Andamento duração tempo

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1 Andamento, duração e tempo-espaço 1 Contraponto de ciclos em Debussy Antonio Herci sp, junho, 2011 Consideremos, em primeiro lugar, que Debussy é muito preciso nas relações que estabelece para o sentido, ou seja, as relações entre (a) o símbolo ou signo (em seus vários modos de ocorrer: a partitura; o acorde; o som) e (b) a referência (o dedilhado e o movimento; a superposição harmônica e contraponto radical de palestrina desfigurado; o mar. Respectivamente.). Seria, portanto, apropriado partir das figuras ou imagens do próprio Debussy, como ocorrências [ou menções] de figuras musicais ou termos. E tentar entender a descrição que fazem ou a interpretação que propiciam da temporalidade. O que de expansão ou contração se experimenta, diante do andamento constante do tempo ou da música, em um tempo subjetivamente experimentado, como uma sensação interior? Se há esse tempo individual, ele pode ser transmitido e compartilhado entre alguns homens, saindo da linguagem privada? Ou seja, esse tempo é ao mesmo tempo subjetivo, mas subjetivo da mesma forma para todos? Então a questão é se Debussy consegue fazer com que esse tempo pessoal e subjetivo possa ser tocado por uma linguagem; que possa induzir os ouvintes a esse tempo ao mesmo tempo subjetivo e objetivo: individualmente (ouvindo somente e puramente) e coletivamente (todos estariam ouvindo ao mesmo tempo e vivenciando o mesmo tempo quando ouvindo somente e puramente). Podemos, assim, considerar os seguintes aspectos: os andamentos fixos [tempo do compasso, tempo físico do metrônomo, regência e determinação da variabilidade universal do andamento etc.] e, por outro lado, como se dá em nossas idéias a expansão ou contração temporal diante desses rígidos padrões de condução coletiva de um mesmo tempo: o do andamento, que se presume sempre respeitado pelas performances. 1 Comentários ao texto de Eduardo Socha: Duração bergsoniana e continuidade narrativa em “La Mer”. In: Ensaios sobre música e filosofia. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, pp. 223-236, 2007.

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Resposta a um colega filósofo da música

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    Andamento, duraao e tempo-espao1 Contraponto de ciclos em Debussy

    Antonio Herci sp, junho, 2011

    Consideremos, em primeiro lugar, que Debussy muito preciso nas relaes que estabelece para o sentido, ou seja, as relaes entre

    (a) o smbolo ou signo (em seus vrios modos de ocorrer: a partitura; o acorde; o som) e

    (b) a referncia (o dedilhado e o movimento; a superposio harmnica e contraponto radical de palestrina desfigurado; o mar. Respectivamente.).

    Seria, portanto, apropriado partir das figuras ou imagens do prprio Debussy, como ocorrncias [ou menes] de figuras musicais ou termos. E tentar entender a descrio que fazem ou a interpretao que propiciam da temporalidade.

    O que de expanso ou contrao se experimenta, diante do andamento constante do tempo ou da msica, em um tempo subjetivamente experimentado, como uma sensao interior?

    Se h esse tempo individual, ele pode ser transmitido e compartilhado entre alguns homens, saindo da linguagem privada?

    Ou seja, esse tempo ao mesmo tempo subjetivo, mas subjetivo da mesma forma para todos?

    Ento a questo se Debussy consegue fazer com que esse tempo pessoal e subjetivo possa ser tocado por uma linguagem; que possa induzir os ouvintes a esse tempo ao mesmo tempo subjetivo e objetivo: individualmente (ouvindo somente e puramente) e coletivamente (todos estariam ouvindo ao mesmo tempo e vivenciando o mesmo tempo quando ouvindo somente e puramente).

    Podemos, assim, considerar os seguintes aspectos: os andamentos fixos [tempo do compasso, tempo fsico do metrnomo, regncia e determinao da variabilidade universal do andamento etc.] e, por outro lado, como se d em nossas idias a expanso ou contrao temporal diante desses rgidos padres de conduo coletiva de um mesmo tempo: o do andamento, que se presume sempre respeitado pelas performances.

    1 Comentrios ao texto de Eduardo Socha: Durao bergsoniana e continuidade narrativa em La Mer. In: Ensaios sobre musica e filosofia. So Paulo: Associaco Editorial Humanitas, pp. 223-236, 2007.

