Anglos e Saxoes

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Revista do Ministério Público do RS Porto Alegre n. 70 set. 2011 – dez. 2011 p. 241-287 15 DE LEGIBUS ET DE CONSUETUDINIBUS ESTUDOS SOBRE A HISTŁRIA DO DIREITO NA INGLATERRA Luiz Inácio Vigil Neto * Tassiane Andressa Wiprich ** Sumário: Introdução. 1 A Pré-história Jurídica e a Antiguidade Clássica do Direito Inglês (5000 AC – 1066 AD). 1.1 O Direito Celta. 1.2 O Direito Antigo. 1.2.1 O Direito Romano na Brittania. 1.2.1.1 O Contexto Geopolítico. 1.2.1.2 Ius Civile Romanorum, Ius Gentium e os Direitos Locais. 1.3 O Direito Anglo-Saxônico na Aeng Land. 1.3.1 Contexto Geopolítico. 1.3.2 A Ocupação Geográca e Civilizatória. 1.3.3 O Sistema Jurídico. 1.3.3.1 A Formação do Sistema Law. 1.3.3.2 A Inuência Romano-Cristã no Sistema Law. 2. Direito Moderno: Direito Anglo-Saxo-Normando (1066-1603). 2.1 O Contexto Geopolítico da Inglaterra no Século XI. 2.2 O Sistema Common Law/Equity Law. 3. A Constitucionalização do Sistema Jurídico Inglês (1215-1689). 3.1 O Poder Absoluto do Rei e o Controle Político do Parlamento e do Poder Judiciário. 3.2 O Acordo Político entre o Rei e o Parlamento. 3.3 A Supremacia do Parlamento e Independência do Poder Judiciário. 4. A Modernização do Sistema Jurídico (1832-2005). Considerações Finais e Conclusões. Resumo: Este ensaio é um trabalho de historicismo jurídico. Ele visa a discutir, em uma perspectiva evolutiva, os diferentes sistemas de Direito vigentes ao longo da História inglesa. Os seres humanos, enquanto vivem entre seus iguais, precisam de sistemas legais qualicados para harmonizar as relações sociais que vivenciam. Nesses termos, os sistemas jurídicos são elementos fundacionais nas sociedades civilizadas. Entretanto, nas sociedades modernas somente sistemas constitucionalistas sob a égide do Estado de Direito e comprometidos com os direitos civis, individuais e fundamentais são capazes de garantir um Estado voltado ao bem-estar social. Neste texto, será examinada, através desse longo caminho histórico, a formação do sistema jurídico inglês e a sua consolidação como um sistema constitucionalista de Direito. Palavras-chave: Historicismo jurídico. Pré-história jurídica. História jurídica. Direito Celta. Direito Romano. Direito Anglo-Saxão. Direito Canônico. Princípio da personalidade. Princípio da territorialidade. Talião. Leis de Aethelbert. * Procurador de Justiça – Ministério Público/RS. Ex-Diretor da Revista do Ministério Público/RS. ** Advogada. 15RevistadoMinistérioPúblicodoRSnº7015.indd 241 15RevistadoMinistérioPúblicodoRSnº7015.indd 241 18/10/2011 13:49:46 18/10/2011 13:49:46

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ESTUDOS SOBRE A HISTŁRIADO DIREITO NA INGLATERRA

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Revista do Ministrio Pblico do RS Porto Alegre n. 70 set. 2011 dez. 2011 p. 241-28715DE LEGIBUS ET DE CONSUETUDINIBUSESTUDOS SOBRE A HISTRIA DO DIREITO NA INGLATERRALuiz Incio Vigil Neto*Tassiane Andressa Wiprich**Sumrio: Introduo. 1 A Pr-histria Jurdica e a Antiguidade Clssica do Direito Ingls (5000 AC 1066 AD). 1.1ODireitoCelta.1.2ODireitoAntigo.1.2.1ODireitoRomanonaBrittania.1.2.1.1OContextoGeopoltico. 1.2.1.2IusCivileRomanorum,IusGentiumeosDireitosLocais.1.3ODireitoAnglo-SaxniconaAengLand. 1.3.1ContextoGeopoltico.1.3.2 AOcupaoGeogrcaeCivilizatria.1.3.3 OSistemaJurdico.1.3.3.1A FormaodoSistemaLaw.1.3.3.2AInunciaRomano-CristnoSistemaLaw.2.DireitoModerno:Direito Anglo-Saxo-Normando(1066-1603).2.1OContextoGeopolticodaInglaterranoSculoXI.2.2OSistema CommonLaw/EquityLaw.3.AConstitucionalizaodoSistemaJurdicoIngls(1215-1689).3.1OPoder AbsolutodoReieoControlePolticodoParlamentoedoPoderJudicirio.3.2OAcordoPolticoentreoRei e o Parlamento. 3.3 A Supremacia do Parlamento e Independncia do Poder Judicirio. 4. A Modernizao do Sistema Jurdico (1832-2005). Consideraes Finais e Concluses.Resumo: Este ensaio um trabalho de historicismo jurdico. Ele visa a discutir, em uma perspectiva evolutiva, osdiferentessistemasdeDireitovigentesaolongodaHistriainglesa.Ossereshumanos,enquantovivem entre seus iguais, precisam de sistemas legais qualicados para harmonizar as relaes sociais que vivenciam. Nessestermos,ossistemasjurdicossoelementosfundacionaisnassociedadescivilizadas.Entretanto,nas sociedades modernas somente sistemas constitucionalistas sob a gide do Estado de Direito e comprometidos com os direitos civis, individuais e fundamentais so capazes de garantir um Estado voltado ao bem-estar social. Neste texto, ser examinada, atravs desse longo caminho histrico, a formao do sistema jurdico ingls e a sua consolidao como um sistema constitucionalista de Direito.Palavras-chave:Historicismojurdico.Pr-histriajurdica.Histriajurdica.DireitoCelta.DireitoRomano.Direito Anglo-Saxo. Direito Cannico. Princpio da personalidade. Princpio da territorialidade. Talio. Leis de Aethelbert.* Procurador de J ustia Ministrio Pblico/RS. Ex-Diretor da Revista do Ministrio Pblico/RS.**Advogada.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 241 18/10/2011 13:49:46Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 242CommonLaw.EquityLaw.TrialbyJury.TrialbyOrdeal.TrialbyBattle.Remediesprecederights.Writs. Constitucionalismo.MagnaCarta.KingoverParliament.KingandParliament.KinginParliament.Petitionof Right. Bill of Rights. Habeas Corpus.Abstract:Thisessayisaworkofhistoricalschoolofjurisprudence.Itaimstodiscuss,inanevolutionary perspective,thedifferentapplicablesystemsoflawsalongtheEnglishhistory.Humanbeings,whileliving amongequals,needqualiedsystemsofLawtoharmonizetheirsocialrelations.Insuchterms,legalsystems are foundational elements of the civilized societies. Nevertheless, for modern societies, only constitutional legal systemsundertheruleofLaw,inrespecttocivil,individualandfundamentalrightsareabletoguaranteea welfare state. In this essay, it is going to be examined through its long historical path, the formation of the English legal system and its consolidation as a constitutionalist system of Law.IntroduoO tempo da Histria um tempo que descreve o contnuo e inesgotvel processo de ocupao dos espaos geogrcos por seres vivos, antes mesmo da existncia da prpria humanidade. A humanidade, entretanto, diferentemente das formas de apropriao e apossamento por outros seres, ocupa os espaos geogrcos atravs de um processo civilizatrio.Aocupaocivilizatrianoseresumeaatosfsicospraticados coletivamentepordiversasindividualidadeshumanas,trazconsigoo estabelecimento de instituies essenciais ao grupo humano, transformando o espao geogrco em um espao geosocial.Oespaogeosocialfundadoemrelaeshumanas,familiares, religiosas,culturais,polticaseeconmicas.Essasrelaes,contnuas einesgotveis,necessitamdediretrizescivilizatriasdeordenaoe coordenao, tarefa realizada pelo sistema legal.Se o tempo da Histria descreve cronolgica e evolucionariamente toda e qualquer ocupao de espaos geogrcos, mesmo as ocupaes antecedentes humanidade,otempodoDireitodescreveosaspectosdaocupao civilizatria realizada pela humanidade.Os sistemas jurdicos tm por origem, essncia e nalidade uma relao intrnsecacomahumanidade,analisadasobopontodevistadasrelaes individuaisecoletivas.Noseconcebe,noestudodaHistriadoDireito, perodos de tempo que no sejam perodos sociais. Escrever sobre um sistema jurdico procurar decifrar a complexa relao poltica, religiosa e cultural de um povo e sua alocao nas coordenadas de tempo e espao sociais.A histria da ocupao civilizatria dos espaos geogrcos da poro insularsituadanaregiohojechamadaInglaterrapossuimaisdecincomil anos. Integra essa histria civilizatria, a histria de sistemas ordenatrios e 15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 242 18/10/2011 13:49:50De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra243 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011coordenatriosdasregrasdevivnciasocialaolongodosdiversosciclos humanos de ocupao social do espao geogrco.O plano de estudo deste trabalho ser dividido em quatro eixos:(1)descrio histrica dos sistemas jurdicos precedentes common law, da pr-histria jurdica antiguidade jurdica inglesa, clssica e medieval;(2)a formao do sistema common law, incluindo a equity law;(3)aedicaodosistemajurdicoinglssobagidedoprincpio constitucionalista do Estado de Direito;(4)a modernizao no sculo XIX e as tendncias para os sculos XX e XXI.1A pr-histria jurdica e antiguidade histrica do direito ingls (5000 ac-1066 ad)1.1O direito celtaUm Direito Impregnado de Religio...Em concordncia com o pensamento de Gilissen, h uma distino entre a pr-histria e a histria do Direito que se traduz na capacidade de produo jurdica e de julgamentos por povos com e sem o conhecimento da escrita.1Acolonizaopr-histricadoterritrioinsularrefere,comomarco temporal, a Idade do Bronze, quando diversos povos, com predominncia dos celtas, estabeleceram-se nas ilhas.Nenhum registro documental existe sobre esse perodo em virtude desses povosdesconheceremaescrita,situandooDireitoCeltanapr-histriado Direito Ingls.Os celtas no constituram um Estado, no sendo conhecido, inclusive, o termo como denominavam os seus assentamentos. A informao designativa desseterritrioprovinhadaindicaodeoutrospovosquenessapocaj faziam uso da escrita e tinham o costume de manter registros documentais.Emgeralecontrariamenteaomodoadotadonosdiasatuais,os lugaresforadasfronteirasterritoriaiserammuitasvezesreconhecidospela identicao de seus habitantes.2Areferncialatinadecorredadivisolingusticaentreosceltas insulares: (1) o Goidel, falado pelos que habitavam o territrio da Irlanda e da Esccia, que evoluiu para o termo galico e (2) o Brythonic, dialeto falado pelas tribos que originariamente habitavamas partes centro e sul da ilha. Os 1 Gilissen, J ohn. Introduo Histrica ao Direito.Lisboa, Fundao Calouste Gulbenkian, 4 Ed., p 32, 2003. 2 Os gregos, por exemplo, chamavam o territrio insular de Albion, em virtude de identicarem os celtas como albiones.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 243 18/10/2011 13:49:50Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 244romanos, em virtude de sua posio geogrca, tinham mais familiaridade com este grupo. Do termo Brythonic, a expresso referencial latina adequada foi Brittanvs, maneira pela qual tratavam os habitantes da ilha. Com as invases e posteriormente com a conquista, a ilha tornou-se uma provncia romana que passou a ser chamada Brittania.3Conformeasindicaesromanas,osceltasviviamemassentamentos modeladosemgrupostribaisdispersospeloterritriosemumaidentidade nacional ou sob uma nica liderana militar.Aindaqueoriundasdeumabasecomum,costumeiraemstica,a cultura e as relaes sociais variavam entre os diversos assentamentos, sem a possibilidade de uma uniformizao signicativa, em virtude da escassez de meios de comunicao.Mas,emtermosgerais,asestruturassociaisdepoderdividiam-se basicamente em uma composio trinria:(1)umaestruturasocialbaseadanaancestralidadefamiliar,emcujoredor orbitavam as relaes pessoais;(2)umaestruturapolticaquesemisturavafortementecomaestrutura militar,cujoexercciodepodereradelegadoaochefetribal,apoiado pelos cls de maior importncia social;(3)uma estrutura religiosa que controlava a assimilao de valores morais edaculturapopular,representadapelosdruidascujaalocuocomos deuses os legitimava ao exerccio do poder adjudicatrio.Paraossistemasdepr-histriajurdica,amisticaoreligiosado Direito reduzia-no, em relevante amplitude, a um sistema de carter punitivo fundado na simplicada relao entre o bem e o mal e na aplicao igualitria das medidas reparatrias que se expressavam no conceito de talio.Aratiojurdicadosjulgamentosfundava-senadivindadequese expressava na vontade dos deuses transmitida e revelada aos druidas para ser aplicada pelo chefe militar ou pelo chefe do cl.ODireitodosdruidasexpressavaaoshumanosavontadedosdeuses e, por fora dessa misticao e sacralizao, permitia elite religiosa uma incontestvelliberdadedeaoedemodelaodaestruturamoralcelta.O uso das estruturas normativas pelos druidas baseava-se na idia de um sistema casustico,apoiadoemverdadesancestrais,quepermaneciamimutveisao longo do tempo justicadas pela vontade dos deuses e revelada aos druidas a quem lhes era reconhecida a exclusiva legitimidade para interpretao. Em outras palavras: Um Direito impregnado de religio.43 Snyder,Christopher.AnAgeofTyrantsBritainandtheBritons.ThePennsilvaniaState University Press, 1 ed,p. 67, 1998.4 Gilissen, J ohn. Op. Cit, p. 35.