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Sociedade e Estado, Braslia, v. 24, n. 3, p. 739-766, set./dez. 2009
TEORIA DAS REPRESENTAES SOCIAIS ECINCIAS SOCIAIS: trnsito e atravessamentos
Angela Arruda*
Resumo: Este texto pretende assinalar a relao da teoriapsicossocial das representaes sociais de Serge Moscovici com ascincias sociais, a partir da sua caracterizao como uma abordagemde interpenetrao da Psicologia com a Sociologia. Primeiramentefar uma breve anlise sobre o trnsito entre Psicologia-Psicologia
Social e Cincias Sociais, como um dos elementos de explicaopara o entrecruzamento da Teoria das Representaes Sociais(TRS) com as cincias sociais. Em seguida pontuar como esteentrecruzamento se coloca na abordagem moscoviciana, e comoa TRS no escapa a ele. O argumento da autora de que a baseda relao entre essas reas e a TRS est na concepo do social,
presente no pensamento moscoviciano, o qual, ao mesmo tempo,no negligencia o quanto os aspectos psicolgicos participam dos
fatos sociais. O texto se encerra com alguns exemplos de pesquisapara ilustrar esta posio.
Palavras-chave:teoria das representaes sociais; cincias sociais;atravessamentos.
O estudo sobre a representao social da Psicanlise na Frana
dos anos 50, de como ela se tornou um fato da cultura (Moscovici,1961), persegue a transformao do pensamento social e os seus
desdobramentos segundo o grupo que fala. Ou seja, como todo tipo
de saber especializado, uma vez posto em debate na esfera pblica,
tornava-se objeto de representao, migrando do seu universo
especco para o do senso comum. Levar adiante esta empreitada
* Doutora em Psicologia Social pela Universidade de So Paulo (USP); professora doPrograma de Ps- Graduao em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ).E-mail: [email protected]
Artigo recebido em 20 out. 2009 e aprovado em 23 out. 2009.
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signicou produzir a Teoria das Representaes Sociais (TRS) a
partir de um entrecruzamento de cincias.
A passagem de um saber do seu prprio domnio para omundo da conversao entre os leigos um fenmeno psicossocial.Envolve a mobilizao de elementos psicolgicos afetivos,cognitivos, imaginrios, fantasmticos, de memria e outros masimpregnados de contedo social sociolgico, histrico, cultural,
lingustico, entre outros e acontece ao mesmo tempo nesses doisregistros que se encontram totalmente entrelaados: o social e o
individual, dissolvendo assim a dicotomia indivduo-sociedade. Odilema do ovo e da galinha, para efeitos do trabalho do pensamento,ca superado, uma vez que quem pensa est inserido e atravessadopela sociedade (com sua histria, forma de organizao, suasculturas etc.). Moscovici (1988) cita Lvi-Strauss para apoiar essainseparabilidade:
[...] bem verdade que, em certo sentido, todo fenmeno psicolgico
um fenmeno sociolgico, o mental se identica com o social. Mas,num outro sentido, tudo se inverte. A prova do social s pode sermental; ou seja, ns jamais poderemos estar seguros de ter atingidoo sentido e a funo de uma instituio se no formos capazes dereviver a sua incidncia sobre uma conscincia individual. Comoessa incidncia uma parte integrante das instituies, qualquerinterpretao deve fazer coincidir a objetividade da anlise histricaou comparativa com a subjetividade da experincia vivida.
Na busca moscoviciana da compreenso da mudana, portanto,se indivduo e sociedade no se separam, mas se atravessam, nem
a Psicologia nem as cincias sociais entre as quais ele situa aPsicologia Social podem explic-la sozinhas. Esta uma vertenteda Psicologia que v a Psicologia social como rea de interface cincia charneira, segundo Maisonneuve ([1950] 1988, p. 129),encruzilhada, entre a Antropologia Cultural, a Sociologia, a
Psicologia e a Psiquiatria. Podemos acrescentar tambm a Histria(e se enveredamos pelas artes, a literatura, o cinema, as artesplsticas, a fotograa e a msica...).
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nesta perspectiva que se integra o pensamento moscoviciano,
toda a sua obra, bem como a de Jodelet. Nos tempos de hoje, podemos
ir alm e supor que, mais que uma encruzilhada, estamos falando
de uma aliana que se assemelha quela discutida por Prigogine
e Stengers (1997), da qual eles apontam Moscovici como um dos
precursores. Ela implica por entender o social e o individual como
os entrelaados num mesmo tecido , considerar esse tecido de
forma aberta e mltipla, sem barreiras disciplinares. A teoria que
aqui est em pauta se situa no corao dessa aliana, ao navegar
sempre no encontro das guas da Psicologia Social e suas irms, as
outras cincias sociais.
Pretendo aqui caminhar no sentido de assinalar a relao da
TRS com as cincias sociais a partir da sua caracterizao como
uma abordagem de interpenetrao da Psicologia com a Sociologia.
Proponho, ento, desenvolver o texto passando primeiro por uma
breve anlise sobre o trnsito entre Psicologia-Psicologia Social
e cincias sociais, como um dos elementos de explicao para oentrecruzamento da TRS com as cincias sociais. Em seguida,
pontuarei como este entrecruzamento se coloca na abordagem
moscoviciana, e como a no escapa dele. Minha posio de que
a base da relao entre essas reas e a TRS est na concepo do
social, presente no pensamento moscoviciano, o qual, ao mesmo
tempo, no negligencia o quanto aspectos psicolgicos participam
dos fatos sociais. Encerrarei com alguns exemplos de pesquisa parailustrar esta posio.
