Joe.
JOE: Eu tive muitas dificuldades com meu pai.
ROY: Bom, às vezes é assim. Seu pai está vivo?
JOE: Ahn, já morreu.
ROY: Ele era... Como? Um homem difícil?
JOE: Era militar. Frio. Às vezes era muito
injusto.
ROY: Mas ele te amava?
JOE: Não sei.
ROY: Não, não, Joe. Ele amava, sim. Eu sei. Às
vezes o amor do pai tem que ser duro, muito
duro. Até injusto e frio pra fazer o filho crescer
forte num mundo como este. Este mundo não é
bom.
*****
HOMEM: Então, aqui mesmo.
LOUIS: Ahn... Você tem camisinha?
HOMEM: Eu não uso camisinha.
LOUIS: Devia usar. (tira uma do bolso do
paletó) Toma.
HOMEM: Eu não uso camisinha.
LOUIS: Nesse caso, esquece. (vai saindo)
HOMEM: Não, espera. Coloca em mim, garoto.
LOUIS: Esquece, tenho que ir embora. Voltar
pra casa. Acho que estou ficando louco.
HOMEM: Pára com isso, ele não vai descobrir.
LOUIS: Está frio. Muito frio.
HOMEM: Nunca é frio demais. Deixa eu te
esquentar. (eles começam a transar) Relaxa.
LOUIS: (com uma risadinha) Nem fodendo.
HOMEM: Acho que...
LOUIS: O quê?
HOMEM: Acho que arrebentou. A camisinha.
Quer que eu continue? (pequena pausa) Quer
que eu tire? Que que eu...?
LOUIS: Continua. Me contamina! O que me
importa, não tô nem aí. (pausa. O Homem tira)
HOMEM: Eu, ahn... Desculpa, mas acho que eu
estou querendo ir embora.
LOUIS: Tudo bem. Lembranças a papai e
mamãe. (o Homem lhe dá um tapa) Ai! (olham
fixo um para o outro) Foi uma brincadeira! (O
Homem vai embora).
*****
ROY: Há quanto tempo nós nos conhecemos,
Joe?
JOE: Desde 1980.
ROY: Muito tempo. Eu me sinto próximo de
você o suficiente, Joe.
JOE: Eu devo praticamente tudo a você, Roy.
ROY: Eu estou morrendo, Joe. Câncer.
JOE: Ah meu Deus!
ROY: Por favor, deixa eu terminar. Poucas
pessoas sabem disso. Só estou contando
porque... Não tenho medo da morte. O que a
morte pode me trazer que eu ainda não
enfrentei? Eu vivi; a vida é pior. Joe, você
precisa viver. Ouça o que eu digo. A vida é
cheia de horror. Ninguém escapa. Ninguém.
Salve-se do que te pressiona, do que te
cobram, do que te ameaça. Não tenha medo!
ATO II, CENA 5
Três dias depois. Prior e Belize no quarto do
hospital. Prior está muito doente, mas
melhorando. Belize acaba de chegar.
PRIOR: Dona Coisa, querida!
BELIZE: Ma cherie, bichette!
PRIOR: Stella!
BELIZE: (examinando Prior) Querida, você está
um lixo. Sim senhora. Tu es come la merde!
PRIOR: Merci.
BELIZE: (tira da bolsa umas garrafinhas
plásticas e passa a Prior) Não se desespere, ma
belle. Olha aqui, querridinha! Crreminho
mágico!
PRIOR: (abre uma garrafa, cheira) Puuuh! Que
bosta é essa?
BELIZE: Não sei. Vamos esfregar no seu pobre
corpinho, cheio de feridinhas, e ver o que
acontece.
PRIOR: Isso aqui não é medicina ocidental,
essas garrafas...
BELIZE: Vudu. Da loja de ervas.
PRIOR: E dizer que você é enfermeiro
diplomado.
BELIZE: (cheirando o creme) Cera de abelha e
perfume barato. Poção mágica. Cheia de amor e
boas vibrações. Veio de uma negra velha
cubana, uma bruxa lá de Miami.
PRIOR: Tira essa porcaria de perto de mim,
estou sem imunidade.
BELIZE: Eu sou profissional. Eu sei o que estou
fazendo.
PRIOR: Isso fede. Notícias do Louis? (pausa.
Belize começa a fazer massagem delicada em
Prior)
BELIZE: Foi-se. Se fuê.
PRIOR: Ele volta. Conheço o tipo. Gosta de
deixar a garota ansiosa.
BELIZE: Há quanto tempo você está aqui?
PRIOR: (se enervando, de repente) Não sei, não
me lembro. Foda-se. Eu quero o Louis. Quero
meu namorado, puta que pariu. Cadê o Louis?
Eu vou morrer, estou morrendo, cadê o Louis?
BELIZE: Shhh, shhh...
PRIOR: Esse remédio é muito estranho. Pra
começar, dá uma instabilidade emocional.
BELIZE: Guarda umas pilulinhas pra mim.
PRIOR: Ah, não, esse remédio não. Essa droga
é um veneno químico, venenosíssimo, ma
bichette. E não é só desorientação. Eu escuto
coisas. Vozes.
BELIZE: Vozes.
PRIOR: Uma voz.
BELIZE: Dizendo o quê? (pausa)
PRIOR: Não posso contar.
BELIZE: É melhor você contar pro médico. Se
não, eu conto.
PRIOR: Não, não, não conta. Por favor. Eu
quero essa voz; ela é maravilhosa. É a única
coisa que está me mantendo vivo. Não quero
falar sobre isso com um médico plantonista
qualquer. Sabe o que acontece? Quando eu
escuto a voz, eu fico com tesão.
BELIZE: U-lalá!
PRIOR: Comme ça. (demonstra com o braço) E
você sabe que o meu demora pra levantar.
BELIZE: Meus maxilares doem só de lembrar.
PRIOR: E você quer me negar esse pequenino
prazer?
BELIZE: Você e seu piu-íu podem confiar em
mim.
PRIOR: Je t’aime, ma belle bichette.
BELIZE: Querida... Sabe que esse negócio de a
gente se chamar de “querida” não é
politicamente correto? Nós devíamos ter
largado isso quando deixamos de ser drag.
PRIOR: Eu estou doente, e se com isso eu me
sinto melhor, eu não vou ser politicamente
correto. Você fala que nem o Lou.
BELIZE: Minha mãe sempre me disse: quem se
deixa abater com as pequenas coisas, fica
arrasado quando chega uma coisa grande.
PRIOR: Minha mãe me avisou.
BELIZE: E as coisas grandes chegaram mesmo.
PRIOR: Mas eu não escutei.
BELIZE: Não. (pausa) Tenho que ir embora. Se
eu quiser passar a minha vida solitária cuidando
de gente como você, posso muito bem fazer
isso ganhando um salário. De merda.
PRIOR: Você é uma mártir cristã.