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 244 18/10/2011 13:49:50De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra245 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 20111.2O direito antigo1.2.1 O direito romano na brittania1.2.1.1 Contexto geopolticoNocontextogeopolticoeuropeudoprimeirosculoanteriorao nascimentodeJ esusCristo,osbrittanninodesempenhavamumpapelde maior relevncia. A poltica internacional se desenvolvia em outras regies: ao sul, ao oeste e a leste, e os britnicos estavam alheios a tudo isso.Aonaldoprimeirotriunvirato,5J ulioCesar,jnomaiscnsul noSenadoromano,masgovernadordaprovnciadaGliaenfrentava umarebeliodastribosceltasqueseopunhamdominaoromana.6A proximidade geogrca, a identidade cultural e religiosa, alm do intercmbio comercial com os celtas da Bretanha permitia aos celtas da Glia manterem-se resistentes tentativa romana de subjugao.Aindaquenoparticipassemativamentedaluta,oapoioquedavam aosgaulesestornavaosbretesinimigosdosromanos.Diantedisso,Cesar ordenou uma expedio punitiva ao territrio britnico entre os anos de 55 e 54 AC.AinvasodeCesaraoterritriobritnico,aindaquevitoriosa,no representouumaconquista,poisarebeliogaulesa,quenaquelemomento passava a ser liderada por um lder nacional, o averno Vercingetrix, ainda no estava sob total controle. Isso fez com Cesar mantivesse a sua ateno voltada para o continente e no para a ilha.TendoqueretornarGliaparaumembatenalcomVercingetrix, ocorrido em Alesia no ano de 52 AC, Cesar deixou a ilha sem t-la subjugado completamente. Diante disso, props uma situao diversa poltica executada naGlia.ABretanhanosetornariaumaprovncia,administradaporum governador romano, mas um territrio livre, na condio poltico-jurdica de civitates liberae,7 com autonomia poltica e jurdica, porm sob a scalizao e controle romano tanto nos assuntos externos quanto internos.5 O Triunvirato foi um acordo poltico de mtuo apoio celebrado entre os trs principais polticos romanos (J ulio Cesar, Cneo Pompeu e Marco Crasso) que vigorou entre 63 52 AC.6 No possvel armar que toda a Glia lutava contra um inimigo comum. O esprito de identidade nacional no era conhecido por esses povos que se reuniam sob lideranas tribais. Essa era uma circunstncia que os romanos invariavelmente se aproveitavam, dentro do princpio de estratgia depolticainternacional:desunirparasubjugar.Dessemodo,muitoschefestribaisgauleses posicionavam-se ao lado dos romanos.7 Santos J usto, Antonio. DireitoPrivadoRomanovol.I. Coimbra. StvdiaIvridica Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra Editora, p. 73, 2003.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 245 18/10/2011 13:49:50Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 246A concesso do status de civitate liberae garantia no apenas a autonomia polticaaosbretes,masamanutenodosistemajurdicovigentenailha, desde que fosse aceita sua submisso aos interesses comerciais romanos, alm do pagamento do stipendiarii.8 Dessa forma, no perodo relativo entre a primeira e a segunda invaso romana (55/54 AC- 43 AD), nas relaes privadas internas entre os brittanni, o sistema legal era ainda o Direito celta, em sua total plenitude.Oacordopolticodemtuatolernciaecooperaoentreromanose bretes sofreu o seu primeiro abalo durante o perodo do imperador Calgula.9 De acordo com a Histria, posteriormente adaptada para a dramatizao por William Shakespeare na pea Cimbelinus, o rei dos Catuvellauni expulsara o seu lho, afastando-o da linha sucessria. Em desespero, procurou o imperador pedindo apoio romano para a sua causa, oferecendo em troca um ato de formal submisso, caso conquistasse a coroa.Calgulainteressou-sepelaproposta,conformeaHistria,maispor diversodoqueporuminteressegeopolticoclaroedenido.Contudo,no ltimo momento, desistiu da idia, revoltando as legies que j se encontravam prontas para a invaso.AconjuraplanejadapelaGuardaPretoriana10queculminouno assassinatodoimperadorelevouimediatamenteaotronoseutioClaudio. Onovoimperadoracreditavaquesomenteumavitriamilitarconvincente render-lhe-iaaadmiraoeconanadaslegiesqueapartirdarebelio contraCalgula,passavamadesempenharumpapelrelevantenapoltica romana.A invaso e conquista da Bretanha demonstrou-se como a soluo mais bviaparaonovoimperador,especialmenteapsamortedeCimbelinus, rei dos Catuvellauni, cuja sucesso por seus lhos Caratacus e Togodomnus deu incio a um perodo de hostilidade contra os reinos aliados aos romanos, gerando uma instabilidade nas relaes geopolticas entre o imprio e a ilha.Acampanhainiciadaem43AD,emsuacurtadurao,demonstrou-sedesigual. Aresistnciabritnicaesvaziava-senafaltadeumaidentidade nacional, que impedia aos celtas lutarem por uma causa nica.Osromanos,almdeconstiturem-seemumaforamilitarsuperior, aproveitavam-sedofatoqueossoldadosbreteseramaomesmotempo 8 Tributo anual cobrado pelos romanos.9 AindaquepelaHistriatenhasidoassimconsagrado,Calgulaeraumapelidodadopelos legionrios romanos em virtude das sandlias militares (caligas) que usava quando criana, seu verdadeiro nome era Gaivs. 10 A Guarda Pretoriana foi uma criao de Octavio Augusto, que transformou a Legio I em guarda protetiva ao imperador e, nessa condio, autorizada a entrar no territrio da cidade.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 246 18/10/2011 13:49:50De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra247 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011camponeseseresponsveispelaalimentaodosassentamentose,dessa forma, deixavam o campo de batalha para dedicar-se colheita, enfraquecendo numericamente as foras defensivas.J unto com a ao militar, a ao diplomtica romana se fazia presente, celebrandotratadosemseparadocomalgumascheastribaisqueouse mantinham neutras, ou lutavam em favor dos romanos contra os Catuvellauni.1.2.1.2 Ius civile romanorum, ius gentium e o direito localUm Sistema multiformeO resultado nal da campanha culminou na submisso dos onze chefes tribais ao Imprio Romano, que transformou a Bretanha de civitate liberae em provncia romana.Oprocessoromanodeocupaodoterritrioinsularnofoiapenas geogrco, foi uma ocupao civilizatria. No houve apenas a nomeao de um prefeito, a construo de prdios ou estradas ou, mesmo, a melhoria das condies de vida dos bretes. Os romanos foram lentamente integrando os celtas cultura romana a partir da colonizao do territrio pelos cives e pelas legies.Esseprocessocivilizatrio,lentoegradual,expandiu-sepeloterritrio ocupadoaolongodeumperododequatrocentosanos,constituindouma nova elite social que no apenas convivia, mas misturava-se elite romana. A implantao desse processo foi determinante para a assimilao, na forma lenta e gradual, do Direito Romano na Brittania.ConformeBabington,11osromanospossuamumacompreenso aristotlicaarespeitodacivilizao,pelaqualumgrupamentohumano semumaorganizaojurdicanoalcanariaacondiodegruposocial, igualando-se a grupos animalescos.O sistema jurdico romano institudo desde a fundao vrbs em 753 AC, remodeladoem451 AC12eemplenaevoluocientcaapartirdosculo antecedente ao nascimento de J esus Cristo, distinguia-se pela dessacralizao doDireitoeodistanciamentodaidiadeumsistemameramentepunitivo, emproldeumsistemacientco.Caracterizava-secomoumsistema dessacralizado e cientco.11 Babington, Anthony. The Rule of Law in England. Londres. Barry Rose Publishers, 2 edio, p. 5, 1995.12 Ano aprovao da Lei das XII Tbuas.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 247 18/10/2011 13:49:50Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 248Nessa poca, o princpio da personalidade era predominante no mundo antigo,13considerando-seoivscivileromanorvmumDireitoprprioe especco da civitas romana.14Asrelaescomerciaisdoscidadosromanoscomosperegrinii,15 exigiam,entretanto,umacompreensomaisampladosistemaordenatrio. Dessaforma,noperododeexpansoromana,comeou-seainstituirnas relaes de comrcio internacional um sistema hbrido com a aplicao parcial do ivs civile romanorvm, pelas regras coincidentes ou semelhantes com as dos demais povos, e que desse modo, no constituam patrimnio cultural romano exclusivo e de regras estrangeira aceitas pelos romanos.Aedicaooperacionaldessenovosistemacompletou-secoma criao do praetorperegrinvs que administrava uma justia interperegrinos avtcivesetperegrinos.16Essesistemaalternativoaoivscivilisromanorvm, foidenominadoivsgentivm,17econstitua-seemumaestruturajurdicano formal,decarteruniversalista(comoumDireitoNatural)eorientadopelo princpio da boa-f e equidade.Essasduasestruturasjurdicas,contudo,noimpediramavigncia dossistemasjurdicoslocaisdasprovnciasconquistadas.18Apoltica romanadeocupaodeterritriosestrangeiroslegavaparaldereslocais, colaboracionistas, a administrao de questes jurdicas em que no houvesse interessedoEstadoRomano(SPQRSenatvsPopvlvsqveRomanvs)oude cidado romano.19Osromanosviamoseusistemajurdicocomoumelementodesua culturasocial.Logo,osistemajurdicovigenteaoscidadosromanos(ivs civilis,ivspraetorivm,Lex,constitvtiones)noseapresentavacomoum padro a ser seguido por povos dominados. Era um ivs proprivm que provinha daculturaromanaesomenteseriacorretamenteempregadoeentendido poraquelesquepossussemestacultura,ouque,nomnimo,ostentassem acidadaniaromanaaquemoDireitoRomanoalcanavaondequerquese encontrassem em virtude da aplicao do princpio da personalidade.13 Santos J usto, Antonio, Op cit, p. 38.14 Idem.15 Estrangeiros.16 Santos J usto, Antonio. Op cit, p 39. 17 Como um sistema universal aplicvel s gentes.18 Cfe, Santos J usto. Op. Cit, p. 40.19 Uma evidncia histrica que comprova essa armao a referente ao julgamento de J esus Cristo em que o governador provincial simbolicamente transfere a responsabilidade da deciso para o povo da J udia que realizou o julgamento de acordo com a sua ordenao jurdica.