Psicologia, Psicologia Social, Cincias Sociais
A Psicologia Social como Moscovici e Jodelet a entendem
uma cincia social. Contudo, a contribuio desses dois autoresmais conhecida entre ns, a Teoria das Representaes Sociais
(TRS), despertou questionamentos que variaram de o que tem a ver
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com cincia social? at em que difere da abordagem sociolgica?
fcil respondermos que o interesse pelos processos psicossociais
de elaborao das representaes enfatizando suas razes sociais
o n da questo, embora isto no seja tudo. A representao social,
na abordagem daqueles autores, nada tem a ver com o reexo da
realidade. Teoriza, avant la lettre, em 1961, a perspectiva da
construo social da realidade, que ser sistematizada por Berger e
Luckmann pouco tempo depois, em 1963.
Tal construo social acontece atravessada por um uxo de
afetos, imaginrios, estilos cognitivos e se congura por meio deprocessos que, sendo sociais, so ao mesmo tempo psicolgicos,
como aqueles que permeiam a produo das representaes
sociais, tal como consideram Moscovici e Jodelet. Rero-me aqui
aos processos de objetivao, ancoragem, focalizao, presso
inferncia, disperso da informao. Ou seja, processos que, do
ponto de vista psicossocial, esto entre os que contribuem para a
mudana do pensamento social e, simultaneamente, so formasde organizao do pensamento social e operaes mentais. Esse
atravessamento, contudo, no era ponto pacco quando Moscovici
interpelou a Psicologia Social, situando-a como cincia social.
A Psicologia e as Cincias Sociais
Para entender como se coloca no campo da Psicologia a relao
entre TRS e cincias sociais, interessante revisitar rapidamente
a relao entre a Psicologia em particular a Psicologia Social
e aquelas cincias.1 Foi o que zeram recentemente Moscovici e
Markova (2006), quando propuseram a existncia de duas tradies
da rea e batizando-as como a tradio de origem americana
(indigenous american, no original) e a tradio euro-americana.Alertando para a simplicao inevitvel desse tipo de classicaes,
sinalizam que suas grandes diferenas so epistemolgicas. A
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primeira lia a Psicologia Social Psicologia geral como rea me,devido nfase comum s duas: a natureza humana tal como seexpressa no indivduo. Em algumas interpretaes, isto signica
uma aproximao com as cincias neurolgicas, uma vez que osprocessos psicolgicos (memria, percepo, etc.) se produzemde forma semelhante nos indivduos graas ao funcionamento docrebro. S o indivduo tem crebro, no a multido ou o grupo. Istoafasta as cincias sociais, estranhas ao treinamento dos psiclogos;eles se aproximam mais das prticas experimentais em laboratrio,isoladas da realidade. O que o laboratrio faz, nesta vertente, criar
situaes articiais e um grupo ctcio que no funciona amparadoem nenhum contexto, a no ser o do prprio experimento. Osautores estabelecem uma metfora, da cincia-porta e da cincia-ponte. Esta tradio se situaria na primeira, fechando-se para teoriassociolgicas ou antropolgicas.
Em contraste, a tradio euro-americana considera que aPsicologia Social vem preencher uma lacuna entre a AntropologiaCultural e a Sociologia. Com efeito, ela se encontrava no departamentode cincias sociais de muitas universidades americanas. KurtLewin chegava a considerar que cincias como a Sociologia ou aPsicologia deveriam car vontade para recorrer a construtos deoutras cincias se estas se adequassem s questes com as quais elaslidavam. E recomendava que, para ter idias, no se lesse Psicologia,mas sim Filosoa, Histria, Cincia, poesia, romances e biograas.
Assim, a Psicologia Social nesta tradio seria uma cincia-ponte,porque recorre interdisciplinaridade no apenas para combinarconhecimentos de vrias disciplinas sobre um assunto, mas porqueconstri conhecimento novo sobre um tema especco usando oconhecimento de outras reas (Moscovici; Markova, 2006, p. 40).Isso teria acontecido no estudo de fenmenos como a inunciasocial, a inovao e a conformidade.
A diferena fundamental entre as duas tradies seria a
concepo e o lugar do social: na tradio de origem americana,
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o grupo seria um agregado de indivduos, enquanto que na euro-
americana, o grupo, ou a cultura, implica interdependncia, dinmica
interna homeostase e interao, um sistema vivo feito de foras
interativas que buscam um equilbrio. O emblema de cada uma seria,
respectivamente, o conceito de atitude e o de grupo social. Moscovici
e Markova (2006) exemplicam ainda com tericos importantes de
cada uma, Floyd Allport e Kurt Lewin, entre outros.
Esta interpretao da histria da Psicologia Social, situando-a
em vertentes que se entrecruzam, uma das quais a coloca na seara
das cincias sociais, parece avanar um pouco mais com relao
quela expressa por Farr (1994), que separava a Psicologia Social
psicolgica e a sociolgica quase como duas entidades existentes
na realidade, e no como fruto de uma angulao da histria
da Psicologia. Ademais, as duas tradies no se sucedem,
mas se entrelaam. Ambas as leituras, contudo, coincidem no
reconhecimento da insularidade da psicologia, como diziaDuveen, e insistem na existncia de uma Psicologia Social que se
lia e se mistura s cincias sociais. Ela conrma a posio da obra
de Moscovici. Para alm do grupo, existe a sociedade mais ampla,
colocada no territrio da determinao central da representao.