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    (1) Quanto questo bergsoniana, propriamente dita, tenho pouco a dizer, pois

    conheo pouco. Como observao geral, entretanto, no concordaria com a abordagem a partir da seguinte constatao:

    o problema decorre do fato de que nossa percepo de tempo est impregnada de imagens visuais, relativas ao domnio da homogeneidade do espao, inibindo por vezes a constatao do fluxo heterogneo da durao.

    O problema, podemos dizer, supor que existam temporalidades prprias a cada coisa por nossa ateno estar nisso ou naquilo mais detidamente. Ou seja, mais atenta aos relgios ou s fortes emoes. E supor que possam ser reunificadas e compartilhadas pelos homens atravs de um mesmo algoritmo, seja ele sublime ou no sublime: a msica e suas maravilhosas relaes, por exemplo.

    Isso se torna um problema no por discordarmos dessa afirmao, mas por podermos afirma-la em qualquer situao, inespecificamente com o tratamento em msica, ou numa anlise sobre Debussy. Ou seja, por ter o que se costuma chamar de consistncia trivial.

    Por exemplo, veja esta afirmao:

    [Adorno] afirma que certos movimentos sinfnicos de Beethoven, como o primeiro da Quinta e da Stima, do a impresso de que no duram sete ou quinze minutos, mas se bem executados duram apenas um nico instante

    Assim como um belo entardecer, uma linda companhia e um clima romntico. O motivo mais trivial de confrontao juvenil com seus pais: a perda do tempo.

    Podemos estabelecer um tipo de discurso em que fica indiferencivel a intemporalidade em Debussy ou de uma tarde, mos dadas e um grande amor, que tambm contraem ou distendem o tempo, ou quando este distrado, ou distratado. Tudo seria a expresso da verdade que o autor [e Bergson] queria afirmar ento. Mas no avanou muito na compreenso de como isso ocorre na msica de Debussy, a no ser que parte de um sincronismo sutil.

    Portanto, acho que, tendo em vista a originalidade e maturidade das idias apresentadas no texto [ou seja, sobre as relaes entre durao e o andamento como tempo-espao sonoro], voc poderia ser mais explcito quanto ao que exatamente sugere isso na msica de Debussy, pois seno tudo pode ser alegado fazendo tais volteios.

    Talvez a pergunta seja a seguinte: j se falou sobre o aumento do volume e do espao sonoro em Debussy, mas notamos tambm uma expanso e uma contrao temporal. Ela realmente se manifesta? Como operada ou experimentada?

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    (2) Outra questo que teria que ponderar justamente o pensar s na

    msica, j que parece evidente que Debussy quer que a comparemos com o mundo real, um MAR e inclinemos a imaginao a uma msica quase programtica, no sentido que se pode dar a certa msica do sculo XIX. Que se tornou kitsch sugerindo mquinas de escrever, vos de morcego etc. Mas que tambm nobre nas mos de Schubert, por exemplo.

    Creio que voc pode dar uma olhada na Catedral Submersa (Debussy), que tem uma temtica muito semelhante, e acho que tem o germe de algumas ferramentas nessa msica que voc analisa. Adiante o porqu dessa msica ser exemplar.

    O mar e seu comportamento no mundo tema que est presente tambm ali: a catedral vive submersa nas guas, aparece e desaparece, lenda chinesa. Debussy est maravilhado nesta poca com a espontaneidade do trao do vaso chins. Mas no ainda com o paradoxo dessa espontaneidade: que o espontneo do trao trabalhado longamente por dezenas de anos de preparao [fazer um trao, para o chins, s com ps graduao]; e que expressa-se espontaneamente, DA MESMA FORMA e sem variaes, h trs mil anos [o padro de beleza deve, primeiramente, expressar a imutabilidade da tradio, para depois a originalidade do suporte, entre eles, seu autor].

    Neste caso, o que seria pensar s na msica?, se a todo momento a metfora com o mundo evocada para afirmar ou negar coisas do que se supe poder ouvir em separado.

