Anais Abet 2006

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Anais do 3º Encontro Internacional da Associação Brasileira de Etnomusicologia

Transcript of Anais Abet 2006

Diretoria da ABETPresidente Tiago de Oliveira Pinto (USP) Vice-presidente Alice Lumi Satomi (UFPB) Secretrio Accio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC) 2 Secretrio - Francisco Simes Paes (USP) Tesoureira Flvia Camargo Toni (USP) 2 Tesoureiro Marcelo Simon Manzatti (USP), Editora - Maria Elizabeth Lucas (UFRGS) Editor Assistente Hugo Leonardo Ribeiro (UFBA)

Conselho FiscalTitulares: Maria Ignez Cruz Mello (UDESC) Deise Lucy Oliveira Montardo (UFSC) Elizabeth Travassos Lins (UNIRIO) Suplentes: Edilberto Jos de Macedo Fonseca Martha Tupinamb de Ulha (UNIRIO) Carlos Sandroni (UFPE)

Comisses do III Encontro da ABETConceito GeralTiago de Oliveira Pinto

Coordenao cientfica:Alice Lumi Satomi Tiago de Oliveira Pinto

Comit Cientfico:Kilza Setti Marcos Branda Lacerda Jos Geraldo Vinci de Moraes Jos Roberto Zan

Comisso Organizadora do Evento:Alice Lumi Satomi Flavia Camargo Toni AccioTadeu Piedade Nicholas Rauschenberg Marcelo Manzatti Franscisca Marques Priscila Ermel Barrak

Equipe local de organizao:Nicholas Dieter Berdaguer Rauschenberg Henrique Genereze da Silva Rafael Nobre de Sousa Pedro Cillo Rodrigues Equipe do SESC Pinheiros

Agenda:Nicholas Dieter Berdaguer Rauschenberg

Programao de apresentaes musicais:Marcelo Manzatti

Programao de vdeos:Priscila Ermel

Padronizao dos textos recebidos (para os Anais):Joslia Ramalho Erivan Silva Alexandre Nder Igor Coimbra Luiz Fernando N. Costa (alunos de Ps-Graduao em Etnomusicologia da UFPB)

Correes, Diagramao e Editorao EletrnicaMarciano da Silva Soares

III Encontro da Associao Brasileira de Etnomusicologia: Universos da Msica: Cultura, Sociabilidade e a Poltica de Prticas MusicaisApesar de relativamente jovem enquanto associao profissional, a ABET neste seu III Encontro j comprova que a etnomusicologia no mais uma disciplina em fase inicial de implantao no pas, mas se encontra em franca expanso e mesmo solidificada em diversos programas universitrios. O III Encontro rene pesquisadores de 15 estados brasileiros de todas as regies do pas, que inscreveram aproximadamente 200 trabalhos, a serem apresentados e discutidos durante trs dias em sesses de comunicaes, mesas redondas e oficinas. Participam destes eventos tambm especialistas que representam 16 instituies de 9 pases diferentes da Europa e das Amricas. Os temas gerais que foram propostos para o III Encontro da ABET (1) Teoria, mtodos e tcnicas da documentao etnomusicolgica, (2) Escrita e oralidade, roteiro e improviso, texto e contexto na performance musical, (3) Formas de Urbanidade e de Mundializao na Msica, (4) Transculturao, nacionalismos, regionalismos deslocamentos e estilos individuais, (5) Interaes e frices entre trabalho de campo, sociedade e pesquisa, (6) As pesquisas musicais e os saberes de mestres e de autoridades e (7) Msica Popular, dana e sua repercusso miditica esto inseridos no debate que vai alm das questes brasileiras, sintonizados, portanto, ao que vem a ser uma etnomusicologia mundial coerente em relao a questes preeminentes deste incio de sculo. Entre os vrios aspectos que saltam vista ao observarmos a tnica das comunicaes selecionadas, gostaria de destacar aquele em que a etnomusicologia apresenta um alto grau de aplicabilidade junto a comunidades, cujas prticas musicais so documentadas, estudadas e difundidas. A experincia da disciplina no Brasil especialmente rica em exemplos onde o saber do pesquisador se estende para atividades de mediao, que levam ao autoreconhecimento e mesmo a uma forma de auto-pesquisa entre determinados grupos. O ttulo geral do encontro, Universos da Msica, pode parecer uma contradio, se lembrarmos que um dos lemas da etnomusicologia justamente o veredito de que a msica no uma linguagem universal, ou seja, no compreendida de maneira inequvoca por todos os habitantes do globo. Estamos cientes, porm, de que msica universal enquanto manifestao do homem no existe povo ou sociedade sem msica e que semelhante lngua falada, ela adota diferentes caractersticas de acordo com as diferenas que distinguem as culturas umas das outras. Os universos da msica, portanto, no devem apenas ser compreendidos na sua dimenso espacial, histrica e regional, mas como modos de expresso musical que permeiam inmeros momentos e ensejos das atividades humanas. O interesse e o fascnio por esta multiplicidade de universos que guiar os participantes do congresso da ABET de 2006 no SESC Pinheiros em So Paulo. A realizao deste III Encontro s possvel graas ao esforo, ao trabalho e dedicao de muitos dos nossos colegas da ABET e da equipe da instituio parceira, que est sediando o evento, o SESC SP Pinheiros. Cumpre um reconhecimento especial ao SESC SP, que atravs de sua unidade de Pinheiros oferece condies ideais para um encontro como este. Muito mais

do que espao fsico, o SESC porm compartilha de muitos dos nossos anseios, o que se evidencia na programao musical da instituio, pioneira em muitos aspectos, e mantenedora de um alto padro de qualidade e de originalidade h dcadas. Agradeo a todos os envolvidos na preparao deste III Encontro, diretoria do SESC SP, equipe da unidade Pinheiros, aos meus colegas da diretoria da ABET e a todos os participantes, em especial tambm aos de fora, que no hesitaram em vir a So Paulo, para contribuir com a sua participao ao xito do evento. A todos desejo um timo III Encontro com mltiplos e inspiradores Universos da Msica! Prof. Dr. Tiago de Oliveira Pinto Presidente da Associao Brasileira de Etnomusicologia (ABET)

Conferencia (CO)Gerhard Kubik (Universidade de Viena):

"Emoo e coneces mltiplas na pesquisa musical. Relatos de vida na frica.