Jodelet (2001) sistematiza esta idia ao explicitar a armao de
Moscovici de que toda representao representao de algum e de
alguma coisa, indicando que esse algum integra pertenas sociaisvariadas, se situa num tempo histrico, numa sociedade dada, em
um lugar dela que faz parte da forma como ela se organiza, e que o
coloca em contato com formas de comunicao, institucionalidades,
ideologias, culturas especcas. Isto, nos estudos de representaes
sociais, contemplado pelo estudo dos contextos (Jesuno, 2001), os
quais compem uma espiral que vai do mais imediato, situacional,
at o mais remoto, ligado ao passado histrico e ao imaginrio
coletivo (Arruda, 2005)
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Moscovici: pensando a vida, a natureza, a sociedade
A obra de Serge Moscovici se pauta pela interdisciplinaridade,
j observada no seu extenso percurso de reexo sobre a relaoentre os humanos e a natureza, para alm das teorias psicossociais
que elaborou. Naquele percurso, no hesitou em dialogar com a
Biologia, a Gentica, a Histria, a Antropologia (Moscovici, 1972,
1977), mostrando como a relao entre a natureza e a humanidade
tem uma complexidade que escapa viso da dominao da natureza
pelo homem. Da mesma forma, ele responsvel por uma teoria
que vem contrariar tudo o que se estudava sobre inuncia socialat ento na Psicologia Social. A rea se interessava sobretudo pela
presso conformidade, pela inuncia da maioria, e a resistncia
posio predominante era colocada no terreno do desvio. Moscovici
prope observar o problema pelo avesso: em contraposio ao
interesse pela permanncia, pela preservao da continuidade, toma
o ngulo da mudana, no qual a inovao pode acontecer a partir da
ao de minorias ativas. Os desviantes seriam, ento, possveisinovadores. Pensar o social sem divisrias disciplinares para pensar
a mudana, , portanto, uma marca da sua reexo que se prolonga
na TRS. Moscovici tanto um psiclogo social quanto um pensador
das questes da vida, do social e da natureza, como bem descreve o
ttulo do livro em sua homenagem (Buschini; Kalampalikis, 2001).
No poderia ser diferente, uma vez que, para ele, estas dimenses se
interpenetram. O leque da interdisciplinaridade pode variar segundoa temtica que ele traz cena. No texto escrito com Markova
(Moscovici; Markova, 2006, p. 39), sobre o qual se apoiou at aqui
esta reexo, ele retoma, ao analisar a construo da Psicologia
Social moderna, o argumento de Lewin sobre cincias como a
Sociologia ou a Psicologia, citado anteriormente.
Em suma, o fato de que a TRS seja uma teoria de interface ou de aliana entre a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia, j
indica que nela, como no pensamento moscoviciano de forma geral,
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no se trata de um encontro fortuito ou complementar de disciplinas,
mas de reas cujo ntimo parentesco incontornvel para entender
a produo do conhecimento tal como Moscovici prope: deslindar
a construo do pensamento cotidiano pelos seus mltiplos autores,
encontrar os processos que esto na base da mudana do pensamento
e das prticas sociais.
Falar em autores, ou atores, implica falar em suas vrias
inseres social, histrica, poltica, cultural etc. E aqui o social se
amplia, aumentando o foco progressivamente doclose sobre o entorno
imediato at atingir uma grande angular. Estas inseres compem oacervo de onde surgir a representao que qualquer grupo elabora;
elas so reordenadas, negociadas, recortadas e recombinadas para
congurar o pensamento. Sem conhecer as razes do pensamento dos
grupos e, por conseguinte, dos sujeitos o que remete sociedade
como um todo e seus mltiplos recortes torna-se impossvel
chegar compreenso do seu processo de construo da realidade,
de elaborao do conhecimento na vida diria. Fatores como amemria, a experincia, o olhar, cuja incidncia para a produo
das representaes fundamental, so multiface, situados tanto no
espao social quanto no individual. O(s) espao(s) social(is) pelos
quais cada um transita marcam-no, mas tambm (so) tingido(s)
pela sua tonalidade especca, fruto do encontro e da negociao
das diversas procedncias do pensar. impossvel negar o peso da
comunicao, da troca, do confronto de idias para produzir umarepresentao social. O ambiente pensante em que vivemos, nas
sociedades contemporneas, com a velocidade vertiginosa do uxo
de informaes, estimula esta produo, porque preciso falar do
que todos falam, mostrar que se est por dentro.
O ser humano, portanto, no pensa isolado, desligado do
social. Ele pensa atravessado por este. Ele carrega no seu pensar amarca dos grupos que incidem sobre a sua experincia, sobre a sua
identidade, bem como a marca da histria, da poltica, das divises
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sociais e tantas outras, e isso no se congura como uma simples
retraduo na linguagem daquele grupo. A inveno do pensamento
no dia a dia mistura, portanto, elementos que envolvem interesses,
exerccio do poder, desejo de aceitao, eventuais questes
circunstanciais, compondo um novo desenho traado pelos diversos
atravessamentos do social os mais prximos, os mais distantes
que vo da experincia vivida necessidade de comunicao, de
reconhecimento, passando pela presena ou pertena aos grupos
sociais, valores e interesses do grupo, bem como pelo momento
histrico, a posio sociocultural, geogrca, tnica, religiosa, at asituao poltica mais prxima e mais geral no obrigatoriamente
nesta ordem. Em ambos os casos, trata-se do social mais, ou
menos, encarnado nas pessoas e nos grupos sociais que a atravessam
e que ela atravessa, ou, como se costuma dizer, tanto no nvel micro
como no macro. As representaes sociais seriam para sintetizar e
simplicar uma forma de manejo do macro (entre outras coisas) no
nvel micro. Do ponto de vista psicossocial, elas trazem para o registrodo cotidiano: relaes, concepes, crenas, imagens e afetos que a
sociedade abriga e veicula por perodos longos e outros no to
longos vertendo-os na construo deste cotidiano. Elas trabalham
no apenas o que provoca o conhecimento, o objeto que instiga a
(re)construo, mas os diversos os que tecem a organizao social,
a urdidura das culturas, os andaimes do simblico, para acolher
na rede pr-existente de signicados o objeto ou a situao que seapresenta.
