Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

download Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

of 43

Transcript of Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    1/43

     LNASPNPNMMMMMMMMMMMMMMMMMM

    Anarquismo NegroE MAIS TEXTOS DE LIBERDADE

    NEGRA

    ASHANTI ALSTON, AUDRE LORDE , ABAMOD E ALINE DIAS

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    2/43

    Pra começar...

    Este zine traz um compilado de cinco textos que possibilitam às

    pessoas a se aproximarem um pouco da luta anti-racista. Antes de tudo é

    um zine feito por uma pessoa negra e lésbica, recentemente anarquista,

    que transitou em espaços “de esquerda e anarquistas, percebendo que

    mesmo quando se diziam anti-racistas o debate de raça nesses espaços se

    limitava (ainda se limita) a um “não faça isso”, “não diga aquilo”, “não

    podemos esquecer dos negros”, mas raramente se aprofunda em

    questões pelas quais as comunidades negras sempre lutaram e até hoje

    lutam e tampouco as colocaram em suas pautas.

    Os textos que selecionei para são de contextos distintos: um texto

    introdutório escrito por mim, dois textos da poeta norte-americana Audre

    Lorde traduzidos pela Tatiana, uma militante negra e lésbica aqui do df,

    um texto que a militante Aline Dias publicou em seu blog e o texto do

    estadunidense ex pantera negra, Ashanti Alston. “Anarquismo Negro” sero título dessa publicação se deve somente à minha falta de criatividade no

    momento de fazer essa compilação, por todos os textos são importantes e

    trazem questões centrais.

    É importante escurecer aqui que parto do princípio de nossa

    sociedade só é dessa forma porque é racializada, sem a paciência

    pedagógica que exigem das pessoas negras de explicar quando é que o

    racismo acontece e delimitar suas margens. As pessoas que pertencem à

    hegemonia branca devem estar atentas e discutir sua branquidade, o ser-

    branco e sua economia, e como isso necessariamente engloba ter

    construído todas as outras comunidades como o outro, o não-ser; Sobre

    como exercem sua opressão sobre as pessoas não-brancas

    sistematicamente e como criar soluções que partam deles mesmos para

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    3/43

    diminuir essa forma de existir e atuar (caso realmente queiram ser anti-

    racistas). Precisam se reconhecer como opressores históricos e, por um

    exercício, tentar entender o quanto isso é pesado. Precisam aceitar o

    fato de sua comunidade ter fundado o racismo como ideologia estrutural

    da sociedade ocidental e de todas as suas instituições.  Não precisam

    andar do nosso lado ou dizer que nos compreendem. Primeiro por que é

    uma compreensão intelectual, que não passa pelas intensidades do corpo

    e segundo porque nossas dores não mudarão por isso. Dizer-se anti-

    racista sem modificar suas relações de poder ou perceber quando se

    apropriam de lutas que não deveriam protagonizar, apenas colando com

    pessoas negras, é um desfavor que muitas pessoas brancas têm feito pra

    nós.

    Minha escrita se concentra questões das comunidades negras e falo

    do lugar que ocupo: o de uma negra lésbica que nasceu e vive no brasil.

    Muito embora eu tenha conhecimento dos meus ancestrais indígenas, não

    me reconheço socialmente como uma pessoa indígena e não tenho o

    direito de falar como se me reconhecesse ou como se as pessoas o

    fizessem. Porém, as intersecções com as comunidades indígenas existem

    pelo contexto de nossa exclusão, escravidão, tortura, tentativa de

    assimilação, processo de genocídio, resistência e insurreição.

    Não sou uma especialista em história, nem na história da diásporaou da comunidade negra e não poderia esperar até que fosse pra escrever

    esse zine. Todxs somos capazes de falar minimamente sobre o que

    vivemos e esse é o trunfo do zine, afinal. Portanto, escrevo daqui, onde

    algumas coisas estão bem formadas e fincadas na experiência e os

    argumentos são capturados de uma forma mais solta, sem

    comprometimento com academicismos senão com as pessoas pra quais

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    4/43

    escrevo (todas as que se interessem) e com as pessoas com as quais

    compartilho parte da minha história, as pessoas negras. 

    Abamodá.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    5/43

    Introdução ou Nós: a comunidade que se reinventa.

    por Abamodá

    O navio partindoo garoto loirome dando um socooutro soco.baulejo no meu irmão,o homem me seguindo:- mulata, vem cá mulata.é o navio negreiro partindo...

    Aqui o Dendezeiro foi brotando,sob a intempérie da cruze da ciênciaDandara gritandomeu cabelo soltomeu irmão deixandoseu black crescer.

    Coloco o mariô na minha portaonde todas as pedras lisas dos homensse tornam pópara adornar minhas águas.

    São essas mulheresque vão me parir no futuroainda agora,que minhas pernas sobem

    essa avenida de asfalto.

    Iroco é a árvore que não falhaabraça tecendo o tempoe preparandonosso parto. 

    Na diáspora negra, em que cerca de oito milhões de pessoas foram

    escravizadas e traficadas para o continente americano, um processo muito

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    6/43

    particular de formação de identidade começou a tomar corpo. Meus

    ancestrais negros escravizados tiveram de sobreviver a um projeto de

    colonização que os desumanizava, tiveram de trabalhar duro sob tortura

    em terras invadidas e compartilharam seu sofrimento com a tortura e

    extermínio de grupos indígenas inteiros que viviam aqui. Os torturadores,

    estupradores e saqueadores continuavam suas ações em África e na Ásia

    enquanto, em uma parte seu ridículo pedaço de continente, a Europa,

    enriqueciam e se modernizavam: modernizavam suas cidades,

    desenvolviam a aclamada filosofia, faziam acontecer a história, a

    maravilhosa e sublime arte...

    Tudo o que conhecemos como Oficial - a história, a ciência, a

    filosofia, a arte, a política (da direitona à marxista e à teórica anarquista) -

    foi construído sobre os ombros dos grupos escravizados: alguns projetos

    de pessoas anti-racistas dizem que Marx era também um anti-racista por

    uma fala que ele fez contra a escravidão nos Estados Unidos, mas não se

    lembram de quantas vezes ele afirmou que a colonização teria sido um

    favor aos grupos “selvagens”  e “primitivos” porque, por meio desse

    processo, eles tiveram a oportunidade de sair de sua inferioridade

    profunda e “entrar na História” participando assim da revolução

    comunista que, na cabeça branca de Marx, estava pra acontecer e tinha

    como parte do seu processo toda a desgraça que estava acontecendo

    (com os outros, é claro) . Não podemos esquecer também da aristocracia

    produzindo teorias libertadoras enquanto alguém limpava sua merda,

    torrava seu café e produzia seu açúcar, adoçando sua vida na base do

    chicote.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    7/43

     Isso não significa que devemos simplesmente passar a ignorar essas

    produções e “áreas do conhecimento” ou crucificá-las, mas não podemos

    perder de vista o vínculo que elas têm com a escravidão, vinculo esse que

    a escola (cumprindo sua função original) nos fez e faz esquecer. Não

    podemos perder de vista que a famigerada escola, que vem do ócio grego

    dos sensacionais pensadores gregos só pôde existir porque enquanto tais

    pensadores iluminavam o mundo com suas ideias, alguém sob regime

    escravo construía sua cidade. O mesmo se aplica à arte, essa palavra que

    as pessoas usam de forma positivada: aquelas gigantescas esculturas de

    ouro e bronze, as gravuras de cobre, as pinturas imensas feitas pela

    sublime genialidade italiana, francesa, têm como matriz a tortura

    sistemática e a ideia de que todos os não-brancos e todos os grupos

    escravizados assim o eram porque mereciam. Esse “merecer” foi proferido

    por alguns grupos como a igreja católica, com suas invenções mitológicas

    racistas que nós na América Latina conhecemos bem e depois veio com a

    ciência que, sob a argumentação de uma busca empírica pela verdade,

    sustentou durante séculos teorias que “comprovavam” a inferioridade

    racial e teve como principal cobaia o corpo de mulheres e homens

    escravizadxs indígenas e negrxs. A ciência sim e não só a religião, como a

    maioria dos anarquistas apegados à “superioridade da razão humana” 

    adora proclamar por aí, teve como carne pra seu moedor a carne negra ea carne não branca. Mas não só ontem. Sem ignorar que o trabalho

    escravo ainda existe e escraviza centenas de pessoas para o sustento

    pretensamente sereno do capitalismo, hoje ainda é da nossa carne que o

    Estado tem fome. Mas porque não podemos esquecer disso? Para não

    colaborarmos com o nosso silenciamento, idolatrando alguns cânones

    como se o discurso valesse pela prática, como se o modo de fazer e as

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    8/43

    questões deixadas de lado não fossem importantes... Nós, que temos os

    corpos vulneráveis a baculejos e balas sabemos bem o quanto o corpo é

    importante.

    Assim, dentro de todas essas coisas oficiais, desses campos de

    estudo (filosofia, arte, biologia, história, física) e dessas construções

    ocidentais (a cidade, a moda, a globalização, a internete...) o racismo se

    manifesta. A pergunta que fica é: como nós estamos sobrevivendo? Como

    podemos sobreviver se quase tudo o que aprendemos tem como

    mensagem também a nossa inferioridade?