    (3) Sobre harmonia, comecemos comparando os seguintes trechos:

    a) No existe harmonizao propriamente dita, mas relaes estruturais interdependentes em um contexto modal. []

    b) Mantm-se um conflito latente entre l bemol maior e si bemol maior, herdado do movimento anterior, e que apenas se resolve somente na ltima e terceira pea. []

    c) Ao longo das trs peas, diferentes modelos harmnicos caracterizam a entrada de cada seo, em que a tonalidade diatnica no aparece mais como material tonal preponderante, cedendo a um regime de ambiguidade. []

    Creio que voc se equivocou ao afirmar (a), pois, coerentemente afirmado em (c) o abandono da tonalidade no significa abandonar a harmonizao. Nem o fato de que uma harmonia seja orbital ou no, esfacelada em estruturas interdependentes ou no tiram o carter de ser harmonia.

    Como desenvolvo tambm abaixo, no existem harmonias funcionais ou tradicionais, mas uma harmonia tonal, descrita funcional ou por grado; assim como existem harmonia modais, que tambm podem, por sua vez serem descritas (ou analisadas) por funes ou graus da escala (grados).

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    J que se pode dizer que existem regras de harmonia modal, ou mesmo atonal, ou mesmo, em sentido que acho que o prprio Schoenberg admitiria, mas que Koellreutter formulou [e que mantenho], harmonia dodecafnica ou mesmo estocstica.

    No entanto, manter um conflito latente, resolver, manter ambiguidade [lembra das cadncias de engano?, ou as modulaes com ou sem preparao, ou a teoria das cambiatas ou notas de passagens, estes ltimos parte do contraponto.] tudo isso compartilhado pela tonalidade.

    Digo isso porque voc afirma que ele [Debussy] teria se insurgido contra a harmonia funcional, mas TODO O SEU VOCABULRIO um vocabulrio funcional: dominante, soluo, preparao e todo o arsenal o que no problema.

    Problema afirmar ao mesmo tempo que Debussy se insurge contra isso, mas ter exatamente um modelo disso para mostrar a confrontao a isso. Ou seja: diz que insurge contra, mas mostra um modelo funcional para dizer isso!

    Isso cairia no paradoxo, citada por Schoenberg em seu tratado, do que se pode chamar de som estranho harmonia? paradoxo pois seria estranho o fato de que harmnico, mas se harmnico, por que estranho???

    Por outro lado, como afirmar coisas como (c), afirmando coisas como (b)?

    Se ao longo das peas existe uma coerncia baseado na descontinuidade ou continuidade tonais e modais, existe uma preocupao em citar e situar, omitir e adiar o aparecimento das solues tonais, modais e contrapontsticas, e us-las, a sim, para um redirecionamento do tempo, ou uma multireferencialidade do tempo contnuo da msica como matria [o andamento].

    Existe um procedimento harmnico estrito e sob controle do compositor que inegvel! Acho que d mesmo para dizer que est a expresso um verdadeiro MODELO HARMNICO. Inigualvel em toda a histria da msica. A ponto de se poder dizer que Debussy no tem seguidores: tem imitadores.

    Retrica de frases curtas, por outro lado, no deixa de ser retrica, s que de frases curtas. Retrica que impede a fala, interrompe no deixam de ser retrica apenas por isso. Ento creio que voc deveria apresentar motivos mais consistentes.

    (4) Suponho que esta teoria sobre harmonia funcional seja a mesma

    compartilhada pelo prof. Safatle, por exemplo:

    Tudo se passa como se o tempo sasse do esquema que o aprisionava. Tal fenmeno possvel porque Debussy usa aquilo que chamamos de harmonia no-funcional.

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    Seguindo-se da as consideraes anlogas s que voc desenvolve. No entanto, no compartilho com essa linha terica, por no considerar que exista uma harmonia funcional, mas sim uma harmonia tonal [ou modal, ou atonal etc.] que pode ser descrita ou analisada ou racionalizada deste ou daquele aspecto. Harmonia no sentido de regras para conduo sobre uma tonalidade, ou modo, ou atonalidade etc.

    Harmonia funcional no um tipo de harmonia, mas uma ferramenta de anlise (ou descritiva), como afirma Schoenberg: no propriamente uma ferramenta usual de sntese.