A necessidade e relativa facilidade do dilogo da teoria das
representaes sociais com as cincias sociais, desta forma, no so
circunstanciais, mas sim fator constitutivo da teoria: elas conferem
a densidade e o carter que ela possui. A TRS uma abordagem
de aliana, situada na fecundao entre a Psicologia e a Sociologia,em sintonia com o pensamento de Prigogine e Stengers (1997, p.
209), que o consideram um precursor da perspectiva da abertura das
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cincias imprevisibilidade e ao dilogo com um mundo aberto, ao
qual pertencemos e em cuja construo colaboramos.
Como seus tericos no cansam de armar, isso acontecea partir da viso da Psicologia Social como uma cincia social
(Castro, 2002), e como conseqncia, porque a TRS v o social
como caleidoscpico dotado de mltiplas facetas e inseparvel/
indistinguvel do indivduo ou, deveramos dizer, no hbrido
individuossociedade. Essa capilaridade permite hoje pensar o social
recorrendo metfora do rizoma, que projeta razes e caules em
todas as direes, indistinguindo-o no corpo da teoria.
O projeto epistemolgico que a teoria abraa, partindo do
pressuposto da construo social da realidade, est na base dessa
proposio. O m das dicotomias, que faz parte dos eixos da teoria,
estabelece o desbotamento da divisria indivduo-sociedade, que se
apresenta tambm sob a forma sujeito-objeto. Indivduo e sociedade,
sujeito e objeto, so duas formas de entender o comparecimento dohumano frente a disjuntivas colocadas pela sua condio: mais do
que duas faces da mesma moeda, so os do mesmo tecido. Da a
impossibilidade de estudar representaes sociais sem as cincias
sociais. Os contextos nos quais nos situamos nos constituem, e
nesta condio de seres contextuados que elaboramos nossas
representaes. Isso implica um entendimento hologrco de
pessoas, grupos e sociedade como um todo. No se trata de acumularuma lista de pertenas que nos percorrem, mas de entend-las como
forma de expresso articulada e semovente da sociedade em que
vivemos e da sociedade global: suas caractersticas contemporneas,
os interesses que a habitam, as posies que se aliam e se contrapem,
o complexo jogo jogado para a sobrevivncia no planeta hoje,
com suas caractersticas diversas e plsticas. A compreenso das
grandes linhas diretoras e demarcadoras desta(s) sociedade(s), bemcomo da porosidade entre elas, e das resistncias e alternativas a
elas indispensvel para perceber como as pertenas das pessoas,
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atravessadas pelas caractersticas mais gerais da organizao e
funcionamento da sociedade se articulam e negociam entre si e,
desta maneira, fazem a construo social da realidade. Em resumo,
voltando ao vocabulrio consagrado, para compreender o micro,
preciso conhecer o macro.
Construindo conhecimento novo usando o conhecimentode outras reas2
A relao entre Psicologia e Sociologia assunto de muitasdiscusses levadas a cabo por Moscovici. Depois de brigar no seio
da sua prpria rea para mostrar a incontornvel dimenso do social
na Psicologia em A mquina de fazer deuses(1988), ele reage ao
dogma anti-psicologista de que os fatos sociais no podem receber
explicaes psicolgicas. Mostrando ao mesmo tempo a relao
da Sociologia com a modernidade e o imprio da razo, advoga a
impossibilidade de separar as coisas: dicilmente os fatos sociaispodem ser analisados sem recorrer a noes psicolgicas, e as
teorias sociais recorrem a elas o tempo todo, mesmo sem reconhecer
isso. Mais uma vez Moscovici se adianta, introduzindo o discurso
sobre a falcia da modernidade e as armadilhas do racionalismo,
insinuando o que Latour (1994) iria denir como hibridismo em
Jamais fomos modernos.Ou seja, partindo do mesmo pressuposto
da relao intrnseca entre individual e social, Moscovici ressalta alia dimenso psicolgica dos fatos sociais e das teorias que tratam de
explic-los.
Em texto recente, Porto (2009) traz consideraes sobre as
dimenses objetiva e subjetiva da violncia e ressalta que, por um
lado, o carter objetivo do fenmeno dene a sua concretude pela
via dos registros e estatsticas, tornando-o inegvel; por outro lado,o carter subjetivo inclui o que diferentes indivduos e sociedades
reputam como violncia, e esta representao pode interferir na
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prpria realidade da violncia... (p. 149). Em uma pesquisa em
curso, que coordeno, sobre o universo do funkproibido no Rio de
Janeiro com jovens moradores de espaos populares, alguns deles
comentaram durante a entrevista que se sentem mais seguros nos
bailes funkna comunidade que frequentam do que em bailes de
pista, comerciais, porque conhecem as pessoas, e sobretudo porque
l o trco impede que haja confuso o fuzil faz as vezes de
segurana, ainda que no seja esta a sua funo primordial naquele
momento. O subjetivo parte da substncia do social, jogando sobre
ele uma luz que pode nos surpreender, iluminando-o por outros
ngulos.
Como esclarece Porto (2009), o carter quase tangvel que
podem ter as representaes sociais, segundo Moscovici, pode
torn-las/tom-las como realidade concreta, o que rearma o poder
das crenas, tendo sido o motivo da busca terica desse autor a
partir da experincia de vida sob o nazismo, confrontado pela crena
ento circulante na superioridade ariana. No exemplo acima, o fuzilobjetivaria a presena do trco no baile. Como um de seus emblemas,
ele ao mesmo tempo prestgio e perigo, conferindo aos meninos
que o carregam, uma aura que os transforma aos olhos das meninas
e da populao em geral. Mas no obrigatoriamente transmite o
sentimento de temor e insegurana associado violncia em toda
situao. Pelo contrrio, nesses testemunhos, ele identicado como
um elemento protetor, mostrando que, alm de uma representaohegemnica que o associa violncia, existe uma situao, um lugar
e um segmento em que ele pode no ser visto sob este ngulo.