BELIZE: Aconteça o que acontecer, baby, eu
estarei aqui.
PRIOR: Je t’aime.
BELIZE: Je t’aime. Amiga, não vá me
enlouquecer! Heim? Porque eu já tenho que
lidar com tanta bicha pirada, ensandecida...
Não tenho paciência com a demência.
BELIZE: Por que será que justo você foi
escolhido? E vê se come mais, queridinha, você
está mesmo uma merda. (Belize sai)
PRIOR: (depois de esperar um tempo) Ele foi
embora. Você ainda está aí?
VOZ: Não posso ficar. Vou voltar.
PRIOR: Você é dessas vozes do tipo “siga-me
para o outro lado”?
VOZ: Não. Não sou uma ave noturna. Sou um
mensageiro...
PRIOR: Você tem uma voz linda. Fica comigo.
VOZ: Agora não. Em breve eu voltarei. Vou me
revelar a você. Sou glorioso, glorioso. Meu
coração, meu semblante e minha mensagem.
Você deve se preparar.
PRIOR: Para o quê? Eu não quero...
VOZ: Não para a morte. Não!
ATO II, CENA 6
Mesma tarde. Na escadaria de granito do Fórum
de Brooklyn. O tempo está frio e ensolarado.
Uma carrocinha vende cachorro-quente. Louis,
num casacão desmazelado, está sentado num
degrau comendo um cachorro-quente
contemplativamente. Joe entra com três
cachorros-quentes e uma lata de Coca-Cola.
JOE: Posso...?
LOUIS: Ah, claro. Claro.
JOE: Como vai o seu amigo?
LOUIS: Meu...? Ah, está pior. Meu amigo está
pior.
JOE: Que pena.
LOUIS: É, é isso aí. Obrigado pelo interesse. É
legal da sua parte. Você é legal. Nem consigo
acreditar que você votou no Reagan.
JOE: Espero que ele melhore.
LOUIS: O Reagan?
JOE: O seu amigo.
LOUIS: Não vai. Nem o Reagan.
JOE: Não vamos falar de política, está bem?
LOUIS: (indicando o sanduíche de Joe) Você vai
comer três cachorros-quentes?
JOE: Bom... Eu estou... Com fome.
LOUIS: Isso faz um mal terrível. Cheio de cocô
de rato, perninhas de besouro, serragem e
outras merdas.
JOE: Você está comendo também.
LOUIS: Ah, bom, é o formato. Não consigo me
controlar. E, além disso, eu estou tentando
me suicidar. E você? Qual é a sua desculpa?
JOE: Não tenho desculpa. (pausa)
LOUIS: Termina seu lanchinho. (dá um tapinha
no joelho de Joe e vai saindo)
JOE: Ahn... (Louis se vira, olha pra ele. Joe
procura algo pra dizer) Não posso entrar pra
trabalhar hoje.
LOUIS: Então não entre.
JOE: (sem realmente ouvir Louis) Não posso
entrar, eu preciso... Não posso mais ser isso.
Preciso... De uma mudança. Eu devia...
LOUIS: (não necessariamente num convite
sexual direto; ele não quer ficar sozinho) Quer
companhia? Pra qualquer coisa? (pausa. Joe
olha para Louis e desvia o olhar, com medo.
Louis dá de ombros) às vezes, mesmo que você
morra de medo, você tem que se dispor a
infringir a lei. Entende o que eu quero dizer?
JOE: Entendo.
LOUIS: (pequena pausa) Não tenho dormido
bem.
JOE: Nem eu.
LOUIS: (vai até Joe, umedece o seu
guardanapo na boca e limpa de leve a boca de
Joe) Você está com medo. Eu também. Todo
mundo sente medo na Terra da Liberdade. Que
Deus nos ajude a todos.
ATO II, CENA 7
Harper atravessa e cena na mesma hora que
Joe sai com Louis. É uma licença: eles não se
vêem. Mr. Lies acompanha Harper. O Rabino
Isidor Chemelwits atravessa lentamente a cena,
usando uma bengala. Belize vem do outro lado
conversando com a enfermeira Emily. Passa o
Dr. Henry, que fica num canto. Emily e Belize
comentam alguma coisa sobre o médico. A cena
se esvazia.
ATO II, CENA 8
Bem tarde na mesma noite. Joe num telefone
público, ligando para Hannah, que está em
casa, em Salt Lake City.
JOE: Mãe?
HANNAH: Joe?
JOE: Alô?
HANNAH: Você está ligando da rua? Mas...
Deve ser quatro da manhã. O que houve?
JOE: Nada, nada, eu...
HANNAH: É a Harper. A Harper...? Joe? Joe?
HANNAH: O que aconteceu?
JOE: Eu só queria falar com a senhora. Ahn,
queria fazer uma experiência com a senhora.
HANNAH: Joe, você não andou... Você andou
bebendo, Joe?
HANNAH: Não é do seu feitio.
JOE: Não. Quer dizer, quem é que pode dizer?
HANNAH: Por que você está na rua às quatro da
manhã? Nessa cidade maluca? É perigoso.
JOE: Na verdade, mãe, eu não estou na rua.
Estou no parque.
HANNAH: Que parque?
JOE: Central Park.
HANNAH: CENTRAL PARK?!? AH, MEU Deus.
Mas o que você está fazendo no Central Park a
essa hora da madrugada? Você está... Joe, eu
acho que você deve ir pra casa agora mesmo!
Me ligue da sua casa. (pequena pausa) Joe?
JOE: Eu venho aqui pra olhar, mãe. Ás vezes.
Só pra olhar.
HANNAH: Olhar o quê? O quê que tem pra olhar
às quatro horas?
JOE: Mãe, o pai gostava de mim?
HANNAH: O quê?
JOE: Ele gostava de mim?
HANNAH: Você devia ir pra casa já e ligar de lá.
JOE: Responde, mãe.
HANNAH: Ora, tenha paciência. Isso é piegas.
Não gosto dessa conversa.
JOE: Pois é, daqui pra frente vai ficar pior
ainda. (pausa)
HANNAH: Joe?
JOE: Mãe. Mãe. Eu sou homossexual, mãe. Ai,
como saiu horrível!(pausa) Alô? Alô? Eu sou
homossexual. (pausa) Por favor, mãe. Fala
alguma coisa.
HANNAH: Você já tem idade para compreender
que seu pai não gostava de você, sem cair no
ridículo!
JOE: O quê?
HANNAH: Você é ridículo. Você está sendo
ridículo!
JOE: Eu... O quê?
HANNAH: Você deve voltar para a sua casa
agora mesmo. Para a sua mulher. Eu preciso
dormir. Esse telefonema... Nós vamos esquecer
esse telefonema.
JOE: Mãe!
HANNAH: Pára de falar. Chega por hoje.(de
repente, muito brava) Beber é pecado! Pecado!
