Análise musical de DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES ESPECIALIZAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, CULTURA E ARTE ANDERSON LOPES DA SILVA A MÚSICA COMO ELEMENTO DE CONSTRUÇÃO CO-NARRATIVA NA CINEMATOGRAFIA GLAUBERIANA: BREVE ANÁLISE DE “DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL” (1964) CURITIBA 2012

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Trata-se de um artigo para a disciplina de Música: Comunicação e Arte, ministrada pelos professores Irídio Moura e Cristina Lemos.

Transcript of Análise musical de DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES

ESPECIALIZAÇÃO EM COMUNICAÇÃO, CULTURA E ARTE

ANDERSON LOPES DA SILVA

A MÚSICA COMO ELEMENTO DE CONSTRUÇÃO CO-NARRATIVA NA

CINEMATOGRAFIA GLAUBERIANA: BREVE ANÁLISE DE

“DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL” (1964)

CURITIBA 2012

ANDERSON LOPES DA SILVA

A MÚSICA COMO ELEMENTO DE CONSTRUÇÃO CO-NARRATIVA NA

CINEMATOGRAFIA GLAUBERIANA: BREVE ANÁLISE DE

“DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL” (1964)

Trabalho apresentado ao Curso de Especialização em Comunicação, Cultura e Arte, na disciplina de Música: Comunicação e Arte, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, sob a orientação da professora mestra Cristina Lemos e do professor especialista Irídio Moura, como requisito parcial à obtenção de nota.

CURITIBA 2012

INTRODUÇÃO: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CINEMA NOVO BRASILEIRO

O cinema novo brasileiro representa um marco não apenas para a história da

cinematografia nacional; mas também é visto por críticos e acadêmicos como um

movimento artístico que deixou um grande legado à história mundial do cinema. Isso

se deve as suas características estéticas, ousadia e de inovação que o referenciam

quando se discute a linguagem cinematográfica e a temática política-realista da

sociedade brasileira dos anos 1960. É sabido também da importância histórica e

cultural de outros dois grandes movimentos cinematográficos internacionais, quase

que simultâneos ao período do cinema novo brasileiro. Trata-se do Neorrealismo

Italiano e da Nouvelle Vague Francesa, fortes influenciadores desse período.

O primeiro movimento citado se iniciou após a Segunda Guerra Mundial, por

volta de 1945 na Itália. Com um conceito totalmente oposto aos filmes hollywoodianos

– já com grande aceitação popular na época -, cineastas como Roberto Rossellini,

Vittorio De Sica, Federico Fellini, Luchino Visconti, Cesare Zavatinni, Michelangelo

Antonioni, entre tantos outros, trouxeram à sétima arte a realidade dura e conflituosa

de um país fascista e com sérios problemas sociais.

Por isso, de acordo com Mariarosaria Fabris (1996, p. 37), a motivação

desses diretores vinha em consenso com os anseios da sociedade italiana: “A Itália

saía moralmente renovada dos acontecimentos de que fora palco entre setembro de

1943 e abril de 1945.” Ela diz ainda: “O país estava em ruínas, mas a tomada de

consciência das massas populares parecia ser uma garantia para o futuro democrático

da nação.” E completa:

Para os homens de cultura impunha-se a necessidade de registrar o presente – e por presente entendia-se a guerra e a luta de libertação -, de fazer reviver o espírito de coletividade que havia animado o povo italiano.

Filmes como Ossessione (1943), Roma Città Aperta (1944-19945) e Ladri di

Biciclette (1948), são mostras do que os diretores-autores intentavam apresentar o

que acontecia como uma nova forma de se fazer cinema e crítica social. Filmagens em

ruínas da cidade, atores amadores e a temática política eram quase uma constante.

Labaki (1998, p. 12), ao falar sobre a estética do cinema italiano, comenta que tal

influência do neo-realismo foi muito nítida no eixo Rio-São Paulo. Ele cita alguns dos

filmes que são exemplos dessa influência diretiva: “‘Agulha no Palheiro’ (1953), de

Alex Viana; ‘Rio, 40 Graus’ (1955), de Nelson Pereira dos Santos; ‘A Estrada’ (1957),

de Oswaldo Sampaio; e o ‘O Grande Momento’ (1958), de Roberto Santos”.

Por sua vez, o movimento Nouvelle Vague – traduzido livremente como a

‘nova onda’ – foi engendrado na França com forte base existencialista e humanista por

volta do fim da década de 1950 e início de 1960. Procurando trazer uma renovação ao

cinema francês, jovens críticos que atuavam na revista especializada em

cinematografia, a ‘Cahiers du Cinéma’ (existente até hoje); deixaram de lado a

passividade de apenas criticar obras alheias e foram pessoalmente atuar por trás das

câmeras.

Os nomes de importância do período centram-se em François Truffaut, Eric

Rohmer, Chabrol, Jean-Luc Godard, Alain Resnais, entre alguns outros. Algumas das

obras de destaque da cena artística do momento em questão, que até hoje são

reverenciadas por estudiosos e amantes do cinema, como Hiroshima mon amour

(1959), Les quatre cents coups (1959), A bout de souffle (1959-1960), entre outras

trazem consigo uma distinta forma de retratar a vida e o seu presente. O que na visão

de Pepe Escobar (1995, p. 149), é descrito da seguinte forma: “Para eles, o cinema

era uma maneira fascinante de descobrir o mundo e tentar compreender sua política,

psicologia, estrutura e linguagem”.

Seguindo conceitos advindos de tais obras e diretores acima, os brasileiros

Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Anselmo Duarte, Cacá

Diegues, Roberto Farias, Trigueirinho Neto e outros nomes importantes, produziram

em terras brasileiras produções, como já ditas, de relevância internacional.