[...] possvel supor que existam, por um lado, contextos (objetivos)mais ou menos favorveis ao desenvolvimento da violncia, e que,
por outro, o que representado como violncia (dimenso subjetiva)participe igualmente da realidade da violncia. Se determinados
contextos favorecem o desenvolvimento de manifestaes deviolncia, essa, uma vez posta em ao, manifesta aos atores o poderde sua utilizao. Nesse sentido, uma violncia que, inicialmente, se
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constitui a partir de um contexto propcio produz, ou pode produzir,a violncia como lgica de interveno. O que est em questono algo como o crculo vicioso da violncia, mas o fato (...)
de serem objetividade e subjetividade dois elementos interagindosolidariamente na constituio do fenmeno. (Porto, 2009, p. 149-150)
A partir da indicao de Porto, trago o exemplo de uma
pesquisa sobre imaginrio e representaes sociais do Brasil por
jovens universitrios (Arruda; Ulup, 2007) para ilustrar as cincias
sociais entrelaadas na TRS, trazendo a congurao do pensamento
social como a trama em que pertenas e inuncias sociais devariados nveis se conguram num desenho especco daquele
grupo, que revela como estas inuncias so atravessadas por afetos
e formas de saber tambm especcas. Como arma Thiesse (2001),
uma nao resultado de um longo processo de construo histrica,
cultural, social e poltica, processo esse que institui um imaginrio
e um sentimento de nacionalidade, os quais se expressam por meio
da elaborao de um conjunto de representaes sociais. Um pasexiste tanto na sua materialidade concreta quanto nas mentes e nos
afetos das pessoas. Desta forma, compreender a viso que tem dele
os futuros prossionais implica percorrer as suas representaes
sociais.
Brasil, brasis: as representaes sociais de jovensuniversitrios
O Projeto Imaginrio e Representaes Sociais do Brasil e
da Escola situa-se na vertente dos poucos trabalhos de Psicologia
Social voltados para o pensamento brasileiro a respeito da nao e
dos seus cidados, de Manoel Bomm a Dante Moreira Leite e at
hoje. Uma das questes que conduziu a pesquisa foi de investigar oque seria o Brasil para jovens iniciantes de cursos universitrios, em
pleno processo de globalizao liberal, nos anos 2003-4 (Arruda;
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Ulup, 2007).3 Foi utilizada a metodologia dos mapas mentais,
inspirada no trabalho de Milgram e Jodelet (1976) sobre os mapas
de Nova York e Paris.
Participaram 1.029 jovens das cinco regies do Brasil,
estudantes do primeiro ano de cinco cursos universitrios:
Enfermagem, Servio Social, Pedagogia, Medicina e Engenharia.
Inicialmente, desenharam um mapa do Brasil com o que imaginavam
encontrar-se a; deviam explicar o que tinham desenhado e responder
duas perguntas abertas: o que fazia com que tudo aquilo fosse Brasil
e o que diferenciava o Brasil de outros pases. Depois, outros mapasdeviam ser preenchidos com indicaes sobre aspectos culturais,
histricos, econmicos da renda, etc. Ao nal, deviam completar
frases iniciadas com o gentlico de cada Estado brasileiro, como:
cearense ...; gacho ... etc. Para ilustrar o que anunciei acima, vou
pinar alguns resultados referentes apenas ao desenho do primeiro
mapa. Parte desses resultados corresponde ao conjunto de 1.029
mapas e outra parte provm de trabalhos de mestrado realizados porjovens pesquisadoras do projeto. Num deles, foram analisados 140
mapas de estudantes do Rio de Janeiro (Cruz, 2006) e no outro, 177
do Par (Gonalves, 2008).
Na totalidade dos 1.029 mapas, alguns elementos chamaram
a ateno pela sua constncia. O primeiro foi a ausncia de pases
para alm das nossas fronteiras: o nico limite externo, quandohavia, era o mar. O contraste com pesquisa similar, levada a cabo
no Mxico (Guerrero, 2007), sugere o peso de circunstncias
polticas, sociais e culturais de cada pas sobre a maneira como
construdo ou imaginado por seus habitantes (Anderson, 1989).
Os jovens mexicanos desenham uma fronteira com os Estados
Unidos demarcada por muros, barreiras, armas, mulheres mortas e
at uma pirmide, inexistente na regio. J ao sul, com pases daAmrica Central a divisria quase ausente. O desenho expressa
uma situao de fato com relao a estas duas fronteiras, tingida
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pelo colorido da sua representao social: a divisa sob a forma de
muro, que inexistia naquele momento, mas j estava presente no
imaginrio dos jovens. Da mesma maneira o registro das mortes
de mulheres em Jurez, talvez como uma objetivao da violncia
ressentida pelos mexicanos naquela regio, em relao com o vizinho
do norte. A presena da pirmide na fronteira, que no um dado de
realidade, nos provoca a suposio de que, como um dos emblemas
da nao, ela demarca o territrio e sinalizaria a riqueza ao sul do
Rio Grande as tradies culturais mexicanas, apesar do trnsito em
busca do sonho americano. No sul do Mxico, por sua vez, o que se
v uma continuidade entre o Mxico e os demais pases de lngua
espanhola.