    Bom, nós sobrevivemos exercendo táticas, porque não temos o luxo

    de tecer estratégias, precisamos nos preocupar em ficar vivxs. Nossa

    capacidade de auto-cura, de retomar nossa potência, de resiliencia, tem

    acontecido desde que entramos nos navios-negreiros.

    Assim que chegamos, armamos revoltas e mesmo sendoseveramente castigadas formamos territórios livres, como o Complexo do

    Malunguinho, território quilombola que abarcava enorme região (ia dmais

    ou menos do meio de Alagoas até o meio de Pernambuco) e no qual havia

    um dos mais conhecidos quilombos, o quilombo dos Palmares. O primeiro

    território livre do império no continente americano do contexto

    escravocrata, segundo algumas pesquisas, foi o palenque de San Basílio,

    na colômbia. No brasil esses territórios autônomos livres foram

    construídos por pessoas escravizadas, muitas vezes junto com pessoas

    indígenas e alguns brancos excluídos. Tinham sua própria política, seus

    modos de fazer e de reinventar o que estava sendo aprendido às duras no

    processo de colonização e colocavam em prática suas táticas de guerra

    para se defenderem das invasões genocidas promovidas pelo império e,

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    9/43

    posteriormente, pelo estado. Além de processos de embate corporal e

    formação de territórios, várias outras táticas de sobrevivência e

    resistência foram e são construídas.

    Não que não houvesse, ou não haja hierarquia dentro dos

    quilombos. Alguns inclusive reformulavam e se organizavam como alguns

    reinados africanos e tinham sistemas rígidos de organização, mas que

    estavam indiscutivelmente distantes do sistema escravocrata imperial...

    Fantasiar sobre esses grupos é tão nocivo quanto negá-los e a mesma

    observação vale para as aldeias que se constituem hoje como territórioslivres diante da contínua chacina promovida pelo Estado: não somos nós

    que temos de validar os modos de se organizar de um grupo livre que se

    defende das investidas genocidas. Investidas essas não apenas de

    extermínio, de quanto nosso primo morre na porta de casa ou uma

    liderança indígena é assassinada por encomenda de empresários. Mas

    também investidas genocidas que usam meios simbólicos para nos

    silenciar, como a falta de discussões sobre questões raciais e disciplinas

    que abordem intelectuais negrxs e indígenas e temas relacionados à

    diáspora negro-africana nas universidades, nas escolas e o inocente

    protagonismo branco em espaços e manifestações de cultura negra

    (quando tivermos corpos de baile como o do Balé de Bolshoi

    majoritariamente negros, aí vamos conversar tranquilamente sobre o

    trânsito de pessoas de “todas as raças” em “todas as manifestações

    culturais” porque “a cultura é democrática”).

    Não podemos esquecer de que os terreiros de candomblé,

    construídos por nossas ancestrais para continuar cultuando divindades

    (Orixás, Mikisis e Voduns) às quais estavam conectadas, sofreram e ainda

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    10/43

    sofrem retaliações violentas. Até a década de vinte praticar rituais de

    matriz africana era expressamente proibido pelo estado e existe inclusive

    um acervo do museu da polícia, que mais poderia ser um acervo de arte

    religiosa de matriz africana, de tantos objetos de culto apreendidos nesse

    período. Hoje nossos ilês (casas), nossos terreiros são incendiados em

    manifestações de ódio da comunidade evangélica. Quando digo nossos

    terreiros é porque sou Omo Orixá (filha de Orixá) e, portanto, tenho um

    vínculo espiritual, histórico e afetivo com esses espaços. A capoeira, que

    também foi proibida durante muito tempo, mais do que uma forma de

    luta, expressa ainda hoje a insistente ideia de que viver o mundo de outra

    maneira é algo possível e necessário e que isso começa com nossos

    corpos... Um bom e simples exemplo, que estava sendo discutido em uma

    aula com uma professora negra militante, de como o Estado continua

    entendendo nossa liberdade corporal como uma ameaça, é o das raves e

    dos bailes funk. Enquanto as festas rave, onde publicamente se sabe do

    uso abusivo de drogas sintéticas ,têm segurança e grupos de saúde para o

    atendimento das pessoas que eventualmente passam mal ou têm

    overdoses, os bailes funk nas comunidades de morro, nas favelas e

    periferias são sistematicamente controlados pela força policial militarizada

    sob a acusação de ocorrerem em locais onde há uso de drogas e

    prostituição.

    Tanto a capoeira, quanto o jongo, o rap, o candomblé ,o funk...

    Todas essas manifestações falam do corpo como lugar de libertação, de

    reinvenção, afirmando um corpo-mente-espírito e refutando as teorias

    racistas da supremacia da mente sobre o corpo (que também são teorias

    machistas). Por isso, se pelo corpo nós fomos pegas, é por via do corpo

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    11/43

    também que vamos reinventando, fazendo oposições e também

    subversões do que nos é imposto pelo racismo, pela hegemonia branca.

    As histórias de nossas lutas dariam um enorme livro. Iríamos sem

    grandes empecilhos desde os quilombos de San Basilio, Palmares e Rio dos

    Macacos até o Partido dos Panteras Negras; de Dandara à Rosa Parks e

    Angela Davis, Lélia Gonzales, Nzinga, Mãe Stella de Oxóssi e Audre Lorde,

    encontrando os Zapatistas e o coletivo Maria Perifa no caminho e caindo

    num Avamunha com Mestre Pastinha...Só pra começar! Falaríamos

    também das lutas institucionais hoje, das políticas públicas, das disputas

    pela demarcação de terras, porque tudo isso faz parte da nossa luta para

    sobreviver e para viver.

    As formas de vivenciar o mundo das comunidades negras e

    indígenas, que experimentam globalmente o racismo, são o que eu

    conheço de mais potente. Se alguma comunidade está interessada em

    eliminar as relações de opressão são as comunidades historicamente

    exterminadas.  Segundo uma pesquisa do Ipea ( Instituto de Pesquisa

    Econômica Aplicada ) pessoas negras têm 114% a mais de chances de

    sofrerem violência letal e pouco se estuda, ainda, sobre as condições das

    morte das mulheres negras. Grupos indígenas sofrem genocídios oficias

    que o estado insiste em disfarçar de crime para terminar de transformar a

    terra em produto e um embate muito parecido acontece com as

    comunidades quilombolas apesar da boa propaganda a respeito do

    reconhecimento oficial dos quilombos. No caso da relação com a terra,

    atua também o que hoje se chama racismo ambiental , pelo fato de essas

    comunidades sofrerem fisicamente com os impactos ambientais dos

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    12/43

    lugares onde vivem, já que a tecnologia sofisticada tem um preço que as

    classes média e alta nunca estiveram dispostas a pagar.

    Se alguma comunidade sofre materialmente pela atuação do

    mercado e do estado, é a comunidade das pessoas negras, das pessoas

    não-brancas, são as comunidades indígenas... E apesar de alguns poucos

    esforços, o anarquismo no brasil ainda não se desapegou de um

    eurocentrismo sintomático e nocivo, porque extremamente etnocêntrico.

    Não quero de forma alguma dizer que as comunidades negras, indígenas

    ou não-brancas devam ser anarquistas, mas que um anarquismo que nãose referencie também pelas lutas dessas comunidades é necessariamente

    algo que reforça as falas hegemônicas e aplaude o silenciamento de

    grupos severamente subjugados e, dessa forma, simplesmente se torna

    uma bobagem que nem sequer pode ser atraente... Uma movida

    opressora entre as movidas opressoras. Mais um grilhão para nossos

    tornozelos fantasiado de luta e que não estou disposta a suportar.

    Como uma negra anarquista me recuso a reforçar o silêncio diante

    dos silenciamentos e acredito que devemos, sim, voltar à terra e rever

    muito do que aprendemos na cidade, na lógica embranquecedora e

    patriarcal. As comunidades periféricas têm resistido e se reinventado, mas

    a urbanização vai comendo tudo, os alimentos baratos são cada vez mais

    aqueles feitos em laboratórios que causam risco à nossa saúde, a

    medicalização cada vez mais impregnada em nosso cotidiano nos fazendo

    pagar muito caro. Por isso sinto-penso que devemos voltar à terra e aos

    abraços, aos nossos tambores (que felizmente conseguimos manter por

    aqui) e à nossa comida!  –  longe dos venenos das modificações de

    sementes que afetam nosso corpo e são letais para a maioria de nós.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    13/43

    Temos a capacidade de viver, mas sem a terra não teremos e sem nossas

    comunidades fortalecidas também não.

    Não escrevo isso como quem procura no passado uma tradição

    perfeita e incorruptível que precisa ser retomada. Longe disso! O que

    desejo aqui é o Sankofa: acredito que nosso tempo seja mesmo o agora e

    que precisamos criar, mas sempre lembrando das pessoas que vieram

    antes e nos deixaram ferramentas. Essas ferramentas inclusive devem ser

    reinventadas, de acordo com os nossos desejos e necessidades, de acordo

    com aquilo que vemos lá na frente, nosso horizonte político... Acreditoque todas essas reinvenções estão acontecendo, mas pra que sejam

    contínuas precisamos ter consciência de comunidade, dividindo nossas

    tardes, plantas no canteiro, travesseiros ou esteiras, rezas e tempestades.

    Sem espaços de convivência para ensinarmos e aprendermos com amor o

    que precisamos para tecer o que desejamos daqui pra frente eu

    infelizmente acho que não poderemos conseguir nada realmente novo,

    frutífero.

    Saúde e anarquia!