Eu não te eduquei para isso! (ela desliga).
ATO II, CENA 9
Manhã seguinte, cedo. Cena dividida: Harper e
Joe em casa; Louis e Prior no hospital. Joe e
Louis acabaram de entrar. Cena rápida e
obviamente enfurecida; se as falas forem
superpostas, tudo bem. O processo pode ser
um pouco confuso mas os resultados finais,
não.
HARPER: Ah, meu Deus. Chegou a hora da
verdade.
JOE: Harper.
LOUIS: Eu vou me mudar.
PRIOR: Vai porra nenhuma.
JOE: Harper. Escuta, por favor. Eu ainda te amo
muito. Você ainda é minha companheira. Eu
não vou te deixar.
HARPER: Não, não, não estou gostando nada
disso. Eu vou embora.
LOUIS: Eu vou embora. Na verdade... Já fui.
JOE: Escuta, por favor. Fica. Isso é muito difícil.
A gente pode conversar.
HARPER: Estamos conversando. Não estamos?
PRIOR: Filho da puta! Se mandou de fininho
enquanto eu estou aqui de molho! Que baixaria.
JOE: Você tomou comprimidos? Quantos?
HARPER: Nenhum. Faz mal pro... (dá tapinhas
na barriga)
JOE: Você não está grávida. Eu liguei pro seu
ginecologista.
HARPER: Estou indo em outro ginecologista.
JOE: Escuta. Você quer a verdade. Essa é a
verdade. Eu já sabia quando me casei com
você. Acho que sei disso desde que me entendo
por gente, mas...
PRIOR: Você não tem o direito de fazer isso.
Isso é crime!
LOUIS: Ah, ridículo.
JOE: Eu saio pra andar, você quer saber onde
eu vou? Vou até o parque, ou ando de lá pra cá
na rua, ou em lugares onde... E eu vivo jurando
que não vou mais sair pra andar, mas não
consigo.
LOUIS: Preciso de um pouco de privacidade.
PRIOR: Isso é novidade.
LOUIS: Tudo é novidade, Prior!
JOE: Eu tento aprender a viver morto,
encaixotado, mas aí eu vejo alguém que eu
quero...
PRIOR: O apartamento é muito pequeno pra
três? Gostosinho para Louis e Prior mas não pra
nós dois e a doencinha do Prior!
LOUIS: Eu me recuso a ser julgado por você.
Isso não é crime, é só uma conseqüência
inevitável...
PRIOR: Ordem no Tribunal!
LOUIS: Olha, vamos falar das coisas práticas,
dos horários. Eu venho ver se você quiser,
passo as noites com você quando eu puder, eu
posso...
PRIOR: O júri já chegou ao veredicto?
LOUIS: Estou tentando fazer o melhor que eu
posso!
PRIOR: Patético!
JOE: Harper, eu não tenho nenhuma atração
sexual por você. E acho que nunca tive.
(pequena pausa)
HARPER: Acho que você devia ir embora.
JOE: Para onde?
HARPER: Washington, sei lá.
JOE: O que você está falando?
HARPER: Sem mim. Sem mim, Joe. Não é isso
que você quer ouvir? (pequena pausa)
JOE: É.
LOUIS: Você pode amar alguém e falhar com
essa pessoa. Você pode amar alguém e não ser
capaz...
HARPER: O tempo todo você estava me
enrolando em mentiras.
PRIOR: Uma pessoa poderia teoricamente
amar, e talvez muitas amem, mas nós dois
sabemos que você não consegue.
LOUIS: Consigo.
PRIOR: Você não consegue nem dizer.
LOUIS: Eu te amo, Prior.
PRIOR: E daí?
HARPER: Isso é tão assustador, eu quero que
pare. Que volte atrás.
PRIOR: Chegamos ao veredicto, Meritíssimo. O
coração deste homem é deficiente. Ele ama,
mas seu amor não vale nada.
JOE: Harper.
HARPER: Mr. Lies! Eu quero ir embora daqui!
JOE: Desde que eu te conheço, Harper, você
tem medo... De homens escondidos embaixo da
cama, debaixo do sofá, homens com facas...
PRIOR: (despedaçado, quase implorando,
tentando atingi-lo) Eu estou morrendo! Seu
puto de merda! Você sabe o que é isso? Amor!
Você sabe o que significa amor? Nós vivemos
juntos quatro anos e meio, seu animal, seu
idiota!
LOUIS: Tenho que encontrar uma maneira de
me salvar.
JOE: Quem são esses homens? Eu nunca
compreendi. Agora eu sei.
HARPER: O quê?
JOE: Sou eu.
HARPER: É você?
PRIOR: VAI EMBORA DO MEU QUARTO!!!
JOE: Eu sou o homem com a faca.
HARPER: Você?
PRIOR: Se eu pudesse levantar agora, eu te
matava! Te matava. Vai embora. Eu vou gritar!
HARPER: Ah, meu Deus! É você.
LOUIS: Por favor, não grita!
PRIOR: Vai!
HARPER: Agora eu te reconheço.
LOUIS: Por favor...
JOE: (passando mal, querendo vomitar) Espera,
eu... Ah...
HARPER: Mr. Lies!!!
MR. LIES: (aparece, com uma roupa de
explorador antártico) Estou aqui.
HARPER: Quero ir embora. Não posso mais ver
o Joe.
MR. LIES: Para onde?
HARPER: Qualquer lugar, bem longe.
MR. LIES: Perfeitamente. (Harper e Mr. Lies
desaparecem. Joe levanta a vista, vê que ela se
foi)
PRIOR: (fechando os olhos) Quando eu abrir os
olhos você vai ter sumido! (Louis vai embora)
JOE: Harper?
PRIOR: (abrindo os olhos) Anh... Funcionou.
JOE: (chamando) Harper?!?
PRIOR: Me dói tudo. Queria estar morto.
TERCEIRO ATO
AINDA NÃO CONSCIENTE,
RUMO À AURORA
Janeiro 1986
ATO III, CENA 1
Tarde da noite. Três dias após o fim do
Segundo Ato. Palco completamente escuro.
Prior está na cama em seu apartamento, tendo
um pesadelo. Ele acorda, senta e acende a luz
de cabeceira. Olha no relógio. Sentado à mesa
perto da cama, está um homem vestido como
um fidalgo rural inglês, do século XIII.
PRIOR: (aterrorizado) Quem é você?
PRIOR I: Meu nome é Prior Walter.
PRIOR: O meu nome é Prior Walter.
PRIOR I: Eu sei disso.
PRIOR: Explique.
PRIOR I: Você está vivo. Eu não. Nós dois
temos o mesmo nome. O que você quer que eu
explique?
PRIOR: Um fantasma?
PRIOR I: Um ancestral.
PRIOR: Você é o Prior Walter?
PRIOR I: Sou o tataraneto. O quinto do mesmo
nome.