Quanto ao Brasil, aparece como um pas sem vizinhos, solto
no espao, cuja fronteira apenas o contm, fechado sobre si mesmo.
S o mar indica o contato com o exterior, como uma reminiscncia
do perodo da colnia. Com efeito, em pesquisa sobre a memria
do descobrimento do Brasil, levada a cabo no momento do 5Centenrio, a imagem mais associada a ele foi a das caravelas (S.
Oliveira; Prado, 2005), sublinhando o mar como a via de chegada
e sada. O Brasil comea no mar. Em nossa pesquisa, a imagem de
um pas descolado do continente domina a folha de papel, havendo
at desenhos em que ele aparece cercado de gua por todos os lados,
ocupando todo o espao da Amrica do Sul. Podemos nos perguntar
at que ponto a viso que a escola difunde no seria a maior
fonte de inspirao para este tipo de gurao, e acompanharia a
armao de Capelato (2000) a respeito do proverbial desinteresse
dos brasileiros pelos outros pases latino-americanos, relacionado
falta de um projeto unicador da Amrica Latina que envolvesse o
Brasil e fosse ao mesmo tempo poltico e identitrio. Cabe tambm
se perguntar o que acontece com esta representao social quando
a regio valorizada pela poltica externa brasileira, traz benefcios
econmicos e ganha maior visibilidade e interesse do pblico.
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O outro limite, a oeste, mostra um Centro-Oeste denido
nos mapas pela incompletude. s vezes, totalmente em branco, svezes com a ilustrao do Distrito Federal isolada no meio do nada.
Muitos armam desconhecer o que existe na regio. Impossvelno se remeter antiga representao, surgida no Brasil Colnia.Segundo Amado (1995), o interior, ou serto, denotava terras semf, nem lei nem rei: reas extensas, longe do litoral, de naturezaselvagem; as autoridades detinham pouca informao ou controlesobre elas. Aparentemente, a Marcha para o Oeste no se concretizouna representao dos estudantes: apenas Braslia tem registro nela. O
restante do Centro-Oeste continuaria como no passado: um grandeterritrio desocupado (Gonalves, 2008).
Por m, no que se refere ao conjunto dos estudantes, caberessaltar que o desenho do Brasil contm guras que retratamrepetidamente os seus problemas, numa viso crtica, mais, oumenos, acentuada segundo fatores que veremos mais adiante.
Esses elementos anunciam um pouco do que interessapara esta discusso: a conjugao dos contextos possibilitadapela Sociologia, as cincias polticas, a Histria, a Geograa indispensvel para a compreenso do que dizem os estudantes pormeio dos desenhos, e do olhar psicossocial, pelo qual transitam,alm da fora das crenas e graas ao poder da imagem, o lugardos vazios, a cor, a expresso dos afetos e os atalhos da identidade,
tonalizando vises no generalizantes do pas.
Outro exemplo desse olhar o que se observou a partir do
que os gegrafos denominam fator de proximidade (Saarinen,1973), segundo o qual o lugar de origem e adjacncias tem maiorprobabilidade de serem desenhados num mapa feito de memria;como so mais conhecidos, aparecem com mais detalhe e propores
aumentadas. Isto se conrmou em uma parte dos mapas, porm couclaro que a proximidade geogrca no d origem a um simples
estoque de conhecimentos, mas atravessada por afetos, que podem
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se expressar no apego ao lugar, num sentimento de territrio, que
vai alm da mera demarcao espacial (Gimnez, 2000), chegando
a compor uma marca de identidade.
Passo ento ao que tm em comum os estudantes paraenses
e cariocas, a partir dos dados de Gonalves (2008) e Cruz (2006).
Para comear, dois elementos de estruturao dos mapas: a forma e
a lgica de organizao. A forma do pas para ambos prxima
dos mapas ociais e ao que se v nos manuais escolares, porm com
as caractersticas j comentadas de um grande espao pairando sem
razes sobre a folha branca. Quanto organizao dos contedos,ela segue duas lgicas: uma regional, que distribui os desenhos em
consonncia com as regies geogrcas, respeitando o que rezam os
manuais escolares, e outra desterritorializada, em que os desenhos
no guardam correspondncia com o lugar onde so colocados,
podendo indicar caractersticas gerais do pas, como uma casa,
um lar... porque o Brasil o nosso lar... (estudante de Pedagogia,
Rio de Janeiro), ou panela vazia... porque existe muita fome emisria (estudante de Pedagogia, Par). A distribuio dessas
lgicas praticamente a mesma nos dois Estados: entre dois teros
e trs quartos dos mapas so desterritorializados, sendo o restante
regionalizado. Na verdade, essas duas lgicas recobrem duas vises
do Brasil: uma apoiada na diversidade das regies e a outra no
que caracterstico do Pas como um todo (Cruz, 2006). Contudo,
ambas so atravessadas por uma avaliao dos seus componentes,tendendo a ressaltar positivamente os aspectos naturais, por um lado,
e, por outro, a arrolar uma srie de problemas socioeconmicos,
evidenciando mais um contraste estruturante do Pas, desta vez entre
natureza e sociedade.
No Par, a lgica desterritorializada corresponde aos cursos
de Servio Social e Pedagogia, enquanto a regionalizada, aos cursosde Engenharia e Medicina. Quanto aos elementos desenhados, os
alunos de Medicina deram maior destaque aos elementos naturais,
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enquanto os de Servio Social, aos elementos humanos, apontandopara aspectos vinculados s respectivas carreiras como terreno deancoragem.