Tera feira, 20:00, Auditrio Principal

Gerhard Kubik nasceu em Viena, ustria, no ano de 1934. Enquanto garoto no psguerra de sua cidade natal, ocupada pelas tropas americanas, travou contato com o blues e com o jazz, participando de vrias bandas de msica, onde tocava a guitarra e a clarineta. Estudou antropologia e musicologia na universidade de Viena. Sem ter concludo os seus estudos, fez sua primeira grande viagem frica em 1958, quando saiu de carona de Viena, chegando semanas mais tarde em Uganda. Neste pas da frica Oriental fez seus primeiros estudos prticos de msica tradicional africana. Estudou com Evaristo Muyinda, o ltimo grande sobrevivente dos msicos da corte do reino de Buganda. Desde esta experincia, que durou aproximadamente um ano, Gerhard Kubik no deixou de visitar e de pesquisar na maior parte da frica ao sul do Saara. Entre as experincias que teve, destacam-se os anos em que passou no interior de Angola e de Moambique, registrando performances e rituais entre 1962 e 1965, que nas dcadas subseqentes ficaram devastadas pelas guerras de libertao, em especial destes dois pases. Gerhard Kubik domina com fluncia trs idiomas nativos do continente africano, e sempre defendeu nas suas pesquisas a importncia da lngua nativa, a cognio, a sociabilidade e as teorias nativas nas suas pesquisas musicais. Autor de mais de 300 publicaes sobre msica, cultura, psicologia, idiomas e sociedades africanas, Gerhard Kubik possui inmeras condecoraes internacionais, lecionou em universidades europias, na frica, nos EUA e no Japo. Conheceu o Brasil em 1974. Retornou mais duas vezes, efetuando pesquisas de campo na Bahia, no interior de So Paulo e no Mato Grosso. Sobre o Brasil publicou artigos e dois livros: Angolan Traits in Black Music, Dances and Games in Brazil (Lisboa 1979) e Extensionen afrikanischer Kulturen in Brasilien (Aachen, 1990).

Apresentaes de Msica Regional do Estado de So Paulo

22/11, quarta feira, praa, 13:00hs: Os Favoritos do Catira/ Guarulhos, SP 23/11, quinta feira, praa, 13:00hs: Fandango de Chilena/ Capela do Alto, SP 23/11, quinta feira, praa, 20:00hs: Batuque de Umbigada/ Piracicaba, SP 24/11, sexta feira, praa, 13:00hs: Moambique de So Benedito/ Cunha, SP

Show de encerramento

24/11, sexta feira, Teatro, 21:00hs: Djalma Correa, Kachamba Brothers e Banda de Pfanos de Caruaru (juntos)

Mesa Redonda (MR)

Teatro, 10:00 - 12:00

MR 1, quarta feira O Estudo da Msica Brasileira no Contexto Global Mediadora: Suzel Ana Reily, Queens University Belfast, na Irlanda do Norte Jesse Wheeler, UCLA Welson Tremura, Universidade da Flrida Frederick Moehn, Stony Brook, New York

MR 2, quinta feira Pesquisadores Criadores Mediador: Aberto Ikeda, UNESP Marlui Miranda (pesquisadora e compositora) Djalma Correa (percussionista e pesquisador) Kazadi Wa Mukuna (pesquisador)

MR 3, sexta feira A msica nas Ciencias Humanas Mediador: Tiago de Oliveira Pinto Jos Miguel Wisnik, USP Jos Vinci de Moraes, USP Rafael Jos de Menezes Bastos, UFSC

Workshops (WO)

Workshops 01 Auditrio do 3 andar Dagfinn Bach (ArtsPages Int., Noruega) "Descobrir os arquivos de msicas do mundo atravs do MPEG-7" Auditrio do terceiro andar

Workshops 02 Oficinas 2andar Kachamba Brothers Msica Africana Sala de Atividades 2

Workshops 03 Oficinas 2andar Marlui Miranda Msica Indgena Sala de Atividades 2

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Msica popular, expresso e sentido: comentrios sobre a teoria das tpicas na anlise da msica popular brasileiraAccio Tadeu de Camargo Piedade [email protected] (UDESC) Resumo: A presente comunicao pretende comentar a aplicao do que pode intitular teoria das tpicas em anlise musical para o caso da msica popular brasileira. A retomada do plano expressivo-retrico na anlise musical se deu recentemente, com autores ligados abordagem semitica que se dedicaram ao perodo clssico da msica europia. Esta teoria ilumina de forma importante a compreenso das msicas analisadas pelo fato de, atravs da anlise musicolgica e da interpretao de pontos expressivos no texto musical, apresentar nexos culturais da musicalidade em foco. O objetivo principal desta comunicao discutir a aplicabilidade desta teoria no campo da msica popular brasileira. Palavras-chave: Msica popular brasileira. Expresso musical. Significao musical. A quantidade de estudos acadmicos sobre msica popular brasileira tem crescido rapidamente desde a dcada de 80. Estas investigaes, produzidas tanto no Brasil como no exterior, tm se fundamentado uma vasta quantidade de prticas atravs de variadas perspectivas tericas e metodolgicas. Uma parcela destas pesquisas trabalha sob a perspectiva musicolgica, utilizando um de seus recursos mais tpicos: anlise musical de partitura. Ocorre que o papel da partitura no mundo da msica popular bastante particular, envolvendo sistemas de notao e conceitos especficos: cifragem de acordes, lead-sheet, edio de songbooks, etc. Alm disso, grande parte da msica popular no est registrada em partitura, mas sim em gravaes fonogrficas1. Por isso, o analista muitas vezes tem que transcrever gravaes e criar sua partitura de trabalho para empregar os mtodos analticos. Em geral, o foco da anlise a esfera meldica (e sua segmentao em temas, frases, motivos, etc.) e a forma (organizao da apresentao das estruturas musicais no tempo), porm a compreenso da msica popular muitas vezes exige a abordagem de outros aspectos como, por exemplo, performance e recepo. Mesmo assim, a anlise musical uma ferramenta fundamental no estudo de qualquer repertrio musical, pois um caminho para iluminar o texto musical propriamente. No mbito da msica popular, contudo, s recentemente comeou-se a empregar de forma intensiva os recursos das vrias teorias de anlise musical. De fato, a anlise musical foi, durante muitos anos, pensada como vlida somente para a msica erudita, pelo fato desta circular atravs do suporte escrito da partitura, objeto representacional que serve de base para a anlise. MuitosNote-se que a msica popular, em sua dimenso histrica, no pode ser compreendida isolada da histria da fonografia: fonografia e msica popular se desenvolvem de forma irmanada ao longo do sculo XX.1