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    14/43

    Brancos de estimação e o racismo em pele de empatia 

    por Aline Dias

    Nós negras da diáspora fomos largadas para sobreviver num mundo cheio

    de contradições e de ódio. Nós somos ensinadas a ter gratidão, empatia e

    amor pelos nossos opressores. Afinal, se a gente fingir que não vê, ouve

    ou entende todo o ódio que eles nos lançam, como vamos sobreviver se o

    mundo é deles? A tática de sobrevivência acaba sendo sofrer quieta,

    relevar e diminuir a importância do ódio lançado contra nós e assim

    vamos vivendo, até o dia em que chega até nós aquela pessoa branca que

    por algum motivo mágico não nos odeia. A vontade de ter um mundo

    onde a igualdade racial é a norma é tão grande que nós acolhemos aquela

    pessoa branca como se ela fosse da família, ensinamos tudo sobre nós e

    nossos ancestrais na esperança de que ela vá e leve pro mundo branco

    todas estas informações valiosas, e principalmente, que ela vá e ensine os

    outros brancos que nós somos pessoas tão interessantes quanto eles, tão

    complexos e tão legais quanto eles. Esse processo de aproximação para

    troca de saberes, é com certeza uma maneira muito importante de

    destruir preconceitos. Eu sinceramente acredito que conhecer para não

    discriminar é parte de um processo importantíssimo que nos

    levará á igualdade racial. O problema é quando nós ficamos inebriadas

    com a esperança de estar plantando uma semente boa pra sociedade, ebaixamos a guarda esquecendo que o pessoal é politico, e

    consequentemente deixamos de analisar nossas relações pessoais criando

    cobras que só estão aguardando a hora certa pra nos picar.

    O branco de estimação aproveita todas as regalias sociais de ser branco, e

    faz questão de continuar fazendo seu papel de colonizador quando usa

    http://servicodepreta.blogspot.com.br/2014/11/brancos-de-estimacao-e-o-racismo-em.htmlhttp://servicodepreta.blogspot.com.br/2014/11/brancos-de-estimacao-e-o-racismo-em.htmlhttp://servicodepreta.blogspot.com.br/2014/11/brancos-de-estimacao-e-o-racismo-em.html

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    15/43

    uma das armas mais antigas, criadas por ele mesmo pra nos confundir, a

    mestiçagem. A mestiçagem combinada com um discurso de fluidez de

    raça, tem tentado com alguns sucessos transformar a negritude num

    sentimento, e não uma realidade material que elimina pessoas de pele

    não branca com traços negróides. Mesmo os livros de história mais

    antigos, mais mal escritos nós podemos ler sobre pessoas brancas se

    aproximando, se mostrando amistosas e em seguida saqueando tudo o

    que lhes interessa. Eles se aproximam, fazem seus estudos e em seguida

    nos abandonam. Eu tenho certeza absoluta que todas nós temos mais de

    um exemplo sobre essa relação que se torna cada dia mais complexa, mas

    que ainda preserva mecanismos iniciais de conquista e controle étnico. Eu

    sei que estamos vivendo um momento onde a biologia esta sendo

    ignorada por convenção de algumas bandeiras, mas nós não podemos cair

    na armadilha cultural que vincula a negritude somente á vestimentas e

    outros traços culturais. Nós ainda somos violentadas e mortas por causa

    do nosso fenótipo, por causa da cor da nossa pele e da textura dos nossos

    cabelos. Se para uma parcela mínima de pessoas brancas, é possível

    flutuar para viver, pra nós flutuar é permitir que assinem nossa sentença

    de morte, outra vez. O professor Kabengele Munanga diz que o racismo

    no Brasil é uma obra de engenharia, e não é por acaso que essa obra

    arquitetada a tanto tempo ainda é importante pra manutenção de ummundo de exclusão. Nós não podemos nos perder nos discursos modernos

    que parecem ser libertadores, esses discursos parecem um sonho onde

    tem uma pessoa sorridente te estendendo as mãos e dizendo : " vem que

    será tudo lindo", mas se segurarmos essa mão, vamos retroceder. Nós

    estamos num momento fértil de conquistas, estamos nos levantando e

    conseguindo representações onde não conseguíamos desde a década de

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    16/43

    70, e estamos avançando em espaços nunca antes habitados por negros,

    como as universidades e com isso não podemos aderir ao discurso dos

    opressores. A luta do povo negro tem cor, fenótipo e origem africana, não

    há como se desprender disso, se alguém com outro fenótipo e cor se

    sente negro, essa pessoa precisa de um bom psicologo.

    Quem são os brancos de estimação? O que comem e onde vivem?

    Branco de estimação é aquela pessoa de pele branca que convive com

    pessoas negras, e foi ensinada sobre tudo do mundo negro. Brancos de

    estimação podem ser nossos vizinhos, aquela amiga da faculdade ou do

    trabalho, a moça que grudou em você numa manifestação ou sua amiga

    de infância. Sabe aquele seu colega que comprou a biografia

    do Malcolm X antes de você, leu e decorou tudinho, depois fica

    postando incansavelmente sobre o Malcolm e os acontecimentos da

    época, fica te perguntando coisas só pra você dizer " eu não sei" e então

    esse amigo branco te aconselhar: Você precisa saber mais sobre seu povo

    ( ou qualquer coisa do tipo), e se você reclama ele logo foge e diz: " ah

    mas fulano (outro amigo negro), não acha ruim ( logo, o problema é com

    você). Então, esse branco provavelmente é o branco de estimação de

    alguém, e cuidado esse tipo adora namorar pessoas negras, vivem

    tecendo elogios loucos pra poder namorar uma pessoa negra e entãopoder dizer " mas minha namorada é negra..."

    Estas pessoas conhecem nossas músicas, nossas danças, nosso jeito de

    fazer as coisas, os penteados, as roupas e é comum dizerem que "queriam

    ser negras". Num primeiro momento pode ser bonito pensar: " Ah, que

    bonito! A fulana é branca, mas queria ser negra! O racismo finalmente

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    17/43

    esta diminuindo!". Cada dia que passa, a pessoa branca vai se informando,

    vai se enturmando e absorvendo tudo o que pode da nossa cultura, até o

    dia em que a partir da vivência dela, a pessoa vai acreditar que somos

    todos iguais, e que é exagero nosso falar sobre apropriação cultural no

    século XXI, e então, aquele branco que até então parecia nos

    compreender, respeitar e amar, resolve se auto declarar negro,

    naquela mesa de bar e todo mundo gargalha. Aquela pessoa branca que

    ouviu tudo o que você disse sobre sofrer por não ter o cabelo liso, começa

    a dizer que sofre muito porque seu cabelo enrolado não é aceito, e

     justifica esse sofrimento dizendo possuir uma alma negra. Essa pessoa

    branca te dá o ombro e ambas choram acreditando sofrer do mesmo mal,

    o racismo. A partir destas vivências pessoais, o branco de estimação vai

    ganhando força ideológica apoiada por alguns negros e começa a falar por

    negros, e se questionada sobre o lugar de fala, usará seu mentor negro

    pra dizer " ah, uma amiga negra que me disse isso", e assim o branco de

    estimação vai te usando pra conquistar os espaços negros. Nós negros

    lutamos, nos estamos a frente das nossas lutas, mas quando conseguimos

    algum espaço, logo uma pessoa branca cola em nós e já solta que tem um

    pé na cozinha. Porque será que está tão legal ser preto? Nós não devemos

    achar graça quando uma pessoa branca, mesmo que seja branco de

    estimação se diz negra porque permitir que esse discurso deauto identificação étnica seja reproduzido com o nosso aval, é

    ainda resquício do racismo que impede o enfrentamento completo

    desse problema. Quando uma pessoa branca tem nosso aval pra ficar

    brincando de negritude só porque não esta mais achando tão legal assim

    ser branca, nós estamos criando um branco de estimação e alimentando

    uma cobra a conta gotas com a história dos nossos ancestrais. Entendam,

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    18/43

    um dos passos importantes para a igualdade racial, é os

    opressores reconhecerem os crimes que cometem, reconhecerem seus

    privilégios étnicos e não criar uma falsa simetria performando negritude.

    Não se esqueçam, tentam durante séculos nos matar, nós como

    resistência, acreditamos que se fossemos mais parecidos com eles o

    racismo diminuiria, pra isso nós alisamos nossos cabelos, abandonamos as

    religiões de matrizes africanas e apagamos muitas coisas importantes pra

    nós. Nós fomos de coração aberto tentar entender o mundo deles, mesmo

    que isso custasse nossos cabelos queimados e nossa auto estima ferida.

    Eles riram de nós, disseram que nunca seriamos brancos, e continuaram

    nos tratando mal. Essa assimilação não foi saudável nem pra nós e nem

    pra eles. As diferenças são saudáveis e nós (todos nós) precisamos

    aprender a lidar com ela e não tentar nos tornar o outro para respeitá-lo

    por completo. Por isso queridas, não criem brancos de estimação.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    19/43

    Poesia não é um luxo[1] 

    Audre Lorde

    A qualidade da luz pela qual escrutinamos nossas vidas tem impacto

    direto sobre o produto que vivemos, e sobre as mudanças que esperamostrazer por essas vidas. É dentro dessa luz que nós formamos aquelas ideias

    pelas quais alcançamos nossa mágica e a fazemos realizada. Isso é poesia

    como iluminação, pois é pela poesia que nós damos nome àquelas ideias

    que estão – até o poema – inominadas e desformes, ainda por nascer, mas

     já sentidas. Essa destilação da experiência da qual brota poesia verdadeira

    pare pensamento como sonho pare conceito, como sentimento pare ideia,

    e conhecimento pare (precede) entendimento.