Igualmente comum a dupla viso do Sul. Por um lado,ela minimalista, o que no se expressa verbalmente, mas simgracamente: em vrios mapas ele aparece espremido, reduzido, ousem a presena do mar, ou ainda sem nenhum contedo desenhado,podendo combinar mais de um desses aspectos (Fig. 1 e 2). Poroutro lado, h desenhos que sublinham a sua diferena com o resto
do Brasil por meio do clima frio, da populao de origem europia,da menor desigualdade e maior democracia.
Figura 1Sul minimizado Estudante de Engenharia
Estado do Par
Figura 2 Sul minimizado Estudante de Servio Social
Estado do Rio de Janeiro
A oresta amaznica, ltimo rinco da vida selvagem,ltima fronteira de mata virgem, tem grande presena nos mapasdos paraenses e cariocas, e, para ambos, riqueza natural sob risco
de extino; mas, entre eles, h nuances. Os estudantes paraenses,mais numerosos a desenh-la, apresentam uma viso mais prxima,
quase vivencial. Ela constitui para eles, ao mesmo tempo, um
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ecossistema integrado por rios e matas, fonte de biodiversidade e
de minrios, e um espao que se revela num cotidiano especco,
com crianas que vo escola de barco, por exemplo, alm de ser
um smbolo da nacionalidade. Outra nuance se refere beleza da
oresta, smbolo de beleza e uma fonte de vida (estudante de
Pedagogia, PA), que s mencionada pelos paraenses. O fator de
proximidade parece se conrmar e se revestir tambm das tintas
da identidade; isso corresponderia s praias do Rio de Janeiro, que
foram superlativizadas pelos estudantes desse Estado. A natureza,
portanto, mantm-se rme no rankingdo imaginrio dos dois gruposde universitrios, por vias diversas.
O territrio nacional estaria, assim, delimitado segundo uma
viso singular dos pontos cardeais: a leste, pelo mar; ao norte, pela
oresta; a oeste, por um espao opaco ou fracamente identicado,
nalizando ao sul com um espao reduzido ou marcado pela
imagem de Um Brasil diferente (Martins, 2005) que sistematiza o
imaginrio sobre essa parte do Pas (Oliveira, 2007). Tal distribuio
acaba por desenhar o Brasil como a conjugao litoral-interior,
tendo este um triplo desdobramento: a mata, o campo e o serto,
localizado na Regio Nordeste.
A representao hegemnica, como denomina Moscovici
(1988), o que mais se aproxima, na traduo na TRS, da
representao coletiva conceituada por Durkheim: o Brasil
est cercado de natureza por todos os lados, guardando ainda
aparentemente a denio de pas de riquezas naturais privilegiadas.
Porm, esta representao, que nos acompanha desde a carta de
Caminha, no to uniforme nem to inescapvel quanto parece. O
estudo dos mapas mostrou como, a respeito desse mesmo objeto
o Brasil , convivem representaes hegemnicas e representaessociais especcas de grupos ou segmentos, no caso, estudantes de
regies diferentes e at de cursos diferentes.
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Figura 3 Brasil dividido Estudante de Engenharia Estado do Par
Neste sentido, chamam a ateno de imediato, entre os
desenhos feitos no Par, aqueles que dividem o Brasil em dois
Norte e Sul seja por meio de uma linha demarcatria, uma barreira,ou um espao em branco, seja pela disposio dos desenhos no
interior dos mapas. Embora no sejam a maioria, eles mostram
uma diferena sobretudo nas formas da riqueza: acima, a riqueza
natural; abaixo, a riqueza nanceira, simbolizada pelo cifro, por
exemplo. O contraste uma das formas de estruturao dos mapas e
da representao do Brasil, de modo geral, e no faltam indicadores
para conrm-lo, mas o que intrigante o registro de uma barreirafsica (Gonalves, 2008, p.75) que parece objetiv-lo e remete
histria das relaes entre a Provncia do Gro Par e o resto do Brasil.
Os universitrios expressaram indignao pela no participao nas
riquezas produzidas na regio um lugar de riquezas, mas excludo
do Brasil (estudante de Engenharia, PA) e pela destruio da
oresta. O presente parece reforar a possvel memria coletiva
[que suscitou] uma predisposio signicante que resultou em
mapas separados (Gonalves, 2008, p.76), semelhana dos mapas
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de Paris recolhidos por Milgram e Jodelet (1976), que apresentavam
s portas da cidade a barreira dos fazendeiros (fermiers gnraux),
desaparecida no sculo XVIII.
Ainda sobre a possvel permanncia da representao do Brasil
como paraso terrestre pela sua natureza, ca claro que, embora a
imagem idealizada continue a ser evocada, no se trata mais de uma
natureza intocada. O desmatamento, as queimadas, a soja, na Regio
Norte, e a poluio e a urbanizao desordenada, na Regio Sudeste,
revelam que a viso da natureza tem dois lados: o do desejo (ou ser
do clich?) que a instituiu em smbolo do Brasil, marca identitria,ancorada no passado, e o do conito na realidade do tempo presente,
com as conseqncias do progresso e das polticas, desembocando
em problemas, alguns semelhantes e outros especcos para cada
regio. A violncia, por exemplo, tem a ver com o trco de drogas
e a misria no Rio de Janeiro. J no Par, est presente sobretudo nos
conitos agrrios, na luta pela terra, na fronteira com a Colmbia. A
sensibilidade aos problemas, por sua vez, apresenta diferenas entreos cursos, no Par. Os estudantes de Servio Social manifestam-
se mais sobre os socioeconmicos, enquanto os de Medicina e
Engenharia, sobre os relativos natureza.