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 248 18/10/2011 13:49:50De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra249 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011Este consenso cultural entre os romanos, povo e Estado, foi fundamental paradenirapermanncia,aindaqueemmenorescala,daaplicaodo Direito celta na Brittania mesmo aps 43 AD. Essa tradio romana garantia aos peregrini a aplicao do Direito local nas suas relaes particulares que no envolvessem cidados romanos, como o casamento, liao, crimes, etc.No obstante, nas diferentes provncias, incluindo a Brittania, os Direitos locais no se instituam como corpos de leis autnomos ao sistema romano que vigorava no territrio conquistado, mas como elemento integrante do sistema romano vigente na provncia conquistada, como norma costumeira local, assim formando o Direito Romano na provncia da Brittania.Nesses termos, a ivrisdictio romana na provncia da Brittania tinha como base o Direito Romano, o ivs civilis romanorvm, para assuntos de interesse do Estado romano ou que houvesse interesse de cidado romano, ou ivsgentivm nasrelaesdecomrciointernacional,aplicando-se,residualmente,aregra costumeira local nas demandas onde nenhuma das duas hipteses anteriores se congurasse. Em outras palavras, um sistema multiforme composto por trs subsistemas.Essasituaoperdurouatoanode212AD,quandooimperador Caracala publicou um dito que estendia a cidadania romana indistintamente ao cidado livre no romano das provncias ocupadas e, consequentemente, a extenso do prprio Direito Romano.Asofensasaosdireitosindividuaiseramvistas,emsuageneralidade, como privata delicta, incluindo as de natureza civil e natureza criminal. Dessa forma, os ilcitos, em regra, geravam aes de natureza privada, ressalvadas as situaes que colocassem em perigo o statvs qvo romano.O sistema jurdico romano integrava a estrutura governamental imposta nasprovncias.Cadacidadepossuaoseucorpodemagistrados. Aordem pblica era mantida por uma organizao semi-militar, os stationariimilites, que exerciam a atividade policial, os quais podiam prender qualquer pessoa suspeita da prtica de ilcito e conduzi-la ao ocial superior, eirenarcha, para umainquiriopreliminar.Casoentendesseprovvel20aprticadodelito, o eirenarcha o encaminhava para julgamento perante um magistrado, o qual presidiaoprocessoacusatrioque,aonal,seriajulgadoporcidados,os ivdex.No procedimento criminal de ao privada, o autor deveria inicialmente comparecerperanteomagistradoejurarqueapresentavaumaacusao verdadeira.Seoacusado,aocomparecerperanteomagistrado,negassea imputao, a ao procedimentalizava-se pela inquirio de testemunhas por 20 Princpio acusatrio de processo: alm de uma dvida razovel (beyond a reasonable doubt) at hoje adotado no processo penal ingls.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 249 18/10/2011 13:49:50Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 250advogadosprossionais.21Aonal,seabsolvidooru,oacusantepoderia serpunido,casoaaofosseconsideradainconsistente.Seorufosse consideradoculpado,poderiasercondenadopenadepriso,banimento, escravido, morte.No procedimento civil, onde o autor buscava o reconhecimento de um direitoouumacompensaonanceira,aspartescompareciamperanteum magistrado apresentando as suas alegaes. Se este identicasse a existncia dafrmulaadequadaeasuaviabilidade,remeteriaocasoaoivdex,que examinava a prova e lanava o seu veredicto. A condenao levava o ru condio de ivdicatvs, impondo-lhe o dever de pagar (ou cumprir a obrigao), sob pena de garantir ao credor o direito de conserv-lo incarcereprivato, ou vend-lo como escravo, ou mesmo mat-lo.221.3O direito anglo-saxnico na aeng land1.3.1 Contexto geopolticoAo iniciar o quinto sculo da civilizao ocidental, o Imprio Romano encontrava-sesobintensaameaadeinvaso,noapenaspelashordas orientais, sob a liderana de tila,23 mas principalmente pelas aes internas dos povos germnicos, ainda que integrados ao imprio pela foedera.Peloano410 AD,aslegiesromanasestacionadasnaBretanhaforam chamadasparaatentativanaldedefesadoespaoterritorialdoImprio Romano.Semaproteoromana,osbretespassaramasofreriminente ameaadeinvasodeseuterritriopelospovosdonortedailha:pictose escotos.Diantedaurgentenecessidadedeproteodoterritrioefrentesua incapacidade de faz-lo, os bretes, em contato com lderes anglos, saxes e jutos,24 contrataram contingentes militares para a proteo de seu territrio.Aaomilitardefensivadoterritrioceltapermitiuaessespovos germnicosumconhecimentoamplosobreascondiesgeoclimticasdo 21 Segundo Babington, op. Cit., p. 6, as testemunhas apresentadas pelo ru eram, em regra, apenas abonatrias de seu carter.22 Carvalho de Mendona, J os Xavier. Das Fallencias e dos Meios Preventivos de sua Declarao vol. I. So Paulo. Carlos Gierke & Cia, p. 1, 1899.23 Noanode451,noschamadosCamposCatalnicos,osromanosconseguiramumavitria denitiva sobre os exrcitos liderados por tila, pondo m tentativa de invaso por parte dos hunos,principalmentepelaprematuramortedeste.Estabatalhapodeserconsideradacomo a ltima grande vitria das legies romanas. Vinte anos aps, Roma era vencida pelos Hrulos liderados por Odoacro.24 Os anglos eram povos oriundos da regio sul da pennsula danesa, enquanto que os jutos vieram do norte desta regio. Os saxes provinham do norte do atual territrio da Alemanha.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 250 18/10/2011 13:49:50De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra251 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011lugar. A concluso a respeito das melhores condies de vida oferecidas por aquele espao geogrco inuiu decisivamente na mudana da relao poltica desses povos com os bretes.1.3.2 A ocupao geogrca e civilizatriaOsanglos,ossaxeseosjutos,inicialmentedefensoresdoespao geogrco breto, tornaram-se, a partir de 429 AD, ocupantes desse territrio. Contudo, a ocupao anglo-saxnica e, tambm, juta, a exemplo da ocupao romana,nofoiapenasgeogrca,foitambmcivilizatria,aindaquese tratasse de uma civilizao menos evoluda que a romana.Destaca-se que no processo civilizatrio inicial de ocupao do espao geogrco breto, os anglos, os saxes e os jutos, diferentemente dos romanos, nomigraramparaaBretanhaemummesmomomentohistriconemsob uma nica liderana poltica militar. Dessa forma, a ocupao se deu na forma deassentamentossobcheasmilitaresdegruposqueforamsealocando paulatinamente em diversas partes do territrio insular.25NohaviaentreosdiferentesgruposgermnicosnaBretanhaaideia da formao de um pas sob uma nica liderana nacional, mas a formao dereinosindependentescriandoentresiumarelaogeopolticainterna. Esse equilbrio poltico desses microreinos foi denominado heptarquia: Kent, incluindoaIlhadeWight(assentamentojuto);EastAnglia,Northumbria, Mercia26 (assentamentos predominantemente anglos); Essex, Sussex e Wessex (assentamentos de predominncia saxnica).27 Ainda que independentes e com lideranaspolticasregionaisinstitudas,preponderaraminicialmentenesse equilbrio geopoltico interno os reinos anglos, dando externamente a ilha um reconhecimento no mais como Brittania, mas como Aengland: Terra dos Anglos.28Aooestedessesassentamentos,ondeatualmenteselocalizaopasde Gales,estabeleceram-seassentamentosnogermnicos,predominantemente bretes, que no se submeteram ao domnio anglo-saxo. Por se tratarem de 25 J enks, Edward. A Short History of English Law. London. Elibron Classics, p. 3, 2005. 26 Middle Angles.27 Blair, J ohn. The Anglo-Saxon Period The Oxford History of Britain. Oxford. 4 Edio, p. 61, 2001.28 Ocialmente, entretanto, arma-se que o nome Inglaterra (Aeng land) surge a partir do sculo X, quando j havia se armado a primeira dinastia inglesa, no mais de origem angla, mas de origem saxnica. 25Fraser, Rebecca. TheStoryofBritain.London. WW Norton & Company Ltd. 1 Edio, p. 28, 2003.?????15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 251 18/10/2011 13:49:50Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 252povosdeetniacelta,osgermnicosdenominavamwelsh(estrangeiro)esse espao geogrco, termo que posteriormente passou a identicar os habitantes do pas de Gales (Wales).Por outro lado, ainda que territorial e politicamente apartados, os anglo-saxes e jutos mantinham um padro cultural comum, puramente germnico, sem nenhum trao de romanizao ou cristianizao.29 Desse modo, os anglo-saxes e jutos eram incapazes de compreender os textos escritos em latim, e de aceitar ou mesmo conviver com os princpios ticos humanistas propostos pelo Cristianismo. Professavam, hermeticamente, uma f voltada mitologia nrdica,acreditandoemdivindadescomoThir,Odin,Thor,Freya,aquem reverenciavam e homenageavam.30Na sua viso de povo conquistador, entendiam natural a submisso dos povos conquistados, considerando-os como sujeitos sua cultura e civilizao. Esse processo, abrupto e absoluto fez com que as divindades crists e celtas deixassemdeserreverenciadasnoterritrioinglsporquaseumsculo. Para os povos dominados no era reconhecido nenhum espao, nem mesmo secundrio, no processo civilizatrio.Dessa forma, diferentemente dos romanos que aplicavam um princpio detolernciarestritaasculturasdospovosdominados,osanglo-saxes procuravam, simplesmente, elimin-las.Com muita segurana, pode-se armar: no primeiro sculo de dominao anglo-saxnicaejuta,nadarestoudaculturajurdicaceltaequasenadada cultura romana nas reas de ocupao germnica31 no territrio da Inglaterra.1.3.3 O sistema jurdicoOs sistemas jurdicos no so apenas inuenciados pela cultura do povo, mas com ela se misturam. Pode-se, assim, armar a existncia de dois grandes perodos do Direito Anglo-Saxo de acordo com momento cultural vivenciado por esses povos:(1)o Direito anglo-saxo originrio (entre 429 AD e 597 AD);(2)o Direito anglo-saxo cristianizado (entre 597 AD at 1066 AD).29 Babington, Antony. Op cit, p. 1730 Posteriormente, essas divindades for a reverenciadas nos dias semanais - Tuesday: dia de Thir Wedsnday: dia de Odin Thursday: dia de Thor Friday: dia de Freya. Conforme J ohn Blair, op. Cit., p. 64.31 Como j referido, os anglo-saxes formaram assentamentos por diversas regies da ilha, porm no a ocuparam na plenitude.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 252 18/10/2011 13:49:50De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra253 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 20111.3.3.1 A formao do sistema lawVrios Subsistemas de Costumes Locais...O primeiro perodo denota o predomnio da cultura anglo-saxnica, em sua pureza absoluta, na institucionalizao do sistema jurdico, na legitimao dos juzes, na procedimentalizao dos litgios e na armao dos direitos.Osanglo-saxes,em429 AD,trouxeramconsigoumsistemajurdico, denominadoLaw32,baseadonasideiasdehierarquiasocialedetalis,de matrizcostumeiraeoral,misturadoaumavontadedivinabelicosaede carter predominantemente retributivo que se construa a partir da soluo de demandaspontuais,semnenhumabasemetodolgicaquelhedessealguma sustentao cientca.Sobabasehierrquica,oDireitoarmava-seemumaestrutura deverticalidadesocialondesereconheciamdireitos,qualitativae quantitativamente,proporcionaisposiodaspartesnasociedade33.Esta verticalidadesocialseestabeleciapelasrelaesjurdico-sociaisderelao do homem com a terra indicando uma posio jurdica e social mais favorvel quele que possusse mais direitos reconhecidos sobre a poro geogrca. Em outras palavras, a propriedade da terra proporcionava uma quantidade e uma qualidade maior de direitos.Entre o Bretwald e o earl havia um reconhecimento jurdico recproco do direito de propriedade da terra, ainda que aquele pudesse, pela condio de rei, conscar as propriedades do earl(duque) por simples ato de vontade. No exerccio de seu direito de propriedade, o earl concedia ao thegn (servo) odireito,vitalcioetransmissvelaseusdescendentes,deusoeexplorao econmicadaterra.Esseaexploravanobenefciodoearlquetinha,por direitocostumeiro,aexclusividadedacomercializaodaproduo,com aobrigaoderepartir,desigualmente,comoservooresultadoeconmico e,periodicamente,pagarumvaloraoreiemvirtudedoreconhecimentodo direito de propriedade originrio ou pela concesso da terra.Denota-sedesdeesseperodoumadivisojurdica,noDireitode propriedade, entre o domnio direto e o domnio til da propriedade imvel, 32 O termo lawtem origemsincretismo