    Conforme nós aprendemos a sustentar a intimidade do escrutínio eflorescer dentro dela, conforme aprendemos a usar os produtos daquele

    escrutínio para poder dentro de nossa vida, aqueles medos que

    comandam nossas vidas e formam nossos silêncios começam a perder o

    controle sobre nós.

    Para cada de nós como mulheres, há um lugar escuro por dentro, onde

    escondido e crescendo nosso espírito verdadeiro se ergue, “lindo / e firme

    como uma castanha / opondo-se colunar ao (v)nosso pesadelo de

    fraqueza”[2] e impotência.Esses lugares de possibilidade dentro de nós são escuros porque são

    ancestrais e escondidos; eles sobreviveram e cresceram fortes através

    daquela escuridão. Dentro desses lugares profundos, cada uma de nós

    mantém uma reserva incrível de criatividade e poder, de emoção e

    sentimento não examinado e não registrado. O lugar de poder de mulher

    dentro de cada uma de nós não é branco nem superfície; é escuro, é

    ancestral, e é profundo.

    Quando vemos a vida no modelo europeu unicamente como um problema

    a ser solucionado, nós contamos somente com nossas ideias para nos

    deixar livres, pois isso foi o que os patriarcas brancos nos disseram que era

    precioso.

    Mas quanto mais vamos entrando em contato com nossa consciência de

    vida ancestral, não europeia, como uma situação a ser experienciada e

    com a qual interagir, nós aprendemos mais e mais a cultivar nossos

    sentimentos, e a respeitar aquelas fontes secretas de nosso poder de

    onde vem conhecimento verdadeiro e, portanto, ações duradouras vêm.

    http://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/poesia_nao_eh_um_luxo_audre_lorde2.pdfhttp://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/poesia_nao_eh_um_luxo_audre_lorde2.pdfhttp://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftn2http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftn2http://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/poesia_nao_eh_um_luxo_audre_lorde2.pdf

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    20/43

    Nesse ponto no tempo, acredito que nós mulheres carregamos dentro de

    nós mesmas a possibilidade de fusão dessas duas abordagens tão

    necessárias à sobrevivência, e chegamos perto dessa combinação em

    nossa poesia. Eu falo aqui de poesia como uma destilação revelatória da

    experiência, não o jogo de palavras estéril que, muitas vezes, os patriarcasbrancos distorceram a palavra poesia para significar - para cobrir um

    desejo desesperado por imaginação sem vislumbre.

    Para mulheres, então, poesia não é um luxo. Ela é uma necessidade vital

    de nossa existência. Ela forma a qualidade da luz dentro da qual

    predizemos nossas esperanças e sonhos em direção a sobrevivência e

    mudança, primeiro feita em linguagem, depois em ideia, então em ação

    mais tocável. Poesia é a maneira com que ajudamos a dar nome ao

    inominado, para que possa ser pensado. O horizonte mais distante denossas esperanças e medos é calçado por nossos poemas, talhado das

    experiências pétreas de nossas vidas diárias.

    Conforme eles se tornam conhecidos e aceitos por nós, nossos

    sentimentos e a exploração honesta deles se tornam santuários e solo

    polinizado para o mais radical e audaz de ideias. Eles se tornam um abrigo

    para aquela diferença tão necessária à mudança e a conceituação de

    qualquer ação significativa. Agora mesmo, eu poderia nomear pelo menos

    dez ideias que eu teria achado intoleráveis ou incompreensíveis eassustadoras, exceto se tivessem vindo depois de sonhos e poemas. Isso

    não é fantasia tola, mas uma atenção disciplinada ao verdadeiro

    significado de “isso parece certo para mim.” Nós podemos nos treinar a

    respeitar nossos sentimentos e transpô-los em uma linguagem para que

    possam ser compartilhados. E onde aquela linguagem ainda não existe, é

    nossa poesia que ajuda a tecê-la. Poesia não é só sonho e visão; ela é a

    estrutura óssea de nossas vidas. Ela lança as fundações para um futuro de

    mudança, uma ponte entre nossos medos do que nunca aconteceu antes.

    Possibilidade não é para sempre nem instante. Não é fácil sustentar

    crença em sua eficácia. Às vezes podemos trabalhar muito e duro para

    estabelecer uma primeira trincheira de resistência real às mortes que

    esperam que vivamos, só para ter essa trincheira roubada ou ameaçada

    por aquelas calúnias que fomos socializadas a temer, ou pela retirada

    daquelas aprovações que fomos alertadas a buscar por segurança.

    Mulheres nos vemos diminuídas ou abrandadas pelas falsamente benignas

    acusações de infantilidade, de não-universalidade, de mutabilidade, de

    sensualidade. E quem pergunta a questão: eu estou alterando sua aura,

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    21/43

    suas ideias, seus sonhos, ou eu estou meramente movendo você a atos

    temporários e reativos? E mesmo que a segunda não seja má tarefa, é

    uma que deve ser vista no contexto de uma necessidade de verdadeira

    alteração das fundações mesmas de nossas vidas.

    Os patriarcas brancos nos disseram: penso, logo existo. A mãe Negradentro de nós  – a poeta  – sussurra em nossos sonhos: eu sinto, portanto

    eu posso ser livre. Poesia cunha a linguagem para expressar e empenhar

    essa demanda revolucionária, a implementação daquela liberdade.

    Contudo, a experiência nos ensinou que ação no agora é também

    necessária, sempre. Nossas crianças não podem sonhar a não ser que elas

    vivam, elas não podem viver a não ser que estejam nutridas, e quem mais

    vai alimentá-las da comida verdadeira sem a qual seus sonhos não serão

    nada diferentes dos nossos? “Se você quer que nós mudemos o mundoalgum dia, nós ao menos tempos que viver tempo o bastante para

    crescer!”, grita a criança.

    Às vezes nos drogamos com sonhos de ideias novas. A cabeça vai nos

    salvar. O cérebro sozinho vai nos libertar. Mas não há ideias novas ainda

    esperando nas asas para nos salvar como mulheres, como humanas. Só há

    aquelas velhas e esquecidas, novas combinações, extrapolações e

    reconhecimentos desde dentro nós mesmas  – junto à renovada coragem

    para tenta-las. E nós temos que encorajar constantemente a nós mesmase a cada outra para tentarmos as ações heréticas que nossos sonhos

    implicam, e que tantas das nossas velhas ideias desprezam. Na linha de

    frente de nossa movimentação até mudança, só há poesia para aludir à

    possibilidade feita real. Nossos poemas formulam as implicações de nós

    mesmas, o que sentimos dentro e ousamos fazer realidade (ou trazer ação

    de acordo com), nossos medos, nossas esperanças, nossos terrores mais

    cultivados.

    Pois dentro de estruturas vivas definidas pelo lucro, pelo poder linear,

    pela desumanização institucional, nossos sentimentos não foram feitos

    para sobreviver. Mantidos por perto como adjuntos inevitáveis ou

    passatempos prazenteiros, era esperado que sentimentos se curvassem a

    pensamento como era esperado que mulheres se curvassem a homens.

    Mas as mulheres temos sobrevivido. Como poetas. E não há sofrimentos

    novos. Nós já os sentimos todos. Nós escondemos tal fato no mesmo lugar

    em que nós escondemos nosso poder. Eles emergem em nossos sonhos, e

    são nossos sonhos que apontam o caminho para liberdade. Aqueles

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    22/43

    sonhos se tornam realizáveis por nossos poemas que nos dão a força e

    coragem para ver, sentir, falar, e ousar.

    Se o que precisamos para sonhar, para mover nossos espíritos mais

    profunda e diretamente até o encontro e através de promessa, é

    menosprezado como luxo, então nós desistimos do cerne  – a fonte  – denosso poder, nossa mulheridade; nós desistimos do futuro de nossos

    mundos.

    Pois não há ideias novas. Só há novas maneiras de fazê-las sentidas  – de

    examinar como nos parecem aquelas ideias sendo vividas no domingo de

    manhã às 7 A.M, depois do café da manhã, durante amor voraz, fazendo

    guerra, parindo, chorando nossxs mortxs  –  enquanto nós sofremos as

    velhas esperas, combatemos os velhos conselhos e medos de sermos

    silentes e impotentes e sós, enquanto nós provamos nossas possibilidadese forças.

    [1] Traduzido por tatiana nascimento, novembro de 2012.

    [email protected] / traduzidas.wordpress.com

    [2] Publicado pela primeira vez em Chrysalis: A Magazine of Female Culture, n. 3

    (1977). Nota da autora

    http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftnref1http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftnref2http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftnref2http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftnref1

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    23/43

    Anarquismo Negro

    Ashanti Alston[1]

    Tradução: Mariana Santos (Das Lutas)

    Apoio: Caralâmpio Trillas

    Muitos anarquistas clássicos consideravam o anarquismo como um corpo

    de verdades elementares que apenas precisavam ser reveladas ao mundo

    e acreditavam que as pessoas se tornariam anarquistas uma vez expostas

    à lógica irresistível da idéia. Esta é uma das razões pelas quais eles

    tendiam a ser tão didáticos.