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autores comentam os aspectos culturais e ideolgicos que esto por trs desta preferncia pela msica erudita e da excluso da msica popular do horizonte musicolgico com base em uma suposta inferioridade musical no que tange complexidade formal e harmnica (ver Hamm, 1995; Middleton, 1990). Anlises paradigmticas da msica tm um rendimento notvel em determinados repertrios musicais de povos tradicionais, como as sociedades indgenas. Recortando as unidades musicais do discurso (motivos ou frases meldicas e/ou rtmicas, seqncias harmnicas, etc.) e dispondo-as frente a frente em uma mesma coluna, quais termos homlogos, revelamse, para alm da prpria feio particular, a posio que ocupam no discurso, esta posio sendo um dado importante na anlise estrutural da musicalidade. As unidades musicais em questo so, muitas vezes, atribudas de qualidade ou eths, isto por meio de conveno cultural (diga-se, histrica e tcita). Nesta direo encontra-se o que alguns autores denominam oportunamente topics, e que envolve uma teoria da expressividade e do sentido musical que se pode chamar de teoria das tpicas, sendo tpicas um termo oriundo do conceito aristotlico topo, parte do jargo filosfico dos estudos de Retrica. Os autores mais importantes desta perspectiva at o momento so Ratner (1980), Agawu (1991) e Hatten (2004). O universo estudado nestas obras o da msica europia do perodo clssico, e algumas das tpicas trabalhadas por estes autores so: alla breve, aria, brilliant style, empfindsamkeit, fanfare, hunt style, learned style, pastoral, Sturm und Drang, entre outras. Trata-se aqui de tpicas de um perodo refletindo uma viso de poca. H uma distncia muito grande desta weltanschauung para o caso da msica brasileira, tratada aqui como uma unidade scio-cultural em consolidao ao longo dos sculos XIX e XX. Porm, creio que h tambm uma viso de mundo que permeia este longo perodo e este territrio simblico, e que esta teoria uma interessante via para a compreenso da significao musical e da musicalidade brasileira, principalmente no mbito da construo de identidades em jogo no texto musical. Tpicas seriam, portanto, as figuras da retrica musical. A idia de figura e de retrica musical pressupe, portanto, uma compreenso da msica enquanto discurso. As unidades musicais deste discurso so, muitas vezes, atribudas de qualidade ou eths, isto por meio de conveno cultural (diga-se, histrica e tcita). O encadeamento destas unidades compe parte do discurso musical e sua lgica. Para Meyer, por exemplo, o uso de convenes deste tipo se d como controle da expectativa, da satisfao ou suspenso das tenses musicais geradas nos processos formais da msica tonal, o que comprovaria a importncia da emoo e do significado na msica (Meyer, 1956).

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Gostaria de enfatizar que, alm de funcionarem como figuras da retrica musical, tpicas so tambm topo-lgicas, ou seja, sua plenitude significativa se d no apenas por sua feio interna, mas tambm pela posio de sua articulao no discurso musical. Pode-se pressupor, assim, uma significao implcita na progresso destas posies na cadeia sintagmtica de um discurso musical. O problema no se limita a encontrar ou fixar as tpicas encontradas no discurso musical, mas a explicar como estes governam a sucesso dos afetos, gestos e tpicas (Meyer, 2000:263). No caso de msica escrita, a cadeia de tpicas expressivas se encontra determinada na partitura, onde tpicas a serem descobertas podem se articular em diferentes momentos e ordenaes. J em improvisaes, podem ser mveis, tendo o carter de espao de possibilidade que se abre em determinados pontos do discurso musical. Creio que as tpicas de um discurso musical (entendidas como posies estruturais dotadas de qualidades determinadas) so experimentadas pelos prprios intrpretes na sua prtica musical, bem como pela audincia. Por meio desta avenida terica, tenho me dedicado ao estudo das relaes entre retrica, potica e msica, bem como busca de possveis tpicas da musicalidade brasileira, isto atravs de anlises de partituras e de transcries de improvisaes. Comentarei aqui alguns universos de tpicas que venho estudando. Alguns mecanismos e frases musicais revelam um lado brincalho, isto de forma a exibir alguma virtuosidade instrumental. Ao mesmo tempo esta tpica difere do scherzando por seu carter malicioso e desafiador. A figura do malandro na cultura carioca e brasileira em geral alude a este conjunto de tpicas que estou chamando de brejeiro: o malandro que ginga com os ps, esperto e competente (na ginga), desafiador (quem me pega?). A expresso musical deste carter da brasilidade se d atravs do brejeiro, que envolve transformaes musicais presentes, inicialmente, no choro. Muitas vezes est em jogo um tipo de ataque falso de nota, no qual um deslize cromtico no agudo faz crer que houve erro e, no entanto, se trata de uma transformao brejeira. Outras vezes, a tpica se manifesta mais na dimenso rtmica, como o caso de certas quebras e deslocamentos irregulares que parecem brincadeiras rtmicas que desafiadoramente (para os acompanhantes e ouvintes) atravessam os tempos como que brincando, sem se deixar perder. H um outro conjunto de tpicas que estou chamando de poca de ouro, onde reinam maneirismos das antigas valsas e serestas brasileiras, imperando a nostalgia de um tempo de simplicidade e lirismo. Como que em forma de mito, manifesta-se aqui um Brasil profundo do passado atravs de volteios meldicos (vrios tipos de apojatura, grupetos) e certos padres motvicos (escala cromtica descendente, atingindo a tera do acorde em tempo forte) que esto fortemente presentes no mundo do choro e em vrios outros repertrios de msica brasi-