PRIOR: E eu sou o trigésimo quarto, se não me
engano.
PRIOR I: Na verdade, trigésimo segundo.
PRIOR: Não é o que diz a minha mãe.
PRIOR I: Ela deve estar contando os dois
bastardos. Vivo dizendo: “deixe eles de fora!”.
Não há lugar para bastardos. Cada coisa que a
gente engole...
PRIOR: Pílulas.
PRIOR I: Pílulas. Para a peste.
PRIOR: Peste?
PRIOR I: A peste no meu tempo era muito pior
que hoje. Aldeias inteiras com as casas vazias.
A gente olhava lá fora pela manhã e via a Morte
andando pelas ruas, com o orvalho molhando a
barra do seu manto negro. Tão claro como
estou vendo você agora.
PRIOR: Você morreu de peste?
PRIOR I: Peste bubônica. O monstro das
manchas negras. Como você. Sozinho.
PRIOR: Eu não estou sozinho.
PRIOR I: Você não tem mulher, não tem filhos.
PRIOR: Eu sou um rapaz assim, alegre, sou
gay.
PRIOR I: E daí? Seja alegre, dance pelado, que
me importa, o que isso tem a ver com não ter
filhos?
PRIOR: Gay homossexual, não é gay alegre,
contente, feliz... Bom, deixa pra lá.
PRIOR I: Eu tinha doze. Quando morri.
(Aparece o segundo fantasma, este vestido
como um elegante londrino de século XVII. Prior
I aponta para Prior II) Eu era três anos mais
jovem que ele.
PRIOR: (vendo o fantasma, grita) Ah meu
Deua! Mais um!
PRIOR II: Prior Walter. Anterior a você em
cerca de dezessete outros.
PRIOR I: Ele está contando os bastardos.
PRIOR: Por acaso isso aqui é um congresso?
PRIOR II: Fomos enviados para anunciar a
fabulosa vinda do Mensageiro. Eles adoram uma
entrada triunfal, cheia de arautos, e...
PRIOR I: O Mensageiro virá. Prepare o caminho.
A descida infinita, uma inspiração profunda...
PRIOR II: Suspeito que eles nos escolheram,
pelas afinidades mortais. Numa família de
ascendência tão antiga como os Walters, tinha
que haver alguns levados pela peste.
PRIOR I: O Monstro manchado.
PRIOR II: A Peste Negra. Black Jack. Veio da
água de um poço, metade da cidade de
Londres, dá pra imaginar? A dele veio das
pulgas. A sua, pelo que entendi, é a lamentável
conseqüência das... Venéreas...
PRIOR: E eu vou morrer?
PRIOR II: Nós não temos permissão para
discutir.
PRIOR I: Quando a pessoa morre, não tem
ancestral nenhum para ajudar. Você pode estar
rodeado de filhos, mas você morre sozinho.
PRIOR: Tenho medo.
PRIOR I: Deveria mesmo.
PRIOR II: Não deixa ela alarmado. Temos boas
notícias antes das ruins. Nós dois viemos para
espalhar pétalas de rosas e folhas de palmeira
antes da procissão triunfal. Profeta. Vidente. O
que vai revelar. É uma grande honra para a
família.
PRIOR I: Ele não tem família.
PRIOR II: Estava pensando nos Walters, a
família no sentido amplo.
PRIOR: (canta) “Somewhere over the rainbow,
skies are blue...”
PRIOR II: (põe a mão na testa de Prior) (Prior
se acalma, mas fica de olhos fechados. As luzes
começam a mudar. Música gloriosa à distância)
PRIOR I: (Cantilena em voz baixa)
Adonai, Adonai,
Olam há-ihúd,
Zefirot, Zazahot,
Há-adam, há-gadol
Filha da Luz,
Filha do Esplendor,
Flúor! Fósforo!
Lúmen! Lux!
PRIOR II: (simultaneamente)
Neste instante,
Do brilhante espelho
Do palácio celestial
Através do frio espaço infinito,
O Mensageiro vem
Com seu rastro de órbitas de luz
Fabuloso, magnífico,
Oh, Profeta,
Vem pra você!
PRIOR I e PRIOR II:
Preparai, preparai
A Infinita Descida,
Um sopro, uma pluma
Gloria a...
(Os dois desaparecem)
ATO III, CENA 2
Dia seguinte. Cena dividida: Louis e Belize num
café. Prior no ambulatório do hospital com a
enfermeira Emily; ela lhe está aplicando soro de
pentamidina.
LOUIS: É duro ser de Esquerda neste país, a
Esquerda Americana não consegue deixar de
tropeçar em todos esses fetiches petrificados: a
liberdade, esse é o pior. Então o que quer dizer
a palavra liberdade, ou os direitos humanos?
Você vê o George Bush falando sobre direitos
humanos... É como se estivesse falando sobre
os hábitos de acasalamento dos habitantes de
Vênus. Essa gente não tem a menor idéia do
que é, liberdade, ou direitos humanos. E o que
eu penso é que a AIDS está nos mostrando os
limites da tolerância, que não é suficiente ser
tolerado, porque quando a merda estoura no
ventilador, você descobre o quanto vale a
tolerância. Nada.
BELIZE: A-ham.
LOUIS: Você não acha que é verdade?
BELIZE: A-ham. É sim.
LOUIS: O que interessa é o poder. Foda-se a
tolerância. Mas o que eu quero dizer é que nós
somos diferentes de qualquer outra nação da
terra. Porque, como temos gente aqui de todas
as raças, o que nos define não é a raça, mas,
sim, a política. E, ainda por cima, há o
“monopólio da América Branca”. O Branco
Americano Macho.
BELIZE: O que não deixa de impressionar.
LOUIS: Eu sei disso. Este país é in-cri-vel-men-
te racista. Mas é assim que nem os ingleses.
Quer dizer, todo aquele povo rosadinho, de
olhos azuis. É tão estranho, sabe? Eu não tenho
tanta cara de judeu, ou... Bem, talvez tenha,
mas sabe, aqui em Nova York todo mundo é...
BELIZE: Aqui na América a raça não importa.
LOUIS: A questão da raça aqui é uma questão
política, certo? Aqui os racistas tentam usar a
raça como arma numa luta política. A
verdadeira questão. É que não existem mais
deuses na América, não há mais fantasmas
nem espíritos, não há Anjos na América, não há
um passado espiritual ou racial. Existe apenas a
política e os truques e as manobras...
BELIZE: (olhando o relógio) AH, MEU DEUS!!!
Olha só que horas são, eu tenho um
compromisso.
LOUIS: Você... Você acha que isso tudo que eu
falei foi o quê, racista, ou ingênuo, ou qualquer
coisa?
BELIZE: Bom, com certeza é qualquer coisa.
LOUIS: Como?