    Felizmente a prática vivida do movimento anarquista é muito mais rica do

    que isso. Poucos “convertem-se” de tal forma: é muito mais comum que

    as pessoas abracem o anarquismo lentamente, à medida que descobrem

    que é relevante para a sua experiência de vida e permeável a suas

    próprias percepções e preocupações.

    A riqueza da tradição anarquista está justamente na longa história de

    encontros entre dissidentes não-anarquistas e o quadro anarquista queherdamos do final do Século XIX e início do Século XX. O anarquismo tem

    crescido através de tais encontros e agora enfrenta contradições sociais

    que antes eram marginais ao movimento. Por exemplo, há um século

    atrás, a luta contra o patriarcado era uma preocupação relativamente

    menor para a maioria dos anarquistas, mas hoje é amplamente aceita

    como uma parte integrante da nossa luta contra a dominação.

    Foi somente nos últimos 10 ou 15 anos que os anarquistas na América do

    Norte começaram a explorar à sério o que significa desenvolver um

    anarquismo que tanto pode combater a supremacia branca como articular

    uma visão positiva da diversidade cultural e de intercâmbio cultural.

    Camaradas estão trabalhando duro para identificar os referenciais

    históricos de tal tarefa, como o nosso movimento deve mudar para

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    24/43

    abraçá-lo, e como um anarquismo verdadeiramente antirracista pode

    parecer.

    O seguinte material, de Ashanti Alston, membro do conselho do IAS[2], 

    explora algumas destas questões. Alston, que era membro do Partido dos

    Panteras Negras e do Exército Negro de Libertação, descreve o(s) seu(s)

    encontro(s) com o anarquismo (que começou quando ele foi preso por

    atividades relacionadas com o Exército Negro de Libertação). Ele toca em

    algumas das limitações das visões mais antigas do anarquismo, a

    relevância contemporânea do anarquismo para os negros, e alguns dos

    princípios necessários para construir um novo movimento revolucionário.

    Esta é uma transcrição editada de uma palestra dada por Alston em 24 de

    outubro de 2003 no Hunter College, em Nova York. O evento foi

    organizado pelo Instituto de Estudos Anarquistas e co-patrocinado pelo

    Movimento Estudantil de Ação Libertadora, da Universidade de Cidade de

    Nova York ~ Chuck Morse

     _____________

    Embora o Partido dos Panteras Negras fosse muito hierárquico, eu aprendi

    muito com a minha experiência na organização. Acima de tudo, nos

    Panteras me marcou a necessidade de aprender com as lutas de outros

    povos. Eu acho que tenho feito isso e essa é uma das razões pelas quais

    sou um anarquista hoje. Afinal, quando velhas estratégias não funcionam,precisamos olhar para outras formas de fazer as coisas, para ver se

    podemos nos descolar e avançar novamente. Nos Panteras, absorvemos

    muita coisa de nacionalistas, marxistas-leninistas, e de outros como eles,

    mas suas abordagens para a mudança social tinham problemas

    significativos e me aprofundei no anarquismo para ver se haviam outras

    maneiras de pensar sobre como fazer uma revolução.

    http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftn2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftn2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftn2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftn2

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    25/43

    Eu aprendi sobre anarquismo através de cartas e de literatura enviadas

    para mim, enquanto estava em várias prisões por todo o país. No começo

    eu não queria ler qualquer material que recebi  –  parecia que o

    anarquismo era apenas sobre o caos e todo mundo fazendo suas próprias

    coisas – e por muito tempo eu o ignorei. Mas houve momentos  – quando

    eu estava na solitária  – que não tinha mais nada para ler e, para fugir do

    tédio, finalmente comecei a meter a mão no tema (apesar de tudo o que

    eu tinha ouvido falar sobre o anarquismo até o momento). Fiquei

    realmente muito surpreso ao encontrar análises de lutas populares,

    culturas populares e formas de organizações populares  – aquilo fez muito

    sentido para mim.

    Estas análises me ajudaram a ver coisas importantes sobre a minha

    experiência nos Panteras que não estavam claras para mim antes. Por

    exemplo, eu pensei que havia um problema com a minha admiração por

    pessoas como Huey P. Newton, Bobby Seal, e Eldridge Cleaver e com o

    fato de que eu os tinha colocado em um pedestal. Afinal de contas, o que

    isso diz sobre você, se você permitir que alguém se estabeleça como seu

    líder e tome todas as suas decisões por você? O anarquismo me ajudou a

    ver que você, como um indivíduo, deve ser respeitado e que ninguém é

    suficientemente importante para pensar por você. Mesmo que nós

    achemos que Huey P. Newton ou Eldridge Cleaver são os pioresrevolucionários do mundo, eu deveria me ver como o pior revolucionário,

    exatamente como eles. Mesmo que eu fosse jovem, tenho um cérebro. Eu

    posso pensar. Eu posso tomar decisões.

    Eu pensei em tudo isso enquanto estava na prisão e me vi dizendo: “Cara,

    nós realmente nos colocamos de uma forma que éramos obrigados a criar

    problemas e produzir cismas. Fomos obrigados a seguir programas sem

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    26/43

    pensar”. A história do Partido dos Panteras Negras, tão incrível como é,

    tem esses esqueletos. A menor pessoa no totem deveria ser um

    trabalhador e o que estava na parte superior era quem tinha o cérebro.

    Mas na prisão eu aprendi que eu poderia ter tomado algumas dessas

    decisões sozinho e que as pessoas ao meu redor poderiam ter tomado

    essas mesmas decisões. Embora eu tenha apreço por tudo o que os líderes

    do Partido dos Panteras Negras fizeram, eu comecei a ver que podemos

    fazer as coisas de forma diferente e, assim, extrair mais plenamente

    nossas próprias potencialidades e nos encaminharmos ainda mais para

    uma autodeterminação real. Embora não tenha sido fácil no início, insisti

    com o material anarquista e descobri que eu não poderia colocá-lo de

    lado, uma vez que começou a me dar vislumbres. Eu escrevi para pessoas

    em Detroit e no Canadá, que tinham me enviado a literatura, e pedi para

    que me enviassem mais.

    No entanto, nada do que eu recebi tratava de pessoas negras ou latinas.

    Talvez houvesse discussões ocasionais sobre a Revolução Mexicana, mas

    nada falava de nós, aqui, nos Estados Unidos. Houve uma ênfase

    esmagadora sobre aqueles que se tornaram os anarquistas fundadores  – 

    Bakunin, Kropotkin, e alguns outros  –  mas estes valores europeus, que

    abordavam as lutas europeias, realmente não dialogavam comigo.

    Eu tentei descobrir como isso se aplicava a mim. Comecei a olhar para aHistória Negra de novo, para a História Africana, e as histórias e lutas das

    outras pessoas de cor. Eu encontrei muitos exemplos de práticas

    anarquistas nas sociedades não europeias, desde os tempos mais antigos

    até o presente. Isso foi muito importante para mim: eu precisava saber

    que não eram apenas os europeus que poderiam funcionar de uma forma

    antiautoritária, mas que todos nós podemos.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    27/43

    Fui encorajado por coisas que eu encontrei na África  –  não tanto pelas

    antigas formas que chamamos de tribos  –  mas por lutas modernas que

    ocorreram no Zimbabwe, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ainda que

    fossem liderados por organizações vanguardistas, eu vi que as pessoas

    estavam construindo comunidades democráticas radicais na base. Pela

    primeira vez, nesses contextos coloniais, os povos africanos estavam

    criando o que era chamado pelos angolanos de “poder popular”. Este

    poder popular tomou uma forma muito antiautoritária: as pessoas não

    estavam só conduzindo suas vidas, mas também as transformando

    enquanto lutavam contra qualquer poder estrangeiro que os oprimia. No

    entanto, em cada uma dessas lutas de libertação, novas estruturas

    repressivas foram impostas logo que as pessoas chegavam próximo à

    libertação: a liderança estava obcecada com idéias de governança, em

    estabelecer um exército permanente, em controlar as pessoas depois que

    os opressores forem expulsos. Uma vez que a tão apregoada vitória foi

    conseguida, o povo  –  que havia lutado durante anos contra os seus

    opressores  –  foi desarmado e, em vez de existir um poder popular real,

    um novo partido foi instalado no comando do Estado. Assim, não houve

    reais revoluções ou a verdadeira libertação em Angola, Guiné-Bissau,

    Moçambique e Zimbabwe, porque eles simplesmente substituíram um

    opressor estrangeiro por um opressor nativo.Então, aqui estou eu, nos Estados Unidos, lutando pela libertação negra e

    me perguntando: como é que podemos evitar situações como essa? O

    anarquismo me deu uma maneira de responder a esta questão, insistindo

    que nós ponhamos no lugar, como fazemos em nossa luta agora, as

    estruturas de tomada de decisões e de fazer coisas que continuamente

    tragam mais pessoas para o processo, e não apenas deixar a maioria das

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    28/43

    pessoas “iluminadas” tomarem decisões por todos os outros. O próprio

    povo tem que criar estruturas em que articulem sua própria voz e em que

    tomem suas próprias decisões. Eu não recebi isso de outras ideologias: eu

    recebi isso do anarquismo.