lingustico anglo-saxnico e viking. At a invaso destes, no territrio da ilha os anglo-saxes adotavam o termo ae(um juramento solene e divino). Nas regiesinvadidasecolonizadaspelosVikings,apartirdosculoIX,passouaseradotadaa expresso lag - onde on lag signicava culturalmente agir de acordo com o compromisso social e vontade dos deuses dentro do que era certo/direito/correto. e que ir evoluir para lawenquanto que tlagi, que evoluiu para outlaw seria o agir fora do que era certo/direito/correto... (http://podictionary.com)33 Nessa estrutura social podia-se identicar, hierarquicamente, a gura do Bretwald (rei, mais tarde institudo como primvs inter pars), o earl, o aetheling e o gesith (todos nobres de nascimento)e o thegn (o servo).15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 253 18/10/2011 13:49:50Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 254traomarcantedasrelaesjurdicasdurantetodaaIdadeMdiainglesa, mesmo aps a invaso normanda.Nosdireitosnodecorrentesdarelaojurdico-socialcomaterra (direitos vulgares), sob a gide da igualdade absoluta, inseriu-se ao conceito medieval de justo a busca de uma ideia de reequilbrio reparatrio ofensa causada, expressa atravs do conceito de talio. O sistema jurdico procurava garantirumaigualdadeabsolutadeperdaentreaquelequesofriaaaoe quem a cometia. Isso garantia vtima de um ilcito um direito reconhecido de vingana. Contudo, norteado pelo princpio da igualdade absoluta, a vingana indiscriminada e ilimitada era to ilcita quanto ao criminosa do agressor.34A concretizao dessas relaes jurdicas tinha por base o cl, sob um aspecto geral, enfocado diretamente na relao familiar. A proteo do direito vida se expressava na possibilidade da famlia da vtima vingar-se, na mesma medida da perda sofrida, na famlia do agressor. Como anteriormente referido, o sistema jurdico anglo-saxo possua um aspecto marcantemente retributivo.J osdireitosdecorrentesdaterra(direitosnobilsticos)instituam aorganizaosocialanglo-saxnica.Sobreestesnohaviaqualquertipo dequestionamentooudebatepoltico-jurdico.Eramdireitofundacionais dasociedade,expressandoumaordemsocialinstituda.Almdostermos institudosnaordenao,inexistiamdireitosparaseremprotegidos,apenas uma ao imediata da estrutura social de Estado,35 fora da ao dos juzes ou do processo legal.Os direitos vulgares eram fundamentais manuteno da paz social entre os cls que habitavam os assentamentos. O desrespeito gerava um sobre-direito de carter substitutivo ao direito lesado que importava no direito correspectivo de vingana contra a famlia daquele que cometesse o ato. As ms condutas36 eram, em sua essncia, consideradas delitivas e, dessa forma, punveis perante o sistema jurdico atravs da legitimao de um ato recproco em retribuio.Aolongodaevoluodaculturajurdica,apunio,retributivae reparatria,baseadanareciprocidade,transformou-seemumacompensao pelo pagamento de uma multa, wergild, que lentamente substituiu a vingana corporal.Aindaquesobumabasedecostumeslocais,osistemajurdico foiadquirindoumcartermaisinstitucionalizado.Poisosreispassarama identicar no wergild uma nova fonte de renda, estabelecendo que as condutas violentas afetavam a paz do reino.34 J enks, Edward. Op Cit.p 7.35 Medidas tomadas pelo rei ou pelo senhor independentemente da prvia manifestao do Poder J udicirio36 Trespass.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 254 18/10/2011 13:49:50De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra255 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011Logo,amultaaplicadaaessascondutasgravesseriadevidaaorei, numa ideia ainda embrionria de reparao ao Estado, pois caberia a este, e no ao cl, tomar as aes necessrias para restabelecer o equilbrio social. Enquanto que nas condutas de menor gravidade, o pagamento encaminhava-se diretamente para vtima, pois a reparao era exercida pela fora do cl e no pela autoridade do rei. Ainda que sob uma forma rudimentar, iniciava na Inglaterra a evoluo da idia de ilcito penal e ilcito civil.Ocontroledasmedidasassecuratriasdosdireitosvulgares reconhecidos,oudasmedidasretributivas,reparatriasecompensatrias, concentravam-se, cada vez mais, nas mos do capataz do condado, shire reeve, o qual possua uma delegao do rei para ouvir a queixa e tomar as medidas de apaziguamento entre os cls, permitindo a vingana ou cobrando a multa compensatria pelo dano causado e determinando o seu pagamento em favor do rei ou em favor da vtima.Ademandaerapropostaaocapatazdocondado,que,apsouvi-la,permitiaaodemandantetrazerodemandadoemsuapresena.Aps, odemandadoeraencaminhadoaotribunallocal,queinformavaaspenas aplicveis ao caso e estabelecia a matria de fato que deveria ser provada pelas partes.EmJ enks37observa-seque,napercepoculturaldosistema procedimentalanglo-saxo,aproduodeprovasnoeravistacomoum nus, mas como um privilgio e, dessa forma, a negao dos fatos pelo ru apresentava-se como um direito maior que o da imputao pelo autor.Essedireitodoruseconcretizavanaapresentaodepessoasque jurassem em favor da licitude da conduta do ru. J uramentos cujos contedos poderiamvariardesdeano-realizaodacondutaataaceitaodos resultados pela vtima em virtude de uma prvia ou posterior negociao entre as partes. Contudo, tratava-se de um direito de uso restrito para aqueles que gozassem de respeito entre a comunidade. Se o acusado fosse um tihtbysig38 ou se tratasse de agrante delito, esse direito lhe era negado, restando-lhe somente a prova de sua inocncia pelo regime das ordlias.Como dito anteriormente, j ao nal do sculo VI, em relao aos direitos vulgares,ojulgamentodemcondutapermitiaaoofendidoavingana pessoal,quepoderiaconverter-seemumapenapecuniriapelafamliado ofensor. A falha no cumprimento da pena reintegrava ao ofendido, ou sua famlia, o direito antigo de vingana pessoal.37 J enks, Edward. Op cit , p 9.38 Termo usado para as pessoas de pouco carter.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 255 18/10/2011 13:49:51Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 256Nesseprimeiroperododadominaoanglo-saxnica,apouca relevncia da cultura romano-crist na cultura anglo-saxnica foi fundamental paraaperdadaquelepadroderefernciajurdicadenaturezacientca em seu Direito. Situao que no se vericou em relao aos demais povos germnicos,39 como os francos, os visigodos, os ostrogodos, os alamanos, os burgndios,40 que tiveram na romanizao de sua cultura a causa fundamental para a romanizao de seu Direito.Denota-se,tambm,queemvirtudedeseupadroculturalhermtico depovodominadorfortementevinculadoideiadecl,osanglo-saxes, diferentemente dos demais povos germnicos, em seu processo de ocupao dosterritriosconquistados,nuncaaceitaramaaplicaodoprincpioda personalidade.41Denia-senoterritriodosdiversosreinosanglo-saxes e jutos na Inglaterra, o princpio jurdico da territorialidade que impunha ao povo unicamente o sistema de Direito costumeiro anglo-saxo Law.Contudo, a relao equidistante e politicamente equilibrada entre os sete reinosfezcomque,duranteosseiscentosanosdedominaogermnica,a matriz law se estabelecesse e se consolidasse de uma forma emimentemente localemdetrimentodeumaestruturanacionaldecompreensoeaplicao dos costumes nas decises das cortes locais. Em outras palavras, os costumes ancestraiscomuns,trazidosdonortedaGermniapelosnovosocupantes, tornaram-secostumeslocaisaonaldoprocessocivilizatrioanglo-saxo. IssoquerdizerqueosistemajurdicoLawcriadopelosanglo-saxnicos, costumeiroeno-escrito,eratambmumsistemaqueevoluasoboponto de vista da comunidade, pois nesta poca no vigorava a ideia de nao. Em outras palavras o sistema anglo-saxo originrio eram vrios subsistemas de costumes locais.39 Fraser, Rebecca. Op Cit,, p 25.40 Pode-se,nesseaspecto,observarocontedodaLexRomanaVisigothorvmedaLexRomana Bvrgvndionvm,quesotextoslegaisdeDireitoRomano(basicamenteoCodexTheodosianvs) adaptados para viger nos territrios de ocupao dos visigodos e dos burgndios em conformidade com o princpio jurdicos da personalidade aplicado nos territrios de ocupao de desses povos. De acordo com este princpio, o sistema jurdico aplicava-se de acordo com a ancestralidadade, na forma: Direito Romano para aqueles que tivessem ascendncia latina (LexRomanaVisigothorvm e Lex Romana Bvrgvndinionvm) e Direito brbaro (burgndio, visigodo, franco, etc.) para aqueles que tivessem ascendncia germnica.41 Vigil Neto, Luiz Incio. Petite Histoire du Droit du Peuple Franais. Revista da Ajuris n. 112, p. 330, 2008.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 256 18/10/2011 13:49:51De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra257 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 20111.3.3.2 A inuncia romano-crist no sistema lawNon Angli, Sed Angeles...NaspalavrasescritasporBede42nosculoVIII,em596 AD,oPapa Gregoriusdefrontara-secomumacenajincomumnoterritrioromano: encontrara um grupo de crianas loiras, acorrentadas e oferecidas em mercado pblico para serem vendidas como escravas.43A sua perplexidade estava no fato de, em um territrio de f crist, estar sendo desatendido o princpio mais revolucionrio proposto por J esus Cristo: o respeito s crianas. Diante disso, no pode deixar de perguntar do que aquilo se tratava.Arespostafoimuitodiretaeconvincente:tratavam-sedecrianas vindasdoterritrioangloe,comoestespovosnoprofessavamafcrist, admitiam a escravido infantil.AmanifestaodoPapanofoiapenassimblica,foitambm revolucionria: Nonangli,sed Angeles...44. Somente a cristianizao desses povos ndaria a sua viso escravagista.No ano seguinte, uma expedio liderada pelo bispo Agostinho rumou para Kent, reino juto governado por Aethelbert, naquele momento histrico, o Bretwald,45 com a misso de cristianizar os povos jutos, anglos e saxes.O processo de cristianizao dos reinos germnicos insulares completou-se no sculo VII. Ao seu nal, no apenas a cultura moral e a cultura religiosa desses povos havia mudado, tambm o Direito.Umdosefeitosimediatosdesseprocessonosistemajurdicofoia incorporao do Direito Cannico e sua vigncia paralela ao Direito Laico Law. A incorporao do Direito Cannico se estabeleceu em uma jurisdio prpria e autnoma em relao ao Direito laico armando-se pelo critrio de competncia especial e absoluta:(1)exrationepersonae:competnciaparajulgarclrigos(regularesou seculares), posteriormente estendida aos cruzados e aos professores das universidades;4642 Bede foi um monge cristo que viveu na Inglaterra durante os sculos VII e VIII (entre os anos 673-735). Durante a sua vida escreveu a obra: The Ecclesiastical History of the English People, considerada o primeiro tratado de histria da Inglaterra.43 A escravido de europeus, especialmente de crianas, a partir do Cristianismo no era mais uma prtica lcita na maior parte do mundo ocidental, ainda que de fato continuasse a existir.44 No anglos, so anjos...45 Entreanglos,saxesejutos,aindaquehouvesseumaautonomiapolticaentreosdiversos assentamentos, havia tambm um equilbrio geopoltico interno. Assim sendo, entre os sete reis, havia um que por razes, em geral militares, se apresentava como um primvsinterpars que na linguagem germnica era identicado como Bretwald, como um rei entre os demais reis. 46 Gillisen, J ohn, op Cit, p. 14015RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 257 18/10/2011 13:49:51Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 258(2)exrationemateriae: para julgar matrias penais e civis de interesse da Igreja, como infraes religiosas, adultrio, usura, casamento, esponsais, divrcio, legitimidade da