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leira, tanto na camada superficial quanto em estruturas mais profundas. Nas Valsas de Esquina, de Francisco Mignone, em certos trechos das composies de Hermeto Pascoal, as tpicas poca de ouro se apresentam sempre evocando brasilidade, lirismo e nostalgia. Menciono ainda o grande conjunto de tpicas nordestinas: a musicalidade nordestina um recurso fortemente empregado na expresso da brasilidade (Piedade, 2003, 2005). Desde cedo este nordeste profundo se apresentou musicalmente em diversos repertrios musicais. O baio e a escala mixoldia, usada mediante uma srie de padres, se tornaram ndice de identidade nacional, por exemplo, nas composies nacionalistas de Camargo Guarnieri, GuerraPeixe e de outros compositores que se opunham ao atonalismo do movimento Msica Viva dos anos 40. Como concluso deste breve artigo, afirmo o grande rendimento de investigaes da dimenso expressiva da msica brasileira e da anlise musical detalhada dos textos musicais deste vasto repertrio, dissolvendo as fronteiras entre o mundo erudito e popular. O estudo da retrica musical e a teoria das tpicas so ferramentas de anlise que superam o mero formalismo ao envolver simultaneamente conhecimentos musicais, figuras de expresso e interpretaes histrico-culturais, funcionando como via de acesso significao e aos nexos culturais. Referncias citadas Agawu, V. Kofi. 1991. Playing with signs: a semiotic interpretation of classic music, Princeton: Princeton University. Hamm, Charles. 1995. Putting popular music in its place. Cambridge (UK): Cambridge University. Hatten, Robert S. 2004. Interpreting musical gestures, topics, and tropes: Mozart, Beethoven, Schubert. Bloomington and Indianapolis: Indiana University. Meyer, Leonard B. 1956. Emotion and meaning in music. Chicago: University of Chicago. ______ Spheres of music: a gathering of essays. Chicago: University of Chicago Press, 2000. Middleton, Richard. 1990. Studying popular music, Milton Keynes: Open University. Piedade, Accio Tadeu de C. 2003. Brazilian jazz and friction of musicalities. In: E. Taylor Atkins (ed.) Planet Jazz. Jackson: University Press of Mississippi, pp. 41-58. ______ 2005. Jazz, msica brasileira e frico de musicalidades. Revista Opus, 11, pp. 197207. Ratner, Leonard G. 1980. Classic music: expression, form, and style. New York: Schirmer Books.

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Duas pequenas peas para falar de msica e pensamento, doena e cura, feitiaria e sociedade no alto XinguAccio Tadeu de Camargo Piedade [email protected] (UDESC) Resumo: Nesta comunicao, com base na etnografia de um ritual de flautas sagradas entre os ndios xinguanos Wauja, pretendo comentar um trecho do ritual que consiste em duas peas do repertrio. Estas peas so avaliadas de forma especial pelos mestres flautistas, sendo consideradas mais sagradas e mais perigosas. Tais peas so objeto de vrias restries que sero comentadas aqui. A partir do discurso nativo e da anlise musical destas peas, pretendo discutir questes como pensamento musical, cosmologia, cura e feitiaria, socialidade no universo indgena do alto Xingu. Palavras-chave: Cosmologia Wauja. Cura e feitiaria. Flautas sagradas. Pensamento musical. Durante meu trabalho de campo de doutorado, entre os ndios Wauja do alto Xingu, em 2001, observei alguns rituais de flautas sagradas kawok.1 Em uma destas ocasies, foram tocadas vrias sutes de msica de kawok, cada sute sendo constituda por um grande nmero de peas curtas tocadas sucessivamente entrecortadas por breves pausas. O ritual levou dois dias, com pausas pela manh. No total, foram 72 peas, perfazendo um total de 2 horas e 18 minutos de msica. No meio da madrugada fria, os flautistas tocaram duas peas seguidas que me chamaram a ateno, pois ocorreu mudana de andamento e textura. Terminadas estas peas, as outras retomaram as caractersticas daquelas que eu vinha ouvindo at ento. Como rotina do trabalho de campo, nos dias seguintes dos rituais, eu mostrava as gravaes para o mestre flautista, e gravava seus vrios comentrios e respostas s minhas perguntas. Alguns dias aps aquela noite, fui casa do mestre para realizar este trabalho. E, como era usual, fumando bastante, ele escutou atentamente, me apontando o nome da sute que estava sendo executada, os marcadores de incio e fim de sute, o incio de uma nova, alm de alguns comentrios sobre o significado daquelas peas. s vezes estes comentrios se estendiam, de modo que eu pausava a execuo do minidisc player para ouvir uma longa estria sobre uma pea. Invariavelmente, eu tinha algum problema na compreenso de uma ou outra palavra da lngua nativa, e o que tomava algum tempo at esclarecer. Enfim, estas proveitosas reunies musicolgico-lingsticas levavam longas tardes xinguanas, e estvamos acostumados a esta rotina, pois eu j vinha trabalhando com ele desta forma h meses.No h espao suficiente aqui para uma descrio introdutria do contexto etnogrfico. Para tal, remeto o leitor interessado minha tese de doutorado, da qual se origina o material desta comunicao (Piedade, 2004).1