    A batalha comea no legado do baixo cifrado, mas no por sua filosofia, mas por sua incapacidade expressiva simblica, j que no oferecia a discusso de regras de conduo, como os sistemas da derivados: a numerao dos graus em romanos e a funcionalidade. Quem concebe a tonalidade no logos, mostrar Schoenberg, est falando de ambos os sistemas, graus da escala e considerao de suas funes.

    Podemos nos referir a tais sistemas expositivos ou analticos (ou como outros querem: teorias) como sistemas coextensionais: falam das mesmas coisas, provam as mesmas coisas, produzem as mesmas verdades, mas por caminhos diferentes e independentes. Quem sabe mesmo incomunicveis [o que no quer dizer no traduzveis]. A modelagem descritiva de uma tonalidade no converte d maior em algo outro, nem altera as relaes sonoras para que se possa dizer musicalmente d maior.

    Ou seja, uma obra de Debussy pode ser perfeitamente analisvel sob a harmonia funcional ou por graus da escala, sem que isso queira dizer nada mais do que o sistema que se adotou, seus epiciclos e referentes, bem como seus salvamentos de fenmenos.

    Se a cabea do compositor funcional ou no depende da cabea do interpretador, j que vai interpret-lo sob um ou outro aspecto que lhe for mais conveniente.

    No existe um abandono da harmonia funcional, pois no existira uma aproximao. A briga da harmonia funcional ou tradicional muito localizada e mais do campo terico e pedaggico do que composicional, propriamenete dito [alm do Safatle, Mammi tambm compartilha, e outros]. Schoenberg trs isso tona como terico, mas no creio que tenha usado funes ou nmeros romanos como ferramenta de composio, a no ser em momentos sugestivos [muitas vezes dando um efeito semntico que podemos interpretar como ironia, p.ex. em certas solues de pierot lunar.]. Ou nas cnicas indicaes dos manuais de composio para leigos. Alguns meios fazem disso cavalo de batalha, mas no costuma ser um debate muito estimulante.

    Na prtica, acaba tendo muito mais a ver com contraponto: quem se desenvolveu mais em Palestrina acaba tendo mais facilidade com a Harmonia Funcional; quem se d melhor com o contraponto bachiano, acaba tendo mais afinidade com a harmonia dos graus, j que a inverso do acorde e a importncia do estabelecimento de um baixo fundamental ser coisa que

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    remontar ao iluminismo. O Koellreutter, por exemplo, simultaneamente autor de dois livros no Brasil, muito importantes no ps guerra: sobre harmonia funcional e tcnica da dodecafonia, o que poderia parecer estranho para muitos.

    Tambm no veria problema em ver Debussy cifrado em alguma revista pra violo. Sua harmonia no complicada, apenas intrincada e cheia de notas, mas quase invariante. Ele abusa dos acordes perfeitos, que se tornam dissonantes, pois SOAM juntos, mas no porque abandone o eixo tonal. H quem diga que existe nisso uma relao com Van Gogh, pelo uso das cores primrias puras, o que gerava tonalidades inusitadas nas superposies das pinceladas. Mas no me agradam tais tipos de metforas. Da, diriam tais metaforadores, a dificuldade em situar os dois como impressionistas ou no impressionistas.

    O que se pode dizer de Debussy que instancia determinadas solues harmnicas tonais em encadeamentos mais amplos, seja de multiplicidade exploradas nas prprias tonalidades, seja de interferncia de outras harmonias, como a modal, ou o contraponto livre de Palestrina.

    Satie tambm opera abusando dos trtonos e dos efeitos decorrentes de sua dupla soluo [tonalidades cujas fundamentais estabelecem um trtono entre si], obtendo alguns efeitos temporais interessantes, como por exemplo a sugesto do que hoje conhecemos por delay, ou efeitos que parecem vir de rotaes alteradas nos discos (Trois morceaux).

    Ocorre ainda o deslocamento temporal de solues. Veja que as cadncias de engano, como diz o nome, so ambiguidades, assim como as modulaes e sucesses atravs de dominantes de dominates, ou dominantes secundrias, amplamente utilizadas at ento. Debussy leva mais longe ainda tais ambiguidades, mas no se indispe sistemicamente contra a tonalidade, nem contra modos.