liao ou testamentos em favor de instituio religiosa.47Pode-se,ento,concluirqueapartirdacristianizaodacivilizao anglo-saxnica,osistemajurdicovigentenaInglaterrapassouaser constitudo por duas estruturas jurdicas:(1)oDireitoCannico:deordenaesescritasformuladassobreuma losoaimpregnadadevaloresmoraiseticacrist,denatureza universalista, tendo o Cdigo cannico como fonte primria e o Direito Romano como sua ratio non scripta;(2)oDireitoLaico(ousistemaLaw):inicialmentenoescrito,debase costumeiraoriundadaculturaancestralgermnica,denaturezalocal, tendo os costumes como sua fonte primria e a tradio como sua ratio non scripta.Contudo, a inuncia do cristianismo ainda se fez presente no processo de modernizao do sistema Law anglo-saxnico, em dois aspectos fundamentais:(1)pelaintroduodohumanismocristonorudimentarprocesso hermenutico do Direito costumeiro anglo-saxo;(2)pelo movimento codicatrio da base de costumes de um tambm ainda rudimentar Direito Pblico, a partir das Leis de Aethelbert.Entretanto,jnasleisdeAethelbertobserva-seumpadrolegislativo mantidonasleisposteriores48queiriaperdurardurantemuitossculosna Inglaterra. A codicao dos costumes restrita matria jurdica de interesse pblico, permanecendo a matria de interesse privado (Direito Privado) sob a base costumeira e no escrita.Com as Leis de Aethelbert o Direito laico ingls sistema Law apoiou-seemnaformataobinriadefontesjurdicas:legesetconsvetvdines.49 Asprimeirasfontesforamconstitudaspelacodicaodoscostumesque ultrapassavamoslimitesdointeresseprivadoeelaboradasnaformafato-sano, semelhantes ao Codex de J ustiniano.50 Enquanto que para as matrias 47 Idem.48 Leis de Inne, Leis de Offa, Leis de Alfredo e Leis de Canute.49 Tubbs, J W. The Common Law Mind. London. The J ohn Hopkins University Press, p. 04, 2000.50 Conforme Maitland e Montague, a compilao escrita dos costumes consistia em noventa frases, breves e diretas, indicando a m conduta e a sano compensatria: Se um homem golpeia outrem,comospunhos,nonariztrsshillings(cfe.MaitlandFrederick W,andMontague, Francis. A Sketch of English Legal History. London. Elibron Classics, p. 06, 2005).15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 258 18/10/2011 13:49:51De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra259 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011deinteresseprivadopermaneceriamoscostumesnoescritoscomofonte jurdica primria.Com a chegada do sculo IX, o territrio insular foi alvo de uma nova onda de invases germnicas, dessa vez dos povos nrdicos, especicamente os assentados na chamada Marca Danesa.51Oespritoaventureirodosvikings,aliadoescassezdealimentosnas regies nrdicas e falta de uma liderana poltica nica dos anglo-saxes, tornou a ilha um ponto geogrco muito atrativo para suas aes de grupos independentes, inicialmente espoliativas, mas, posteriormente, ocupatrias do territrio anglo-saxo.Aresistnciasomentefoipossvelgraasaosurgimentodaprimeira liderana nacional da histria inglesa, o primeiro rei de toda a Inglaterra: o saxo Alfredo, o Grande, que reinou entre 869-899.52Alfredo no foi apenas o primeiro rei nacional, foi tambm o fundador da primeira dinastia inglesa. A sua liderana se justicava na necessidade de uma poltica nica no combate aos vikings. Graas a ela, teve a fora poltica perante o witan para criar uma lei nacional que revogava a regra costumeira local para a escolha dos reis.Desde a invaso de Ilha em 429, os diferentes reinos, independentes e equidistantes,escolhiamosseusgovernantesatravsdosrespectivoswitan. Alfredo fez revogar esse costume, estabelecendo-se como um nico rei para todo o territrio anglo-saxnico, que ao mesmo tempo em que se armou como um chefe do poder temporal e o maior dignitrio eclesistico no territrio.Comodaliparadiantetodososreisdeveriampertencersucessode Alfredo, pode-se armar que com ele inicia o perodo de predomnio poltico saxo no territrio ingls.Alfredo,entretanto,manteveorestantedaestruturajurdicaanterior: a dupla sistematizao: Direito Cannico (pela vigncia do CodexCanonici) esistemaLaw(estebaseadoemfontesescritasleges-ecostumeiras consvetvdine).AonaldoperododehegemoniagermnicanaInglaterrapode-seobservaraprofundaalteraocausadapelacristianizaonoprocesso civilizatrioanglo-saxocominegvelinuncianoselementosconceituais deseusistemajurdicooqual,lentaegradualmente,foiassimilandona interpretaodoDireitomaterialosfundamentosticosehumanistasda doutrina Crist e a busca da verdade real.51 Hoje conhecida como Dinamarca.52 O territrio controlado por Alfredo, na verdade, no alcanava toda a extenso geogrca, hoje chamada de Inglaterra. Especicamente, Alfredo controlava os territrios saxes, Kent e boa parte da Mrcia. Os reinos do norte caram sob a jurisdio poltica e jurdica dos vikings.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 259 18/10/2011 13:49:51Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 260Essaevoluo,noobstante,nofoivericada,aessetempo,na ritualsticaprocedimentalquecontinuavaatreladaaumavisomsticae consequentemente incerta, revelada, nas maioria da vezes pelo julgamento de Deus atravs do regime das ordlias para a comprovao da verdade.EssaconguraorelegavaoDireitoProcessualaumaritualstica sacralizadacujosatosprocedimentaisnoeramescritos,masmemorizados. Somente com o movimento contratualista, a partir dos sculos XVII e XVIII, a ritualstica processual tambm passou a ser escrita como forma de garantia dos direitos individuais do cidado.2Direito moderno: direito anglo-saxo-normando (1066-1603)2.1Contexto geopoltico da inglaterra do sculo xiCedant armae togae...A Lei de Alfredo, que revogava a tradio clssica do povo anglo-saxo deescolhadomelhorguerreirocomolder,havia,apartirde869,criadoa primeira dinastia na Inglaterra. Todos os reis que a ele sucederam, de alguma forma, eram seus descendentes.Porm,aoinciodosculoXIumfatocomeavaatrazerumasria preocupaoaossaxes.OReiEduardo,OConfessor,encontrava-seem idade j avanada e no havia gerado sucessores.Issosignicavaquecomamortedorei,adinastiadeAlfredose extinguiria.Esseproblemapolticoteveinicialmenteumasoluojurdica: arepristinaodaleirevogadaporAlfredo,convocando-seoWitanpara a escolha de um novo rei, a qual, aps o passamento de Eduardo, recaiu em favor do lder saxo Haroldo.Contudo,reiEduardodesdeasuainfnciamantinhaprofundas relaes afetivas com o ducado normando, que culminaram, ao nal da vida dosoberano,nalegaotestamentriaemfavordeGuilherme,duqueda Normandia.Dessemodo,comamortedorei,duastesesjurdicaszeram-se presentes:(1)a tese repristinatria da antiga lei anglo-saxnica, defendida pelo saxo Haroldo;(2)a tese de validade do testamento feito pelo rei em territrio normando, defendida por Guilherme da Normandia.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 260 18/10/2011 13:49:51De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra261 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011ODireitonofoicapazdepacicarosinteressesjurdicos.Comoas armas [no] cederam lugar s togas (cedant armae togae...), a disputa dirigiu-se para o campo de batalha culminando na Batalha de Hastings (1066), na qual os normandos saram-se vencedores53. Comeava a era anglo-saxo-normanda na Inglaterra.No se pode dizer que tenha sido um comeo tranquilo. Os problemas vinhamnoapenasdaquiloquerestoudaresistnciasaxnica,mas, principalmente, por uma questo jurdico-poltica.NaNormandia,Guilhermenoerarei,masduquee,dessaforma, vassalo do rei da Frana. Se anexasse o territrio ingls ao normando, apenas aumentaria territorialmente a sua vassalagem ao rei francs.Dessaforma,GuilhermedaNormandiaoptouporsetornaroreida Inglaterra, tornando-se Guilherme I, da Inglaterra anexando a Normandia ao pas insular.54 Essa deciso foi fundamental para a formao do Direito ingls moderno.2.2O sistema common law / equity lawA Paz do Rei...GuilhermeI,dessemodo,assumiuumEstadojconstitudoecom umsistemajurdicoqueentendiacomomaisevoludodoqueovigenteno territrio de seu ducado.55O sistema jurdico anglo-saxo possua uma composio hbrida desde Aethelbert at as Leis de Canute, formado pelas leis escritas e pelos costumes locais que estavam em vigor em 1066, e tambm pelo Direito Cannico.Poroutrolado,abaselegalnormandaerareverencialainstrumentos escritos considerados, j poca, arcaicos e obsoletos, como a Lei Slica dos Francos, do sculo V e as capitulares das dinastias merovngia e carolngia dos sculos VI IX.5653 Em que pese a vitria no plano militar, Guilherme sofreu uma forte oposio nos planos poltico e jurdico. O witan, ainda politicamente forte no territrio saxo, no aceitou a tese jurdica de GuilhermeeelegeuEdgar,umsobrinhodeEduardoConfessor,oqual,aindaquefosseum menino, representaria a resistncia ao invasor. Conforme Babington, op.cit. p. 35, a consolidao do poder poltico de Guilherme sobre a Inglaterra levou no menos que uma dcada.54 Em que pese a importncia dessa deciso histrica para a consolidao do princpio da estabilidade doordenamentojurdico(princpiofundacionaldoDireitoingls),noplanogeopolticogerou umconitointerminvelentreFranaeInglaterradenominado:GuerradosCem Anos,com dramatizaes de fatos reais de ambos os lados (vide Histria de Henrique V dramatizao feita por William Shakespeare- e J eanne DArc dramatizao popular francesa).55 Cfe. Maitland e Montague, op.cit, p 26.56 Vigil Neto, Luiz Incio e Hickel, Eric. Petite Histoire du Droit du Peuple Franais. Revista da Associao dos J uzes do Rio Grande do Sul, vol. 112, pp. 330 e 331, 2008.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 261 18/10/2011 13:49:51Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 262Adecisopolticademanterosistemajurdicovigentepareceua Guilhermeumtantobvia,restando,apenas,umareordenaonoplano formal, na seguinte maneira:(1)separao, por competncia, do Direito Cannico - competncia especial e absoluta e do Direito Laico, de competncia residual;(2)manutenodotermoidenticativoLawparaoDireitolaico,em oposio aos sistemas continentais que comeavam a adotar a expresso (de) rectvm em substituio ao termo ivs;(3)manuteno do sistema escrito de leis relativas ao Direito Pblico;(4)manuteno dos costumes e das decises como fontes bsicas do Direito Privado.57J noplanoaplicativodoDireitoLaico,oscompromissospolticos assumidospelomonarcacomosldereslocaisdeterminaramaoreia manuteno da tradio anglo-saxnica baseada no princpio poltico-jurdico do senhorio da terra. Desse modo, pode-se armar a existncia de duas fontes denidoras durante todo o Direito Medieval ingls sistema Law:(1)as relaes jurdicas derivadas do direito de propriedade sobre a terra;(2)as demais relaes jurdicas.Aprimeiramantinha-sesobumavisodehierarquiajurdica,social e poltica: (a) o rei possua o domnio direto de todas as terras do reino e a propriedadedealgumasdelas;(b)osenhorrecebiadoreiumaconcesso dedomniodiretosobrealgumasterrasdoreinooudeletinhaesse reconhecimento;58(c)oservoqueeraautorizadopelosenhoraexercero domniotilsobreasterrasqueoreiantesconcedera(oureconhecerao direito) ao senhor.Ao servo era reconhecido o direito vitalcio explorao econmica da terra(domniotil)paraasuasubsistncia,comreconhecimentododireito detransmissohereditriadaautorizaoaosseusdescendentes,59almda 57 sempreimportantedestacarqueoDireitoPrivadodestapocapossuaumespectromenos amplo,resumindo-seaoDireitoobrigacionalecontratoseaosDireitosReais,almdoDireito de posse que na Inglaterra se estabelecia como uma categoria prpria. O Direito de famlia e de sucesses era por competncia em razo da matria, regulado pelo Direito Cannico. 