    Também comecei a ver, na prática, que as estruturas anarquistas de

    tomada de decisão são possíveis. Por exemplo, nos protestos contra a

    Convenção Nacional Republicana, em agosto de 2000, eu vi os grupos

    normalmente excluídos  – pessoas de cor, mulheres e gays  – participarem

    ativamente de todos os aspectos da mobilização. Nós não permitimos que

    pequenos grupos tomassem decisões por outros e, apesar de as pessoas

    terem diferenças, elas eram vistas como boas e benéficas. Era novo para

    mim, depois da minha experiência nos Panteras, estar em uma situação

    onde as pessoas não estão tentando disputar o mesmo lugar e realmente

    abraçam a tentativa de resolver nossos interesses por vezes

    contraditórios. Isso me deu algumas idéias sobre como o anarquismo

    pode ser aplicado.

    Também me fez pensar: se pode ser aplicado para os diversos grupos no

    protesto contra a Convenção, poderia eu, como um ativista negro, aplicar

    essas coisas na comunidade negra?

    Algumas de nossas idéias sobre quem somos como povo bloqueiam

    nossas lutas. Por exemplo, a comunidade negra é muitas vezesconsiderada um grupo monolítico, mas na verdade é uma comunidade de

    comunidades com muitos interesses diferentes. Penso em ser negro não

    tanto como uma categoria étnica, mas como uma força de oposição ou

    como pedra de toque para ver as coisas de forma diferente. A cultura

    negra sempre foi opositora e tudo isso é a busca de caminhos para

    criativamente resistir à opressão aqui, no país mais racista do mundo.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    29/43

    Então, quando eu falo de um Anarquismo Negro, não está tão ligado à cor

    da minha pele, mas quem eu sou como pessoa, como alguém que pode

    resistir, quem pode enxergar de uma forma diferente quando eu estou

    bloqueado e, assim, viver de forma diferente.

    O que é importante para mim sobre o anarquismo é a sua insistência de

    que você nunca deve ficar preso em velhas e obsoletas abordagens e

    sempre deve tentar encontrar novas maneiras de ver as coisas, de sentir e

    de se organizar. No meu caso, eu apliquei pela primeira vez o anarquismo

    no início de 1990 em um coletivo que criamos para rodar o jornal dos

    Panteras Negras novamente. Eu ainda era um anarquista “no armário”

    neste momento. Eu ainda não estava pronto para sair e me declarar um

    anarquista, porque eu já sabia o que as pessoas iriam dizer e como eles

    iriam olhar para mim. Quem eles veriam quando digo “anarquista”? Eles

    veriam os anarquistas brancos, com todos aqueles cabelos engraçados,

    etc. e dizer “como diabos é que você vai se envolver com isso?” 

    Houve uma divisão neste coletivo: de um lado havia companheiros mais

    velhos que estavam tentando reinventar a roda e, por outro, eu e alguns

    outros que diziam: “Vamos ver o que podemos aprender com a

    experiência vinda dos Panteras e construir em cima dela e melhorá-la. Nós

    não podemos fazer as coisas da mesma maneira”. Enfatizamos a

    importância de uma perspectiva antissexista  – uma velha questão dentrodos Panteras – mas do outro lado estava algo do tipo “eu não quero ouvir

    todas essas coisas feministas”. E nós dissemos: “Tudo bem se você não

    quer ouvir isso, mas queremos que as pessoas jovens ouçam, para que

    eles saibam sobre algumas das coisas que não funcionaram nos Panteras,

    para que eles saibam que nós tivemos algumas contradições internas que

    não poderíamos superar”. Nós tentamos forçar a questão, mas se tornou

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    30/43

    uma batalha e as discussões tornaram-se tão difíceis que uma separação

    ocorreu. Neste ponto, deixei o coletivo e comecei a trabalhar com grupos

    anarquistas e antiautoritários, que foram realmente os únicos a tentarem

    lidar de forma consistente com essas dinâmicas até o momento.

    Uma das lições mais importantes que eu também aprendi com o

    anarquismo é que você precisa olhar para as coisas radicais que já

    fazemos e tentar incentivá-las. É por isso que eu acho que há muito

    potencial para o anarquismo na comunidade negra: muito do que já

    fazemos é anarquista e não envolve o Estado, a polícia ou os políticos. Nós

    tomamos conta um do outro, nós nos importamos com os filhos uns dos

    outros, nós vamos para o mercado uns para os outros, encontramos

    maneiras de proteger nossas comunidades. Até mesmo igrejas ainda

    fazem as coisas de uma forma muito comunal, até certo ponto. Eu aprendi

    que existem maneiras de ser radical sem ficar distribuindo literatura e

    dizendo às pessoas: “Aqui está o retrato da situação, se você enxergar

    isso, vai seguir automaticamente a nossa organização e se juntará à

    revolução”. Por exemplo, a participação é um tema muito importante para

    o anarquismo e também é muito importante na comunidade negra.

    Considere o jazz: é um dos melhores exemplos de uma prática radical

    existente porque ele assume uma conexão participativa entre o individual

    e o coletivo e permite a expressão de quem você é, dentro de umambiente coletivo, com base no gozo e no prazer da música em si. Nossas

    comunidades podem ser da mesma forma. Podemos reunir todos os tipos

    de perspectivas de fazer música, de fazer revolução.

    Como podemos nutrir cada ato de liberdade? Seja com as pessoas no

    trabalho ou as pessoas que passam o tempo na esquina, como podemos

    planejar e trabalhar juntos? Precisamos aprender com as diferentes lutas

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    31/43

    ao redor do mundo que não são baseadas em vanguardas. Há exemplos

    na Bolívia. Há os zapatistas. Há grupos no Senegal construindo centros

    sociais. Você realmente tem que olhar para as pessoas que estão tentando

    viver e não necessariamente tentando chegar com as idéias mais

    avançadas. Precisamos tirar a ênfase do abstrato e focar no que está

    acontecendo na base.

    Como podemos construir com todas estas diferentes vertentes? Como

    podemos construir com os Rastas? Como podemos construir com as

    pessoas da Costa Oeste que ainda estão lutando contra o governo, por

    conta da mineração em terras indígenas? Como podemos construir com

    todos esses povos para começar a criar uma visão da América que seja

    para todos nós?

    Pensamento de oposição e os riscos de ser oposição são necessários. Eu

    acho isso é muito importante neste momento e uma das razões pelas

    quais eu acho que o anarquismo tem muito potencial para nos ajudar a

    seguir em frente. E isso não é um pedido para aderirmos dogmaticamente

    aos fundadores da tradição, mas para estarmos abertos a tudo o que

    aumenta a nossa participação democrática, a nossa criatividade e nossa

    felicidade.

    Acabamos de ter uma Conferência Anarquista de Pessoas de Cor em

    Detroit, de 03 a 05 de outubro. Cento e trinta pessoas vieram de todo opaís. Foi ótimo para vermos nós mesmos e bem como o interesse das

    pessoas de cor de todo o Estados Unidos em busca de formas marginais

    de se pensar. Vimos que poderíamos nos tornar aquela voz em nossas

    comunidades, que diz: “Espere, talvez nós não precisemos nos organizar

    assim. Espere, a maneira que você está tratando as pessoas dentro da

    organização é opressiva. Espere, qual é a sua visão? Gostaria de ouvir a

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    32/43

    minha?”. Há uma necessidade para esses tipos de vozes dentro de nossas

    diversas comunidades. Não apenas as nossas comunidades de cor, mas

    em toda comunidade há uma necessidade de parar o avanço dos planos

    pré-fabricados e confiar que as pessoas podem descobrir coletivamente o

    que fazer com este mundo. Eu acho que nós temos a oportunidade de

    deixar de lado o que nós pensamos que seria a resposta e lutarmos juntos

    para explorar diferentes visões do futuro. Podemos trabalhar nisso. E não

    há uma resposta: temos de trabalhar com isso à medida que avançamos.

    Embora queiramos lutar, vai ser muito difícil por causa dos problemas que

    herdamos deste império. Por exemplo, eu vi algumas lutas muito duras,

    emocionadas, em protestos contra a Convenção Nacional Republicana.

    Mas as pessoas se mantiveram bloqueadas, mesmo quem começou a

    chorar no processo. Não vamos superar algumas das nossas dinâmicas

    internas que nos mantiveram divididos, a menos que estejamos dispostos

    a passar por algumas lutas realmente difíceis. Esta é uma das outras

    razões pelas quais eu digo que não há uma resposta: só temos que passar

    por isso.

    Nossas lutas aqui nos Estados Unidos afetam todos no mundo. As pessoas

    nas classes subalternas vão desempenhar um papel fundamental e a

    maneira como nos relacionamos com elas vai ser muito importante.

    Muitos de nós somos privilegiados o suficiente para ser capaz de evitaralguns dos desafios mais difíceis e vamos ter de abrir mão de parte desse

    privilégio, a fim de construir um novo movimento. O potencial está lá. Nós

    ainda podemos ganhar – e redefinir o que significa vencer – mas temos a

    oportunidade de promover uma visão mais rica da liberdade do que já

    tinha antes. Temos que estar dispostos a tentar.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    33/43

    Como um Pantera, e como alguém que passou à clandestinidade

    enquanto guerrilha urbana, pus a minha vida no limite. Eu assisti meus

    companheiros morrerem e passei a maior parte da minha vida adulta na

    prisão. Mas eu ainda acredito que podemos vencer. A luta é muito difícil e

    quando você cruza esse limite, você corre o risco de ir para a cadeia, ficar

    gravemente ferido, morto, e assistir seus companheiros ficando

    gravemente feridos e mortos. Isso não é uma imagem bonita, mas isso é o

    que acontece quando você luta contra um opressor enraizado. Estamos

    lutando e isso vai tornar tudo mais difícil para eles, mas a luta também vai

    ser difícil para nós.