    Mais relevante do que isso, sobre harmonia funcional ou no, perceber que ele quebra regras importantssimas de contraponto: principalmente as sucesses de quintas e oitavas, ou quartas paralelas, sem medo de ser feliz. Se isso era tolerado no piano, pelas duplicaes do baixo e efeitos e acordes ou arpejos, nas condues orquestrais ainda questionvel como violao ou mau gosto. Acordes perfeitos indo para o agudo em paralelismo, ou quebrando-se em ciclos maiores ou menores atravs do tempo irregular.

    Mas principalmente passa a adotar determinadas regras de conduo que tem algoritmo prprio, ou seja, ao invs de seguir os padres de conduo do contraponto convencional (nota conta nota), seguem ciclos estotsticos (ciclos matemticos baseados em denominadores comuns e probabilidade): ciclo contra ciclo, que considero uma grande inovao de Debussy.

    A idia do ciclo estocstico vai ganhar independncia, ou seja, ser base de contraponto independende de uma sustentao HARMNICA ou de uma conduo NOTA CONTRA NOTA, somente a partir de dcadas subsequentes.

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    Quem mais ir explorar a raiz sugerida aqui por Debussy (segundo Ricardo Riseki) Bartok, que vai adaptar o sistema tambm dodecafonia atravs de relaes conhecidas do quadrado mgico.

    Tambm no podemos dizer que no existe harmonia, por no existir tonalidade, j que existem diversos tipos de harmonias [modais, atonais] e mesmo o que se pretende afirmar com harmonia discutvel, pois pode ter outro sentido para Debussy.

    Veja esta bela interpretao sobre Schoenberg:

    Funo tonal para Schoenberg envolve mais do que simples relaes entre acordes. Envolve sim uma rede de relacionamento bastante complexo entre notas, acordes e regies. Notas individuais atuam como elemento meldico capaz de expressar uma tonalidade, adquirindo deste modo sua funo tonal. Os acordes por sua vez, expressam sua funo atravs da sua fundamental. Ambos elementos, notas individuais e acordes, so includos na noo de regio tonal que considera segmentos escalares para estabelecer a relao entre duas ou mais tonalidades.2

    Ou seja, tem que deixar transparente o que se quer dizer com harmonia e funo.

    Para esta interpretao isso muito importante, pois cada sequncia meldica pode e isso encontra-se presente aqui o tempo todo, mais do que as simultaneidades, ter uma relao ambgua, ou tornar-se, no jargo lingustico, o que se denomina signo mltiplo, dentro da tonalidade e do ciclo. Ou seja, pode seguir duas linhas diversas de encadeamento lgico discursivo. No contraponto do ciclo contra ciclo, a isotopia do ciclo garante a convivncia de ambiguidades ou aparentes contradies tonais.

    Provavelmente dissolvem as aparentes contradies temporais, o objetivo do seu artigo. Pois atravs disso [contraponto de ciclos], possvel estabelecer uma dimenso temporal que sugira um novo tempo dentro do tempo, pois pode-se ancorar determinadas solues estranhas entre si [rtmicas, i.e. tercinas, contra qurtuplas, qtpl, etc], mas garantidas pela multisignificao, deslocada em ciclos que se encontram e se desenvoltram. (veja a seguir o exemplo das luzinhas da paulista)

    (5) Veja que tambm espacialmente a questo pode ser colocada, numa

    coextenso do que voc diz. No sentido de coextenso explorado no incio: a msica de Debussy, em certo sentido traduz os dois tempo e espao. De

    2 DUDEQUE, Norton. Schoenberg e a Funo Tonal. Revista eletrnica de

    musicologia [DEPTO DE ARTE - UFPR], v. 2.1, out. 1997.

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    forma peculiar parece que expressa uma grandeza s, que imiscui-se em ambos.

    O que parece nos impressionar, no mar, no exatamente o tempo extender-se ou no, mas, na sua beira (como parece que nos coloca o ambiente programtico da msica), o volume que pode ocupar, o tamanho e violncia de suas ondas e sua imprevisibilidade; ondas que no se ordenam, beleza e perigo que no se distinguem, mar que nos surpreende e nos arrebata para as entranhas.

    Debussy, apesar de usar e abusar do registro ppp-mp, tem uma exprema violncia, quando necessrio, para expressar-se. E acredito que esta violncia, j que estamos no campo das metforas, explode no acorde, a condensao temporal, mas explode porque EXPLODE: tem massa, matria, volume.