BELIZE: Eu estou aqui sentado pensando,
alguma hora tem que acabar o gás, então eu
deixei você falar, tagarelar, matraquear e dizer
umas sete ou oito coisas que eu acho realmente
ofensivas.
LOUIS: O quê?
BELIZE: Mas eu te conheço, Louis, e sei que a
culpa que alimenta esse seu discurso já deve
estar maior que as suas hemorróidas.
LOUIS: Eu não tenho hemorróidas!
BELIZE: Bom, então quando eu finalmente...
LOUIS: O Prior te contou. Ele é foda, ele não
devia...
BELIZE: Você prometeu, Louis: o Prior não
entra na conversa.
LOUIS: Foi você que falou nele.
BELIZE: Eu falei nas hemorróidas.
LOUIS: Então foi indireto. Agressivo passivo!
BELIZE: Estou de saco cheio de você ficar
buzinando no meu ouvido essa sua teoria de
que na América não existe problema racial.
LOUIS: Ah, não seja injusto, eu nunca disse
isso.
BELIZE: Não exatamente, mas...
LOUIS: Você interpretou errado! Eu...
BELIZE: Pára de interromper! Eu ainda não
consegui...
LOUIS: Me deixa só...
BELIZE: NÃO!!! Me deixa só o quê? Falar? Você
está num blá blá blá que não acaba mais desde
que eu cheguei e blá blá blá sobe o morro e blá
blá bla desce o morro...
LOUIS: (superpondo) Bom, você podia ter
entrado na conversa a qualquer momento em
vez de...
BELIZE: (continuando junto com Louis) ...e,
minha amiga, é um espetáculo impressionante,
mas eu tenho coisa melhor pra fazer do que
ficar aqui sentado ouvindo esse seu papo furado
racista só porque...
LOUIS: Eu não sou racista!
BELIZE: Ah, tenha dó...
LOUIS: Tá, talvez eu seja racista mas...
BELIZE: Ah, eu odeio isso, odeio! Provocar você
não tem graça, Louis. Você é tão culpado...
LOUIS: Eu só acho que quando a gente discute
as linhas de opressão política a coisa fica muito
complicada e...
BELIZE: Ah, é mesmo? Sabe que nós, as drags,
conhecemos intimamente a complexidade das
linhas de opressão?
LOUIS: Ex-drag.
BELIZE: Louis, você está deliberadamente
tentando fazer com que eu te odeie?
LOUIS: Não, eu...
BELIZE: Quer dizer, você está se transformando
deliberadamente num brutamontes arrogante
só pra me impressionar? (pausa)
LOUIS: Sabe o que eu acho?
BELIZE: O quê?
LOUIS: Você me odeia porque eu sou judeu.
BELIZE: Vou-me embora.
LOUIS: É verdade.
BELIZE: Você não tem base. Exceto o seu...
(aponta o pênis) Louis, você é ambivalente a
respeito de tudo.
LOUIS: E isso significa o quê?
BELIZE: Você pode ser burro como uma porta,
mas eu me recuso a acreditar que você não
consegue entender. Faça um esforço.
LOUIS: Eu nunca fui ambivalente a respeito do
Prior. Eu amo o Prior. Amo mesmo. De verdade.
BELIZE: Ninguém disse que não.
LOUIS: verdadeiro amor não é ambivalente.
EMILY: (entra e desliga o soro) Tratamento
número... (consulta a ficha) quatro.
PRIOR: Milagre farmacêutico. Lázaro volta a
respirar.
LOUIS: Ele está... Está muito mal?
BELIZE: Você quer a lista completa?
EMILY: Tira a camisa, vamos ver as manchas...
(Prior tira a camisa. Ela examina as manchas)
BELIZE: Tem o problema do peso, o problema
da diarréia e o problema do moral.
EMILY: Só seis. Muito bom. Calças. (Ele abaixa
as calças. Está nu. Ela examina)
BELIZE: E outra: ele acha que está ficando
louco.
EMILY: Não está nada mal. Que mais?
PRIOR: Tornozelos doloridos e inchados, mas a
perna está melhor. A náusea acabou quase
toda, com aquelas pilulinhas cor de laranja.
Evacuação é puro liquido, mas não tem mais
sangue por enquanto. Meu oftalmologista diz
que está tudo ok por enquanto. Meu dentista
diz “fuuuu!” quando olha minha língua e, agora,
ele usa umas minicamisinhas no polegar e no
indicador. E máscara. Meu dermatologista está
no Havaí e minha mãe... Bom, vamos deixar
minha mãe de fora. Meu peso anda estável há
duas semanas. Quer dizer que acho que estou
indo bem. Sem contar, naturalmente, que estou
ficando maluco...
EMILY: Já fizemos todos os testes de
toxoplasmose e não há nenhuma indicação...
PRIOR: Eu sinto que vem vindo uma coisa
aterrorizante, sabe... Quem me conhece sabe
que eu sou uma bicha muito calma, sossegada.
E eu estou numa agitação!
EMILY: Não tem motivo nenhum para se
preocupar. Eu acho que shochen bamromim
hamtzé menuchá nechoná tachat kanfei
ashechiná.
PRIOR: O quê?
EMILY: Está tudo muito bem. Bemaalot kdoshim
utehorím kezohar harakia mazhirim...
PRIOR: Ah, eu não compreendo o que você
está...
EMILY: Et nishmató shel Prior shehalach
leolamó, baavur shenodavó tzdaká bead
hazkorat nishmató.
PRIOR: Por que você está fazendo isso?! Pára!
Pára!
EMILY: Pára o quê?
PRIOR: Você estava... Você estava falando em
hebraico ou algo assim...
EMILY: Hebraico? (ri) Eu sou americana de
ascendência italiana. Não. Eu não falei em
hebraico.
EMILY: Você é um dos que tem sorte. Você
provavelmente ainda vai viver muitos anos.
Você até que está bem saudável, pra quem não
tem mais o sistema imunológico. Você tem
conversado com alguém? A solidão é um perigo.
Um terapeuta?
PRIOR: Não, não preciso de terapeuta, de
ninguém, eu só...
EMILY: Você devia pensar nisso. Você não está
ficando louco. Você está apenas muito
estressado, não é para menos... (Começa a
escrever na ficha dele)
De repente há um assombroso clarão, um
fortíssimo acorde cantado por um coro gigante.
E um grande livro com páginas de aço colocado
no alto de um pilar de um vermelho candente
sobe do chão do palco. O livro se abre: há um
grande Alef inscrito nas suas páginas, que
explode em chamas. Imediatamente, o livro se
fecha com ruído e desaparece
instantaneamente debaixo do chão, enquanto
as luzes se normalizam. Emily, escrevendo, não
nota nada disso. Prior fica embasbacado)
EMILY: (ri, saindo) Hebraico... (Prior foge)
LOUIS: Me ajuda.
BELIZE: Como?