    É por isso que temos de encontrar maneiras de amar e apoiar uns aos

    outros através de tempos difíceis. É mais do que apenas acreditar que

    podemos vencer: precisamos ter estruturas consolidadas que possam nos

    ajudar a caminhar, quando sentirmos que não podemos dar mais nenhum

    passo. Acho que podemos mudar novamente se pudermos descobrir

    algumas dessas coisas. Este sistema tem que cair. Isso nos fere a cada dia

    e não podemos desistir. Temos que chegar lá. Temos que encontrar novas

    maneiras.

    O anarquismo, se significa alguma coisa, significa estar aberto para o que

    quer que for preciso em nosso pensamento, em nossa vivência e nas

    nossas relações  –  para vivermos plenamente e vencermos. De certaforma, eu acho que são a mesma coisa: viver a vida ao máximo é ganhar. É

    claro que vamos e devemos entrar em conflito com os nossos opressores

    e precisamos encontrar boas maneiras de fazê-lo. Lembre-se daqueles das

    classes subalternas, que são os mais afetados por isso. Eles podem ter

    diferentes perspectivas sobre como essa luta deve ser feita. Se nós não

    podemos encontrar caminhos para nos encontrarmos cara-a-cara afim de

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    34/43

    resolvermos essa situação, velhos fantasmas reaparecerão e nós

    voltaremos à mesma velha situação em que estivemos antes.

    Vocês todos podem fazer isso. Você tem a visão. Você tem a criatividade.

    Não permitam que ninguém bloqueie isso.

    De Perspectivas sobre a teoria anarquista, Primavera 2004  –  Volume 8, número

    1 http://www.anarchist- studies.org/publications/perspectives 

    FONTE: http://www.anarchist- studies.org/article/articleview/70/1/8/ 

    Instituto de Estudos Anarquistas: http://www.anarchist- studies.org/ 

    [1] In. “Perspectivas sobre a teoria anarquista”, boletim semestral do Instituto de

    Estudos Anarquistas, Primavera 2004 – Volume 8, Número 1

    [2] Institute for Anarchist Studies

    http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref1http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref1http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref1

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    35/43

    USOS DO ERÓTICO: O ERÓTICO COMO PODER 

     Audre Lorde[1] 

    Há muitos tipos de poder, usados e não usados, reconhecidos ou não. O

    erótico é um recurso dentro de cada uma de nós, que paira num plano

    profundamente feminino e espiritual, firmemente enraizado no poder de

    nossos sentimentos impronunciados ou não reconhecidos. Para se

    perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer aquelas várias

    fontes que há na cultura de oprimidxs e podem suprir energia para

    mudança. Para mulheres, isso tem significado a supressão do erótico

    como fonte considerável de poder e informação dentro de nossas vidas.

    Fomos ensinadas a suspeitar desse recurso, caluniado, insultado e

    desvalorizado pela sociedade ocidental. De um lado, o superficialmente

    erótico foi encorajado como símbolo da inferioridade feminina; de outro

    lado, as mulheres foram levadas a sofrer e se sentirem desprezíveis e

    suspeitas em virtude de sua existência.É um pequeno passo daí à falsa crença de que só pela supressão do

    erótico de nossas vidas e consciências é que podemos ser

    verdadeiramente fortes. Mas tal força é ilusória, pois vem adornada no

    contexto dos modelos masculinos de poder.

    Como mulheres, temos desconfiado desse poder que emana de nosso

    conhecimento mais profundo e irracional. Fomos alertadas contra ele por

    toda nossa vida pelo mundo masculino, que valoriza essa profundidade do

    sentir a ponto de manter as mulheres por perto para que o exercitemos

    para servir aos homens, mas que teme tanto essa mesma profundidade

    para examinar suas possibilidades dentro delas mesmas. Então as

    mulheres são mantidas numa posição distante/inferior para serem

    psicologicamente ordenhadas, mais ou menos da mesma forma com que

    https://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/audre_lorde_usos-do-erotico_o-erotico-como-poder.pdfhttps://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/audre_lorde_usos-do-erotico_o-erotico-como-poder.pdfhttp://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftn1http://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftn1http://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftn1https://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/audre_lorde_usos-do-erotico_o-erotico-como-poder.pdf

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    36/43

    as formigas mantêm colônias de pulgões para fornecer uma substância

    doadora-de-vida para seus mestres.

    Mas o erótico oferece um manancial de força revigorante e provocativa à

    mulher que não teme sua revelação nem sucumbe à crença de que a

    sensação é bastante.

    O erótico tem sido frequentemente difamado por homens e usado contra

    mulheres. Tem sido tornado na confusa, na trivial, na psicótica, na

    plastificada sensação. Por essa razão, temos frequentemente dado as

    costas à exploração e consideração do erótico como uma fonte de poder e

    informação, confundindo-o com seu oposto, o pornográfico. Mas

    pornografia é uma negação direta do poder do erótico, pois ela representa

    a supressão do verdadeiro sentir. Pornografia enfatiza sensação sem

    sentimento.

    O erótico é uma medida entre os princípios do nosso senso de ser e o caos

    de nossos sentimentos mais fortes. É um senso interno de satisfação ao

    qual, uma vez que o tenhamos vivido, sabemos que podemos almejar.

    Pois tendo vivido a completude dessa profundidade de sentimento e

    reconhecendo seu poder, em honra e respeito próprio não podemos exigir

    menos de nós mesmas.

    Nunca é fácil demandar o máximo de nós mesmas, de nossas vidas, de

    nosso trabalho. Encorajar a excelência é ir além da mediocridadeencorajada de nossa sociedade, é encorajar a excelência. Mas ceder ao

    medo de sentir e trabalhar no limite é um luxo que só xs despropositadxs

    podem bancar, e xs despropositadxs são aquelxs que não desejam guiar

    seus próprios destinos.

    Essa demanda interna por excelência que aprendemos do erótico não

    pode ser mal entendida como exigir o impossível nem de nós mesmas

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    37/43

    nem das outras. Tal exigência incapacita todo mundo no processo. Porque

    o erótico não é uma questão só do que nós fazemos; é uma questão de

    quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir no fazer. Uma vez

    que sabemos a extensão à qual nós somos capazes de sentir esse senso de

    satisfação e plenitude, nós podemos então observar qual de nossos afãs

    de vida nos traz mais perto dessa completude.

    O objetivo de cada coisa que fazemos é fazer nossas vidas e a vida de

    nossas crianças mais ricas e mais possíveis. Na celebração do erótico em

    todos os nossos envolvimentos, meu trabalho se torna uma decisão

    consciente  –  um leito muito esperado em que entro com gratidão e do

    qual levanto empoderada.

    Obviamente, mulheres tão empoderadas são perigosas. Então somos

    ensinadas a separar a demanda erótica de quase todas as áreas mais vitais

    de nossas vidas além do sexo. E a falta de consideração às raízes e

    satisfações eróticas de nosso trabalho é sentida em nosso desafeto por

    tanto do que fazemos. Por exemplo, quantas vezes amamos de verdade

    nosso trabalho até em suas maiores dificuldades?

    O principal horror de qualquer sistema que define o bom em termos de

    lucro ao invés de em termos de necessidade humana, ou que define a

    necessidade humana pela exclusão dos componentes psíquicos e

    emocionais dela – o principal horror de tal sistema é que rouba de nossotrabalho seu valor erótico, seu poder erótico e interesse e plenitude da

    vida. Tal sistema reduz trabalho a uma caricatura de necessidades, um

    dever pelo qual ganhamos pão ou esquecimento de nós mesmas e de

    quem amamos. Mas isso é o mesmo que cegar uma pintora e dizer a ela

    que melhore sua obra, e que goste do ato de pintar. Isso não é só perto do

    impossível, é também profundamente cruel.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    38/43

    Como mulheres, precisamos examinar as formas pelas quais nosso mundo

    possa ser verdadeiramente diferente. Estou falando aqui da necessidade

    de reavaliarmos a qualidade de todos os aspectos de nossas vidas e de

    nosso trabalho, e de como nos movimentamos até e através deles.

    A palavra erótico mesma vem da palavra grega eros, a personificação de

    amor em todos seus aspectos  – nascido do Caos, e personificando poder

    criativo e harmonia. Quando falo do erótico, então, falo dele como uma

    afirmação da força vital de mulheres; daquela energia criativa

    empoderada, cujo conhecimento e uso nós estamos agora retomando em

    nossa linguagem, nossa história, nosso dançar, nosso amar, nosso

    trabalho, nossas vidas.

    Há tentativas frequentes de equiparar pornografia e erotismo, dois usos

    diametralmente opostos do sexual. Por causa dessas tentativas, se tornou

    modismo separar o espiritual (psíquico e emocional) do político,vê-

    loscomo contraditórios ou antitéticos. “Como assim, uma revolucionária

    poética, uma traficante de armas que medita?”. Da mesma forma temos

    tentado separar o espiritual e o erótico, assim reduzindo o espiritual a um

    mundo de afetos insípidos, um mundo do asceta que deseja sentir nada.