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    Luzinhas da paulista (sobre os ciclos estocsticos) Fique, se puder, olhando noite para as luzinhas piscantes da Av. Paulista

    para observar o efeito: o tempo parece adquirir vrias configuraes ao nos pontuamos por uma das luzes, ou por outra, ou acompanhar os perodos em que se encontram e como se encontram.

    Encontram-se em um mesmo ciclo, batem juntas por uma ou duas vezes, e pronto, l esto seus ciclos de novo independentes, mas precisos. Se falamos de 3 contra 4 contra 5 (uma pisca a cada trs, outra quatro e outra cinco segundos), falamos de solues que se encontram e desencontram periodicamente em ciclos mais ou menos fortes ou densos pelas suas coincidncias [cada sessenta ciclos, neste caso um minuto, tem um forte encontro, os de vinte menores etc.] que associado a determinados efeitos de soluo harmnica expandem ou contraem o sentido dessa resoluo, ou deslocam nossa referncia quanto ao valor absoluto de uma possvel unidade temporal, pois trabalham com dois planos: o do tempo do relgio/metrnomo/andamento; e o do tempo que presumimos ter que ocorrer na msica para que a soluo se d, neste caso o outro tempo sobre o qual fala.

    As ondas, nesse sentido em que voc coloca, apresentam ainda uma ordem individual, pois cada uma que olhamos, tem um ciclo linear; e por fim, notamos que vo superpondo-se em um ciclo, e voil: piscam juntas de novo. Por pouco tempo, de novo, s vezes uma s piscada e j desordenam de novo.

    O perto e o longe aqui em Debussy (e nisso voc tem razo), expressam-se temporalmente. Pois o perto oferecido como um correspondende proximidade e coincidncia dos ciclos, aumento do volume, invaso da praia, onde o tempo parece deslocar-se mais lentamente. O longe vai diluindo os ciclos, amainando o volume. Ou seja: descoincidncia do ciclo e difuso sonora; tudo parece que flui mais rpido imaginao.

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    Na pea para piano (Catedral Submersa) isso facilmente notado (e por isso disse para observ-la), pois o prprio dedilhado tem que ser estudado para dar conta de tais ciclos, j que muito difcil uma mesma mo sugerir dois ciclos diferentes. A exposio do tema, quando da emerso completa, feito numa sucesso de tempo homognea, acordes perfeitos, em fff; seguindo-se de uma multiplicidade de ciclos que sugerem sinos, coisas batendo ritmicamente, pulsases.

    Quando o tema entra e ocupa todo o ESPAO SONORO, tambm o tempo ANDA MAIS LENTAMENTE. Da a sbita impresso de que cada instante tornou-se ntido e mais lento, e o espao mais perto. So os rarssimos instantes, reza a lenda, em que a catedral se encontra em emerso completa. Ou raros instantes de maravilhas e coisas terrveis do tempo e espao do mar.

    Depois de observar o dedilhado da msica, observe [em algum vdeo] o movimento fsico da orquestra que toca La Mer, o vai vem dos arcos, as respiradas e ver que sugerem, ou mais precisamente, descrevem a mesma coisa. De onde vem a minha dificuldade inicial em pensar s na msica, ou imaginar o que seja o movimento puro. [Pensemos aqui na exposio do prof. Safatle sobre o movimento musical, na Unesp]

    O que seria includo, nestes casos todos, no MOVIMENTO PURO?

    Tambm os quartetos de corda do Ligeti, explicitamente trabalham com isso: expanso e relaxamento do tempo, por sugestes estocsticas.

    O primeiro aproxima-se dessa tcnica que Debussy desenvolve, o segundo a radicaliza atravs de funes matemticas. Pode ser citado aqui tambm talvez a mais radical de todas: a msica para 100 metrnomos. Que aproxima ocupao/desocupao com relaxamento/contrao do tempo magistralmente.

    Paro por aqui e aguardo a continuidade.

    Abraos e grato pela oportunidade da palavra

    Herci

    Junho/2011

    (1)(2)(3)(4)(5)(6)Luzinhas da paulista (sobre os ciclos estocsticos)