Anarquia e Heteronimia - Estudos Literários

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Ensaio sobre a obra de Fernando Pessoa

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  • NDICE

    APRESENTAO Jos Augusto Cardoso Bernardes 5

    SECO TEMTICA: OS ESTUDOS LITERRIOS EM PORTUGAL NO SCULO XX O "ESTADO DA ARTE,,: OS ESTUDOS LITERRIOS EM FORMA DE DICIONRIO/ENCICLOPDIA Rosa Mana Goulart 11

    A HISTRIA LITERRIA NO SCULO XX: O POSITIVISMO E DEPOIS Carlos M. F. da Cunha 37

    LITERATURA, CNONE E ENSINO Helena Carvalho Buescu 59

    AFUNDAO DA CRTICA LITERRIA NOVECENTISTA: OS ENSAIOS DE PESSOA N'A GUIA Antnio Apolinno Loureno 85

    A 'CRTICA DA CRTICA' COMO 'ROMANCE DE APRENDIZAGEM': O CAPTULO PRESENA F. j. Vieira Pimentel 99

    O TRIUNFO DO CONTEMPORNEO E A CONSOLIDAO NACIONAL Gustavo Rubim 133

    O BANQUETE DA TEORIA, OU COMO COMBATER A SOLIDO Ricardo Namora 177

  • SEcAo NAo-TEMATICA ENTRE LUZES E ROry1ANTISMO: A ESTTICA HEDONISTA

    . DO LICEU DAS DAMAS, DE GARRETT, E A REFLEXO SOBRE "POESIA" QUE PROPE Ofilia Paiva Monteiro' 195

    ANARQUIA E HETERONIMIA EM FERNANDO PESSOA - O BANQUEIRO ANARQUISTA REVISITADO Burghard Baltrusch . 251

    A MORTE DO DIABO" E A PRIMEIRA VIDA DE CARLOS FRADIQUE MENDES, POETA SATNICO PORTUGUS lrene Fialho

    SE TUDO FOSSE S XTASE SBITO: POESIA E MUNDO Ana Lusa Amaral 305

    PROFlssAo ESTUDOS PORTUGUESES E LUSFONOS: O VALOR MATRICIAL NO PAs E ESTRATGICO NO MUNDO (REFLEXES SOBRE A CRISE) Pires Laranjeira 331

    UM TECTO ENTRE RUNAS? AS HUMANIDADES NA UNIVERSIDADE DO SCULO XXI Antnio Sousa Ribeiro 351

    ARQUIVO

    SOBRE A CRIAO POTICA/O FINGIMENTO POTICO Jos G. Herculano de Carvalho 367

    RECENSES 391

  • ANARQUIA E HETERONMIA EM FERNANDO PESSOA - O BANQUEIRO ANARQUISTA REVIS/TADO

    Burghard Baltrusch Universidade de Vigo

    Libertei um. Libertei-me a mim. [ ... ] a liberdade para todos s pode vir com a destruio das fices sociais:l estas so as concluses principais do conto filosfico O Banqueiro Anarquista de Fernando Pessoa, publicado em Maio de 1922 no primeiro nmero da Contempornea, dirigida por Jos Pacheco e ilustrada pr Almada Negreiros. Com a sua pretenso de arejar o provincianismo da Lisboa de princpios do sculo XX, esta revista tambm procurava prolongar no tempo a pequena e elitista revoluo esttica da gerao de Orpheu. No editorial do seu primeiro nmero, a Contempornea apresentava-se como feita expressamente para gente civilizada e para civilizar gente".2 Porm, a contribuio de Fernando Pessoa supe uma variao bastante satrica e ambgua deste ambicioso projecto civilizador.

    O seu conto abre com a descrio de um ambiente desembaraado e alegadamente civilizado num destes clubes inglesa, tradi

    1 Banqueiro: 60. Sempre que no houver outra indicao, as citaes de O Banqueiro Anar

    quista referir-se-o edio de Manuela Parreira da Silva (Assrio&Alvim, cit. Banqueiro) que

    inclui 13 fragmentos. A edio de Teresa Sobral Cunha (Relgio d'gua) tem a inconvenincia

    de integrar estes fragmentos no texto sem que existissem indicaes inequvocas do autor

    se e onde os teria inserido.

    2 Cit. de (consulta em 26/1X/OB).

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    cionalmente alheios aos debates intelectuais ou polticos. Depois de um jantar presumivelmente opulento, um banqueiro rico emaranha o seu ingnuo e servil interlocutor, que actua a modo de um discpulo platnico, com o seu raciocnio complexo e paradoxal. Segue-se uma lio iconoclasta e irnica sobre o que este banqueiro, confessadamente aambarcador, considera ser o verdadeiro anarquismo, do qual se declara inventor e partidrio fervoroso, apesar de as suas prticas profissionais serem, em ltima instncia, anti-sociais e, empregando uma terminologia mais actual, neoliberais. J o oximoro sociopoltico do ttulo, o Banqueiro Anarquista, desconcerta de imediato a quem l este contephilosophique, podendo causar, at, um certo desassossego na prxima visita ao multibanco.

    Alm de outros trs brevssimos contos de lgica paradoxal, este o texto de prosa literria completo mais extenso entre os poucos que Pessoa chegou a publicar em vida. No um texto que tenha recebido uma ateno especial por parte da crtica pessoana,3 embora rios possa oferecer uma perspectiva diferente e bastante sugestiva sobre a heteronmia, da qual pretendo fazer aqui um primeiro esboo.

    N o fundo, O Banqueiro Anarquista um tratado didctico sobre filosofia poltica, disfarado de dilogo vagamente platnico que joga hbil e intencionalmente com diversas variantes de silogismos, tautologias e sofismas. O estilo combina figuras tpicas dos manifestos e panfletos e acaba por construir uma espcie de anti-mito. Porm, os objectivos do texto ficam muito claros logo desde o incio,uma vez que Pessoa quis subverter aqui as ideias fundacionais de poltica e economia da modernidade no Ocidente:

    3 No irei discutir em pormenor os principais estudos d'O Banqueiro Anarquista que se publicaram entre 1988 e 2007: Finazz-Agro 1988, Yabunaka 1988, Sapega 1989, Moiss 1991, Macedo 1991, Rondeau 2004, Jackson 2006 e Kettner 2007. Referir-me-ei a eles de forma exclusivamente indirecta, uma vez que nenhum coloca a questo da importncia do pensamento anarquista para a heteronmia.

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    Desqualifica a ideia de Jean-JacquesRousseau no que diz respeito a uma fraternidade natural que legitimaria os sistemas polticos.

    Contraria a presuno de John Locke que num estado natural todos os seres humanos seriam iguais e felizes.

    Desvaloriza a tese de Adam Smith segundo a qual o fortalecimento do interesse prprio e da completa liberalizao do mer. cado levar-nos-ia automaticamente ao bem-estar geral. Desconstri a maior parte das ideias romnticas reconvertidas em utopias polticas ao longo do sculo XIX.

    Questiona a ideia da revoluo como estrutura arquetpica e psicologicamente inerente cultura humana, em aluso directa ao manifesto comunista de Karl Marx e Friedrich Engels como tambm revoluo bolchevique de 1917.

    Desmascara a profunda contradio entre utopia e resistncia a toda a transformao prtica de utopias em sistemas socioeconmicos e polticos, que caracteriza o conjunto do iderio anarquista.

    Ao classificar toda a dominao e organizao social, todas as conceitualizaes filosficas, jurdicas e polticas como simples fices sociais - que seriam alheias a um saudoso e axiomtico 'estado natural' da vida humana -, o banqueiro segue, em aparncia, o iderio ilustrado de Rousseau. Porm, ao rejeitar a validez de qualquer contrato social, amparado por uma hipottica 'lei natural', reduz a teoria social das Luzes a uma psicologia individualista e a uma tica do egosmo como regulamento da vida humana: cada um tem de libertar-se a si prprio (Banqueiro: 61).

    Com as rotas errticas do fumo do seu charuto a evocarem, avant la lettre, a volatilidade do ser e do sentido da Tabacaria;; de lvaro de Campos, o narrador-protagonista instrui o seu discpulo de forma

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    paternalista e arrogante na sua convico de que qualquer sist~ma poltico e colectivo desembocaria, mais cedo ou mais tarde, em formas de totalitarismo e tirania. Procura ilustrar-no-Io com histrias da sua origem humilde e com exemplos do seu passado de activismo anarquista, chegando seguinte concluso: qualquer grupo organi. zado que pratique o anarquismo, por muito altrusta que sejam os seus ideais, sempre h-de desenvolver mecanismos de hierarquizao e de represso, tanto fora como dentro do prprio grupo. Estes mecanismos ineludveis resultam do facto de toda a razo lgica sempre estar fundamentada num estabelecimento arbitrrio de categorias e, por conseguinte, em esquemas de dominao e subordinao. Dois anos mais tarde (1924/25), o mesmo modelo hierarquizado de raciocnio aplicado por lvaro de Campos nos seus Apontamentos para uma esttica no-aristotlica", que publica na Athena: A arte, portanto, antes de tudo, um esforo para dominar os outros. [ ... ] H uma arte que domina captando, outra que domina subjugando.;, (Pessoal Campos Apontamentos: 256/257).

    Uma vez que existe um conglomerado de normas arbitrrias (dinheiro, estado, famlia, etc.), sobrepostas 'vida natural', sendo este o axioma em que se baseia o seu pensamento anarquista, para o banqueiro j no podem existir ou coexistir igualdade social e liberdade de tiranias ideolgicas. Este argumento emprega-o para desvalorizar tudo o que no seja compatvel com as suas ideias. Como as actividades colectivas nunca sero capazes de abolir as estruturas colonizadoras das mentes e dos comportamentos humanos, s nos restaria a opo da absoluta liberdade individual para abalar de forma eficaz as fices sociais,;. Podemos ler esta subverso pragmtica da utopia anarquista em paralelo com a Esttica no-aristotlica" (ENA), que redirecciona o significado da arte para a fora que emana do indivduo:

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    Assim, ao contrrio da esttica aristotlica, que exige que o indivduo generalize ou humanize a sua sensibilidade, necessariamente particular e pessoal, nesta teoria o percurso indicado inverso: o geral que deve ser particularizado, o humano que se deve pessoalizar, o 'exterior' que se deve tornar 'interior'. (id.: 254)

    No o indivduo que se deve adaptar sociedade, mas a sociedade e as suas fices que devem ser traduzidas pelo indivduo ao seu contexto particular. Se retomarmos a ideia da arbitrariedade de toda a lgica, que o banqueiro tinha alegado para justificar a inevitabilidade da hierarquizao e represso vigentes, at mesmo no seio de uma comunidade anarquista, oferece-se-nos outro paralelismo com aENA:

    Creio esta teoria mais lgica - se que h lgica - que a aristotlica; e creio-o pela simples razo de que, nela, a arte fica o contrrio da cincia, o que na aristotlica no acontece. Na esttica aristotlica, como na cincia, parte-se, em arte, do particular para o geral; nesta teoria parte-se, em arte, do geral para o particular [ ... ]. (ibid.)

    Este exactamente o procedimento que j predicara, desde o ponto de vista sociolgico, o banqueiro. Uma vez que o mais particular numa perspectiva social o Eu, este banqueiro ps-anarquista parte da ideia de que nenhuma actividade colectiva ou estrutura social pode estar baseada exclusivamente na lgica de uma razo poltica ou tica ou seja qual for. O indivduo, 'naturalmente' egosta, no se esforar nunca pelo bem comum sem obter uma compensao, ou sem saber que os seus objectivos ideolgicos realmente se iro cumprir. S a sua liberdade pessoal e egosta seria capaz de se traduzir numa verdade prtica e coerente com a teoria anarquista da liberdade, uma verdade que nunca pode ser reduzida ao mbito terico

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    -discursivo. Desta forma, uma revoluo social s poderia ser levada a cabo pela aco isolada, libertria e autenticamente individual.

    Outra vez estamos a ler, como se fosse num palimpsesto, uma preparao em termos sociopolticos daquilo que viria a ser, dois anos depois, o iderio esttico da ENA:

    Mas, ao passo que o artista aristotlico subordina a sua sensibilidade sua inteligncia, para poder tornar essa sensibilidade humana e universal, ou seja, para a poder tornar acessvel e agradvel, e assim poder captar os outros, o artista no-aristotlico subordina tudo sua sensibilidade, converte tudo em substncia de sensibilidade, para assim, tornando a sua sensibilidade abstracta como a inteligncia (sem deixar de ser sensibilidade), emissora como a vontade (sem que seja por isso vontade), se tornar um foco emissor abstracto sensvel que force os outros, queiram eles ou no, a sentir o que ele sentiu, que os domine pela fora inexplicvel, como o atleta mais forte domina o mais fraco, como o ditador espontneo subjuga o povo todo (porque ele todo sintetizado e por isso mais forte que ele todo somado), como o fundador de religies converte dogmtica e absurdamente as almas alheias na/substncia de uma doutrina que, no fundo, no seno ele-prprio. (id.: 257-258)

    Existem, portanto, fortes indcios que o estudo do anarquismo serviu a Fernando Pessoa como aperfeioamento da ideologia esttica de lvaro de Campos. Alm das bvias influncias ou, pelo menos, do paralelismo com o anarquismo individualista de Max Stir'ner, evidencia-se aqui tambm a convico da superioridade do indi- . vidualismo, presente em boa parte dos textos associados ao heternimo modernista-'futurista'. No Ultimatum, por exemplo, podemos entrever o iderio de um super-indivduo, assombrosamente semelhante quele que Nietzsche concebera estando alm de toda a moral. Tambm nos ensaios sobre A Nova Poesia Portuguesa, assinados pelo

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    Pessoa-ortnimo, este super-indivduo libertrio est implcito no anncio da chegada de um Super-Cames para a cultura portuguesa. O banqueiro anarquista, porm, interessa-se sobretudo pela prtica de um anarquismo individualista, o nico que considera ser digno de ser tomado a srio, uma vez que o bem-estar do indivduo s se transformar em bem-estar colectivo quando as fices sociais forem completamente abolidas.

    Mas como se destroem, ento, as convenes ou fices sociais,,? Pois escolhendo a fico mais poderosa, o dinheiro, para destru-la subjugando-a, querendo evitar, assim, claudicar perante o poder que este exerce sobre os indivduos. Subjugar", em termos de exerccio de poder do prprio indivduo, a palavra-chave, empregada tanto em relao ao dinheiro (Pessoa, Banqueiro: 55, 58) como s fices sociais em geral (id.: 53, 54, 59) e que reaparecer depois tambm na ENA como expresso do desejo de liberar o ser humano da represso das fices sociais e estticas em geral. Quanto ideia da libertao da fico especfica do dinheiro, que prope o banqueiro, esta representa um topos (Curtius) na histria das ideias desde o surgimento da utopia filantrpica do Sculo das Luzes, em constante tenso com um realismo desiludido. Assim o evidencia, por exemplo, o romance Le neyeu de Rameau (1774) de Denis Diderot que incide sobre as questes fundamentais da relao entre indivduo e sociedade, entre arte e moral. O Lui deste dilogo filosfico defende, a partir da sua experincia da vida, um amoralismo comparvel ao do banqueiro, exclamando em certo momento: "Sans doute. De l' or, de l'or. L'or est tout; et le reste, sans or, n'est rien." (cit. de

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    pessoal seria possvel liberar-se da dependncia e do poder da fico monetria. Ou seja, um anarquista coerente com a sua pretenso de destruir as fices sociais" deveria converter-se em banqueiro, com todas as consequncias pragmticas que isso implica: prticas de engano, de monoplio, de competio desleal, etc.

    primeira vista, poderamos ser levados a pensar que esta concluso representa um sofisma e que o banqueiro, que se vangloria de ter encontrado a pedra filosofaI da verdadeira anarquia, s procura desviar a ateno do anarco-capitalismo que deseja impor. Porm, o paradoxo que se estabelece aqui em termos de soluo irnica de um problema filosfico resulta mais complexo. No se d de imediato uma contradio entre a utopia anarquista e a acumulao e o emprego capitalista do dinheiro, mesmo se se aplicassem mtodos desleais, uma vez que o emprego de uma fico social no converte automaticamente a quem a emprega em opressor/a. As fices sociais so apreendidas e internalizadas atravs da educao numa sociedade que as institucionalizou como modelos e no tm a sua origem nas aces de sujeitos individuais, tal como sustenta onosso banqueiro malabarista:

    Eu no criei tirania. A tirania, que pode ter resultado da minha aco de combate contra as fices sociais, uma tirania que no parte de mim, que portanto eu no criei; est nas fices sociais" eu no a juntei a elas. Essa tirania a prpria tirania das fices sociais; e eu no podia, nem me propus, destruir as fices sociais. Pela centsima vez lhe repito: s a revoluo social pode destruir as fices sociais; antes disso, a aco anarquista perfeita, como a minha, s pod suhjugar as fices sociais, subjug-las em relao s ao anarquista que pe esse processo em prtica, porque esse processo no permite uma mais larga sujeio dessas fices. No de no criar tirania que se trata: de no criar tirania nova, tirania onde no estava. (Banqueiro: 59-60)

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    Alm disso, o banqueiro antecipa o debate actual originado por um crescente nmero de estudos scio-psicolgicos e neurocientficos que esto a questionar a velha noo do livre-arbtrio, substituindo-a por uma espcie de iluso benigna de usurio (cf. p.ex. Bargh 2003 ou Dennett 1995). Tambm o banqueiro esboa o panorama de uma humanidade controlada por ideias e ideologemas em vez de vontades individuais ou colectivas: tirania das fices sociais e no dos homens que as incarnam; esses so, por assim dizer, os meios de que as fices se servem para tiranizar,; (Banqueiro: 60).4 pelo outro lado, reclama ter sido capaz de se liberar desta tirania exercida por unidades abstractas, de as ter dominado ou subjugado", portanto, de ter empregado o seu livre-arbtrio. Mas esta prtica poderia ser, seguindo o seu raciocnio, outra fico, embora seja 'individual', como o seria tambm a sua suposio da existncia de uma {{Natureza" como nica lei (id.: 33). A substituio do 'social' pelo 'individual' justifica-se com a compensao egosta" da falta de 'naturalidade do trabalho' e da dificuldade ou prtica impossibilidade da revoluo social na perspectiva de um materialismo individualista: {{Consigo liberdade s para mim, certo; mas como j lhe provei, a liberdade para todos s pode vir com a destruio das fices sociais, pela revoluo social, e eu, s por mim, no posso fazer a revoluo social." (id.: 57). O nico argumento que 'legitima a relao entre este materialismo individualista e o anarquismo o facto de o auxlio" (id.: 41) e o trabalho criarem, inevitavelmente, condies de domnio e tirania: Trabalho sozinho, para no poder, de modo nenhum, criar qualquer tirania." (id.: 51). aqui onde se esgota a tica do banqueiro.

    4 Seria interessante relacionar este domnio quase absoluto que exercem as "fices sociais" sobre o ser humano com as teorias actuais da memtica (cf. Baltrusch 2007).

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    Seria fcil concluir que nos encontramos perante um exemplo paradigmtico de anarquismo cnico, egosta, derrotista ou minimalista, ou seja, de um anarquismo que abandonou a solidariedade, o altrusmo e a utopia que habitualmente esto associados a esta ideologia. Tambm podamos questionar o prprio axioma ou universal da natureta do qual dependem tanto a lgica do anarquismo em geral como a lgica individualista do banqueiro: no ter sido a prpria sociedade, supostamente 'natural', que nos habituou ao capitalismo? O que resulta mais chocante neste raciocnio de segundas e terceiras intenes ser provavelmente o motejo, um tanto insidioso, de poder liberar-se atravs da aquisio do dinheiro. E podamos perguntar-nos tambm: no ficar o banqueiro, apesar de tudo, em eterna dependncia do dinheiro, ao estar condenado a adquiri-lo continuamente a fim de poder gozar a liberdade que este alegadamente lhe oferece? Poderia ser O Banqueiro Anarquista a histria de um impostor, uma traduo falsificadora das ideias anarquistas, ideologicamente dirigida pelo capitalismo ultraliberal? Porque, segundo o juzo do banqueiro, o combate social afinal ir perder-se completamente, tal como as experincias colectivas ou as snteses utpicas, to queridas dos movimentos anarquistas histricos. Sendo assim, a anarquia libertria reduzir-se-ia a nada e converter-se-ia na feroz anarquia da produo capitalista e, por detrs do anonimato do banqueiro e do sorriso alto e compreensivo do seu interlocutor no final do conto, esconder-se-ia nada mais do que um perverso fetichismo mercantil e monetrio.

    Efectivamente, a personalidade ou identidade humana, deposta a mscara (Le. a fico social ou tambm esttica), poder-se-ia ter esvanecido. Este o tropo e o Leitmotiv de toda a obra literria pessoana e que tambm sobressai nos pouco estudados escritos econmicos que Pessoa publicaria na Revista de Comrcio e Contahilidade, da qual foi co-fundador e co-director. No artigo A essncia do comrcio", publicado em 1926 dizia:

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    o comerciante no pode ter opinies, como comerciante, nem deve fazer comercialmente qualquer coisa que leve a crer que as tem. [ ... ] Mais incisivamente ainda: O comerciante no tem personalidade, tem comrcio; a sua personalidade deve estar subordinada como comerciante, ao seu comrcio; e o seu comrcio est fatalmente subordinado ao seu mercado, isto , ao pblico que o far comrcio, [ ... ]. (Pessoa~ Comrcio: 22)

    o comerciante tem "o dever de estudar psicologicamente, e um a um, os agrupamentos humanos (id.: 19) sem se deixar influenciar pelas supostas coisas>, ou sentimentos essenciais" que em toda a. parte so diferentes (ibid.). Tal como no artista, tambm o poltico no se deve guiar por essncias fundacionais que alegadamente existem detrs das mscaras sociais ou estticas.

    N o conto, falta de uma tica universalmente vlida (se descontarmos. o universal da "Natureza,,), o dinheiro converter-se-ia, ento, em autntico (ainda que disfarado) protagonista, reafirmando a ideologia burguesa e a concorrncia em mercados desregulamentados como nicas vias para atingir a liberdade pessoal. Pessoa de facto considerava o intervencionismo estatal na economia como um acto de moralizar quem no precisava ser moralizado" ( As Algemas", id.: 71) - embora isto tenha sido umaconsiderao de ndole exclusivamente terica, tendo em conta a viragem paradigmtica que representava o modernismo em relao aos valores ticos e crescente individualizao. Tambm o banqueiro transformar-se-ia, segundo esta perspectiva, numa mera mscara que s esconde o completo vazio moral da modernidade liberal. Esta substituio dos ideais humanitrios por uma mecnica economicista j tinha sido o alvo da literatura no sculo XVII, no momento decisivo da expanso do sistema monetrio-capitalista. Em Les caracteres de Jean de La Bruyere, apesar de este nunca ter atacado o sistema poltico-social em si mas

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    s as pessoas concretas da sua poca, l-se por exemplo:

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    publicitrio, que se lanara em 1988, a Antgona reivindicou uma poltica editorial caracterizada por um certo anarquismo, denunciando uma supostamente mal-intencionada subverso desta ideologia por parte da tica em relao sua edio do texto pessoano:

    [...] s a editora tica levantou obstculos a esta atitude [do anticopyright" que pretendia levar a cabo a Antgona], quando da publicao, em 1981, de O Banqueiro Anarquista. Apesar dos responsveis da tica terem ento declarado publicamente que iriam processar a Antgona, no o fizeram, e o livro tem-se multiplicado como no milagre dos pes.

    De facto, a edio da Antgona ajudou muito a divulgar este conto pessoano (com cinco reedies at 1997), o que justifica que nos debrucemos um po'Uco sobre os s.eus epitextos e peritextos. Em relao a estes ltimos, as primeiras duas edies da Antgona d' O Banqueiro Anarquista. ainda foram precedidas por um prefcio annimo (assinado por K., Sine Nomine Vulgus) e intitulado Fernando Pessoa - O mito e a Realidade. Como me tinha sido confirmado por escrito em 1988 por Lus de Oliveira, um dos responsveis deste projecto editorial, o autor do prefcio era Carlos K. Debrito, autor de vrios livros editados pela Antgona. Este peritexto, que foi retirado nas futuras reedies, caracterizava o pensamento pessoano como

    [ ... ] a negao, a real-realidade [sic], o infinito vazio do homem a-social, .condenado eternamente ao sofrimento, ao delrio sem paixo, sobrevivncia sem amor, aos infernos onanistas do ser individual. [ ... ] o pensamento [ ... ] dum reaccionarismo grosseiro e, utilizemos os vocbulos ultimados pela histria, FASCISTA. O prosador-Pessoa no um poeta, um cabotino-reaccionrio, primitivo e alinhavado [ ... ]. ([Debrito]: 9, 10-11)

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    Em relao ao anarco-individualismo do banqueiro, Debrito conclui: o homem:"individual nunca poder existir: ou somos um conjunto de indivduos na vivncia de paixes colectivas, fruto do desejo de cada um, ou seremos condenados sempre tristeza medocre dos Pessoas e das suas obras. (id.: 11-12).

    Estas crticas, certamente injustas, devem ser entendidas a partir . do contexto de agitao poltica no Portugal ps-revolucionrio, no qual a intelectualidade de esquerda teve bvios problemas de assimilar a produo intelectual e literria de um autor to polifactico e que demonstrava facetas que uma crtica marxista (ou at anarquista) naturalmente podia identificar como reaccionria, sempre que a tirasse do seu contexto esttico. sabido que Pessoa desconfiava profundamente do comunismo e do socialismo.

    Em o Banqueiro Anarquista pe as suas crticas na boca de um anarquista heterodoxo. So crticas que transparecem, tambm, nos fragmentos que Pessoa produzia ainda depois de 1922 para uma futura ampliao e autotraduo do texto ao ingls (da qual existe um fragmento de duas pginas): A tirania sempre a tirania, disse o banqueiro. Para que diabo substituir a tirania social do sistema burgus pela tirania de Estado do sistema socialista ou do sistema comunista? Isso passar um preso da cela 23 para a cela 24. (Pessoa, Banqueiro: 92). Aqui, se parafraseia, como tambm acontece noutras alturas do texto, a Pierre-Joseph Proudhon, o idelogo novecentista do socialismo utpico e principal inspirador do anarquismo, que dissera: [...] notre tat civil, tel que vous l' avez fait, tat qui fut d'abord despotisme, puis monarchie, puis aristocratie, aujourd 'hui dmocratie, et toujours tyrannie." (Proudhon 1867: 63).

    Sendo um modernista ainda influenciado pelo romntico culto do gnio e da liberdade subjectiva, Pessoa sempre se inclinava por uma sociedade dominada por elites intelectuais e artsticas, simpatizando ocasionalmente com uma burguesia ilustrada ou, at, com a curta dita

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    dura sidonista em Portugal. Mais: estas posturas tambm estiveram entretecidas com os mais diversos inconformismos - tal como a defesa do poeta homossexual Antnio Botto, a sua reaco pblica contra os estudantes integralistas ou as stiras mediocridade de um Salazar recm-promovido a chefe de estado, por exemplo. Contra uma leitura actual desde posies neomarxistas deste conto preciso advertir, . tambm, que aquilo que o banqueiro reivindica , em ltima instncia e fora de toda a actualidade que possa ter hoje em dia, poltica e literariamente uma fico individualista e idiossincrsica. Alm disso, continua a ser, apesar de tudo, uma slida reflexo sobre a utopia da abolio das convenes e fices polticas e sociais (partindo de posies conservadoras, passando pelas marxistas e at s anarquistas). Neste sentido, transparecem sobretudo dois discursos radicais da histria do anarquismo cujas ideias principais Pessoa entretece neste texto.

    Por um lado, h uma clara aluso ao iderio do anarquismo individualista formulado por Max Stirner no seu livro Der Ein{ige und sein Eigentum (O nico e a sua propriedade), escrito em 1845, e que Pessoa conhecia atravs da obra de Paul Eltzbacher que ainda comentarei. Tanto em termos estilsticos como ideolgicos, Stirner era um precursor de Nietzsche e do existencialismo ao defender que Es ist nichts brig geblieben aIs das - Dogma des freien Denkens und der Kritik (Stirner: 163, No resta nada ano ser o dogma do pensamento livre ou da crtica, trad. minha) e ao estabelecer, em consequncia, um solipsismo absoluto: .dch bin das Kriterium der Wahrheit (id.: 400, "Eu sou o critrio da verdade}>, trad. minha). Tal como o mantm o banqueiro, tambm Stirner argumentou que as revolues s serviam para substituir uma ordem pela outra e que a apropriao da matria por parte do indivduo que se concebe como o ponto de partida para superar as fices sociais e ticas: Wie die Welt als Eigentum zu einem Material geworden ist, mit welchem Ich anfange was Ich will, so muE auch der Geist als Eigentum zu einem Material herabsinken,

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    vor dem Ich keine heilige Scheu mehr trage. (id.: 402, Enquanto o mundo como propriedade se transformou em um material com o qual fao o que eu quero, assim tambm o esprito como propriedade deve ser reduzido a um material, perante o qual eu j no sinto nenhum receio sagrado", trad. minha). Tanto Stirner como o banqueiro compartem a radicalidade de rejeitar todo o essencialismo fundacional:

    Jede Wahrheit einer Zeit ist die fixe Idee derselben, und wenn man spater eine andere Wahrheit fand, so geschah dies immer, weil man eine andere suchte: man reformierte nur die N arrheit und zog ihr ein modernes K1eid ano [ ... ] Sie wollten von einem Gedanken beherrscht -besessen sein! Der modernste Herrscher dieser Art ist 'unser Wesen' oder 'der Mensch'. (id.: 399-400, Toda a verdade de uma poca a sua ide ia fixa, e se mais tarde as pessoas encontraram uma outra verdade, isso sempre aconteceu apenas porque se estava a buscar outra: s se reformava a burrice vestindo-a com roupas modernas. [ ... ] As pessoas queriam ser dominadas, possudas por um pensamento! O mais moderno governante deste tipo a 'nossa natureza', ou o 'ser humano' ., trad. minha).

    o outro discurso radical que est subjacente ao discurso do banqueiro poderia provir do Leviathan de Thomas Hobbes, o precursor do darwinismo social, que afirmou em 1651: "Hereby it is manifest, that during the time men live without a common Power to keep them all in awe, they are in that condition which is called Warre; and such a :warre, asisofeveryman, againsteveryman. (cit. de

  • ANARQUIA E HETERONiMIA EM FERNANDO PESSOA 1267

    bes O ressentimento contra ideias e instituies democrticas e Campos em especial tambm a sua doutrina materialista do ser humano.

    Perante a tentao de julgar a concluso d' O Banqueiro Anarquista absurda, como o tentaram impor algumas crticas, seria conveniente

    lembrar que uma sobrevalorizao da alegada ideologia poltica con

    tida neste texto pessoano s produz interpretaes unilaterais. Para

    julg-lo com a devida distncia, seria desejvel aceitar que o ban

    queiro se encontra sujeito obrigao de um anarquista que pretende

    ser minimamente coerente ao tentar superar as convenes e fices

    sociais (incluindo aquelas criadas pelo prprio anarquismo), ou seja,

    que se encontra sujeito a um contnuo processo de liberao da pr

    pria conscincia. Este talvez seja o nico, embora mnimo, consenso.

    que possa existir entre os diferentes anarquismos, sendo isto um tra

    balho naturalmente individual. Ao libertar-se das convenes, aio

    anarquista possibilita ou, pelo menos, aceita que outras pessoas tam

    bm o faam. evidente que podemos ler este conto de raciocnio

    como uma stira do anarquismo, porm, tambm podemos entend

    -lo como o manifesto literrio de um anarquismo individualista. Tal

    vez seja at uma combinao intencionalmente paradoxal das duas

    possibilidades, sobretudo se tivermos em conta o que Pessoa deixou

    . escrito num fragmento para a revista Orpheu, provavelmente em

    1916, para cimentar a sua teoria e prtica heteronmica:

    No h critrio da verdade seno no concordar consigo prprio. O universo no concorda consigo prprio, porque passa. A vida no concorda consigo prpria porque morre. O p':lradoxo a frmula tpica da Natureza. Por isso toda a verdade tem uma forma paradoxaL (Pessoa, Pginas ntimas: 217-218)

    Tambm o anarquismo se caracteriza por uma inerente forma

    paradoxal: Como realizar a utopia, como destruir as fices sociais

  • 268 I BURGHARD BALTRUSCH

    sem tiranizar ningum? a partir desta questo que o persistente interesse de Fernando Pessoa no anarquismo tem de ser analisado. N aturalmente, no podemos afirmar, sem mais nem menos, que Pessoa (ou algum dos seus heternimos) tenha sido anarquista. Se nalgum caso o quisssemos fazer - por exemplo em relao obra de lvaro de Campos - teria de acontecer dentro de uma definio bem especfica, fiel ao facto de que no pode existir uma definio universalmente vlida nem sequer, portanto, do anarquismo. Sempre ser preciso traduzir entre o anarquismo assinado pelo narrador-heternimo de O Banqueiro Anarquista e os elementos prximos da ideologia anarquista que esto presentes no lvaro de Campos dos Apontamentos para uma esttica no-aristotlica ou do Ultimatum ou tambm no radicalismo epistemolgico do heternimo-mestre Alberto Caeiro.

    Em consonncia com muitas e muitos artistas da sua poca, tambm Fernando Pessoa se sentiu atrado pelo esprito individualista do anarquismo. Esta influncia no procedia unicamente de textos de ndole poltica - como por exemplo no caso de The Soul of Man under Socialism de Oscar Wilde -, mas tambm se devia a poetas que Pessoa venerara, como era o caso de Percy Bysshe Shelley, cujos Queen Mab e Prometheus Unbound podem ser considerados poemas virtualmente anarquistas. As diferentes posies ideolgicas e estticas mantidas por Fernando Pessoa ao longo da sua vida evidenciam uma constante preocupao com aquilo que pode ser considerada a questo fundamental da filosofia anarquista: a dicotomia irresolvel entre o indivduo que aspira liberdade mais completa possvel e o desejo de contribuir para uma solidariedade humana em geraL

    Tal como acontece no caso da teoria do ps-modernismo, tambm na 'teoria anarquista' (embora o prprio anarquismo sempre tenhasido um movimento que rejeitou as teorizaes) s existe uma pluralidade de anarquismos, todos caracterizados por uma aporia

  • ~ ..r' .

    ANARQUIA E HETERONMIA EM FERNANDO PESSOA 1269

    intrnseca mas amplamente assumida. Ou seja, da mesma forma que o ps-modernismo subverte todas as metanarrativas, transformando este mesmo processo em nova metanarrativa, tambm o anarquismo se revolta contra todo tipo de ordem e contra todos os sistemas institucionalizados. Mas aquilo que oferece como soluo so, em ltima instncia, outros poderes que, embora sejam utpicos, sempre estabeleceriam, transformados em realidade, uma nova ordem e um novo sistema. O Fernando Pessoa adepto de lgicas paradoxais era muito consciente desta aporia e do sofisma formal em que pudesse cair uma teoria e uma prtica do anarquismo. O anareplismo como teoria, como partido ou como sistema no faz sentido. S seria vivel no contexto da aco: por exemplo a aco sensacionista e inconformista (como no caso de um certo lvaro de Campos), dentro do cape diem de um materialismo nominalista (como no caso de um certo Alberto Caeiro) ou no contexto do compromisso sociopoltico imediato de qualquer sujeito individual.

    Por isso, a dialctica d'O Banqueiro Anarquista construda, de maneira consciente e intencional,. como um sofisma satrico. Mas alm de~ta estrutura narratolgica tambm se.coloca o tema universal do conflito entre a realidade e a fico (ou utopia). O postulado esttico de Pessoa, que a arte moderna uma arte de sonho (Pessoa, Pginas ntimas: 156), com a sua mxima expresso literria no Liyro do Desassossego, estabelece uma separao entre pensamento e comportamento, entre inteno e aco. Esta dicotomia assentou-se na esttica e na histria das ideias sobretudo atravs do modernismo e pode ser visto como uma contribuio para as origens do neolibe..; ralismo desenfreado do final do sculo xx. Porm, para Fernando Pessoa, ainda s se tratava de criar um espao onrico e esttico para entretecer uma teoria e prtica originais e legitim-las reciprocamente. As pervivncias decadentistas nesta concepo modernista de uma dialctica entre realidade e fico aproximam-na, tambm, do

  • 270 I BURGHARD BALTRUSCH

    clebre dictum paradoxal de Oscar Wilde (adaptado das Metamorfoses de Ovdio): All I desire to point out is the general principIe that Life imitates Art far more than Art imitates Life." (Wilde 2004: 18). Esta sobreposio da arte vida, que rev o cientificismo novecentista, um topos modernista que a heteronmia de Pessoa levou at ao ltimo extremo.

    Para alm .do facto de Pessoa ter desprezado abertamente o escritor ingls, importa destacar o cerne da questo nesta stira dialctica", ou traduo transcriadora, do anarquismo que o banqueiro encena. Em ltima instncia, o banqueiro procura convencer-nos de que lgica e realidade no so compatveis, que a lgica no a ferramenta mais apropriada para nos relacionarmos com o mundo e o real. A pardia da lgica dedutiva fica bvia a partir de uma observao da estrutura do conto e da loquacidade do banqueiro que to habilmente encadeia silogismos categricos, hipotticos ou disjuntivos. Todos os silogismos do texto confluem no postulado vanglorioso e satrico do .,Libertei um. Libertei-me eu, evocando o que j exclamara o heternimo "sensacionista" lvaro de Campos na "Passagem das Horas,,:

    Eu sou eu. I Que tenho eu com a roupa-cadver que deixo? I Que ~ tem o c com as calas? I Ento no teremos ns cuecas por esse infinito fora? I O qu, o para alem dos astros nem me dar outra camisa? I Bolas, deve haver lojas nas grandes ruas de Deus. (Pessoal Campos, Liyro: 184)

    O banqueiro, que parte de uma deciso emocional, sensacionista at, e que posteriormente disfarada de raciocnio lgico, para solu. cionar o que principalmente um problema de ndole poltico-social, evidencia tambm um dos axiomas da filosofia pessoana: a fico a nica realidade individual (e vice-versa) .

    ... j . .:

  • ANARQUIA E HETERONfMIA EM FERNANDO PESSOA 1271

    . .

    Em paralelo com a publicao d' O Banqueiro Anarquista, d-se nos nmeros 3 e 4 da Contempornea uma disputa sobre esttica e metafsica entre o Ortnimo e lvaro de Campos que reaparece, em 1924, nos respectivos artigos de ambos na revista Athena, co-dirigida pelo prprio Pessoa. Neste vaivm de argumentos, Campos oferece ainda mais indcios para uma possvel interpretao do segundo plano filosfico do conto: falta de uma definio cientfica, a metafsica (e por extenso a filosofia) deveria ser considerada, provisoriamente, como arte, por uma razo lgica inteiramente irracional, exactamente como a vida. Tambm o paradoxo de um 'banqueiro anarquista' incita a ver este procedimento, to lgico como irracional, em termos de uma mera forma esttica de estar no mundo. Isto poderia representar, embora de forma algo reducionista, uma definio do iderio principal do anrquismo. Fico e utopia so realidades individuais, destinos subjectivos de cada um/a, e dos quais no nos poderemos evadir. Anarquista , em cada circunstncia histrica, o Outro, aquilo que diferente, estrangeiro e temido, num espectro que vai desde a simples fascinao at resistncia activa contra a assimilao e aculturao.

    N um dos 13 fragmentos que Pessoa produziu para uma futura ampliao do conto, com a qual pensava (segundo uma carta a Adolfo Casais Monteiro) conseguir um certo sucesso editorial a nve.l europeu, podemos ler: No comparei o anarquismo com religio nenhuma, nem poderia comparar. O anarquismo a irreligio natural, posta pela Natureza no corao dos homens" (Banqueiro: 88). Estes fragmentos demonstram, por um lado, a amplitude do proj~cto literrio-intelectual do conto e, pelo outro, aproximam o irracionalismo cptico do banqueiro das obras de Caeiro e, sobretudo, de Campos, o heternimo mais produtivo, mais vanguardista e mais elaborado dentro do conjunto heteronmico. Sugere-se, assim, a importncia do anarquismo para uma interpretao de toda a obra

  • 272 I BURGHARD BALTRUSCH

    de quem se tinha caracterizado como um poet animated by philosophy}, (Pessoa, Pginas ntmas, 13).

    Embora o tratamento terico do anarquismo na obra pessoana tenha, em termos quantitativos, uma presena reduzida, possvel comprovar que as suas leituras e reflexes sobre o tema comearam cedo e que tiveram implicaes profundas para a criao literria e ensastica. Na sua biblioteca pessoal encontra-se ainda hoje o livro de Paul Eltzbacher As doutrinas anarquistas, adaptado ao portugus por Manoel Ribeiro e publicado em Lisboa em 1908. O facto de ser assinado pelo heternimo ingls da juventude, Alexander Search, indica-nos que Pessoa o adquiriu, muito provavelmente, antes dos tempos do Orpheu, momento em que diminuiu a produo desta personalidade literria. Do perodo compreendido entre o regresso da frica do Sul em 1905 e a publicao do Orpheu em 1915 provm tambm os numerosos comentrios s leituras filosficas e de cincia de divulgao que Pessoa sempre procurava entretecer com atitudes e ideias prprias e originais.

    Devido ao seu tratamento equilibrado e ao tratamento detalhado das fontes, o livro de Eltzbacher considerado, ainda hoje em dia, como uma das obras de referncia sobre os autores fundamentais do anarquismo histrico: William Godwin, Pierre-Joseph Proudhon, Max Stirner (de cuja obra O nico e a sua propriedade temos vrias reminiscncias no Banqueiro), Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin, Benjamin Tucker e Lev Tolstoj. interessante constatar que Pessoa, um escritor que devido a necessidades econmicas costumava vender livros para comprar outros, tenha conservado precisamente este volume at ao final da sua vida, com muitos sublinhados e anotaes em portugus e em ingls. Na pgina 6 at aparece manuscrita uma espcie de concluso que Alexander Search deve ter tirado para si destas leituras, ordenada em cincopontos e de muito difcil leitura: (d. O meu princpio, seno nico objectivo [na vida] a

    '.

    ~.. .a

    i

  • ANARQUIA E HETERONMIA EM FERNANDO PESSOA I 273

    minha prpria r?] felicidade. / 2. Logo, o ser [ ... ] a felicidade de cada um.". Porm, o que inicialmente parece ser uma apr~ximao s teses de Max Stirner sofre depois uma paulatina viragem existencialista allant la lettre quando, no quinto ponto, Search parece estar a questionar a possibilidade de atingir uma vida satisfatria atravs do anarquismo individualista: 5. Por isso, o meu interesse est [ ...] em mim mesmo [ ... ] minha vida + felicidade para [ ...] mim [ ...] ser possvel?"

    Naturalmente, Eltzbacher no ter sido o primeiro contacto que Pessoa tivera com o anarquismo, uma vez que na sua biblioteca tambm se encontra La Dmocratie indillidualiste de Yves Guyot, de 1907, com indicao de pertena a Fernando Pessa", sublinhado e anotado em ingls e francs.

    Alm destas leituras, O Banqueiro Anarquista tambm permite supor uma influncia dos eventos sociopolticos da poca, que Pessoa costumava acompanhar com ateno. Assim, em Portugal, os chamados crimes do anarquismo estiveram expressamente previstos e punidos pela legislao desde 1896 e, embora a redaco da lei se renovasse em 1910, os seus respectivos princpios no foram alterados. Logo a seguir revoluo republicana de 1910, celebra-se em 1911 o l Q Congresso Anarquista Portugus, dando origem a uma agitao da vida poltica com a posterior criao da C~nfederao Geral do Trahalho, que em 1922 contava com 150.000 membros, e do jornal A Batalha (em 1919). Tambm evidente que a revoluo bolchevique de 1917 tenha sido o grande tema da actualidade de ento. No perodo entre 1917 e princpios dos anos vinte, o aumento dos impostos de uma Repblica em declnio, e os atentados (como o perpetrado contra o dirigente da Confederao Patronal, Srgio Prncipe, em 1922), em combinao com todo o activismo sindical anarquista e bolchevique da poca, levou os bancos, o comrcio e a indstria a sentirem-se ameaados.

  • 274 I BURGHARD BALTRUSCH

    Parte da intelligent'{ia e da juventude, Fernando Pessoa includo, sentia-se em certos momentos enganada pela Repblica e atrada pela suposta novidade do fascismo e pelas suas promessas de ordem e de paz social. Na medida em que a Repblica perdia apoio social no ps-guerra, surgiu, apesar da crise econmica das velhas classes mdias, uma classe de novos-ricos. Havia numerosos especuladores a fazerem fortunas custa da misria geral, um vaivm financeiro que Raul Brando descrevera nas suas Memrias, cujo primeiro volume se publica em 1919. J em 1906, este escritor caracterizara em Os PODres a figura do banqueiro como {{o homem que na terra representa a omnipotncia (Brando: 123), em cujo cofre (,dormem pobrezas metalizadas", como advertia Guerra Junqueiro no respectivo pref~ cio (Brando: X).

    Os ressentimentos eram tantos que boa parte da intelectualidade temia evolues revolucionrias que seguissem o modelo bolchevique, tendo em conta, sobretudo, que comeava surgir um proletariado intelectualizado procura de certezas. O panorama intelectual entre 1910 e 1926 estava caracterizado por um vaivm ideolgico entre posturas nacionalistas, republicanas e monrquicas. Os desejos de mudana eram relativamente anacrnicos, uma vez que uma parte da intelectualidade perseguia a ruptura com o racionalismo e q cientificismo do sculo XIX, demonstrando um certo desinteresse de implicao poltica. Quem ainda defendia as utopias racionalistas do Sculo das Luzes - da razo, da justia e da cincia - eram sobretdo os movimentos anarquistas. Porm, era precisamente esta confiana progressista que lhes valia a difamao de serem um movimento atrasado, uma vez que no atendiam a crtica da razo que se transformara em moda intelectual do momento. N' O Banqueiro Anarquista, que muito provavelmente tinha sido escrito bastante antes da sua publicao em 1922, Pessoa alude, de maneira indirecta, a esta pugna ideolgica entre a crtica modernista da razo e as utopias ilustradas.

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  • ANARQUIA E HETERONMIA EM FERNANDO PESSOA 1275

    Em relao abordagem do tema da propriedade, inspirado por Proudhon, interessante reparar em que o Banqueiro no constitui uma variao literria da clebre afirmao que a propriedade fosse o roubo. Resulta ser, em primeiro lugar, uma variao de uma concluso menos citada de Qu 'esc-ce que la propriet? no sentido que esta representava, tambm, a liberdade. O intelectual francs argumentava que existe, naturalmente, um roubo como resultado do poder e da explorao, porm, admitia tambm o emprego til da propriedade atravs do poder construtivo que exercia o ser humano sobre . as coisas. Em ltima instncia, Proudhon preferia ver a propriedade legitimada como algo que pertence a quem a trabalhe, e menos a quem explore o trabalho de outras pessoas.

    Em consequncia, pode-se deduzir uma justificao da propriedade como liberdade que posteriormente derivou numa concepo da sociedade como constituda de proprietrias e proprietrios em igualdade de condies. O seu legado mais significativo pode ser apreciado nas obras de Benjamin Tucker ou de Ayn Rand, que contriburam para a conceitualizao do anarquismo individualista nos Estados Unidos. Economicamente, este anarco-individualismo ficou desvirtuado nas ltimas dcadas do sculo xx com o surgimento do anarco-capitalismo que no se contenta com rejeitar um estado pouco intervencionista, tal como o faz o neoliberalismo, mas que reivindica a total desmontagem deste estado e a sua substitui-:o pelo prprio mercado. J a crtica do marxismo, que pratica~ ram Proudhon e Stirner, e que Pessoa emula, incidia na concepo autoritria do estado comunista em O Capital, antecipando, de certa forma, a polivalncia ideolgica dos axiomas anarco-individualistas. Proudhon preferiu a ideia da associao mltipla das pessoas que se encontra tambm na origem do iderio colectivista de Bakunin e que, posteriormente, chegou a influenciar o comunismo libertrio de Kropotkin.

  • 276 I BURGHARD BALTRUSCH

    Podemos concluir que O Banqueiro Anarquista de Pessoa parece acompanhar a histria, e at .prever as futuras evolues das ide ias anarquistas. Porm, o anarquismo talvez tenha para O conjunto da obra pessoana ainda outro valor intrnseco e mais alegrico. A construo heteronmica que Pessoa iniciou assenta em boa parte na ideia de que, perante a impossibilidade de definir ou de se aproximar do real, o sonho acaba por ser o nico mundo possvel. Na medida em . que a utopia o horizonte vital de todo o anarquismo, o eu individualizado surge, assim, como construo e exagerao do real. As disseminaes semnticas e desconstrues das utopias anarquistas que o banqueiro prope so, em ltima instncia, uma traduo do profundo cepticismo pessoano em relao a todo o conceptualismo e a todos os sistemas impostos. Aliberdade consiste em abolir todas as convenes, at aquelas do prprio anarquismo - isto podia ser outra das mensagens principais deste texto. A actualidade deste pres- . suposto reside no paralelismo com o ps-modernismo positivamente desconstrutor das metanarrativas e com a crtica do neoliberalismo negativamente globaHzador e desestabilizador.

    Se encarssemos a heteronmia como metanarrativa (cf. Baltrusch 1997: 339ss), ela no implicaria, primordialmente, uma mudana profunda da ordem das coisas e do mundo em termos de construo sociocultural e de fico social. Ao que aspira a heteronmia enquanto discurso e prtica filosfico-esttica a uma modificao da prpria conscincia do indivduo, do sujeito: uma falcia querer apreender a realidade desde a ideologia da existncia do sujeito - e resulta interessante que a neurocincia esteja a confirmar pouco a pouco aquela 'morte do sujeito' que se tinha deduzido da arte e do pensamento do modernismo (cf. Baltrusch, 1997: 56ss e 2007). A heteronmia como discurso esttico e at holstico implica a abolio daquilo que supomos serem as atitudes 'naturais' (e com elas as (,fices sociais,,) em relao a uma realidade inalcanvel em termos de objectivao. Fer

  • ANARQUIA E HETERONiMIA EM FERNANDO PESSOA I 277

    nando Pessoa deve boa parte da sua esttica inovadora sua intensa recepo do anarquismo, como o ilustra o seguinte exemplo do antifundacionalismo de Stirner:

    "Der Kritiker kann zwar zur Ataraxie gegen die Ideen kommen, aber er wird sie niemals los, d.h. er wird nie begreifen, daS nicht ber dem leibhaftigen Menschen etwas Hheres existiere, namlich seine Menschlichkeit, die Freiheit usw. [ ... ] Und diese Idee der Menschlichkeit bleibt unrealisiert, weil sie eben 'Idee' bleibt und bleiben solL (Stirner: 400-401, o crtico pode, de facto, chegar ataraxia apesar das ideias, mas ele nunca se livrar delas, quer dizer, ele nunca vai compreender que acima do ser humano vivo no existe algo mais elevado, ou seja, a sua humanidade, a liberdade, etc. [ ... ] E esta ideia da humanidade permanece sem realizar, porque precisamente e deve permanecer uma 'ideia' ., trad. minha).

    lvaro de Campos declara na sua Esttica no-aristotlica que a arte no parte da beleza, mas sim da ideia de fora: tomando, claro, a palavra fora no seu sentido abstracto e cientfico; porque se fosse no vulgar, tratar-se-ia, de certa maneira, apenas de uma forma disfarada de beleza (Pessoal Campos, Apontamentos: 252). O seu objectivo social o de dominar (

  • 278 I BURGHARD BAlTRUSCH

    vras do lvaro de Campos da "Passagem das Horas,,: {

  • ANARQUIA E HETERONiMIA EM FERNANDO PESSOA I 279

    Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrarios, no os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e no ser nada, no fim, seno o entendimento de tudo - quando o homem se ergue a este pincaro, est livre, como em todos os pincaros, est s, como em todos os pncaros, est unido ao cu, a que nunca est unido, como em todos os pncaros. (in Centeno: 33)

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    ABSTRACT This study argues the inluence ofanarchismin Fernando Pessoa' s theory and aesthetics of heteronomy. Analysis and contextualization of The Anarchist Banker needs to take into account the parallels with, for example, lvaro de Campos' Apontamentos para uma esttica no-aristotlica (Notes on a nonAristotelian aesthetics), or the radical epistemology ofAlberto Caeiro. The banker's discourse, built from the ideas of Max Stirner, highlights one of the great paradoxical axioms of Pessoa's philosophy: fiction becomes the only individual realty (and vice versa). Fallowing the history of anarchy, Pessoa hints at the ideological struggle between the modernist critique of reason and the utopias of Enlightenment. As utopia is the ultimate horizon of anarchism, Pessoa makes the self emerge as an individual construction and the final exaggeration of reality. The timeliness of this assumption lies in its parallelism with a postmodernism positively deconstructing master

  • 282 I BURGHARD BALTRUSCH

    narratives and with a critique of negative1y globalizing and destabilizing neoliberalism. Thus, heteronomy as a holistic and aesthetic discourse, .

    ...

    implies the abolition of what we assume as 'natural' atrltudes (and "social fictions," including those of anarchism itself) in re1ation to an unreachable reality in terms of objectivity. As anarchy represents a kind of unity of multiplicity, so is heteronomy, and O Banqueiro Anarquista is but an exemplification of this condition. The reception of anarchy in Pessoa's work enacts theparadox as the only truth, as a reconstruction within the eternal deconstruction and translation ofmeaning. Therefore, the dialectics of O Banqueiro Anarquista is constructed, consciously and intentionally, as a satirical sophismthat raises the question of the universal conflict between reality and fiction (or utopia).