Estas produções denotavam não pertencer simplesmente a mais uma

experimentação cinematográfica limitada às fronteiras do país. Como Paulo César

Saraceni (1993, p. 111) – outro nome de importância do período – explica com a nítida

clareza de quem viveu e experimentou uma nova forma de fazer cinema: “O

‘movimento’ não seria mais racional, tínhamos que aproveitar nossa ida à Europa. [...]

Tinha que ser um movimento internacional”. Para tal ideal, levar o cinema brasileiro

para fora, de acordo com Saraceni, era necessário aproveitar a presença do escritor e

embaixador brasileiro Paulo Carneiro (que estava na Unesco), o crítico Almeida Salles

como adido cultural em Paris e o renomado diretor e produtor italiano Gianni Amico,

que ele chama de “guru” do movimento. “Ninguém melhor que ele para introduzir esse

cinema novo recém-nascido”, diz.

Assim, durante a década de 1960, de acordo com Fernão Ramos (1987, p.

301), o Cinema Novo do Brasil começou a se desenvolver de maneira muito ligada aos

conceitos ideológicos de então, como o período pós-guerra e a forte conotação do

binômio nacionalismo-modernidade que vigora na época. Não bastasse isso, a ideia

de se instalar uma grande conjuntura de um cinema industrial em São Paulo, reforçava

o ideal de se fazer cinema em larga escala no país: nascia a Companhia Vera Cruz.

Segundo Labaki (1998, p. 11): “Visando lançar bases industriais, surgia na São Paulo

da virada dos anos 40-50 a Companhia Vera Cruz, liderada por Alberto Cavalcanti e

moldada na Cinecittà italiana”.

Porém, mesmo que o Cinema Novo tenha seu foco num cinema que não é

voltado ao estilo comercial, esses ideais de produção cinematográfica brasileira com

estruturas sólidas, viriam mais tarde ser expostos nas falas dos jovens cineastas.

Desse modo, para que se possa compreender de que maneira Glauber usa a música

em sua obra “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964), faz-se necessário compreender

um pouco sobre a trajetória artística de um dos mais importantes nomes do cinema

nacional.

GLAUBER ROCHA: VIDA, OBRA E O ‘CINEMA DE AUTOR’

Baiano de Vitória da Conquista e filho de uma família presbiteriana de classe

média, o menino Glauber Pedro de Andrade Rocha nasceu no dia 14 de março de

1939. Filho de Lúcia Mendes de Andrade Rocha e do comerciante, engenheiro prático,

Adamastor Bráulio Silva Rocha, Glauber desde cedo já teve o apoio da mãe para o

desenvolvimento de seus interesses artísticos.

Fonseca (1987, p. 27), sobre o assunto, diz que esse apoio se refletiria mais

tarde: “[...] no fato de ter sido ela a responsável pelo figurino de vários de seus filmes”.

Sobre o pai, a autora traz uma importante informação: “Do pai o menino herdou o

conhecimento do sertão. Acompanhando-o desde pequeno em suas viagens [...]

assistiu de perto a miséria e a violência sertaneja.” Fonseca ainda comenta que foi a

partir dessas viagens ao interior nordestino que Glauber pode ver as lutas pela posse

das terras e pode ouvir as mais variadas histórias do povo sobre os jagunços e os

cangaceiros; temas que, anos depois seriam abordados em sua cinematografia.

Segundo a autora:

Glauber não gostava da escola; em compensação, aos domingos ficava aflito para logo terminassem os cultos presbiterianos (que a família o obrigava a frequentar) e fugir para o cinema. Dos filmes não guardava apenas o enredo; gostava de decorar os nomes dos atores, diretores, câmeras, com atenção incomum. (FONSECA, 1987, p. 28)

Depreende-se daí que o gosto pela sétima arte era vivenciado desde a época

da infância de Glauber. Já na juventude, por volta de 1960, ele interrompe a faculdade

de direito e resolve atuar naquilo que realmente lhe atraía: a cultura do cinema. Antes

dos vinte anos, Glauber Rocha havia realizado pelo menos duas obras audiovisuais (O

Pátio e Uma cruz na praça), mas, como conta Fonseca (1984, p. 30), foi somente em

1962, com Barravento, que o talento obteve reconhecimento e o fazer cinema tornou-

se profissão: a obra foi selecionada para o Festival de Karlov Vary (Tchecoslováquia),

e acabou levando o prêmio Opéra Prima.

É a partir daí que surge o polêmico e ousado diretor Glauber Rocha e seu

grupo de amigos (como León Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Miguel Borges,

Marcos Freire, Mário Carneiro e outros) em reuniões que, de acordo com Gomes

(1997, p. 135), tinham: “O objetivo [...] de transferir para o cinema a fermentação que

já se registrava no teatro, na literatura [...], nas artes plásticas e na arquitetura [...]”.

Usando as palavras escritas pelo punho do diretor e organizadas por Cristina

Fonseca, em “O Pensamento Vivo de Glauber Rocha” (1987, p. 22), o Cinema Novo

pode ser traduzido como o anseio de jovens diretores em transformar o Brasil por meio

da arte cinematográfica. Ele afirma: “Nosso cinema é novo não por causa de nossa

idade. [...] é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova

e nossa luz é nova e por isto nossos filmes nascem diferentes dos cinemas da

Europa”.

Assim, mesmo que negando o papel de “líder” do novo grupo, Glauber sempre

foi o teórico do Cinema Novo. Em sua obra “Revolução do Cinema Novo” (1981, p.

17), Glauber Rocha define bem os propósitos buscados por todo o grupo de cineastas:

“Nossa geração tem consciência: sabe o que deseja. Queremos fazer filmes

antiindustriais; queremos fazer filmes de autor, [...] um artista comprometido com os

grandes problemas de seu tempo”. E afirma complementando: “[...] queremos filmes

de combate na hora do combate e filmes para construir no Brasil um patrimônio

cultural. Não existe na América Latina um movimento como o nosso”.

Esta visão destaca bem o conceito de ‘cinema de autor’ advindo,

principalmente, de um dos influenciadores estético do Cinema Novo Brasileiro, a

Nouvelle Vague Francesa, isto é: um cinema feito por um autor/diretor intensamente

preocupado em transformar, em inovar e fugir do que é padrão, em especial o padrão

comercial. Ou como muito bem diz Jean-Claude Bernadet (1994, p. 139), ao usar a

própria fala de Glauber em seu livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963): “Se o

cinema comercial é tradição, o cinema de autor é a revolução”. Glauber ainda diz:

A política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos de hoje nem é mesmo necessário adjetivar um autor como revolucionário, porque a condição de autor é um substantivo totalizante. [...] O autor é o maior responsável pela verdade: sua

estética é uma ética, sua mise em scène é uma política. Em suma, a intensa vida de um dos diretores brasileiros mais conhecidos no

mundo inteiro resultou em 42 anos de vida, quinze filmes, oito longas e setes curtas,

dois livros de ensaio, artigos para jornais e um programa de TV. Ou como Fonseca

(1984, p. 25) sintetiza: “Apenas três de seus filmes já são suficientes para colocar

Glauber Rocha entre os maiores cineastas contemporâneos”.

São eles: Deus e o diabo na terra do sol (1964), ganhador do Grande Prêmio

no I Festival Internacional de Cinema Livre [Porreta, Itália] e Prêmio da crítica

mexicana no Festival Internacional de Acapulco; Terra em transe (1967), ganhador do

Prêmio Internacional da Crítica no Festival de Cannes, Prêmio Luís Buñuel da crítica

espanhola, Prêmio Golfinho de Ouro, do Museu da Imagem e do Som [Rio de Janeiro],

Prêmio Melhor Filme, dado pela crítica cubana e oito prêmios no Festival de Locarno

[Suíça]; e o Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), ganhador do Prêmio

de melhor direção no Festival de Cannes, Prêmio Luís Buñuel, da crítica espanhola,

Prêmio Cinema de Arte [França], Prêmio de Melhor Diretor, dado pelo Instituto

Nacional de Cinema do Brasil.

A MÚSICA COMO FERRAMENTA DE DISCURSO NARRATIVO EM “DEUS E O

DIABO NA TERRA DO SOL” (1964)

O filme conta a história do vaqueiro Manoel e sua esposa Rosa, ambas

personagens de um enredo que mostra as mazelas da seca, da fome e de um mundo

onde lei, cangaço, religião e fé se imbuem de significados não tão distintos entre si. De

maneira sucinta, “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964), dirigido por Glauber Rocha,

mostra as venturas e desventuras deste casal que vai em busca de paz e justiça, após

se depararem com uma situação onde o Coronel Moraes é morto por Manoel (em

virtude de uma mal sucedida partilha de bois) e a mãe do protagonista é morta pelos

jagunços do coronel. Nesse ínterim, Manoel vê uma procissão de fiéis seguindo um

‘apóstolo do sertão’, Sebastião, que lhes promete uma vida de fartura e abundância

com Cristo, através dos fins dos tempos, ali no sertão mesmo.

Desse modo, resumidamente, o casal segue Sebastião e se envolvem com os

métodos violentos do ‘santo’ para trazer justiça e paz àquela terra sem lei. Entretanto,

a Igreja se vê ameaçada pelos sectários e os latifundiários, que temem pelas suas

terras, buscam ajuda em Antônio das Mortes, cangaceiro matador de larga fama;

incumbido de assassinar Sebastião e seus seguidores.

Em meio a tantas reviravoltas dentro do próprio grupo, Sebastião é morto por

Rosa e, ela e o marido, resolvem fugir. Nessa fuga se encontram com outros

cangaceiros liderados por Corisco e Dadá, sua esposa. Assim, enquanto o casal sai

com o novo bando realizando arruaças épicas com Corisco, que viveu no bando de

Lampião, outro jagunço segue de perto os passos deles: Antônio das Mortes. Enfim,

Corisco e todo seu grupo são mortos (e decapitados) pelo jagunço e, num dos mais

belos travellings da trama, Manoel e Rosa saem em disparada, correndo pelo seco

sertão de Cabrobó, ao som dos versos: “O sertão vai virar mar e o mar virar sertão...”.

Todas as dez canções analisadas neste trabalho foram escritas pelo próprio

diretor Glauber Rocha, o que denota mais uma vez a forte presença do conceito de

cinema de autor na cinematografia glauberiana. Entretanto, elas foram compostas

melodicamente e interpretadas pelo cantor Sérgio Ricardo, que ficaria famoso por

apresentar a música “Beto Bom de Bola” no III Festival de Música Popular Brasileira

[TV Record] de 1967 e, mais famoso ainda, por ter perdido a ‘compostura’ e quebrado

o violão no palco, sob as vaias e gritos da plateia.

Esta interessante mescla de ‘vozes’ entre compositor (Glauber) e intérprete

(Sérgio) na construção das canções, de acordo com Seincman (2008, p. 25), é muito

importante para a construção dos sentidos que se obtém a partir de uma única

composição, de uma única interpretação para o público que recebe e ressignifica a

canção. Ele, insistentemente, destaca: “A obra musical só se efetiva, de fato, na

performance, em sua relação com os ouvintes.” E completa dizendo que a partir do

momento de finalização de uma obra, esta já não “pertence” mais ao seu “dono”, o

compositor, pelo contrário: ele passa a ser mais um ouvinte no campo estético da

recepção, tendo direito as suas múltiplas interpretações.

Sobre o intérprete, de igual modo, o autor ressalta que, ao receber uma

composição: ele “irá tratá-la como matéria bruta de uma nova lapidação que resultará,

por sua vez, na matéria-prima dos ouvintes” (SEINCMAN, 2008, p. 26). E é esta

matéria-prima concedida aos ouvintes – ou espectadores, no caso - que nos interessa

a partir de agora.

A música “I – Abertura” traz um verdadeiro prólogo tanto ao enredo do filme

quanto ao que se denominou chamar de “Romance Violado”, isto é, ao conjunto das

canções (e alguns trechos do filme, como o áudio do discurso de Sebastião e Corisco)

lançadas em LP, no mesmo ano, pela Forma FM-3.

Esta canção introduz a o elemento narrativo já na letra, ao comunicar, como

nos antigas histórias orais, sobre o que se pretende falar. Esse aspecto da música

ligada à narrativa popular, na visão de Wisnik (1999, p. 166), citando o antropólogo

Lévi-Strauss, se deve principalmente as qualidades semiológicas de ambas:

A afinidade entre o mito e a música permite entender a ideia lévistraussiana de que, em determinado momento, estruturas que se realizavam na esfera do mito tomam de assalto, por assim dizer, a esfera da música [...]. Assim, no período tonal, ‘tudo se passa como se a música e a literatura dividissem entre si a herança do mito’, ficando uma com os personagens e a ação, e a outra com o tecido relacional através do qual se encadeiam os motivos.

Da mesma forma, eivada da cultura nordestina, em especial da literatura de

cordel, a canção é rimada e ritmada ao modo de um legítimo repente. Ou seja, no

plano puramente sonoro-musical, as qualidades da fonte, do objeto e do ente

sonoros são distinguidas quase que de imediato por quem ouve a música de cena.

No plano sensível, esta canção traz, logo no início, a identificação de uma

fonte sonora e de um objeto sonoro, em outras palavras, o ‘bater’ das cordas, que

transmite ao espectador que aquele som é um som de violão e, dado o contexto em

que se passa a narrativa, o uso deste objeto sonoro é extremamente aceitável por se

tratar de uma espécie de ‘western’ no sertão. Dificilmente ter-se-ia uma mesma

experiência estética com uma música de cena onde o samba, o jazz ou o rock, por

exemplo, fossem presentes.

Por quê? Pela questão, já citada, da contextualização entre som e imagem,

que Ángel Rodriguez (2006, p. 276) explica muito bem, ao falar do ‘casamento’

audiovisual: “O papel do som na narração visual não é [...] o de um acompanhamento

redundante. [...] o som não enriquece imagens, mas modifica a percepção global do

receptor”. Ele ainda explicita quais são as contribuições da música como elemento de

construção co-narrativa audiovisual, ao dizer que o som: “1. Transmite sensações

espaciais com grande precisão; 2. Conduz a interpretação do conjunto audiovisual e;

3. Organiza narrativamente o fluxo do discurso audiovisual”.

Assim, com a mesma relevância, o plano expressivo faz o espectador-ouvinte

vivenciar a história – por meio da letra e da interpretação musical - que se passa

naquele sertão árido, onde a esperança de um casal malogrado vai da fé em

Sebastião (religiosidade) ao combate armado com Corisco (violência contra violência).

Tatit (1999, p. 45) reforça essa ideia ao explicar que: “A letra, a melodia e todo o

acabamento musical que compõem a canção delineiam um campo especialmente

rendoso para a comprovação dessas conquistas.” Segundo o autor, tais conquistas

referem-se ao uso da semiótica no plano expressivo da canção, trazendo ao

entendimento do ouvinte: “a integração e a compatibilidade entre elementos verbais e

não-verbais como se todos concorressem à mesma zona de sentido”.

As canções seguintes vão passando de um timbre uníssono de voz e uníssono

instrumentalmente (cordas do violão), para andamentos bem diversificados. Como

exemplo, basta ver que as canções “II – Manuel e Rosa”; “IV – A mãe”; “V – Antônio

das Mortes”; “VII – Lampião”; “VIII – São Jorge”; e “IX – A procura”, durante toda a

execução, possuem um andamento lento, quase que só narrativo, com pausas e notas

muito, muito alongadas. A canção “IV – A mãe” não tem acompanhamento de violão e

soa numa melancolia e tristeza que seriam totalmente indizíveis se deixadas apenas à

mercê das imagens, aliás, a rápida cena da morte da mãe quase não possui nenhum

significado emotivo pelo distanciamento dos enquadramentos/planos e movimentos e

pela celeridade com a qual a representada.

Ainda sobre o andamento, as canções “III – Sebastião” e “X – A perseguição”;

trazem uma rapidez nos acordes e na interpretação que dão o tom de emoção, perigo

e adrenalina requisitados pelas cenas. Além disso, a canção “VI – Corisco”, é a única

a ter uma evolução durante a interpretação indo de um ritmo lento, com as mesmas

notas alongadas, mas que, de repente, se transformam pelos acordes rápidos e bem

ritmados. Em suma, as sensações trazidas pela música também sofrem esta

mudança, o que, somente com as imagens, dificilmente se conseguiria fazer num

plano narrativo meramente visual. Com a mesma importância, as mudanças de altura

(melhor apresentadas na tabela – anexo 1) também são perceptíveis.

Acerca desta canção em especial, o pesquisador Livio Tragtenberg (1999,

p.115), mostra a importância de se aliar uma música de cena a um personagem, isto

é, Corisco, e a consequência disto na construção narrativa de um filme. O autor

afirma: “A canção de personagem pode assumir o tom de protesto, desafio,

testemunho, mas sempre como expressão íntima de personagem”. A mesma

concepção se estende às outras canções temáticas de determinados personagens, o

que é chamado de leitmov.

Assim, a música que fala de Corisco tende a ser mais rápida e enérgica tal qual

é a atitude do personagem, ou como diz Tragtenberg (1999, p. 116), salientado esta

ideia: “A canção de personagem serve-se de todos esses recursos como dados

objetivos, técnico-musicais, para buscar o tipo de curva melódica que expresse da

forma mais adequada as características da personagem”.

Esta experiência do som e da música como indissociáveis ao entendimento, à

comunicação e à expressividade de um filme é abordada por Luiz Adelmo (2003, p.

112), que afirma: “Fundamentalmente [...] o som associado à imagem passa a ser

entendido dentro de uma nova relação: [...] criando uma nova dimensão”. E completa,

ao relacionar este aspecto ao conceito de contínuo sonoro:

O conceito de contínuo sonoro pode ser entendido como a construção complexa de sons dentro do filme, na qual os sons empregados muitas vezes estão dispostos e são usados em função de necessidades inerentes à faixa sonora: continuidade, timbre, fluência, e, em alguns casos, misturando-se com a estrutura do filme, sendo necessária uma visão mais ampla e complexa da estrutura do filme para serem entendidos.

Para se ter ideia da importância musical na cinematografia glauberiana, o

diretor de “Deus e o Diabo na terra do sol”, segundo Labaki (1995) comentou uma

interessante (e polêmica) assertiva sobre sua película: “ ‘Uma ópera popular primitiva,

brasileira e sem rebuscamentos’, eis como define sua o obra o próprio Glauber Rocha,

ao referir-se a ‘Deus e o diabo na terra do sol’, em entrevista concedida a este jornal”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O filme de Glauber Rocha, por si só é um marco no que diz respeito ao cinema

nacional e ao movimento no qual esteve inserido, o Cinema Novo Brasileiro. Mais do

que isso, o filme foi sucesso no exterior e quase ganhou “Cannes” em 1964.

Assim, o sucesso do filme pela crítica e público nacional e, por conseguinte,

internacional muito se deve à musica de cena que perpassa toda a narrativa. Ou seja,

no momento em que se vê Sebastião e a forte música que fala dele e de seus atos,

reforça-se a carga sígnica que há no personagem, no enredo e no desenrolar da cena.

Buyssens (1972, p. 71), ao tratar de semiologia e linguística, dá um exemplo

prático de como somente a língua ou o diálogo não é suficiente para se compreender

o mundo e, no neste caso, os filmes. Ele fala: “O discurso é a única semia que tem um

caráter universal; qualquer homem normalmente constituído conhece uma língua pelo

menos. Mas o discurso tem, assim mesmo, seus limites”.

E é aí que a música, a canção e suas especificidades entram em cena e

‘traduzem’ qualidades, sentidos, expressões, comunicação e aspectos culturais e

artísticos inerentes somente a ela e seu liame com a narrativa. Sobre o assunto, Eric

Buyssens (1972, p. 58), abordando a questão dos sons e da música como um sema,

um signo presente na vida sensorial de todo e qualquer espectador, comenta: “Os

semas auditivos possibilitam comunicar-nos de bem longe, por meio das gravações,

permitem a comunicação, mas é evidente que o que se mantém através do tempo já

não é um fato sonoro e sim uma gravação”.

Ou seja, como o cinema nos possibilita a aventura de sonhar e viajar nas

narrativas, Capuzzo (1986, p. 68) ainda nos deixa claro que o cinema de Glauber e a

música usada na narrativa, também exercem tal força sobre o espectador, que até

mesmo um determinado personagem glauberiano – como o Antônio das Mortes -

ganha um significado até então nunca obtido pelo cinema brasileiro: a ambiguidade de

caráter. “Hoje em dia esse personagem apresenta características mais ambíguas,

pendendo muitas vezes para o lado do bem e do mal simultaneamente, como em

‘Deus e o diabo na terra do sol’ de Glauber Rocha.”

Em síntese, a experiência estética que se obtém por meio das canções

analisadas, além de levar o espectador a vivenciar os dramas, medos, aventuras e

ilusões dos personagens, ainda serve como elo no discurso audiovisual ao tornar-se

importante peça na construção co-narrativa da trama.

ANEXO 2 – LETRAS DAS MÚSICAS ANALISADAS

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL

LETRA: Glauber Rocha

MÚSICA E INTERPRETAÇÃO: Sérgio Ricardo

Romance do Deus Diabo

I

Anunciando ao público, marcante e

lento:

Vou contar uma história Na verdade é imaginação Abra bem os seus olhos Pra enxergar com atenção É coisa de Deus e Diabo Lá nos confins do sertão

II

Narrativo, lento:

Manuel e rosa Vivia no sertão Trabalhando a terra Com as própria mão Até que um dia -pelo sim pelo não- Entrou na vida deles O santo Sebastião Trazia a bondade nos olhos Jesus Cristo no coração

III

Agitado, rápido, na feira:

Sebastião nasceu do fogo No mês de fevereiro Anunciando que a desgraça Ía queimar o mundo inteiro Mas que ele podia salvar

Quem seguisse os passos dele Que era santo e milagreiro Que era santo

Que era santo Que era santo e milagreiro

IV

Fúnebre, triste, lento:

Meu filho, tua mãe morreu Num foi da morte de Deus Foi de briga no sertão, meu filho Dos tiro que o jagunço deu

V Lento, dramático:

Jurando em dez estrelas Sem santo Padroeiro Antonio das mortes Matador de cangaceiro Matador de cangaceiro! Matador, matador Matador de cangaceiro!

VI Narrativo, despertando, anunciando:

Da morte do monte Santo Sobrou Manuel Vaqueiro Por piedade de Antonio Matador de cangaceiro A estória continua Preste lá mais atenção Andou Manuel e Rosa Pelas veredas do sertão Até que um dia -pelo sim pelo não- Entrou na vida deles Corisco o diabo de Lampião

VII Narrativo, triste, evocado da morte:

Lampião e Maria Bonita Pensava que nunca Que nunca morria Morreram na boca da noite Maria Bonita Ao romper do dia

VIII Trágico, anunciando desgraças:

Andando com remorso Sem santo Padroeiro Volta Antonio das Mortes La ia la ii Vem procurando noite e dia La ia la ii Corisco de São Jorge La ia la ii

IX Anunciando o final trágico:

Procurou pelo sertão Todo o mês de fevereiro O Dragão da Maldade

Contra o santo Guerreiro Procura Antonio das Mortes Procura Antonio das Mortes Todo o mês de fevereiro

X Em diálogo, feroz, ritmo de luta:

- Se entrega Corisco - Eu não me entrego não Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão - Se entrega Corisco - Eu não me entrego não Não me entrego ao tenente Não me entrego ao capitão Eu me entrego só na morte De parabelo na mão - Se entrega corisco - Eu não me entrego não

Farrea, farrea povo Farrea até o sol raiar Mataram Corisco Balearam Dadá (bis…) O sertão vai virá mar E o mar virá sertão

Tá contada a minha estória Verdade e imaginação Espero que o sinhô Tenha tirado uma lição

Que assim mal dividido Esse mundo anda errado Que a terra é do homem Num é de Deus nem do Diabo (bis)

ANEXO 3 – CRÍTICAS PUBLICADAS AO FILME EM 1964 E 1994

“Deus e o diabo na terra do sol”

Benedito J. Duarte (4 e 5 de setembro de 1964) – Folha de S. Paulo

Ao afirmar, desde logo que não me agradou o filme de Glauber Rocha – “Deus

e o diabo na terra do sol” – não quero, com essa apreciação preliminar e radical, negar

a inteligência de seu realizador, nem menosprezar seu entusiasmo de jovem, no

manuseio dessa história de cangaço e misticismo, na sua ambição de realizar algo

definitivo nesse indefinido “Cinema Novo”, de que ele é o campeão insuperável e o

guarda-costas mais fiel.

Uma longa conversa com Glauber Rocha antes de assistir ao filme foi-me muito

benéfica, na antecipação da análise da obra, e as declarações prestadas por seu

realizador a respeito de suas ideias, gerais e particulares, sobre “Deus e o diabo”, a

abarcar o panorama do cinema brasileiro atual, firmaram posições, definiram pontos

de vista e esclareceram satisfatoriamente algumas contradições e incoerências de

atitudes encampadas no livro de Glauber “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” sobre

o qual eu escrevera exaustivamente neste jornal. E, como após a leitura desse livro, a

impressão que fica, ao acender das luzes depois da projeção de “Deus e o diabo na

terra do sol”, é a de que Glauber Rocha deu um passo maior que as pernas,

claudicando grotescamente ao fim desse esforço no campo áspero do cinema.

Seu filme é algo de deplorável em matéria de linguagem cinematográfica,

apenas a demonstrar por parte do autor o desejo de colocar o cinema do Brasil na

órbita de um movimento “artístico” surgido na Europa ultimamente (embora as ideias

que o configuram sejam antiquadas e superadas), chamado na França de “cinema-

verité”, aqui caricaturado a expensas do nosso “Cinema Novo”, também esse, como é

sabido, sem ostentar nenhuma novidade digna de atenção e de respeito. De fato até

agora, tudo quanto apregoa o “Cinema Novo” brasileiro ou é algo de muito velho ou

algo de muito ruim.

Suas derivações mais recentes, Glauber Rocha as contou, em prosa inflamada,

na sua “Revisão Crítica”, nesse livro tentando a árdua empresa de ordenar e expor o

“modus faciendi” da técnica de suster uma câmera na mão, sem apoio de tripé, sem os

óculos de filtros, sem a reverberação compensatória dos rebatedores, coisa de

adolescentes que, pela primeira vez, conseguiram ter à mão uma câmera de amador e

que, através do visor restrito, descobriram um mundo novo, configurado por uma

técnica que desconheciam. Acontece que o mundo, para eles novo, continuar ser o

mundo velho sem porteiras de sempre e o que aparelho consegue captar são imagens

capengas e canhestras, só formativas da obra característica de aprendizes.

Aprendizes de feiticeiro, que ao final, ou ao meio da produção, não sabem como

situar-se no tumulto que criaram, nem como terminar a empreitada que a princípio lhes

parecia tão fácil. “Deus e o diabo na terra do sol” é bem um exemplo disso. Projeção

trêmula, quadros trepidantes, incríveis vaivéns de panorâmicas sem função,

desrespeito absoluto pelas regras mais elementares da técnica cinematográfica,

iluminação precária de fotografia (não raro de foco) totalmente apartada da

dramaturgia cinematográfica, desintegração total da unidade dramática, ausência de

qualquer elemento criador na montagem narrativa fragmentada, descosida, tantas

vezes incompreensível, eis o que espetáculo de “Deus e o diabo na terra do sol”, algo

a que se assiste com enfadonha e fadiga, cujo final se recebe com alegria e desafogo.

“Uma ópera popular primitiva, brasileira e sem rebuscamentos”, eis como

define sua o obra o próprio Glauber Rocha, ao referir-se a “Deus e o diabo na terra do

sol”, em entrevista concedida a este jornal. Primitivo, sem dúvida, seu filme o é; mas,

primário seria melhor qualificação. Primário na exposição do tema, primaríssimo em

sua feitura e em seu acabamento, uma negação total de seu próprio título. Não há

Deus, nem Diabo, nem Sol, nessa terra em que Glauber erigiu o cenário de sua ópera.

O seu Deus é um pobre diabo negro, enfático e declamador, incapaz de convencer o

mais bronco dos sertanejos. O seu Diabo é um deus caricato, cabeludo, metido a

filósofo do sertão e bailarino das caatingas. E o Sol brilha por sua ausência, nessa

terra que deverá ser crestada por ele, nesse chão sofrido que os cantadores populares

descrevem como algo de ressequido e morto. Pois a paisagem de “Deus e o diabo na

terra do Sol”, ainda que árida, se apresenta sob o foco (ou fora de foco) da “câmara na

mão” de Glauber Rocha, sempre sob um céu nublado, nunca sapecado pelo sol

abrasador. Nesse pano de fundo não raro neutro e sem características maiores,

movem-se os personagens da “ópera”: Manuel e Rosa, Sebastião e Corisco, os

camponeses do Nordeste, os escravos da gleba, o cego Júlio, os minguados cabras

de Corisco, o Antônio das Mortes, chapelão texano, capa preta a envolver esse “Zorro”

do sertão. Tudo isso pode ter sido concebido de modo metafórico, simbólico, aceito de

bom grado essa possibilidade na expressão de “Deus e o diabo”. Tais recursos,

entretanto, sempre foram utilizados pelo homem, desde que, antes de ter uma câmara

na mão, pôde segurar um estilete, ou uma pena para pôr na pedra, no papiro ou no

papel suas ideias, sua sensibilidade e assim descrever os abismos de sua alma, ou

figurar os anseios de sua condição humana. Mas, é preciso que tais recursos -

metáforas, alegorias, símbolos – sejam propostos no momento exato, conforme as

circunstâncias e de modo funcional. Um homem vestido de capa preta, chapéu de aba

larga, lenço ao pescoço, espingarda à mão, a andar de lá para cá, a correr ou saltar no

campo cinematográfico, sem integrar-se na linha, no cenário, no âmago da ação

dramática e na compreensão da história, só continuará a ser um homem de capa

preta, simbolizando talvez um tenório em Caxias, ou um “zorro” ao tempo das missões

na Califórnia, nunca a expressar um “coro”, ou um “prólogo” das tragédias antigas, ou

mais simplesmente o ”Antônio das Mortes”, matador de cangaceiros no sertão de

Cacorobó...

Não sinto nenhum prazer, senão apenas um sentimento de melancólica

decepção ao ter de comentar o filme de Glauber Rocha, não de modo metafórico, mas

às claras e sem preconceitos. Admiro a inteligência do jovem cineasta baiano e tenho-

o na conta de alguém capaz de muitas coisas no cinema brasileiro. Falta-lhe, contudo

a maturidade dos velhos, a experiência dos que envelheceram sob a luz dos

refletores, desse instrumental cinematográfico que Glauber tanto condena. Mas, isso

não é irremediável. O passar do tempo lhe dará tudo e mais alguma humanidade que

é coisa de muita importância na realização do cinema legítimo, desse cinema que

tanto ele quanto eu próprio almejamos para o Brasil. Vamos esperar, por isso.

“O dia em que Deus e o diabo foi o futuro”

Arnaldo Jabour (22 de março de 1994) – Folha de S. Paulo

Às oito e meia da noite de 16 de março de 1964 eu não sabia que minha vida ia

mudar. Às nove horas ia passar pela primeira vez no Brasil o filme Deus e o Diabo na

Terra do Sol, de Glauber Rocha. Três dias antes, eu estivera no comício de Jango na

Central do Brasil, onde a noite caíra estrelada por milhares de tochas de petróleo que

os trabalhadores da Petrobrás erguiam como personagens de Eisenstein e eu olhava

apaixonado o rosto da primeira-dama no palanque.

Como era linda Tereza Goulart, com um penteado alto de laquê dos anos 60,

morena, sexy, ali, em pleno momento épico das reformas de base (eu me sentia

culpado de desejar a primeira-dama numa hora tão grave). Todos nos sentíamos

“históricos”, como caídos de repente na praça amotinada de São Petersburgo ou

vendo a decapitação de Maria Antonieta na Bastilha.

Eu estava ali dentro, mas não me sentia muito parte daquilo tudo. Estranho, um

presidente da República pedindo apoio a uma multidão de miseráveis para salvá-los.

De quê? Sua mulher parecia alheia, linda, intocada por aquela massa. Será que ela o

amava? Será que o traía? O épico e o psicológico corriam separados ali, em duas

partes, e eu me sentia inquieto com essa divisão. (Tudo isso parece tão longe, mas

certamente até hoje aquelas tochas, aquele vestido azul da primeira dama, a louca

bravata de Jango, tudo isso mexe com tua vida, oh dançarino punk do Massivo!...)

Uma revolução seria feita, mas não rolou nada. Dali a três dias, num cinema no Rio,

fez-se uma.

Carregado com essas emoções recentíssimas, fui chegando à porta do cinema

Ópera na praia de Botafogo. Era lindo e imenso o Ópera, com seu nome épico. Eu ia

com minha namorada Thereza Simões, com quem percorri depois um trem fantasma

de amor e dor. A plateia se enchia de personalidades de esquerda carioca. É preciso

que vocês entendam – pálidos intelectuais de hoje – que o mundo real era uma

miragem ideológica, uma projeção de nosso desejo, naquele verão de trinta anos atrás

no Rio, quinze dias antes do general Mourão Filho descer com seus tanques de

realidade.

O público do filme era formado por mais do que simples pessoas, eram ilhas de

ideias. Havia uma gama de tipos, de cores, de maneiras de ver o mundo, todos com a

marca aguda da “mudança”, todos operando para “mudar” o país, todos vagamente se

desprezando. Sempre havia alguém à tua esquerda. Havia o Partidão, solidamente

vigilante para com os revisionistas pequeno-burgueses (ah... dor que me persegue até

hoje quando um Paim, um Canindé Pegado me olha...). As esquerdas tinham ali uma

curiosidade tolerante para com estas manifestações artísticas da “superestrutura”,

todos mal vestidos, de passagem entre uma panfletagem e outra.

Havia os membros da AP (Ação Popular) fundada, entre outros, por nosso

Betinho, uma costela mineira e católica da esquerda independente, Marx divinizado.

Havia os festivos de Ipanema pseudotrotskistas, país da Libelu; havia “polopistas”, da

Polop (Política Operária), havia o Cinema Novo (lembro de Joaquim Pedro, de Ruy

Guerra, de Leon, Cacá, todos de camisa de marinheiro e calça jeans – uniforme entre

rude e sofisticado). Havia o CPC (lembro de Vianninha, Oduvaldo Vianna Filho ali,

desconfiado, alma rasgada entre Rimbaud e Kruschov). Eu apertava a mão de

Thereza e via essa massa toda em segundo plano, tendo como perfil o rosto de minha

amada, eu que nunca filmara, eu que era tratado como um reles noviço pela corte do

Cinema Novo, cruel, olímpica.

E aí o filme começou. Um plano aéreo do sertão de Cocorobó. Corte súbito

para o olho morto de um boi roído pelo sol. Villa Lobos na trilha. E caiu um silêncio

sideral na sala. Todos estavam sendo feridos por imagens absolutamente novas.

Como explicar isso? Não era apenas um bom filme que víamos. Nada. Era um país

que nascia à nossa frente. Não um país que reconhecíamos como sendo, digamos, de

Graciliano Ramos. Não. Era uma realidade desconhecida que começávamos a

compreender. Ela estava esboçada na literatura, em Os Sertões, em Rosa. Mas, “no

olho”, era a primeira vez. Ela nos via. Ela nos incluía.

“Nós” éramos vistos por essa paisagem, “nós” éramos descobertos por esse

mundo de secura e violência que aparecia na tela. Nós éramos arrancados das

cadeiras, da paz de nossos papos ideológicos e atirados dentro do filme. Acabava ali a

ideia de que a realidade ela alguma coisa “fora” de nós.

A partir daquela noite, nós éramos personagens de um Brasil muito mais fundo

do que nossa vã inexperiência de intelectuais. O filme invertia tudo sobre o Bem e o

Mal. Disse-me Roberto Ventura que em Os Sertões, pela primeira vez, o miserável era

colocado em posição de sujeito heroico em nossa história. Em Deus e o Diabo estava

ali o herói miserável, mas também tocado de fundo dor e do desejo de exterminar a

miséria. Bons e maus andavam num deserto metafísico e shakespeareano em pleno

Nordeste.

A esquerda estava toda ali, à beira de sua grande derrota (dali a 15 dias) e

ainda teve tempo de ver sua melhor produção nascer. Todas as personagens se

contorciam numa danação de heróis e vítimas, em uma complexidade que não

tínhamos alcançado. Não sabíamos ainda, mas estava selada ali a causa de nosso

fracasso de 1º de abril de 64.

A esquerda tinha errado por muitos anos. Nossos dias estavam contados. A

importância de Glauber na reforma de pensamento de esquerda do país é maior que

se pensa. Três anos depois, ele ataca o “povo” sacralizado em Terra em Transe,

execrado pelos comunas. Anos depois, num volteio dialético com os militares, elogia

Golbery e é massacrado pelos xiitas. Glauber tinha feito uma revolução dentro da

revolução.

Trinta anos depois daquela noite estrelada (por que tantas estrelas?), vemos

hoje que a ideia de processo e de diferença continua como uma asa.

Olhei para trás quando as imagens finais do filme brilhavam sob o som de Villa

Lobos.

Vianninha estava em pé na cadeira do cinema e pulava de euforia. As pessoas

estavam pálidas da luz final como diante de fantasmas. Os cineastas entraram um

pânico. O rio tinha mudado de rumo. Quem partira para fazer filmes veristas, filhos do

neo-realismo fôra pego raio de um cinema épico, me disse trinta anos depois Cacá

Diegues. Joaquim Pedro falava em rasgar o roteiro de O padre e a Moça. Ruy Guerra

terminava a montagem de Os Fuzis e começou a mexer em tudo, ficou meses na

moviola.

Que seria de nós? O mundo não era mais tão fácil como pensávamos. Nossa

consciência não era linear. A realidade não era mais realista. O filme dava conta dessa

eterna luta entre o sutil e o grosso. Sempre quase ganha o grosso. E o eterno dilema

sutil-grosso continua. Vemos a esquerda se perder em discussões iguais à de trinta

anos atrás, antes daquela noite do cinema Ópera. Veio 64, veio 68, veio a luta suicida,

veio a democracia formal. Passaram-se muitas ilusões.

Mas Deus e o Diabo não era ilusão. Muitas realidades foram ilusão. Mas

aquela ficção não; aquela ficção era a realidade. Precisamos de um novo filme como

Deus e o Diabo na Terra do Sol. Aluguem em vídeo e vejam o que era o futuro.

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FILME ANALISADO

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL. Direção de Glauber Rocha. Rio Filmes. Brasil,

1964. DVD (110 min.), PB.