LOUIS: Todas as noites eu sinto falta dele, sinto
tanta saudade dele. Mas aí... Aquelas feridas, e
o cheiro, e... De repente eu poderia estar
doente também. Quem sabe eu também esteja
doente? Estou morrendo.
BELIZE: Ele está morrendo. Você gostaria de
estar morrendo. (suspiram) Hoje o dia todo eu
tive a sensação... Logo essa ruína toda vai ser
coberta de branco. Dá pra sentir o cheiro. Está
sentindo?
LOUIS: Cheiro de quê?
BELIZE: Suavidade, condescendência, graça,
perdão.
LOUIS: Não.
BELIZE: Não posso te ajudar a aprender isso.
Não posso te ajudar, Louis. Não tenho nada a
ver com você. (sai)
LOUIS: (segura a cabeça nas mãos, levanta
devagar, olha para onde Belize saiu) Cheiro de
quê? (olha para os dois lados para ter certeza
de que não tem ninguém olhando, daí inspira
profundamente e fica surpreso) Hã... Cheiro de
neve.
ATO III, CENA 3
Mesmo dia. Harper num lugar muito branco e
frio; em cima um céu brilhante. Cai uma neve
delicada. Ela veste um belo traje de neve.
Ouve-se, fraco, o som do mar.
HARPER: Neve! Gelo! Montanhas de gelo! Onde
estou? Eu... Eu estou me sentindo melhor,
melhor mesmo... Estou me sentindo melhor.
Tem cristais de gelo nos meus pulmões,
maravilhosos, penetrantes. E a neve tem cheiro
de pêssegos gelados, esmagados. E tem
alguma coisa... Um gosto de sangue no vento,
que estranho, esse gosto de ferro.
MR. LIES: Ozônio.
HARPER: Ozônio! Uau! Que lugar é esse?
MR. LIES: O Reino do Gelo, o extremo sul do
planeta.
HARPER: (olha em volta, daí percebe) A
Antártida. Aqui é a Antártida!
MR. LIES: Gélido refúgio para os destroçados.
Aqui não há tristeza, as lágrimas congelam.
HARPER: OLHA SÓ!!! Uau, acho que eu soltei as
amarras, heim?
MR. LIES: Pelo jeito...
HARPER: Maravilha! Quero ficar aqui pra
sempre. Armar acampamento. Construir uma
cidade enorme, feita de fortificações, como no
faroeste. Vou construir à beira de um rio. Onde
ficam as florestas?
MR. LIES: Aqui não existe madeira. Só gelo.
Nada de árvores.
HARPER: Eu vou plantar árvores e cuidar delas.
Assim nunca mais vou precisar voltar pra casa.
MR. LIES: Enquanto durar. O gelo tem o
péssimo hábito de derreter...
HARPER: Não. Para sempre. Aqui posso ter tudo
o que eu quiser. Até companhia! Quem sabe
alguém tenha... Desejo por mim? Você, talvez?
MR. LIES: É contra os regulamentos da Ordem
Internacional dos Agentes de Viagem se
envolver com clientes. Regras são regras. E, de
qualquer forma, não sou eu quem você
realmente quer.
HARPER: Não existe ninguém... Talvez um
esquimó possa me ajudar a construir um ninho
para quando o bebê chegar!
MR. LIES: Não há esquimós no continente
antártico. E você não está grávida de verdade,
você apenas inventou isso.
HARPER: Tudo isso aqui é inventado. Portanto,
eu estou grávida. Certo?
MR. LIES: Isso aqui é um refúgio, um vácuo, o
bom desse lugar é que aqui falta tudo, um
profundo freezer para os sentimentos. Aqui
você pode ficar entorpecida em segurança. Foi
para isso que você veio aqui.
HARPER: Você está dizendo que não existem
esquimós na Antártida. Então, nesse caso, esse
aí, quem é? (Aparece o Esquimó)
MR. LIES: Um esquimó.
HARPER: Um esquimó antártico. Pescador das
profundezas polares.
MR. LIES: Tem uma coisa errada nesta cena. (o
esquimó dá um aceno de cabeça)
HARPER: Vou gostar desse lugar. Ai! Ai! (põe as
mãos na barriga) Acho que senti ela chutar.
Quem sabe eu vou dar a luz a uma nenêzinha
toda coberta de pelo branco, assim ela não vai
sentir frio. Meus seios vão se encher de
chocolate quente, assim ela não vai congelar. E
se ficar muito frio mesmo, ela vai ter uma bolsa
e eu vou poder entrar lá dentro. Como um
canguru. Nós vamos nos amalgamar. É isso que
nós vamos fazer, vamos nos tornar uma só.
ATO III, CENA 4
Mesmo dia. Um terreno baldio no South Bronx.
Uma mulher sem-teto está perto de um latão
de gasolina onde arde fogo. A neve cai. Lixo em
volta. Entra Hannah arrastando duas pesadas
malas.
HANNAH: Da licença? Eu falei, desculpe. A
senhora poderia me dizer, por favor, Aqui é o
Brooklyn? Estou perdida, Peguei o ônibus que
me indicaram e desci. Bom, eu perguntei ao
motorista se ali era o Brooklyn e ele fez que
sim, mas ele era estrangeiro e, para falar a
verdade, acho que ele nem entendia inglês, A
senhora fala inglês? (a Mulher faz que sim) Meu
filho tinha que vir me buscar no aeroporto. Ele
não apareceu e eu naos espero mais que três
horas e quarenta e cinco minutos por
ninguém. Acho que desta vez eu devia ter sido
mais paciente... Escuta: aqui é o...
MULHER: Bronx.
HANNAH: Aqui é o... Bronx?!? Mas, pelo amor
de Deus, como é que eu vim parar no Bronx se
o motorista do ônibus falou...
MULHER: (falando sozinha) Lambe, lambe,
shlep, shlep, quer PARAR com esse negócio
nojento? ANIMAL, FICA LAMBENDO, COMENDO,
LAMBENDO! Só comendo, só comendo, que
interessa, pra você ou pra QUALQUER PESSOA,
se você parar. Parar de comer. (pausa)
HANNAH: (olhando em volta com desespero)
Ah, pelo amor de Deus, será que não tem outra
pessoas...?
MULHER: (de novo pra si mesma) Sai daí, sua
puta! Gordona horrorosa, chega dessa sopa!
Shlep, shlep, sua porca! Eu sei que você vai
mijar isso aí tudo,e aonde? Atrás da moita? Está
um frio do caralho lá fora... Você já leu as
profecias de Nostradamus?
HANNAH: Quem?
MULHER: Nostradamus, um cara que eu saí
com ele uma vez. Profeta. Marginal, uns olhos
que nem... Negócio de dar medo, ele...