    Mas nada está mais longe da verdade. Pois a posição ascética é uma do

    mais grandioso medo, da mais grave imobilidade. A severa abstinência do

    asceta torna-se a obsessão dominadora. E não é uma de autodisciplinamas de autoabnegação.

    A dicotomia entre espiritual e político é falsa também, resultante de uma

    atenção incompleta ao nosso conhecimento erótico. Pois a ponte que os

    conecta é formada pelo erótico  –  o sensual –, aquelas expressões físicas,

    emocionais e psíquicas do que é mais profundo e mais forte e mais rico

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    39/43

    dentro de cada uma de nós, sendo compartilhado: as paixões de amor, em

    seus mais fundos significados.

    Além do superficial, a considerada frase “me faz sentir bem” reconhece a

    força do erótico em um conhecimento verdadeiro, pois o que ela significa

    é a primeira e mais poderosa luz guia a qualquer entendimento. E

    entendimento é uma ama que só pode esperar, ou explicitar, aquele

    conhecimento, nascido fundo. O erótico é a nutriz ou a babá de todo

    nosso conhecimento mais profundo.

    O erótico para mim funciona de muitas maneiras, e a primeira é

    fornecendo o poder que vem de compartilhar profundamente qualquer

    busca com outra pessoa. A partilha do prazer, seja físico, emocional,

    psíquico ou intelectual forma entre as compartilhantes uma ponte que

    pode ser a base para entender muito do que não é compartilhado entre

    elas, e diminui o medo das suas diferenças.

    Outra forma importante com que a conexão erótica funciona é a ampla e

    destemida ênfase de minha capacidade de gozar. Do jeito que meu corpo

    se expande à música e se abre em resposta, auscultando seus ritmos

    profundos, assim cada nível de onde eu sinto também se abre à

    experiência eroticamente satisfatória, seja dançando, construindo uma

    estante de livros, escrevendo um poema, examinando uma ideia.

    Essa autoconexão compartilhada é uma medida do prazer que me seicapaz de sentir, um lembrete de minha capacidade de sentir. E esse

    conhecimento profundo e insubstituível da minha capacidade de prazer

    vem para demandar de toda minha vida que seja vivida dentro do

    conhecimento de que tal satisfação é possível, e não precisa ser chamada

    de casamento, nem deus, nem vida após a morte.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    40/43

    Essa é uma razão pela qual o erótico é tão temido, e tantas vezes relegado

    unicamente ao quarto, isso quando chega a ser reconhecido. Pois logo que

    começamos a sentir intensamente todos os aspectos de nossas vidas,

    começamos a esperar de nós mesmas e do que desejamos da vida que

    isso esteja de acordo com aquele prazer de que nos sabemos capazes.

    Nossa sabedoria erótica nos empodera, se torna uma lente pela qual

    escrutinamos todos os aspectos de nossa existência, nos forçando a

    examiná-los honestamente em termos de seus significados relativos em

    nossas vidas. E essa é uma grave responsabilidade, projetada desde

    dentro de cada uma de nós, de não se conformar com o conveniente, o

    falseado, o convencionalmente esperado, nem o meramente seguro.

    Durante a Segunda Guerra Mundial, comprávamos potes de plástico

    selados de margarina branca, incolor, com uma minúscula, intensa cápsula

    de corante amarelo encimada como um topázio bem sob a pele clara do

    pote. Deixávamos a margarina de fora um tempo para amaciar, e então

    furávamos a pequena cápsula para jogá-la dentro do pote, soltando sua

    rica amarelice na macia massa pálida da margarina. Então pegando-a

    cuidadosamente entre os dedos, balançávamos suavemente pra frente e

    pra trás, várias vezes, até que a cor tivesse se espalhado por todo o pote

    de margarina, colorindo-a perfeitamente.

    Eu acho o erótico tal cerne dentro de mim mesma. Quando liberado deseu invólucro intenso e constritor, ele flui através e colore minha vida com

    um tipo de energia que amplia e sensibiliza e fortalece toda minha

    experiência.

    Fomos criadas pra temer o sim dentro de nós, nossas mais profundas

    vontades. Mas uma vez reconhecido, aqueles que não melhoram nosso

    futuro perdem seu poder e podem ser mudados. O medo de nossos

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    41/43

    desejos os mantém suspeita e indiscriminadamente poderosos, pois

    suprimir qualquer verdade é dar a ela uma força além da resistência. O

    medo de que não podemos crescer além de quaisquer distorções que

    possamos achar em nós mesmas nos mantém dóceis e leais e obedientes,

    externamente definidas, e nos leva a aceitar muitas facetas da opressão

    que passamos enquanto mulheres.

    Quando nós vivemos fora de nós mesmas, e com isso digo em diretrizes

    externas unicamente ao invés de por nossa sabedoria e necessidades

    internas, quando vivemos longe daquelas guias eróticas de dentro de nós

    mesmas, então nossas vidas são limitadas pelas formas externas e alheias,

    e nós nos conformamos com as necessidades de uma estrutura que não é

    baseada em necessidade humana, quem dirá na individual. Mas quando

    começamos a viver desde dentro pra fora, em toque o poder do erótico

    dentro de nós mesmas, e permitindo esse poder de informar e iluminar

    nossas ações sobre o mundo a nosso redor, então nós começamos a ser

    responsáveis por nós mesmas no sentido mais profundo. Pois quando

    começamos a reconhecer nossos sentimentos mais profundos, nós

    começamos a desistir, por necessidade, de estar satisfeitas com

    sofrimento e autonegação, e com o entorpecimento que tantas vezes

    parece ser a única alternativa em nossa sociedade. Nossas ações contra a

    opressão se tornam integrais com ser, motivadas e empoderadas desdedentro.

    Em toque com o erótico, eu me torno menos disposta a aceitar

    desempoderamento, ou esses outros estados fornecidos de ser que não

    são nativos para mim, tais como resignação, desespero,

    autoaniquilamento, depressão, autonegação.

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    42/43

    E sim, há uma hierarquia. Existe diferença entre pintar uma cerca no

    quintal e escrever um poema, mas só uma de quantidade. E não há, para

    mim, diferença alguma entre escrever um bom poema e me mover à luz

    do sol contra o corpo de uma mulher que eu amo.

    Isso me traz à última consideração sobre o erótico. Compartilhar o poder

    dos sentimentos umas das outras é diferente de usar os sentimentos de

    outra pessoa como usaríamos um lenço de papel. Quando desviamos o

    olhar de nossa experiência, erótica ou outra, nós usamos ao invés de

    compartilhar os sentimentos daquelas outras que participam na

    experiência conosco. E uso sem consentimento da usada é abuso.

    Para serem utilizados, nossos sentimentos eróticos devem ser

    identificados. A necessidade de compartilhar sentir profundo é uma

    necessidade humana. Mas dentro da tradição europeia-americana, essa

    necessidade é satisfeita por certos proscritos eróticos de gozar-junto. Tais

    ocasiões são quase sempre caracterizadas por um simultâneo desviar o

    olhar, uma pretensão de chamá-las outra coisa, seja uma religião, um

    calhar, violência de multidão, ou mesmo brincar de médico. E esse mal-

    chamar da necessidade e do ato dá vazão àquela distorção que resulta em

    pornografia e obscenidade – o abuso do sentir.

    Quando desviamos o olhar da importância do erótico no desenvolvimento

    e sustentação de nosso poder, ou quando desviamos o olhar de nósmesmas ao satisfazer nossas necessidades eróticas em acordo com outras,

    nós usamos umas às outras como objetos de satisfação ao invés de

    compartilharmos nosso gozo no satisfazer, ao invés de fazer conexão com

    nossas similaridades e nossas diferenças. Nos recusarmos a ser

    conscientes do que estamos sentindo a qualquer momento, por mais

    confortável que possa parecer, é negar uma grande parte da experiência,

  • 8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni

    43/43

    e permitir que nós mesmas sejamos reduzidas ao pornográfico, o

    abusado, e o absurdo.

    O erótico não pode ser sentido indiretamente. Como uma Negra lésbica

    feminista, tenho um particular sentir, conhecimento e compreensão por

    aquelas irmãs com quem eu dancei pesado, me diverti, ou até briguei.

    Essa participação profunda tem sido muitas vezes o precedente a ações

    conjuntas partilhadas não possíveis antes.

    Mas essa carga erótica não é facilmente compartilhada por mulheres que

    continuam a operar sob uma tradição exclusivamente masculina europeia-

    americana. Eu sei que ela não estava disponível pra mim quando eu

    tentava adaptar minha consciência a esse modo de vida e sensação.

    Somente agora, eu acho mais e mais mulheres-identificadas-com-

    mulheres bravas o bastante para arriscar compartilhar a carga elétrica do

    erótico sem ter que desviar os olhos, e sem distorcer a natureza

    enormemente poderosa e criativa dessa troca. Reconhecer o poder do

    erótico em nossas vidas pode nos dar a energia para alcançar mudança

    genuína dentro de nosso mundo, ao invés de meramente acomodação a

    uma mudança de personagens no mesmo teatro tedioso.

    Pois não só nós tocamos nossa fonte mais profundamente criativa, mas

    fazemos aquilo que é fêmeo e autoafirmativo em face a uma sociedade

    racista, patriarcal e antierótica.

    [1] traduzido por tate ann de Uses of the Erotic: The Erotic as Power, in: LORDE, Audre.

    Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series,

    1984. p. 53-59.

    http://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftnref1http://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftnref1