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REVISÃO CRÍTICA DA LITERATURA SOBRE O ATENDIMENTO A HOMENS
AUTORES DE VIOLÊNCIA
Victor Hugo Belarmino Jáder Ferreira Leite
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Introdução
Atualmente os grupos reflexivos com HAV trabalham sobremaneira na perspectiva
do reconhecimento, da responsabilização e de ampliação dos recursos para resolução de
conflitos e crises dentro das relações. Tal formatação tornou-se possível a partir da
promulgação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), em seus artigos 35 e 45,
institucionalizando os serviços de responsabilização aos "agressores"1 como parte integrante
do Programa de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Antes da LMP, a violência
conjugal era tratada como crime de menor potencial ofensivo, a partir da aplicação da Lei
9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais), que previa penas alternativas, tais como pagamento
de cesta básica ou prestação de serviços comunitários, em detrimento da reclusão. Como
aponta Medrado (2010), a aplicação das penas alternativas no modelo dos Juizados Especiais
foi duramente criticado pelos coletivos feministas, uma vez que representava não apenas
brandura na penalização, mas também produzia a sensação de impunidade.
Os grupos reflexivos com os HAV fazem parte dos serviços previstos e incentivados
legitimamente pela LMP. Lima e Büchele (2011) corroboram sinalizando que a LMP, a qual
conferiu legitimidade política para discussão e implementação dos grupos, não discorre sobre
a estrutura, organização e implementação dos "centros de atendimentos a agressores" ou
mesmo desenvolveu interpretações acerca do que seriam intervenções de "educação e
reabilitação" ou "recuperação ou reeducação" (p. 730). É mister apontar que o
desenvolvimento de intervenções que prezam pela complexidade, contextualização, atentando
às multideterminações sociais da violência, apresenta obstáculos institucionais e jurídicos
importantes, dado que as instituições que ordenam a jurisdição se traduzem na polarização
judicial, em parte agredida/ofendida e agressor, pela via da criminalização.
Partindo desse cenário problematizado anteriormente, este trabalho consiste em um
levantamento bibliográfico acerca dos grupos reflexivos para homens autores de violência no
âmbito da Lei Maria da Penha. Objetiva-se, a partir da bibliografia mapeada, compreender e
1 Expressão utilizada ipsis litteris no texto original da LMP.
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situar as discussões que se dispõe a problematizar este recorte temático dentro das políticas de
enfrentamento à violência de gênero, de forma a analisar onde se centraliza a atenção destes
estudos, bem como os embates e tensões que se desenrolam nessas produções.
Metodologia
Metodologicamente realizou-se uma revisão narrativa da literatura. Segundo Rother
(2007) a revisão narrativa consiste no mapeamento amplo de publicações, apropriadas para
descrever e discutir o desenvolvimento ou o "estado da arte" de um determinado assunto, sob
ponto de vista teórico ou contextual. Segundo esta autora, as revisões narrativas não
necessitam informam as fontes de informação utilizadas, a metodologia para busca das
referências, nem os critérios utilizados na avaliação e seleção dos trabalhos. Ou seja,
constituem, basicamente, da análise literária publicada em livros, artigos de revistas impressas
e/ou eletrônicas na interpretação e a análise crítica pessoal do autor acerca destes materiais.
Apesar disso, foram utilizados alguns critérios importantes para escolha do material:
as pesquisas foram realizadas nos seguintes bancos e bases de dados: Scielo, Periódicos Capes
e Banco de Teses e Dissertações; foram utilizadoscomo descritores "grupo", "homem" e
"violência"; privilegiaram-se trabalhos dos últimos cinco anos e produzidos nacionalmente.
As reflexões provenientes das leituras inspiraram a elaboração de eixos esquemáticos, os
quais orientaram a análise crítica destes trabalhos. Tais eixos referem-se à articulação de duas
ou mais das seguintes categorias: (1) Gênero, (2) Violência, (3) Estado/Políticas Públicas, (4)
Desigualdades Sociais, (5) Indivíduo e (5) Sociedade. Partiu-se do seguinte esquema
analítico:
Esquema 1 - Modelo de orientação para análise.
Realizou-se a leitura, fichamento e categorização de 14 artigos, seis teses e
dissertações e seis livros. As discussões foram organizadas em subtemas, seguindo o modelo
referenciado acima, objetivando visualizar onde se concentrava os debates e que
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temas/subtemas ganhavam maior atenção. A seguir serão discutidos aqueles que recebem
maior atenção neste campo dos estudos de gênero.
Resultados e discussão
As discussões tomando os homens autores de violência contra as mulheres como
alvo de intervenções e de políticas públicas é relativamente recente nas questões feministas e
de gênero. Nos últimos anos, sobretudo após a promulgação da Lei 11.340/2006, amplamente
conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), assistimos à ampliação dos estudos de gênero
tendo como foco as masculinidades em interface com a produção e reprodução da violência
de gênero. Por esta razão, o debate atualmente se concentra bastante na tentativa de
contextualizar as intervenções com HAV: qual seu lugar institucional; quais metodologias,
estratégias e critérios de avaliação podem ser utilizados para definir seu grau de eficácia;
quais princípios e diretrizes norteiam os profissionais em suas intervenções; o que se pretende
com os grupos reflexivos; e as principais dificuldades que persistem tanto na prática de
pesquisa, quanto da atuação neste campo.
Este primeiro bloco de discussões refere-se ao esforço de compreender de que
maneira o Estado e seus agentes institucionais podem e devem se posicionar acerca da
violência de gênero2, influindo em processos macro e microssociais através de políticas
públicas. Outro grande bloco de discussões se ocupa a abarcar a relação das temáticas gênero
e violência, pensando de que modo se entrecruzam e como se sedimentam subjetivamente nos
indivíduos e em suas relações. De fato, faz-se imprescindível realizar o esforço de
problematizar acerca do que se entende por violência, bem como o que se nomina por gênero.
Esse caminho é indispensável para qualificar e situar o conceito de violência de gênero, desse
modo pensando a relação que pode ser entendida entre eles. Na sequência abordarei estes
estudos de forma mais detalhada, direcionando-me a partir destes doisblocos temáticos
referenciados acima.
Grupos reflexivos e judiciarização das relações
Dentre os objetivos mais comuns encontrados em relação aos atendimentos
encontrados na revisão crítica de Lima e Büchele (2011) com os HAV estão: oferecer formas
não violentas de resolução de conflitos, desenvolvimento emocional e de auto-estima, 2 Esta categoria, apesar de englobar gênero numa acepção mais ampla, fluida e relacional, não é a mais utilizada nas políticas e documentos oficiais. Existe uma centralização das terminologias que referem às violências de gênero a uma única generificada: "violência contra as mulheres".
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responsabilização e cessação dos comportamentos violentos, tentando garantir, a partir deste
último, a segurança da mulher. Beiras (2014) em seu mapeamento encontra perfil semelhante
de objetivos enunciados pelos serviços, a saber: responsabilização e interrupção ou fim dos
atos de violência; prevenção e conscientização; formação e treinamento; desconstrução de
estereótipos de gênero e das masculinidades hegemônicas; e evitar reincidências do agressor
em novos episódios de violência. Acosta, Filho e Bronz (2004) concordam com o
entendimento de que "os grupos possibilitam a continência dos estados afetivos e promoção
de diálogos" (p. 14).
Beiras e Cantera (2014) encontram a persistência de diversos questionamentos sobre
o melhor formato grupal para as intervenções com os HAV, coexistindo modelos terapêuticos,
reflexivos, psicoeducativos e de reabilitação. Andrade (2014) enxerga aí um ponto nodal
dessas propostas, uma vez que a fundamentação normalmente resvala para a ética e o olhar
que vem das propostas de grupos terapêuticos. Apesar disso, como aponta Martínez-Moreno
(2017), o trabalho com HAV através dos grupos reflexivos alcançou um reconhecimento
progressivo por variados atores. Dessa forma, a problemática que provavelmente se desenha
no atual momento não consiste necessariamente em questionar a importância da existência de
grupos reflexivos aos homens que cometem violência, mas em definir o lugar institucional
que deve ocupar o atendimento aos HAV.
Um ponto importante sinalizado por Acosta e Bronz (2014) trata-se da escassez de
diretrizes que norteiem estas ações. Os processo grupais seguem sem muita clareza de
indicadores para avaliação, evidenciando a escassez de ferramentas, circulação de registros e
recursos documentais para tal. Andrade (2014) refere que se faz necessário não apenas avaliar
os modelos de intervenção, mas também compartilhar e reforçar os princípios para que eles
sirvam como guia para as propostas existentes e na definição de diretrizes para as políticas
públicas. Para o referido autor, tais princípios e concepções devem caminhar na via da
responsabilização e reflexão sobre os sistemas de dominação e controle.
Pacheco (2014) apontapara a prevalência da judiciarização das relações pela via
criminal como política de enfrentamento à violência. A captura por essa via, segundo a autora,
produz linhas de subjetivação concernente ao reforço dos estereótipos dicotomizados vítima-
agressor. Desse modo, relações complexas são traduzidas de forma simplificada, de forma que
o processamento penal se sustenta e produz papéis redutores (p. 117). Portanto, coaduno com
a defesa de Rifiotis (2008) de que é preciso conhecer melhor o lugar do legislativo, criador de
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leis, e do exercício concreto destas pelo sistema judiciário, que cria elementos normativos,
que contribuem para a definição, manutenção e mesmo mudança de relações sociais. A autora
defende que a dimensão jurídica é fundamental na construção da legitimidade e do
reconhecimento como estratégia política e de disputa, todavia alerta para o fato de que a
judiciarização das relações sociais não é equivalente de acesso de justiça, democratização e
cidadania.
Para a autora supracitada, a estratégia judiciarizante deve ser tomada como uma
medida de curto prazo, uma vez que se mostra como recurso deveras limitado em termos de
desdobramentos desejados na alteração das relações de gênero na sociedade. Esta questão se
aprofunda, sobretudo se considerarmos as duas frentes de leitura possíveis colocadas por
Rifiotis (2008), a partir da "violência de gênero": da tendência relacional, por um lado; e da
ênfase na dimensão penal, por outro.
Acosta e Bronz (2014) realiza importantes críticas ao tradicional ordenamento jurídico
brasileiro, o qual "ainda conserva características tradicionais, [sendo] atávica a ideia de que a
punição é sempre a melhor resposta a uma infração, se constituindo como uma panaceia" (p.
147). Porém adverte que tal crítica não se aplica a todos os casos, "sobretudo naqueles em que
as mulheres correm risco de vida e têm ameaçada a sua integridade física" (p. 147). Entretanto
ressalva que a maioria dos casos não exige contenção externa absoluta. Esta é uma nuance,
defende as autoras, que a LMP desconsidera em suas disposições legais. Tal endurecimento
da LMP encontra amálgama na contraposição à Lei 9099/95, a qual não atendia à gravidade
de algumas situações, de forma a minimizar os crimes domésticos, desqualificando as
denúncias das mulheres.
De fato, é inegável a importância de valorizar a integridade da demanda das mulheres
que sofrem violência, todavia concordo com Soares (2011) que abordar a questão
exclusivamente da perspectiva da "violência contra a mulher", produz uma grande distorção
em relação às experiências vividas e às estratégias de enfrentamento em face ao problema. A
autora refere que dentro do paradigma da violência contra a mulher, passou-se a considerar os
homens e mulheres envolvidas em relações violentas, enquanto seres monolíticos, isto é,
"meramente repetidores de comportamentos padronizados e identificados na totalidade a seus
respectivos papéis" (p. 197). Concordo com a autora, quando ela refere que subjaz à ideia de
justiça um sentimento ou desejo de vingança e da punição considerada como um fim em si
mesmo. Assim a condição de "reparação das vítimas" centraria esforços em infligir
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sofrimento aos culpados. Portanto, tal como aludem Lima e Büchele (2011), ainda persiste a
noção de que a prisão dos homens é o dispositivo que melhor responderia à segurança das
mulheres.
Em suma, como pude observar na literatura que reflete este campo, parece existir no
campo uma indefinição institucional e legislativa no atendimento aos HAV, o que impacta na
caracterização do atendimento realizado. Além de corresponder a uma iniciativa recente e
incipiente dentro das políticas de combate e prevenção à violência de gênero, tem-se que os
casos mais problemáticos geralmente não são contemplados por esta ação. Um dos motivos
refere-se à articulação processual dos casos que chegam ao grupo, os quais seguindo o modelo
de transação penal, era exigido que não houvesse quaisquer antecedentes criminais ou outros
processos ativos. Neste montante ficam excluídos aqueles casos mais emblemáticos e
complexos, os quais se articulam judicialmente à criminalidade, à venda e/ou consumo
abusivo de álcool e/ou de outras drogas, aos casos de reincidência, dentre outros.
Homens e violência: uma relação idiossincrásica?
Boa parte da literatura consultada apresenta postura crítica e desconstrucionista,
visando problematizar interpretações naturalizadas, estereotipadas, reducionistas,
universalizadas e determinísticas. Todavia pode-se dizer que não há consenso e clareza de
qual abordagem teórica seria mais apropriada a compreender a díade violência-gênero, dessa
forma coexistindo modelos de diferentes matrizes teóricas. A teoria do patriarcado como uma
dessas matrizes teóricas, compreendida a partir de um modelo de dominação masculina,
continua sendo bastante referenciada nos debates acadêmicos e também subjacente às
políticas públicas, porém também recebe diversas críticas por se tratar de uma categoria
insuficiente, dada a ressignificação permanente dos lugares ocupados por homens e mulheres
(MONTEIRO, 2014), pela violência de gênero ser contextualizada sócio-historicamente
(MISTURA, 2015), e também porque a dominação não acontece de forma absoluta, universal,
pura, autônoma e sem contradições (SOARES, 2011).
Um conceito bastante utilizado nos diversos trabalhos,que se articula à perspectiva do
patriarcado, refere-se à masculinidade hegemônica (MONTEIRO, 2014, TONELI; BEIRAS;
CLÍMACO; LAGO, 2010, SILVA; COELHO; NJAINE, 2014, PRATES; ALVARENGA;
2014, ACOSTA; FILHO; BRONZ, 2004, CONNEL; MESSERSCHMIDT, 2013). A
importância de problematizar esta categoria se justifica não apenas por seu uso recorrente nas
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produções sobre o tema, mas também porque os profissionais convocam esta matriz
discursiva nas diversas intervenções desta natureza, tal como refere Beiras (2014). Este
conceito compreende o gênero no sistema binário, todavia desfaz a compreensão de uma
masculinidade monolítica, apresentando modelos alternativos de masculinidade:
múltiplas/subalternas e hegemônicas/dominantes. Seu emprego ganhou bastante adesão nas
justificativas das intervenções com HAV, uma vez que entende o uso do poder dos homens
sobre as mulheres como a base da violência cometida contra elas. O que se coloca como
anteparo a esta adesão refere-se à possibilidade de produzir a materialização de uma
masculinidade hegemônica, para então "exorcizá-la" (SILVA; COELHO; NJAINE, 2014).
Esta é uma operação que bastante se adequa ao processo de judiciarização das relações
sociais, já que consegue reduzir a complexidade do problema às categorias penais aplicáveis,
como será discutido posteriormente.
Utilizando este conceito, Andrade (2014) coloca que igrejas, instituições de ensino,
locais de trabalho, disputas esportivas e espaços de lazer são alguns dos espaços que reforçam
as masculinidades hegemônicas. Existiria, portanto, um conjunto de espaços de socialização,
primária e secundária, os quais propagariam a reprodução dos modelos hegemônicos,
produzindo não apenas padrões naturalizados e estereotipados de gênero, mas padrões
abusivos e violentos de interação social. Acosta, Filho e Bronz (2004) advogam o uso da
violência contra a mulher como "uma prática que alguns homens têm empregado nas relações
íntimas quando 'percebem' seu poder e seu controle ameaçados" (p. 14). Desse modo a
identidade3 masculina, diferente do que normalmente se acredita, seria vivenciada como uma
situação de vulnerabilidade, demonstrando a "fragilidade masculina", favorecendo o que os
autores nomeiam de "acumulação de estados afetivos", podendo culminar em "explosões de
violência" (p. 14).
A partir da literatura consultada nota-se uma tensão terminológica acerca da referência
aos homens que cometeram violência. Tem-se uma tendência nos trabalhos que discutem a
violência contra as mulheres em referenciar os homens enquanto agressores, coexistindo
bipolarmente uma outra tipologia, das mulheres vítimas ou vitimizadas. Como defendem
Lago, Ramos e Bragagnolo (2010), a implementação do atendimento aos homens autores de
violência previsto pela LMP, bem comoa discussão terminológica em torno do rótulo
"agressores", é uma questão ainda incômoda a muitas feministas e pró-feministas, sendo um
3 Termo utilizado pelos autores, não sendo pretensão neste trabalho sustentar tal conceito.
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questionamento não hegemônico nos estudos e produções de gênero. De acordo com
Medrado, Lemos e Brasilino (2011), ainda é possível observar posicionamentos radicais e
resistências a qualquer ação com os considerados "agressores", deste modo resistindo à
descristalizar a fixidez da relação homem-agressão. Apesar do uso massivo desta categoria,
sobretudo nos documentos oficiais, como a LMP, uma consistente literatura resultante do
trabalho em grupos reflexivos voltados aos homens aponta diversas críticas.
Algumas das críticasdirecionadas consistem no fato que estas categorias dicotômicas
possuem um olhar reducionista (LIMA; BÜCHELE, 2011), criam padrões que não
compreendem a capacidade de comportamentos instituídos atualizarem-se nas relações
interpessoais (MEDRADO; LEMOS; BRASILINO, 2011) e não refletem a complexidade das
relações, obscurecendo uma melhor compreensão e intervenção nos casos de violência
(ROSA et al., 2008). Toneli et al. (2010) alertam para a importância de não fixar as pessoas
envolvidas em situações de violência nestas categorias, uma vez que abriria a possibilidade de
considerar o sujeito em sua integridade, tornando possível produzir descolamentos e
deslocamentos efetivos nos sujeitos e em suas relações. Coaduno com a compreensão de
Silva, Coelho e Njaine (2014) de que considerar a violência de gênero pautada na vitimização
das mulheres dificulta a ampliação do entendimento das relações violentas, consideradas em
toda sua amplitude, contexto e complexidade. De algum modo, como apontam estes autores, a
lógica dicotômica sustenta e é sustentada por uma predisposição à culpabilização e
penalização dos homens a priori, revelando em muitas ocasiões por parte dos técnicos um
"não ouvir" ou uma desconsideração às multideterminações e ao caráter relacional das
situações de conflito e violência (SILVA; COELHO; NJAINE, 2014, p. 177).
Beiras e Canteira (2014) vão mais longe e acrescentam que estas dicotomias clássicas
e bem fixadas cotidianamente não apenas são mecanismos de simplificação do fenômeno, mas
"são estruturas-chave para a manutenção da masculinidade tradicional idealizada e normativa
e das relações desiguais de poder" (p. 38). Neste sentido, considerando que o grupo se torna
um ambiente propício ao questionamento e desconstrução de uma masculinidade tradicional,
é fundamental descristalizar o lugar de agressores e vítimas, reconhecendo a capacidade de
agenciamento e de construção de novas subjetividades. Todavia é necessário atentar para a
consideração de Soares e Gonçalves (2017) que, inspirados pela criminologia crítica e teorias
pós-modernas de gênero, reconhecem a fragilidade da simplificação das categorias vítima-
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agressor, mas alertam para o risco de despolitização frente à histórica opressão sofrida pelas
mulheres.
Considerações finais
Diante deste cenário delineado é imprescindível avançar nos dispositivos de
enfrentamento à violência de gênero. Para a discussão de gênero interessa-nos perguntar: que
jogos de interesses e instituições seriam afetadas a partir da desconstrução dos tradicionais e
hegemônicos lugares de gênero, ancorando-o ao paradigma emergente da ciência?
Perspectivas pós-modernas de gênero encontram resistência e estrangulamento também nesse
jogo de interesses, uma vez que o Estado e seu aparelhamento com as forças econômicas
necessitaria rever suas instituições para tratar de modo igualitário e equitativo as diversas
expressões de gênero, que não apenas as tradicionais masculino e feminino heterossexuais.
É indispensável questionar aqui a própria instituição penal, visto que a atenção aos
HAV se situam no paradigma da penalização. Decorre desta anterior necessidade reflexiva a
discussão articulada à criminalização da pobreza, com forte urgência da discussão de raça/cor,
situando a problemática de gênero e violência enquanto um aspecto infinitamente mais
complexo e interseccional.
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