58 Aqui se faz a grande diferenciao entre o conceito de baro e de Earl (duque). Este, ao incio do perodo feudal tinha um poder originrio sobre a terra, simultneo ou mesmo anterior ao rei, para quem jurava a lealdade do feudo, pelo reconhecimento do direito do Senhor, ainda que pudesse conscar-lhe a sua propriedade, por ato de vontade, sem o devido processo legal. O baro, por seu turno, recebia a poro de terra diretamente pela concesso do rei.59 Contudo era-lhe vedada a cesso do direito de uso a terceiros. Segundo costume, caso no mais desejasse continuar exercendo o domnio til da poro de terra, esta se considerava devoluta ao 15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 262 18/10/2011 13:49:51De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra263 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011proteo oferecida pelo senhor da terra. Esses direitos geravam a obrigao de transferir ao senhor todos os excedentes econmicos, bem como a obrigao eventual de suplementar as transferncias, alm da obrigao de alistamento.60Aosenhor,eraasseguradooplenoexercciododomniodiretosobre aporoconcedidadeterra,garantindo-lheoexercciodapolticalocal edocontroledaadministraodosistemajudiciallocalemparceriacom orepresentantedacoroa,impondo-lheaobrigaodelealdadeaoreieo pagamento peridico em favor do rei da renda devida pela concesso.Ao rei, titular do domnio de todo o territrio nacional era reconhecido o direito de a qualquer tempo, sem nenhuma formalidade ou razo jurdica, conscarasterrasconcedidasaosenhor,respeitando,apenas,asterras concedidas Igreja.61Essa ordem jurdica no escrita, mas costumeira, no se impunha pelas cortesjudiciaisatravsdosprecedentes,masatravsdeumaordenao dedireitosinstitucionalizada,conhecidaeacatadaportodos.Asmedidas restritivasdedireitos,comooconsco,nosecondicionavamaalgo semelhante ao devido processo legal, por mais rudimentar e embrionrio que essa garantia pudesse se apresentar, mas vontade do superior (rei ou nobre) em relao ao inferior (nobre ou plebeu).Nos direitos no relacionados ao direito de propriedade da terra, como porexemplo,ofurtodegado,oscontratos,etc,aindaquesobumabase costumeiraorientadapelosvaloresmoraiseuniversaispreconizadospela Escola de Direito Natural, tinham a sua apreciao condicionada ao exerccio da jurisdio e ao princpio do devido processo legal.62Noobstante,quantoadministraodosistemajudicial,asimples manuteno da ordem vigente, tal como era antes de sua coroao, traria ao reialgunsproblemaspolticos.Noperododedominaoanglo-saxnico, conformeantesreferido,oexercciodocontroledajurisdioeradelegado pelos reis ao capataz do condado, ou shire reeve.senhor que poderia conced-la livremente a qualquer outro interessado, ressalvada a hiptese de interveno do rei.60 Integrar, compulsoriamente, a lista dos que serviriam como soldados do feudo ou do reino.61 Ainviolabilidadedoterritrioeclesisticomanteve-seatorompimento(sculoXVI)da Inglaterra com o Papado, quando Henrique VIII deu incio a rigoroso processo de consco das terras da Igreja.62 de se destacar que devido processo legal para o Direito ingls, desde os seus primrdios, um princpio de origem costumeira aplicado s relaes jurdicas de interesse individual. A Magna Carta(1215),emverdadenooinstituiu,apenas,deformaexpressa,estendeuoseualcance tambm para as aes de interesse do rei que no mais poderiam ser executadas sem a observncia do princpio.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 263 18/10/2011 13:49:51Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 264Considerada a sua condio de liderana local, o shire reeve, que, graas ao contato com a lngua francesa,com o tempo, tornou-se sheriff, na maioria doscondadoseradeorigemanglo-saxnica,ouseja,dediscutvellealdade poltica ao rei normando.O controle das decises justas dava ao sheriffe aos juzes locaisuma representatividade poltica no condado, indesejada pelo rei. A opo adotada por Guilherme foi o gradual esvaziamento do poder das cortes locais e a sua substituio pelas cortes do rei, que aplicavam um Direito comum commune ley63 a todos os cidados do territrio insular.Identicada a razo poltica para a transformao, seguiu a apresentao doargumentodejusticativa. Ascorteslocaisestabeleciamduasformasde julgamento, baseadas na sacralizao do processo:(1)o julgamento dos homens;(2)o julgamento de Deus.Naprimeiraforma,oacusadopoderiatrazerperanteosheriff,ouaos juzes locais, pessoas, em geral doze, que jurassem a sua inocncia. Se no tivessexito,restariaaoacusadoasegundaforma,ojulgamentodeDeus pelas ordlias. Essas se dividiam em ordlias leves, como o leito do rio e o po abenoado, e as mais pesadas, como a gua quente e o ferro em brasa.A utilizao desses instrumentos, escolha de uma ordlia mais ou menos leve, ou mesmo a aplicao dos costumes nas decises dos casos, muitas vezes a trazia a incerteza e em algumas outras, desconana s partes em relao neutralidade dos julgadores, tendo em vista uma relao de maior ou menor amizade com o sheriff ou com os juzes locais.O argumento de Guilherme foi instituir um princpio jurdico-poltico: A paz do Rei. O rei criaria um novo sistema de cortes judiciais que aplicariam de maneira uniforme, justa e equnime, no pas inteiro, o sistema Lawanglo-saxo.Porm, os sistemas jurdicos locais Law, de leis e de costumes locais (de legibvs et de consvetvdines) existentes dariam lugar a uma nova estrutura: continuaria sendo chamado Law, continuaria, nas relaes privadas, tendo por base os costumes, porm, esses costumes no mais seriam locais, identicados pelos sheriffs e denidos pelos juzes locais, mas pelo prprio rei, atravs de seus juzes de ascendncia normanda ou mesmo anglo-saxes de indiscutvel lealdade,cujosjulgadospassariamaservinculativosaoscasosfuturosque examinassem fatos semelhantes (stare decisis). Essa nova estrutura do Direito j existente daria aos juzes uma base cognitiva comum.63 David, Ren. O Direito Ingls. So Paulo. Martins Fontes, p. 4, 2000.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 264 18/10/2011 13:49:51De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra265 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011Assim procedendo, o sistema jurdico Law seria o mesmo em todas as regiesdaInglaterra,passandodelocalLawpara CommonLaw64,um Direito comum a todos os cidados ingleses e praticado no pelas cortes locais, masporcortesnacionais,chamadasCortesdeCommonLaw.UmaJ ustia administrada pela Coroa.65EssenovoDireito,propostoporGuilhermeIapartirde1066e consolidado no reinado de Henrique II, em torno de 1180, estruturava-se em um sistema de cortes reais de jurisdio atravs da CvriaRegis e na gradual criaodascortesjudiciaisquedeladerivavamcomoaKingsBench,66a Common Pleas67 e a Court of Exchequer.68 Todas elas identicadas como cortes de Common Law.Denidas as bases estruturantes do novo projeto institucional, teve incio asualentaconstruo.Aprimeiramedidafoiumareediodosjulgados anglo-saxes(oldenglishdooms)emversolatina,poisosnovosjuzes no eram nem anglos nem saxes, mas franceses e no tinham condies de interpretar os julgados escritos na verso original.Areediodosantigosjulgadostambmsofreuumareelaborao,em prejuzo de sua pureza histrica, submetendo-se a uma reviso de conceitos inuenciada pelo Direito Cannico, pelo Direito Romano e, de certa forma, pelas Capitulares dos reinos francos.69Ademais,nosjulgamentossimblicos,almdosjulgamentospor juramento (Trialbyjury) e dos julgamentos por ordlias (Trialbyordeal) j existentes,osnormandosintroduziramojulgamentoporcombate(Trialby battle), pelo qual a defesa dos direitos ocorria atravs de um combate entre cavaleiros contratados pelas partes.70NosculoXII,RanulfGlanvillpublicouoprimeirotratadodeDireito Inglsemquesedescreveaatividade,asprticaseasdecisesdascortes deCommonLaw.Osistemadescritonessetratadorevelaainunciado 64 Emverdade,aconsolidaodenitivado[novo]DireitoComumcompleta-senoreinadono reinado Henrique II em 1154.65 J enks, Edward. Op cit., p. 3966 Inicialmenteacortedemaisaltahierarquia,poisemltimainstnciadetodasasmatriasde Direito Laico (at a edio do ActofSupremacy- por Henrique VIII 1534 e por Elizabeth I 1558 pelo qual caberia tambm ao rei a deciso nal sobre matrias de Direito Cannico que deixava, a partir de Henrique VIII, de tornar-se um sistema jurdico autnomo), os apelos eram ouvidos pelo prprio rei que tomava assento na Corte67 Criada, historicamente, para tratar de matrias de menor complexidade jurdica, como forma de desonerar a atividade judicante do rei.68 Corte de assuntos fazendrios.69 Maitland e Montague. Op cit., p. 29.70 Ao longo do tempo essa ideia ser elaborada e evoluir para o instituto do duelo.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 265 18/10/2011 13:49:51Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 266pensamento jurdico romano antigo na interpretao dos costumes germnicos. Ademais,observa-sequeaestruturadonovoDireitoseestabeleciapela jurisdio,atravsdaarmaodoprincpiojurdicodeDireitoingls RemediesPrecedeRights,inspiradonaideiaromanadeactio,peloqual somente seriam reconhecidos direitos se contemplados em uma ao prpria. As decises pretritas teriam fora vinculativa perante os juzes, que deveriam respeit-las, observados os mesmo fatos, armada na idia de bom-senso de quenoseriajustojulgardiversamenteaspessoasquepraticassemfatos semelhantes.71NosculoXIII,foipublicadoosegundograndetratadodeDireito Ingls:DeLegibusetConsuetudinibusAngliaeporHenryBracton,uma edio mais evoluda que a de Glanvill, onde se observa uma idia conceitual maisclarasobreoDireitoenecessidadedesupressodelacunas.Segundo esse jurista, o Direito ingls se armava como um sistema de casos no qual osjulgamentosdefatosseriamprecedentes[vinculativos]parajulgamentos futuros de fatos semelhantes.72 Durante o reinado do rei plantageneta J oo, O Sem Terra, a Inglaterra perdeu a poro continental de seu territrio, dando um incio a um processo de isolamento cultural do povo ingls com reexo marcante na formao de seuDireito,emespecialnaedicaodosistemajurdico.ODireitoingls voltou-se para o seu sistema de costumes e bom-senso.AInglaterra,apartirdali,deixoudeacompanharoprocessode sistematizao cientca do Direito Romano, modelo proposto pelo movimento dos Glosadores de estudo do Corpvs Ivris Civilis a partir do sculo XII.Contudo,diferentementedoquesecostumaarmar,oDireitoIngls nunca deixou de ser inuenciado pelo Direito Romano, porm, essa inuncia deu-sesobumaperspectivadiversadaadotadapelaEuropacontinental baseada nos movimentos de renamento e modernizao cientca apresentada pelos glosadores e ps-glosadores, bartolistas e, nalmente, pelo movimento germnico pandectista.OafastamentodoDireitoInglsdessesmovimentoscontinentais deinterpretaoinovadoradoDireitoRomanodeuafalsaimpressode umabandonodessatradiojurdicapeloDireitoIngls.ODireitoIngls manteve em sua estrutura formativa tanto de leges como de consvetvdines um nmero signicativo de conceitos e de institutos romanos, porm, vinculados aumainterpretaomaisclssica,anterioraosurgimentodosmovimentos interpretativos do Corpvs Ivris Civilis, iniciados a partir de 1159.71 Essa idia ainda hoje representa a justicativa poltica da stare decisis.72 Maitland e Montague. Op. Cit,p. 44.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 266 18/10/2011 13:49:51De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra267 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011NessemomentohistricooDireitoinglsadquiriuumacongurao voltadaparaapragmtica,instituindo-seapartirdocaseLaw.Emoutras palavras, o afastamento da ilha aos movimentos da cultura jurdica continental imps-lheumasequnciaepistemolgicadistintadaadotadapeloDireito Franco-Germnico-Romano.Enquantonessesasequnciaepistemolgica derivadonvelcientcodosaberjurdico,cujosdogmaseprincpios exteriorizam-seemleisescritasecodicadas,paraonvelpragmticodo saberjurdicodeaplicaodosinstitutossobaformadedecisesjudiciais. Nos sistemas de CommonLaw, a sequncia epistemolgica do Direito deriva do saber pragmtico, em forma de precedentes, para o nvel cientco, pela teorizao dos institutos denidos pela atividade das cortes.73Pode-se dizer que a partir desse sculo o Direito ingls sedimentou-se nas seguintes bases estruturais:(1)umDireitolaiconacionalCommonLawouDireitoComum(de consvetvdinibvsinspiradoemumatradioromanapr-clssicado conceitodeactiovericando-seumaestagnaoconsidervelno processodeelaboraodeleisescritas)-emsubstituioauma diversidade de Direitos laicos locais (sistema costumeiro anglo-saxo);(2)cortes itinerantes ou em Westminster presididas por juzes do rei;(3)procedimentos na forma de writs.Owritoubreve74constitua-seemumdocumentoescritopeloreio qualcontinhaumaordemdeleemanada.Nagrandemaioriadoscasos,era endereada ao ocial da coroa na forma de uma determinao administrativa, inicialmente utilizada para qualquer nalidade de interesse do rei. Logo esta ordem real foi adotada como forma de chamamento do acusado ao processo, atravs do writ of summons,75 endereada ao sheriff, determinando-lhe a tarefa de trazer o acusado perante a corte de Common Law que no seria trazido pela parte acusante.73 Denota-seemquasetodosostextosbrasileirosdepensamentojurdicoumquaseabsoluto desconhecimentodostrsnveisdesaberjurdico:(a)nvelpragmtico,dasatividades prossionaisesaberesempricos;(b)onvelcientco,dosabertericoesistmico;(c)nvel losco, de compreenso ontolgica, crtica e proposio da teoria jurdica.74 Obreveeraanomenclaturaoriginariamenteadotadapelosnormandos,emcontraposioao termo writ de origem anglo-saxnica .75 Ordem de convocao.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 267 18/10/2011 13:49:51Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 268Aecciadesseinstrumentoprocessualestavanadiferenadeefeitos gerados sobre o acusado ao desobedecer uma ordem da parte acusante e ao desobedecer uma ordem direta do rei.76 O no comparecimento consolidava a eccia da ordem e a submisso aos seus efeitos jurdicos.Conforme Van Caenegem,77 o procedimento dos writs surgiu a partir de 1203expedidospelascortesdeCommonLaw.Especicavamanaturezada reclamao, os nomes das partes, o objeto da demanda, a ordem de convocao e a composio dos jurados.Osistemaprocedimentaldewritseraformalistaeoneroso.Aparte comparecia perante o representante do rei78 e apresentava a sua queixa. Se a demanda proposta se demonstrasse compatvel com a autoridade judicial do writwriter, seria concedido um writ que autorizava a tramitao da demanda perante a corte real. Caso contrrio, a demanda no seria examinada pela corte.Oswritsdeniamodireitodeaoesuaforma.Emltimaanlise, pode-se tambm dizer que a sua concesso signicava, de certa maneira, na expresso Remedies Precede Rights, um reconhecimento do direito de ao e de suas formalidades, anterior ao reconhecimento do direito material.Aps a concesso dowritofsummons a parte era trazida ao juiz para apresentar as suas alegaes de defesa. A contrariedade entre as partes julgada pelascortesfaziam-nasadversrias,dandoorigemaoadversarialsystem de produo de provas do Direito judicial, as quais, por princpio processual pertencem s partes (e no ao processo) que decidiro sobre a sua produo em juzo ou pela admisso dos fatos79 armados no processo.NocasoParsonofSaltash,noanode1400,precedentevinculativo, deniu-sequenosjulgamentodascortesdeCommonLawhaveriauma evidente diferenciao entre a matria de Direito -question of law, examinada e decidida pelo magistrado, e a matria de fato question of fact apreciada e decidida pelo jri.AconsolidaodenitivadascortesdeCommonLaweaevoluo cientcadosistemafezcomque,apartirdosculoXIII,asformas maisantigasdejulgamentotrialbyordealetrialbybattlecedessem, inexoravelmente, espao para o trial by jury.76 J enks, Edward. Op. Cit , p. 4477 Van Canegem, R.C. The Birth of the English Common Law. Cambridge. Cambridge University Press, p. 29, 2004.78 Writ writer.79 Naprimeirahiptese,peloprincpiodaboa-fprocessualdeverorevelar(disclose)parte contrria quais provas sero submetidas ao julgador.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 268 18/10/2011 13:49:51De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra269 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011Por outro lado, o reconhecimento da autoridade religiosa para a resoluo jurdicadelitgiosvinculados,inicialmente,amatriasdecompetncia exclusiva do Direito Cannico, culminou na criao das CourtsofChancery ao nal do sculo XIV.80 Essas cortes, posteriormente, apresentaram-se como alternativascortesdeCommonLaw,poisnooperavampelosistemade writs.Ajurisdioalternativabaseava-senoconceitodeequidadequando inexistentes os costumes indicativos de uma soluo legtima para o caso.As Courts of Chancery tornaram-se cortes de Equity Law adquirindo uma competncia residual para as pretenses jurdicas no contempladas em writs e que, dessa forma, no poderiam ser julgadas pelas cortes de Common Law.Segundo Peter Walter Ashton,81 as normas legais da CommonLaw no foram formuladas com uma preciso que pudessem resolver adequadamente todaequalquercontingnciaouhipteselegalpossvel,podendoacontecer injustias pela aplicao inadequada de norma da Common Law. Para resolver e remediar tais injustias da CommonLaw que se desenvolveu o direito de equidade (EquityLaw). Na Idade Mdia, em vez de usar a expresso Lawof Equity, era muitas vezes usada a expresso Direito da Conscincia ou Law ofConscience,82poisaconscinciadejustiaeraarationonscriptadesse subsistema.OprocedimentonasCourtsofChanceryeratotalmentediversodo previstoparaasCourtsofCommonLaw.Inicialmenteaspartesnoeram tratadas como adversrias. Dessa forma, o processo norteava-se pelo princpio inquisitorialeaspartestratadascomosuplicanteesuplicado,peranteuma autoridade prestadora de uma atividade consultiva. Inexistiam as formalidades previstasparaaconcessodowrit,ospedidoseramfeitosoralmenteeos julgamentos proferidos, por magistrados, com base na conscincia, equidade e bom senso.As decises judiciais no reconheciam direitos, apenas indicavam uma soluo justa e dessa forma, os fundamentos jurdicos no eram apresentados s partes. Em assim sendo, no tinham fora para a criao dos precedentes, pois no se baseavam no sistema positivado, mas no bom senso dos julgadores.OsenunciadossentenciaisdascortesdeEquityLawnorevestiama forma de writs, mas de injunctions ou determinaes de specic performances. Naspecicperformanceacorteobrigavaaoruacumprirasuapromessa contratualmente avenada, enquanto que pela injunction impedia-se o ru de 80 J enks, op.cit, p. 165.81 Ashton,Peter Walter.ACommonLaweaEquidadedoDireitoAnglo-Saxnico.Revistado Ministrio Pblico do Rio Grande do Sul. Vol. 64, p. 192, 2009.82 Peter Ashton, op cit, p. 192.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 269 18/10/2011 13:49:51Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 270realizar o que contratualmente prometera no fazer,83 enquanto que nas cortes de Common Law, o julgamento de responsabilidade determinava o pagamento da indenizao pela quebra contratual.Almdasdiferenasconceituaisacimadescritas,conformeJ enks,84,a eccia jurdica das decises das Courts of Chancery eram in personam, pela manutenodaparteemcustdiaatocumprimentodadecisoprolatada, enquanto que nas CourtsofCommonLaw, das suas decises eram inrem, a condenao ao pagamento e o apossamento da coisa como garantia da eccia jurdica do julgado. importante destacar que o desenvolvimento desses sistemas distintos decortesnoimpediuentreelesumarelaoharmnicaecomplementar, denotando um desenvolvimento mais amplo da teoria jurdica. Isso pode ser observado,porexemplo,naevoluodateoriadosilcitosnocontratuais, ostorts.AscortesjudiciaisdecommonLaweequityLawcomeavama preocupar-se com uma maior ateno aos que no agiam conforme o direito (rectvm-recht-right) identicando esta conduta no reta como torta pela palavra latina tortvm, evoluindo, posteriormente para tort.Nessas condies de paralelismo e complementariedade entre as cortes de commonLawe equityLaw,anteriormente noticiadas, denota-se que enquanto as aes de responsabilidade no contratual torts-fundadas na negligncia e no erro tramitavam nas cortes de common Law (previso em writ especco- efeitosinrem),asaesrelativasaostorts,porm,sustentadasnafraudee baseadasnodesrespeitonoodeboa-f,eramprocessadasejulgadasna cortes de equity Law (efeitos in personam).DuranteadinastiaTudor85foicriadaaStarChamber(1485-1641) comjurisdiocriminalparaassuntosdeseguranadoreino,emgeralsob a normativa legal do TreasonActof1495. A StarChamberadotava um rito processualprximoscortesdeEquityLaw,poisoacusantedirigia-se corte e esta, inquisitorialmente conduzia a acusao contra o denunciado, sem nenhumaparticipaododenunciante.Comosetratavadaseguranado reino, o denunciado no tinha acesso pleno acusao que contra ele pesava, nemsprovascontraeleproduzidas. Asdecisesnocriavamprecedentes sendo julgadas casuisticamente, orientadas na presuno de culpa do acusado. Na medida da arbitrariedade autorizada ou desejada por cada rei, o caminho paraaobtenodaverdadenosofriarestries,submetendooru, geralmente, a um processo cruel de torturas.83 Cfe Peter Ashton, op cit, p. 193.84 J enks, Edward. Op. Cit., p. 166.85 Casarealinglesaquereinouentre14851603pelosseguintesreis/rainhas:HenriqueVII, Henrique VIII, Eduardo VI, Maria I, Elizabeth I.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 270 18/10/2011 13:49:52De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra271 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011Edward J enks86 apresenta um interessante quadro comparativo entre os trs sistemas jurisdicionais:Common Law Courts Star Chamber Court of Chancery1 Right Grace Grace2 Writ (form of action) Bill (no form of action) Bill (idem)3 Oral Pleading to Issue Writing Pleading (no issue) Writing Pleading4 No examination of Parties Defendant on Oath Defendant on Oath5 Precedents Discretion Discretion6 Jury No Jury No Jury7 In Rem In Personam In Personam8 Open Accusation Accuser unknown Accuser unknown9 Reasons given for JudgementNo Reasons given No Reasons givenNota-sequeoDireitocomumaoscidados,durantequasetodoo medievo,noprovinhadasleisdoshomens,ouseja,noprovinhadeatos parlamentares. AcrenanadivinizaodoDireito87repousavanasuposio deserDeusograndelegisladorehomensemulheres,atravsdosjuzes, deveriamdescobriressasleisqueuamnanatureza,reveladaspelas diretivas da Santa Igreja e que teriam de ser cegamente obedecidas.88Dessa forma, durante quase todo o perodo desde a dinastia Plantageneta atoMariaTudor,89oParlamentofoientendidocomoumentesocialde criaolegislativavoltadaaosinteressesimediatosepontuaisdosoberano. SomentenoperodoElizabetanoacriaolegislativapassouavisar, conjuntamentecomoosinteressesdosoberano,osinteressescoletivosda nao.Observa-se, tambm, no perodo elizabetano, a evoluo signicativa do sistema CommonLaw. Nesse perodo, ocorreu o abandono do costume como fonteprimriadoDireitoIngls,emdetrimentodoprecedentevinculante (staredecisis).Oprecedentevinculantetornou-seinterpretativo:(a)deleis (leges),90 base especial formalizada em atos do Parlamento e; (b) costumes 86 J enks, Edward. Op cit, p. 168.87 Vigil Neto, Luiz Incio. TeoriaFalimentareRegimesRecuperatrios. Porto Alegre. Editora Livraria do Advogado, p. 27, 2008.88 Stuart Prall, The Puritan Revolution, Krieger Publishing Company, Malabar, Florida,p 7, 2002.89 Passando tambm pelas dinastias de Lancaster e York.90 Exemplicativamente,pode-sereferirqueem1562,foipromulgadooActofLabourers estabelecendovaloresmnimosregionaisdepagamentopelotrabalholivre,aomesmotempo, restringiaodireitodotrabalhadordebuscarumanovaoportunidadedeempregoenquanto 15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 271 18/10/2011 13:49:52Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 272consvetvdine, base maior, e residual, de interpretao das relaes de Direito Privado; (c) na ausncia de ambos, o bom senso, trao marcante de uma ratio non scripta da cultura jurdica inglesa.Entretanto,ocostume,almdetornar-seumafontesubsidiria, necessitavadoreconhecimentodeumacorte,manifestadaemprecedente judicial, para tornar-se normativo91. Alm disso, qualquer corte judicial poderia desnormatizarocontedojurdicodocostumeseentendessequeasua aplicao pudesse afrontar o bom-senso92.No perodo Tudor, especialmente com Elizabeth I, a lei comeava a ser retomadanaInglaterratambmparaalgumasrelaesdeDireitoPrivado, aindaqueseconstitusseemumafontedebasemenorparaessasrelaes jurdicas.3A constitucionalizao do sistema jurdico ingls (1215-1689)3.1O poder absoluto do rei e o controle poltico do parlamento e do poder judicirioThe King over Parliament...ACommonLaw,comoseobservou,nosurgiudeumatonicoe instantneodecriaohumana,masfoi,etemsido,frutodeumalenta evoluo e melhoria de institutos previamente constitudos.Pode-sedizer,historicamente,queoprimeiropassodadoremete maneira normanda de administrar o Estado saxo. Ao mesmo tempo em que respeitava a ordem constituda, propunha um novo princpio: A paz do rei. Se a paz era do rei (e no para o rei), seria ele, o rei, mais o artce do que o benecirio da paz social.A forma de proposio do princpio poltico de administrao normanda na Inglaterra selou um compromisso assumido pelo rei perante seus sditos: respeitavaatradioculturaleaestruturaestatal,pormremodelava modernizando algumas instituies, especialmente o sistema judicirio.vigorasse o seu contrato de trabalho. Tambm no ano de 1562, foi renovado o BankrupctyAct, tornando-seumregimeespecicamentecontraafalnciadocomerciante,permitindoaolord chancellor (magistrado da CourtofChancery) arrecadar a propriedade do falido e dividi-la entre os seus credores. 91 Hart, HLA. The Concept of Law. Oxford University Press. Oxford, p 47, 1961.92 Idem.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 272 18/10/2011 13:49:52De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra273 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011Essa modernizao no representou ruptura, mas uma lenta e constante evoluo, trao marcante do sistema jurdico ingls nos dias de hoje. O Direito ingls no muda, evolui93.Entretanto nem todos os sucessores de Guilherme I acreditavam no xito de uma aliana entre rei e povo, preferindo optar pela ideia do Direito Divino dos reis94 que considerava ilegtima qualquer pretenso reivindicativa do povo ou de qualquer outra autoridade poltica.Avontadequenofossedorei,dessaforma,norepresentaria,na Terra,avontadedeDeus.Combasenesseargumentopoltico-teolgico,os reisprocuravamobterocontrolepolticoabsolutodetodasasinstituies deEstadoquedeveriamagiremconformidadecomosseusinteresses,e uma autonomia poltica plena, sem prestar contas ou ter de justicar as suas atitudes.Os reis normandos substituram o witan, de tradio anglo-saxnica, pelo conselho real, que se constitua em grupo de pessoas da absoluta conana do monarca, no mais dos cls ancestrais. No perodo plantageneta, o conselho doreiadquiriuumaconguraomaisampla,aindaqueinicialmenteno revelasseumamaiorrepresentatividadesocial.Osbares,porexemplo, passaramaadquirirodireitodeintegraroconselhoreal,justicadosno argumento jurdico de Direito feudal de participao obrigatria nos conselhos de seu superior imediato, no caso o rei.Foi,tambm,noperodoplantagenetaqueoconselhodoreipassou a ser chamado de Parlamento95. Porm, este fato ocorreu em um perodo em queacompreensodoreisobreainstituioeraconstituir-se,apenas,em umconselhorealdemaioramplitude,masdenenhumarepresentatividade poltica e que, desse modo, deveria colocar-se ao lado dos seus interesses em detrimentodosinteressesdopovo.Logo,aconvocaonoeravistacomo umaobrigao,mascomoumaprerrogativareal,permitindoaosoberano decidir se convocaria, quando convocaria e quais de seus integrantes seriam convocados.93 Nisso se destaca a diferena entre o processo histrico do Direito ingls, de lenta evoluo, e o processo histrico do Direito brasileiro, de rupturas peridicas. 94 Homem/mulher escolhido (a) por Deus para represent-lo e agir por sua vontade nos assuntos no espirituais. 95 ConformeBabington,otermoParlamentofoiutilizadopelaprimeiraveznaInglaterrano sculo XIII, expresso originariamente retirada da lngua francesa Parlement, tendo em vista a oportunidade de povo, atravs de seus representantes, poder falar com o rei para apresentar as suas demandas, op. Cit, p. 65.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 273 18/10/2011 13:49:52Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 274Pode-se,poroutrolado,armarqueoinciodoprocessode constitucionalizaodoDireitoantecipou-senaInglaterra,emrelaoaos demais pases, com a Magna Carta, assinada em 1215, pelo rei J oo.Nesse documento de natureza constitucionalista, foram impostos limites (ainda que tericos) ao poder absoluto do rei. Nela armou-se politicamente uma das garantias do povo ingls: o rei estava obrigado a convocar todos os integrantesdoParlamento,semexceo,incluindoosquenofossemseus favoritoseaquelesquenoestivessemdispostosavotarfavoravelmentes proposies do soberano.A convocao do Parlamento, quando realizada96, nomaisseriadoexclusivointeressedorei,mastambmdointeresseda nao,poisasmatriasdecididasnaassembliatambmafetavamaos interesses dos sditos, logo, o Parlamento teria constitucionalmente o direito de rejeit-las se assim entendesse necessrio.A submisso do rei aos termos da Magna Carta representou o primeiro de muitos passos no longo caminho do constitucionalismo poltico e jurdico na Inglaterra. A Magna Carta propunha limites ao poder real, armando garantias polticas e jurdicas como:(1)aexignciaouaumentodeimpostoscondicionadoconcordncia expressa do conselho poltico;(2)a convocao prvia e obrigatria de todos os arcebispos, bispos, abades, lords, earls e bares para as reunies do conselho;(3)a ilegalidade de medidas como a priso ou o consco de propriedade de cidados livres, sem o devido processo legal;(4)aampliaodoConselhoRealeasuadivisoemcmarasdeuppper elowerstrata97queembrevefuturoseriamdenominadasCmarade Lords(nobres)eCmaradeComuns(plebeus),aprimeiraformada porintegrantesdanobrezacomdireitohereditrio,asegunda,por representantes eleitos pelas comunidades.Todavia, a postura dos reis, como a de J oo Sem Terra nunca foi a de submisso ou respeito a uma ordem constitucional que impusesse limites ao seu direito absoluto de origem divina.Em1258,jnoreinadodeHenriqueIII,osbaresnovamente mobilizados sob a liderana de Simon de Montfort proclamaram as Provises de Oxford, que, ao rearmar os termos da Magna Carta, exigiam um juramento doreidedarcumprimentoaoscompromissosnelaincludos.Oreijurou 96 Nesse momento histrico ainda se considerava a oportunidade de convocao do Parlamento, bem como a manuteno ativa, como uma prerrogativa real.97 Denies originrias em ingls, de acordo com o status social.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 274 18/10/2011 13:49:52De legibus et de consuetudinibus estudos sobre a histria do dreito na Inglaterra275 Revista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011cumprir, mas obteve do Papa a dispensa de manter o seu juramento. Tal fato gerou dois levantes civis.Comavitrianaldorei,aconvocaodosmembrosdoParlamento novamentevoltouaserumaprerrogativaabsolutadosoberano,ideiaque semanteveinclumeduranteoperodorestantedadinastiaplantageneta. Maisumavez,oavanodeumpassoeraneutralizadopelorecuodedois movimentos.Nosperodosseguintes,dedisputasentredinastiasLancastere York,98pode-searmarcomtodasegurana,noapenassupremaciadorei sobreoparlamentoeseucontroleabsolutosobreosistemajurdico,masa subservinciadoPoderLegislativoedoPoderJ udicirioaosinteressesdos reis. A Inglaterra rumava em direo oposta ao constitucionalismo.3.2O acordo poltico entre o rei e o parlamentoThe King and the Parliament...OmdaGuerradasRosas(1485)notrouxe,inicialmente,uma modicaonoambientepolticodeaplicaodosistemajurdico constitucional na Inglaterra. O povo esperava por um rei que tivesse autoridade e que pudesse governar o pas. Uma liderana denitiva, mesmo que desptica. AnecessidadedeumSenhordeEstadoquepudessereorganizaropas, naquele momento, era mais importante que a necessidade da consolidao do constitucionalismo na Inglaterra.Henrique VII, fundador da Casa de Tudor, apresentava-se como este novo rei. Aclamado logo aps a vitria sobre Ricardo III na batalha de Bosworth Field,99mantevetodaaestruturadeEstadoatentoexistente,comoo ConselhoReal,oParlamentoeasCortesJ udiciais.Entretanto,armou-se como um monarca absolutista com um rgido controle sobre as manifestaes eposiesadotadaspeloParlamentoepeloPoderJ udicirio,subordinando ambos sua vontade e interesses.Nasuasucesso,emvirtudedamorteprematuradeseuprimognito, apresentou-seoseusegundolhoHenrique,aclamadocomoHenrique VIII e conhecido como o mais desptico dos monarcas ingleses. Notadamente, o despotismo, a crueldade, os excessos e a falta de escrpulos do novo rei eram 98 A guerra das Rosas que marca o perodo de disputa poltico-militar entre as Casas de Lancaster (Rosa Vermelha) e York (Rosa Branca). Tecnicamente, pode-se armar a vitria nal da Casa de Lancaster com o xito de Henrique VII sobre Ricardo III (Batalha de Bosworth Field). Contudo, to logo a sua aclamao, Henrique VII casou com Elizabeth de York (lha de Eduardo IV) e fundou a Casa de Tudor (Rosa Vermelha e Branca), pondo m s disputas dinsticas na Inglaterra.99 Tambm dramatizada por William Shakespeare na pea: Ricardo III.15RevistadoMinistrioPblicodoRSn7015.indd 275 18/10/2011 13:49:52Luiz Incio Vigil Neto e Tassiane Andressa WiprichRevista do Ministrio Pblico do RS, Porto Alegre, n. 70, set. 2011 dez. 2011 276por ele justicados em razes jurdicas e de interesse coletivo, subjugando o parlamento, cortes e juzes.ApartirdorompimentopolticocomoPapa,emvirtudedanegativa desteemanularoseucasamentocomCatarinadeArago,HenriqueVIII imps ao Parlamento a aprovao de uma srie de leis que lhe garantiam uma posio autnoma em relao ao Vaticano,100 mesmo contrariando a vontade da imensa maioria da populao inglesa. Ao mesmo tempo, tinha a garantida a submisso poltica por parte do Poder J udicirio de condenao a todos os que no adotassem a f anglicana e/ou aos que expressassem crticas s suas decises.101Ao nal de sua vida, conseguiu ainda fazer aprovar pelo Parlamento o Act of Succession of 1544, pelo qual redenia a ordem de sua sucesso de seus lhosnotronodaInglaterra:Eduardo,MariaeElizabeth,respectivamente, lhodoterceirocasamento,lhadoprimeirocasamento,lhadosegundo casamento, rompendo com a linha constitucional de sucesso.Eduardo VI,102 por seu turno, resolveu tambm romper com a nova linha de sucesso imposta por seu pai, tendo em vista que a sucesso em favor de MariaInogarantiriaac