Figura 4 Cenas de violncia Estudante de Enfermagem Estado do Par
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Figura 5 Cenas de violncia
Estudante de Pedagogia Estado do Rio de Janeiro
ltimas palavras
Aps estes exemplos, ca claro que a comparecem tanto amemria coletiva remetendo a fatos e crenas originados na nossahistria quanto o peso da estrutura econmica e social do Brasil
e as polticas que a sustentam, com os problemas e conitos que
provocam. Os estudantes mostraram em seus mapas, ademais, umaviso que exprime o olhar situado no contexto geogrco e culturaldeles. Por ltimo, para entender a maneira como o Brasil imaginadopor eles, no se pode contornar o seu atravessamento pelos afetos.O exemplo dos paraenses feliz para mostrar o entrelaamentodo social e do psicolgico. O sentimento de distncia, excluso eespoliao que vrios deles expressam denuncia o lugar de onde
falam, e parece ser o produto tanto dos dados de realidade relativos explorao dos recursos naturais da Amaznia quanto da herana
de uma histria complicada das relaes entre o Par e o resto doBrasil. Desta forma, se a histria, a poltica, a economia esclarecem aorigem de mitos e crenas que ainda se manifestam quanto ao Brasil,a representao social do pas integra a tambm a Sociologia, otempo presente, vivido e veiculado pelas instituies produtoras
de subjetividade, como a escola e os meios de comunicao, numtecido bem urdido e denso, entremeado dos afetos que este conjuntode fatores ajudou a criar. A representao social do Brasil um
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amlgama de vrias camadas de pensamentos e afetos, originadas
em contextos e momentos diversos da existncia do pas.
Por m, ressalto ainda o fato de que, mesmo se um pas ,como acredita Anderson (1989), uma comunidade imaginada, asua representao se relaciona tambm com prticas, tanto aquelasque difundem a representao ocial, como as educativas e as queimplementam as polticas pblicas, quanto aquelas exercidas pelaspopulaes que o habitam. Os estudantes do Rio de Janeiro falam deprticas da vida urbana na metrpole litornea, prticas de lazer, de
sociabilidade, experincias que lhes so familiares e que informamo seu olhar. O mesmo acontece com os paraenses, a partir de outrasprticas e experincias, como as da vida ribeirinha. O olhar informadorecorre, assim, experincia, s representaes hegemnicas, aosconhecimentos prvios para elaborar a representao social. Esta,uma vez delineada, entra em jogo como uma rede de signicadosque se torna manejvel, ajudando a situar-se no mundo, e a falar do
Brasil. Mas tambm ajuda a agir a partir dessa representao. Masisso j seria assunto para outro artigo.
Resumindo, para ressaltar a concepo de social que habita aabordagem psicossocial da teoria das representaes sociais, o socialaqui no um elemento de circunstncia, uma varivel no processode representar. Ele est embutido em todo o processo, porque ele constitutivo do humano e do pensar. Ele dotado de uma dimenso
rizomtica, na medida em que tanto contempla a interao imediata,face a face, entre os humanos, quanto as bases da formao socialque permeiam os humanos, e difcil deslindar essas esferas, a no
ser em termos conceituais, uma vez que a prpria interao face aface carrega as marcas sociais, histricas, culturais e outras de quemnela participa, ainda que boa parte disto no seja consciente. Estaconcepo do social, que Oliveira (2003) requeria da TRS, tem-na
tornado efetiva para a reexo sobre inmeros problemas trazidospelas reas aplicadas da Sade, da Educao, e, agora, tambm de
outras que vo se aproximando dela.
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A teoria psicossocial das representaes sociais no se
considera uma teoria acabada. Na sua concepo, j Moscovici a
deniu como uma teoria aberta para permitir que a complexidade do
seu objeto pudesse receber o tratamento necessrio, o que, por si s,
um processo longe de se encerrar. Ela se desenvolveu bastante em
quase meio sculo de existncia, gerando at vertentes diferenciadas.
A mudana, o Graal da teoria, contudo, cobra a busca incessante. A
proximidade e o dilogo com as outras cincias sociais parte desse
processo.
Notas
1 Para uma discusso a respeito da Psicologia Social e Sociologia, remeto
a S (1998) e sobre a relao entre Sociologia e representaes sociais,
a Doise (1986), Jodelet (2009) e Porto (2009), no sem antes retomar
algumas reexes de Moscovici (1988) e Moscovici e Markova (2006)
sobre o encontro (e desencontros) dessas duas reas.
2 Tomo emprestada aqui a idia de Moscovici e Markova (2006, p. 40)
para caracterizar a interdisciplinaridade, mencionada anteriormente.
3 Projeto Imaginrio e Representaes Sociais do Brasil e da Escola,
realizado no quadro do grupo de trabalho Imaginrios Latinoamericanos,
do Laboratrio de Psicologia Social, Maison des Sciences de lHomme,
Paris, com nanciamento da Fapesp, Fundao Carlos Chagas, apoio da
Fundao Jos Bonifcio (UFRJ) e bolsas de iniciao cientca CNPq.O projeto executado no Brasil foi levado a cabo tambm no Mxico,
com o mesmo instrumento e pblico semelhante.
Theory of social representations and social sciences: transit and
crossings
Abstract:This text intends to pinpoint the relationship between thepsychosocial theory of social representations by Serge Moscoviciand the social sciences, based on the characterization of this theoryas an interpenetrative approach between psychology and sociology.
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Firstly, the transit between psychology-social psychology andsociology will be briey presented as one of the elements that explainthe intertwining of the Theory of Social Representations (TSR) and
social sciences. Next, it will be indicated how this intertwining ispresent in Moscovicis approach and how the TSR cannot escapeit. The authors argument is that the relationship between these twoelds is based on the conception of the social in Moscovicis thought,which does not neglect the importance of psychological aspectsfor social facts as well. The text concludes with some examples ofresearch works that illustrate this point of view.
Keywords: theory of social representations; social sciences;
crossings.
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