HANNAH: Cala a boca. Por favor. Agora eu
quero que a senhora pare de tagarelar um
minuto e me diga como eu faço pra chegar no
Brooklyn. Porque a senhora sabe! E vai me
dizer! Porque não há mais ninguém por aqui e
eu estou com frio e muito irritada! Portanto, se
a senhora é maluca eu sinto muito, mas faça
um esforço, respire fundo! VAI! (Hannah e a
Mulher respiram juntas) Ótimo. Agora solte o
ar. (as duas soltam) Muito bem: como é que eu
faço pra chegar no Brooklyn?
MULHER: Não sei, nunca fui lá. Desculpe.
HANNAH: (derrotada) Não acho que a senhora
saiba onde fica o Centro Mórmon dos
Visitantes...
MULHER: Rua 65, esquina com Broadway.
HANNAH: Mas como é que a senhora...?
MULHER: Vou sempre lá. Cinema e sopa de
graça. É chato mas eles deixam ficar o dia todo.
HANNAH: Bom... Então como é que eu...?
MULHER: Tome o metrô no próximo quarteirão
à direita.
HANNAH: Obrigada!
MULHER: Ah, sim. No novo século seremos
todos malucos.
ATO III, CENA 5
Mesmo dia. Joe e Roy no estúdio da casa de
Roy. Roy está usando um elegante roupão. Fez
um esforço considerável para dar a impressão
de que está bem. Mas ele não está bem e não
consegue esconder muito bem.
JOE: Não posso. A resposta é não.
JOE: É só um emprego.
ROY: Um emprego?
JOE: Roy!
ROY: WASHINGTON! Quando Washington me
chamou eu era mais jovem que você, e você
acha que eu falei “Pô, não posso ir. Estou com
dois dedos enfiados no cu e uma hemorragia
moral no nariz!” Quando Washington chama,
meu amiguinho, você tem que ir, senão você
está fora. Fora! No meio de porra nenhuma!
Foda-se, Dona Maria, se manda daqui!
JOE: Só me deixa...
ROY: Explicar? Explicar o quê? Bobagem, você
partiu meu coração.
JOE: Eu gosto de você, Roy. Tem tanta coisa
que eu quero ser... Talvez você esteja certo,
talvez eu esteja morto...
ROY: Você não está morto, rapaz. Você é
maricas. Você é legal demais, rapaz. Você acha
que Roy Cohn é legal? Joe, você sabe qual foi a
maior realização da minha vida, o que foi mais
importante pra mim? Já ouviu falar em Ethel
Rosenberg? Heim, Joe, heim?
JOE: Ahn... Sim, acho que... Ouvi, sim.
ROY: Sim, você já ouviu, sim. Talvez tenha até
lido sobre ela nos livros de história. Se não
fosse eu, Joe, Ethel Rosenberg hoje estaria
viva, escrevendo uma coluna numa revista
feminina. Só que não está. Porque durante o
julgamento eu telefonava todos os dias, falava
com o juiz...
JOE: Roy...
ROY: TODOS OS DIAS! Fazendo o que eu sei
fazer melhor: falar ao telefone. Aquela
mulherzinha simples, doce, dois filhos... Ele
chegou pertinho de conseguir a prisão
perpétua. Mas eu pedi, pedi até chorar, que ela
fosse pra cadeira elétrica. Eu! Eu fiz isso. E eu
mesmo teria ligado a porra da chave se eles me
deixassem! Você quer ser bonzinho ou quer ser
eficiente? Escolha!
JOE: Roy, você foi assistente do promotor no
caso Rosenberg. Qualquer contato particular
com o juiz durante o julgamento seria, no
mínimo, censurável, provavelmente conspiração
e, num caso que resultou em pena capital, é...
ROY: Assassinato?
JOE: Você não está bem.
ROY: Como assim, não estou bem? Quem é que
não está bem?
JOE: Roy, você está com câncer.
ROY: Não, não estou. (pausa)
JOE: Você me disse que estava pra morrer.
ROY: Que merda você está falando, Joe? Eu
nunca disse isso. Estou em perfeita saúde. Não
há nada de errado comigo. (Ri) Aperta aqui?
(Joe hesita. Estende a mão para Roy. Roy puxa
puxa Joe num abraço forte, apertado. Roy fala
mais para si do que para Joe) Eu sempre estarei
aqui, esperando por você... (com repentina
violência, tenta agarrar Joe, que o empurra
quase dando um soco nele) Vamos, Joseph,
vamos transgredir um pouquinho. (Joe solta
Roy e sai. Depois que ele sai, Roy se dobra em
dois com uma grande dor, uma dor que ele
escondeu durante toda a cena com Joe) Andy,
Andy! Vem cá, Andy!
A porta se abre, mas não é Andy. Está na
soleira uma mulherzinha judia, modestamente
vestida com tailleur e chapéu dos Anos 50. A
sala escurece.
ROY: Porra, Ethel.
ETHEL: (seu jeito é amigável, sua voz é
gelada)Você não parece nada bem, Roy.
ROY: Pois é, Ethel. Eu não estou me sentindo
bem.
ETHEL: Mas você perdeu muito peso. Te fica
bem. Voe era pesado naquela época. Zaftig,
cadeirudo.
ROY: Não sou gordo assim desde 1960. nós
todos éramos mais pesados naquela época,
antes de começar essa moda do corpo.
ETHEL: Quer dizer que a merda bateu mesmo
no ventilador, heim, Roy? (pequena pausa, Roy
faz que sim) Bo, a brincadeira acaba de
começar.
ROY: EU NÃO TENHO MEDO DA MORTE, NEM
DO INFERNO, NEM DE PORRA NENHUMA!
ETHEL: Nos veremos em breve, Roy. O Julius
manda lembranças.
ROY: Ah é? Então manda isso aqui pro Julius!
(faz um gesto obsceno, levanta e vai em
direção dela. No meio da sala, desaba no chão,
respirando com dificuldade, cheio de dor)
ETHEL: Você está muito doente, Roy.
ROY: Ah, meu Deus... i!
ETHEL: Hmmm. Ele não está ouvindo. Nós
devíamos chamar a ambulância (vai até o
telefone) A-há! Botões! Cada coisa que eles têm
agora. Que número eu devo discar, Roy?
ROY: 911.
ETHEL: (disca) Isso canta! (imitando os ruídos
de discar) Lá l ala... Ãhn... Sim, quer mandar
uma ambulância, por favor? Para a casa do Sr.
Roy Cohn, o famoso advogado. Qual o
endereço, Roy?
ROY: 244, Rua 87 Leste.
ETHEL: 244, Rua 87 Leste. Não tem número,
ele é o dono do prédio inteiro. Meu nome? (um
tempo) Ethel Greenglass Rosenberg.
(sorrisinho) Eu? Não, não sou parente do Sr.
Cohn. Apenas uma velha amiga. (desliga) Eles
disseram um minuto.
ROY: Tenho todo o tempo do mundo.
ETHEL: Você é imortal.
ROY: Eu sou imortal, Ethel. (ele se esforça pra
levantar) Eu forcei a minha entrada na história.
Eu nunca vou morrer.
ETHEL: (uma risadinha, então) A história está a
ponto de arrebentar. O milênio se aproxima.
ATO III, CENA 6
Tarde da noite. Quarto de Prior. Prior I e II
observam Prior que está na cama, olhando pra
eles aterrorizado.
PRIOR I: É hoje! É esta noite! Você não está
empolgado? Há-adám há-gadól...
PRIOR II: Lúmen! Fósforo! Flúor! Lux! Uma
onda interminável de escarlate e...
PRIOR: Olha aqui. Uma cabeça de alho. Um
espelho. Água benta. Um crucifixo. SUMAM
DAQUI! Sai fora do meu quarto, porra! VÃO
EMBORA!
PRIOR I: (para Prior II)Duro que nem ferro,
aposto.
PRIOR II: Nós todos enrijecemos quando eles
se aproximam.
PRIOR I: Vem dançar.
PRIOR II: Dançar?
PRIOR I: Escuta... (um oboé solitário começa a
tocar uma música de dança)
PRIOR II: Som delicioso. Quer dançar?
PRIOR: Por favor, me deixa em paz, me deixa
dormir, por favor...
PRIOR II: Ah, ele quer alguém familiar. Um
parceiro que conheça os seus passos. (para
Prior) Fecha os olhos. Imagina...
PRIOR: Eu não...
PRIOR I: Shhh. Fecha os olhos. (ele fecha)
PRIOR II: Agora abre. (Prior abre. Louis
aparece. Está belíssimo. A música vai
aumentando aos poucos e se torna uma
melodia de dança, romântica e apaixonada)
PRIOR: Lou.
LOUIS: Dança comigo.
PRIOR: Não posso, à noite minha perna dói...
Você é... Um fantasma, Lou?
LOUIS: Não. Só um espectro. Me perdi de mim
mesmo. O dia todo sentado num banco frio do
parque. Querendo estar com você. Dança
comigo, baby... (Prior levanta. A perna pára de
doer. Eles começam a dançar. A música é linda)
PRIOR II: (para Prior I) Ah... Agora estou
entendendo por que ele não tem filhos. Ele é
sodomita.
PRIOR I: Ora, fique quieto, seu atrasado
medieval, e deixa eles dançarem.
PRIOR II: Não estou interferindo, já fiz a minha
parte. Hurra, hurra! O mensageiro chegou,
agora vou dando o fora. Não gosto daqui.
(desaparece)
PRIOR I: Século XX. Ah, meu Deus, o mundo
ficou ter-ri-vel-men-te velho. (desaparece.
Louis e Prior valsam felizes. As luzes amainam,
voltam ao normal. Louis desaparece. Prior
dança sozinho. De repente, o som de asas
enche o quarto)
ATO III, CENA 7
Cena dividida. Prior sozinho em seu quarto;
Louis sozinho no parque. De novo, som de asas
batendo.
PRIOR: Ah, não entra aqui não, não...
LOUIS!!!Não. meu nome é Prior Walter, eu...
sou descendente de uma linhagem antiga,
estou... Abandonado, eu... Não, meu nome é...
É... Estou falando bobagem, eu... Chega de
cenas de loucura, silêncio! Shhh!
*****
LOUIS: (num banco do parque. Joe se
aproxima. Os dois se olham) Você vem sempre
aqui?
JOE: Não. Venho. Venho, sim.
LOUIS: Que coincidência, não? Nós dois nos
encontrarmos.
JOE: Eu te segui. Lá do trabalho. Eu... Segui
você até aqui. (estende a mão, hesitante, para
tocar o rosto de Louis)
LOUIS: (recuando) O que você está fazendo?
Não faz isso!
JOE: Desculpa. Me desculpa...
LOUIS: Eu acho que se você tocar em mim, sua
mão vai cair ou sei lá. Coisas piores já
aconteceram com pessoas que me tocaram.
JOE: Eu quero tocar em você. Posso, por
favor... Só encontar... Ahn, aqui? (toca o rosto
de Louis. Fica com a mão lá) Por causa disso eu
vou pro inferno.
LOUIS: Grande coisa. Você acha que o inferno é
pior que Nova York? (pega a mão de Joe,
puxando-o) Vem.
JOE: Aonde?
LOUIS: Para casa. Comigo.
JOE: Não tem sentido. Quer dizer, eu não te
conheço.
LOUIS: Eu também não.
JOE: Então por que razão eu iria...(BEIJO)
LOUIS: (dando um beijo na boca dele) Pra
cama com um estranho? Não sei. Nunca transei
com um condenado ao inferno. Eu gostaria,
mesmo, de não ter que passar a noite sozinho.
JOE: Eu sou uma pessoa terrível, Louis.
LOUIS: Me chame de Lou.
JOE: Não, sou mesmo, de verdade. Acho que eu
não mereço ser amado.
LOUIS: Então, tá vendo? Já somos parecidos
em alguma coisa. (os dois saem juntos)
*****
(Prior escuta. Primeiro não há som, depois o
som de asas batendo, tão perto que assusta)
PRIOR: Com medo, eu... Não, nada de medo,
encontre a raiva, encontre! Eu posso agüentar
as pressões, as dificuldades, eu sou
homossexual e estou acostumado a agüentar a
barra, eu sou duro, sou forte e... Ah! Ah, meu
Deus. Eu... (ele é tomado de assalto por um
imenso tesão) Aaaahhh!... Estou quente, estou
tão... Tão... Ah, meu Deus, o que está
acontecendo?
(A lâmpada começa a piscar. Há um estrondo e
um gemido profundo vindo do teto do quarto,
como as madeiras de um navio sob uma
pressão imensa. E, de cima, cai uma fina chuva
de pó de gesso)
PRIOR: AH, POR FAVOR! POR FAVOR! Alguma
coisa está entrando aqui. Estou com medo, não
estou gostando nada disso. Alguma coisa vem
se aproximando e eu... AH!!!
(há um grande clarão de música triunfal,
arautos anunciando. Silêncio)
PRIOR: (num sussurro temeroso) Meu Deus
todo-poderoso... Isso é muito Steven
Spielberg!!!
(Um som, como um meteoro que despenca,
vem de um lugar muito acima da terra, caindo a
uma incrível velocidade na direção do quarto. A
luz sai bruscamente; quando o quarto fica todo
escuro, ouvimos um CRASH aterrador, como se
algo imenso atingisse a terra. E então, numa
chuva de luz branca extra-terrena, abrindo
grandes asas de um cinza prateado
opalescente, o ANJO desce no quarto e flutua
sobre a cama.
ANJO: Salve, Profeta!
A grande obra vai começar:
O Mensageiro chegou!
Blecaute
Fim da primeira parte.