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Naquela ocasio, quando o mestre ouviu a primeira das peas diferentes, ficou em silncio. Nenhuma palavra na pausa entre esta e a segunda. Somente ao final da segunda pea, ele disse que no era para eu ter gravado aquelas duas peas, elas eram kakaiapai (preciosas) e kawokapai (perigosas). Sua expresso era to grave que eu achei que eu perguntei se ele queria que eu apagasse as faixas, o que eu faria imediatamente, mas ele disse que no precisava, j estava gravado, s tinha que cuidar. Esta comunicao uma reflexo sobres estes cuidados. De incio, h que se pensar sobre o pensamento musical nativo e sua capacidade de expressar esta distintividade em termos musicais. As duas peas formam um subgrupo: o mestre me explicou que as duas peas so makukuonaapa (canto do macuco), sendo que se trata de um pssaro, o qual infelizmente no pude identificar. Este subgrupo foi executado ao longo da sute kisowagakipitsana (msica-timbre do escurecer), que um repertrio exclusivamente tocado na noite funda, muiyakak. Nesta sute h vrios subgrupos de peas, tais como tejuionaapa (canto do gavio), kumesionaapa (canto do beija-flor), iustionaapa (canto do peixe-cachorra), pisuluonaapa (canto do grilo), molajoonaapa (canto do jac), entre muitos outros. Todos estes repertrios so estveis, do ponto de vista do gnero musical e dos elementos formais e motvicos da sute. No subgrupo makuku, entretanto, h notveis diferenas. J de incio, um pulso relativo muito lento (de cerca de 58 b.p.m., nas peas anteriores e posteriores, para cerca de 24). Os dois flautistas acompanhantes tocam suas notas longas somente no primeiro tema, realizando um acompanhamento com uma nica nota, muito mais sinttico que o normal. No segundo tema, os acompanhantes param de tocar e o flautista mestre toca sozinho, diferentemente de todas as outras peas que ouvi. Pela primeira vez, em todo o ritual, com exceo dos toques de abertura e de encerramento, ocorre um solo de flauta. O tema apresenta pausas que, com o pulso lento executado pelas batidas do chocalho de tornozelo do mestre, abrem espaos sonoros onde se ouve os diversos sons da madrugada. Outra particularidade que ambas as peas no apresentam as sees formais toque de iniciao e toque central, que podem ser encontradas em todas as outras peas que ouvi. Na verdade, o primeiro tema, idntico nestas duas peas, funciona como um grande toque para os solos no segundo tema. Na segunda pea h, portanto, um dilogo com a primeira. No segundo tema da segunda pea h uma maior elaborao variacional: motivos que so aumentados e diminudos, excluso de pausa e insero de motivo novo, fuso de motivos previamente separados, entre outros princpios que a anlise musical revelou. Enfim, h um jogo motvico bastante intenso nestas duas peas, para-

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lelo ao aspecto minimal do acompanhamento, constituindo notveis distines ocorrendo no plano musicolgico. Outros aspectos a considerar so referentes cosmologia nativa. Na msica de kawok, h um importante nexo com o mundo dos espritos apapaatai. Kawok um deles, considerado o mais perigoso, causador de doenas e morte. Enquanto toda msica ritual Wauja de apapaatai e tocada para apapaatai, a execuo das estruturas musicais coloca, lado a lado, o belo e o perigoso. Quanto mais belo, mais correto, awojopai, menos perigoso. O erro, a incorreta enunciao do jogo motvico, perigosa: na msica de flautas kawok h, sobretudo, ordem, a correta ordenao das sutes, das peas dentro da sute, dos temas dentro da pea, das frases dentro dos temas, dos motivos dentro das frases, das clulas dentro do motivo, enfim, o belo-correto est na ordem em todas os segmentos da msica. E o cerne da ordem est na dimenso temtica do canto executado pelo flautista mestre, apai, o ncleo para o qual tudo o mais se faz periferia (Menezes Bastos, 1999), para onde convergem os ouvidos dos flautistas xinguanos e dos apapaatai. Como as mscaras em situao ritual, a flauta um objeto ativado cosmicamente pela potncia da presena imediata do apapaatai: no caso de kawok, a msica esta sua presentificao. Nas peas makuku, extremamente valiosas e perigosas, o canto do flautista mestre potencializado pelo silncio dos acompanhantes, a densidade da presentificao do apapaatai proporcional minimalidade da textura musical e elaborao extrema no canto principal. O mestre de flautas (kawokatop) mais do que um mestre de msica: ele parece configurar um paj musical. Ele aquele que conhece todo o repertrio musical dos rituais de flautas, sabe construir os instrumentos e toc-los com virtuosismo. Ele ensina outros flautistas, tanto a parte do acompanhamento quanto os cantos da voz principal, e conhece toda a etiqueta do ritual2. Alm de todos estes conhecimentos, tem a capacidade especial de memorizar as msicas que os apapaatai tocam. A percepo musical apurada um dos aspectos principais em um mestre de flautas: ouvir uma pea e memoriz-la, podendo reproduz-la depois, uma capacidade analtica saliente dos mestres3. O mestre de flautas , a seu modo, um paj. Pois assim como os pajs iakap so os nicos que podem abrir o mundo dos apapaatai na sua viso, o kawokatop o nico que pode reproduzi-lo musicalmente: esta capacidade aO kawokatop deve saber previamente todo o procedimento para o ritual com segurana (para o bem da sade dos Wauja). Na performance musical, esta segurana funciona como ajuda para os flautistas acompanhantes que no conhecem ou no se lembram bem dos temas, que podem realizar bem o acompanhamento prestando ateno no flautista mestre, principalmente olhando seus dedos. 3 Memorizar envolve anlise. O ouvido analisa a msica, encaixa partes correspondentes, isola motivos homlogos, entre outros procedimentos associativos (ver Snyder, 2001). No caso da msica de flautas kawok, me parece que o ouvido varre as sees da pea e concentra-se nos motivos-de-tema.2

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proxima o mestre de flautas do mundo do xamanismo. Os mestres de flauta so pajs clariaudientes, em contraposio aos pajs iakap, que so clarevidentes4. O clarividente flautista mestre me alertou com relao s gravaes das duas pequenas makukuonaapa: no devem ser ouvidas por outros flautistas xinguanos, com exceo dos Wauja. Este o cuidado especial com relao a estas peas. Sim, pois esta preciosidade um perigo potencial se cair nos ouvidos do outro. Os flautistas xinguanos possuem, como dizem, gravadores na cabea. Alm de vrios flautistas Wauja que observei na aldeia, pude constatar a agudeza do ouvido musical de um mestre Kamayur em minha casa, onde lhe mostrei o CD Musiques du Haut Xingu (Schiano, 1992). Fiquei impressionado com a rapidez e acuidade de seu ouvido, que reconhecia de imediato o repertrio em questo e o grupo que o executava, confirmando os dados do booklet do CD, e ainda indicando por vezes a pessoa que estava tocando ou cantando. Ele afirmou, em portugus, que sua cabea um gravador5. A idia do gravador mental, alm de remeter rea da percepo e psicologia cognitiva da msica e questo da habilidade musical (ver Sloboda, 1994), suscita tambm pensar sobre propriedade intelectual das msicas: as novas peas kawok so trazidas do sonho, mas o sonho no uma produo da mente do indivduo, uma vivncia (Graham, 1994), uma experincia na qual se pode ouvir a msica que tocada pelos apapaatai. As peas so como doaes, presentes dos apapaatai aos sonhadores, so dirigidas para eles. Se o sonhador ser capaz de memorizar e reproduzir, no da alada do apapaatai, mas, a sim, do indivduo. Uma nova pea no afirmada como sendo criada pelo flautista, mas como lembrada6. Entretanto, na esfera do coletivo, a noo de propriedade intelectual-artstica das msicas se torna muito sensvel. H certas peas que nunca so tocadas na presena de estrangeiros, e o repertrio que utilizado na grande festa intertribal de flautas exclui estas peas mais internalizadas, consideradas mais valiosas. Da que a gravao (eletrnica) deste repertrio se torna um perigo, pois para um mestre xinguano basta ouvir uma vez que ele rapidamente grava a pea no ouvido, roubando-a para o seu grupo. Este repertrio, um conjunto de peas que

A idia de clariaudincia (Schafer, 2001) aponta para a capacidade excepcional de ouvir claramente a dimenso sonora dos apapaatai. 5 Dizer, como fazem os flautistas xinguanos, que a cabea escuta e memoriza, funcionando como um gravador, lembra o Deputado Juruna, que andava sempre com um gravador mini-cassete em mos, no exatamente para poder gravar as palavras (mentiras) dos brancos. Isto ele podia fazer com seu prprio gravador mental. Mas para reproduzir a voz que denuncia a mentira, como uma evidncia cientfica. Cacique Juruna fazia, nos anos 80, o que se continua fazendo hoje atravs de laboratrios sofisticados: mostrar que a voz de algum realmente falou aquela coisa constatar o que os Wauja chamam de pitsana. 6 Meu sogro falava nutsixutsapai apapaataionaapa nisp , eu me lembro da cano do apapaatai no meu sonho (literalmente: eu+abdmen+causa+estativo apapaatai+canto eu+sonho).

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podem ser tocadas dentro das tradicionais sutes do kawok, top secret: no pode ser ouvido por estas cabeas gravadoras de outros putakanau (xinguanos). Mais do que um problema de direitos autorais ou propriedade de bem imaterial7, creio que h aqui um nexo com as cosmologias xinguanas. O ouvido musical xinguano pode realizar uma espcie de predao, pois o objeto em questo, as peas de kawok, constitui algo muito sensivelmente ligado ao mundo dos apapaatai. A msica de kawok tem um papel importante na economia poltica csmica que sustenta a vida cotidiana, especialmente este repertrio sagrado. O mestre Wauja recomendou-me muito enfaticamente para nunca mostrar minhas gravaes para xinguanos no-Wauja. A nfase neste discurso, e o modo como outros homens Wauja trataram desta mesma questo, me fez pensar que talvez, para alm de um roubo, possa haver aqui um perigo ligado ao universo da feitiaria. Este sentido aponta para a dimenso da feitiaria: msicas que so atiradas contra o inimigo, qual feitio (ver Menezes Bastos, 1990; Monod-Bequelin, 1975)8. Aqui tambm ouvir, gravar na cabea, roubar uma pea pode ser entendido como tomar um objeto precioso da vtima em potencial, que poder ser lanado de volta contra ela. Desta forma, as duas pequenas peas em questo revelam diversas facetas da socialidade xinguana e da filosofia Wauja, segundo a qual a categoria ouvir tem um carter ontolgico com a espacialidade, aparece conectada ao mundo do xamanismo e da feitiaria, seu nexo cosmolgico sendo indissocivel de seu aspecto sensorial. Referncias citadas Bastos, Rafael J. de M. 1990. A Festa da Jaguatirica : uma partitura crticointerpretativa. Tese de Doutorado em Antropologia, USP. ______. 1999a. A Musicolgica Kamayur: para uma antropologia da comunicao no AltoXingu. Florianpolis: Editora da UFSC. ______. 1999b. Apap World Hearing: on the Kamayur phono-auditory system and the anthropological concept of culture. The World of Music. 41/1: 85-96. Bastos, Rafael Jos de Menezes e Piedade, Accio Tadeu de C. 1999. Sopros da Amaznia: sobre as msicas das sociedades tupi-guarani. Mana. 5/2: 125-143.7

O problema da propriedade intelectual extremamente importante no mundo atual, onde a lgica do liberalismo econmico predomina. H enormes impasses nesta arena que impem srios riscos aos saberes indgenas, como por exemplo, o registro de propriedade do urucum, feito por uma empresa britnica de cosmticos. No caso da chamada propriedade imaterial, na qual se encaixam os rituais e as msicas, no diferente. H uma vasta literatura sobre esta temtica, e como no cabe desenvolver uma reflexo aqui, remeto o leitor a Piedade (1997 -anexo Etnografia e Copyright: um momento delicado), Bauman (1991), Feld (1996), Frith (1993), Seeger (1991, 1992, 1996), McCann (2002). 8 Menezes Bastos comenta que, no ritual Yawari, uma cano kanup aponta para o envio do odor das relaes sexuais para o adversrio ritual, no sentido de enfeiti-lo e causar seu insucesso (1990:155, 337).

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Graham, Laura. 1994. Dialogic Dreams: creative selves coming into life in the flow of time. American Ethnologist, 21/4: 719-741. Mello, Maria Ignez C. 1999. Msica e Mito entre os Wauja do Alto Xingu, dissertao de Mestrado em Antropologia Social. PPGAS/UFSC. ______. 2005. Iamurikuma: msica e mito e ritual entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de doutorado em Antropologia Social. PPGAS/UFSC. Mello, Maria Ignez Cruz e Piedade, Accio Tadeu de C. 2005. Diferentes escutas do espao: hipteses sobre o relativismo da percepo e o carter espacial da audio. Anais do I Simpsio Internacional de Cognio e Artes Musicais. Curitiba: Deartes, 84-90. Piedade, Accio Tadeu de C. 2004. O Canto do Kawok: msica, cosmologia e filosofia entre os Wauja do Alto Xingu. Tese de doutorado em antropologia social. UFSC. Schafer, Murray. 2001. A afinao do mundo. So Paulo: Editora Unesp. Snyder, Bob. 2001. Music and Memory: an introduction. Cambridge: The Mit Press.

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Efeitos da migrao na msica e na dana de forrAdriana Fernandes [email protected] (UFG) Resumo: O objetivo deste trabalho analisar o dilogo estabelecido entre a msica e a dana de Forr, seus praticantes, e o estrato social no qual eles esto mergulhados, dando subsdios para um melhor entendimento dos fatores que envolvem as migraes para as grandes cidades, no s de pessoas como tambm de suas expresses artsticas, e a interveno/participao da cultura cosmopolita, citadina, dentro deste processo. Palavras-Chave: Forr. Migrao. Classe baixa. Moderno. O deslocamento espacial de seres humanos um fato que est intrinsecamente ligado ao povoamento do planeta, s modificaes genticas sofridas pela espcie, a diversidade de agrupamentos culturais existentes, s condies geo-climticas, sociais, econmicas e polticas, alm das vontades individuais e, porque no dizer instintivas, dos seres humanos de aventura, explorao e conhecimento, a exemplo de outros animais. As teorias sobre a migrao humana tendem a explicar as razes das migraes muito racionalmente sob o ponto de vista principalmente econmico e poltico (Wilson 1993; Kearney 1986; Matos Mar 1961; Pearse 1961) deixando encoberto este ltimo aspecto exatamente devido ao seu aspecto imprevisvel e impondervel. No entanto, ao conduzir trabalho de campo no meio de uma comunidade de migrantes nordestinos em So Paulo, capital, de 2000 a 2001, a vontade e a pr-disposio individual ou coletiva de migrar foi detectada como a principal razo para o deslocamento. Neste caso h todo um preparo e planejamento para tamanha empreitada, e, por exemplo, fazse necessrio trazer na mala o instrumento que toca, ou os discos que mais gosta, ou o ingrediente especfico de uma determinada comida. Foi isso que aconteceu com o Forr, um gnero musical danante, eminentemente nordestino, ligado aos festejos juninos e as festas de comemorao da colheita de milho. Ele veio na mala junto com o acordeom, a zabumba, o tringulo, o pandeiro, a rabeca, o violo, e impresso na identidade cultural do indivduo migrando em direo a So Paulo. Este estudo d um pequeno exemplo de como, no processo de migrao, um ingrediente cultural, no caso o Forr, acompanha o migrante para o local de destino da migrao e o ajuda a se adaptar ao novo ambiente quando ele prprio, o Forr, sofre mudanas e adaptaes. uma relao dialtica que se estabelece entre o nordestino migrante e o Forr que ele pratica, pois medida que so criadas novas relaes no novo contexto social, tambm novos elementos vo sendo acrescentados ao Forr e vice-versa. E estas configuraes so diferentes

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se considerarmos os nichos sociais onde diferentes aspectos do local de destino da migrao se fazem presentes. Neste estudo eu analiso o Forr e o migrante nordestino no contexto de classe baixa que onde se pode encontrar o maior nmero de migrantes, na tentativa de entender tambm o grau de absoro de valores e padres culturais do local de destino. No contexto de classe social baixa, eu tomo como ponto de anlise uma noite no Forr da Catumbi, no bairro do Belenzinho, zona leste de So Paulo. Este local um ponto de referncia para os migrantes nordestinos em So Paulo, pois, foi por mais de vinte anos o conhecido Forr do Pedro Sertanejo, a primeira casa de Forr com estrutura de nightclub que teve um longo perodo de atividades exercendo influncia nas posteriores casas de Forr abertas no s em So Paulo, mas tambm em outras cidades e regies do pas. Na poca do trabalho de campo, 2001, o Forr tinha acabado de ser reaberto sob nova direo. A noite de 23/24 de fevereiro em particular teve como principal atrao em meio ao carnaval, uma apresentao de Frank Aguiar, o cozinho dos teclados. Cheguei por volta das 23:00 horas, entrei, fui at a bilheteria e paguei aproximadamente dez reais por um ingresso. Haviam seguranas vestidos de preto que me revistaram, recolheram o bilhete e liberaram a minha subida. L em cima havia por volta de trezentas pessoas e ainda no estava cheio. Havia muitos seguranas espalhados pelo espao que era bastante amplo e ainda com um mezanino nas laterais. Do outro lado da entrada, havia um palco, no muito alto. O pblico em geral tinha na faixa dos 30 anos de idade e casais mais velhos. No mezanino havia um pblico mais jovem. Uma grande variedade de pessoas chamou a minha ateno: brancos, negros, mulatos, vrios tipos de cabelo, roupas, maquiagens. A decorao do ambiente tambm era bastante particular: mulheres nuas (em estilo grafite), jangadas, a catedral de Braslia, o Memorial da Amrica Latina e o Rancho Fundo. Na outra lateral haviam janelas e pessoas vendendo material promocional de Frank Aguiar (cachorrinho de pelcia tocando teclado, chapus brancos como os usados por Aguiar, Cds, camisetas, fotos autografadas). Durante a noite at por volta das duas e meia da manh ocorreu uma sucesso de diferentes artistas no palco que tinham em comum o acompanhamento de um teclado (Korg, Yamaha) e que cantavam sucessos de forr atuais ou no conhecidos atravs da mdia (rdio, televiso). A bateria usada praticamente para todos os nmeros aquela que vem prestabelecida no teclado alterando apenas a velocidade, que tendeu a ser sempre mais rpido do que o conhecido. Desde o incio o nmero de pessoas danando era grande, e a conformao de casais bastante variada: eu tanto vi casais mais jovens quanto casais mais velhos e ainda casais com grande diferena de idade entre si. Tambm observei um casal um tanto incomum: uma senhora na faixa dos seus sessenta anos com um rapaz de aproximadamente trinta anos e

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ela era quem liderava a dana e os movimentos. Importante notar que, apesar deste desfile tecnolgico de teclados no palco, a dana executada pelo pblico era a dana conhecida de Forr, onde o casal abraado faz movimentos de avano/recuo e laterais sobre um suposto eixo central. Quando havia algum intervalo entre as bandas, um playback tocava algum sucesso do momento como, por exemplo, Esperando na Janela de Targino Gondim, interpretado por Gilberto Gil e trilha sonora do filme Eu, Tu, Eles, ou ainda algum sucesso do grupo Falamansa ou do Rastap, todos eles alinhados com o que estava sendo chamado pelo pblico em geral em So Paulo de Forr universitrio, um Forr voltado para a juventude universitria paulistana, executado principalmente por migrantes nordestinos e depois os prprios universitrios comeam a formar as suas bandas de Forr. No Forr da Catumbi, um grupo que chamou a ateno foi os Irmos Quops, composto por dois teclados Korg tocados por um musico cabeludo, um acordeonista e duas garotas: uma que danava em trajes escassos e a outra com um vestido curto que cantava. Alm de terem sido aplaudidos entusiasticamente e tocado preferencialmente sucessos do momento, ao final, o acordeonista solou dois nmeros virtuossticos: Milonga das Misses de Renato Borghetti e Brasileirinho de Waldir Azevedo, chegando ao ponto de se deitar no cho e continuar tocando, mostrando suas habilidades que foram ovacionadas pelo pblico. Depois de mais alguns grupos e com um pblico de aproximadamente mil pessoas, finalmente Frank Aguiar veio ao palco com seus dois teclados (Korg e Technics), um acordeonista e um saxofonista (tenor), acompanhados de duas garotas loiras, menores de 18 anos, que danavam e faziam backvocal. No repertrio, o grupo de Frank Aguiar tocou um sucesso de lambada dos anos 1980: Chorando se foi, e tambm tocou Esperando na Janela, e logo depois os seus prprios sucessos como aquele que diz que mulher madura o bicho/lavou/enxugou/t nova, e ainda loira no burra/tem preguia de pensar. Tambm fez parte da seleo apresentada o Xote das Meninas de Luiz Gonzaga (embora em tempo bastante rpido), Morango do Nordeste, Pequenina assim como verses em portugus de antigos sucessos originalmente cantados em ingls. O estilo do grupo seguia a seguinte seqncia: introdues lentas, instrumentais, sem percusso ou bateria, um breque ou suspenso e ento se iniciava a bateria em tempo rpido e o canto. O acordeom apenas preenchia espaos sonoros (fill-ins) e ocasionalmente havia um solo de saxofone. As garotas faziam movimentaes corporais apenas acompanhando as msicas e estavam visivelmente cansadas. O pblico prximo ao palco apreciava o show como grandes fs, de forma mais passiva. O restante, de maneira geral e principalmente com quem eu conversei, danava sozinho ou em pares, pois o

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grande motivo de se ir ao Forr, segundo meus informantes naquela noite, era a vontade de danar. Com este pequeno recorte possvel se tirar alguns dados sobre o processo de migrao e sua relao com um determinado fenmeno cultural, no caso o Forr. O pblico que estava presente nesta casa de Forr era bastante ecltico, mas de maneira geral todos da classe trabalhadora (eu falei com donas de casa, empregadas domsticas, pedreiros, vendedores). Havia migrantes nordestinos entre eles, assim como tambm no palco, mas de nenhuma forma eu pude perceber algum tipo de separao ou discriminao na platia. Esta atitude confirmada na variedade de formao de casais mencionada acima. Nem mesmo considerando o mezanino como um local em separado, as pessoas o usavam como local de descanso ou de namoro, havendo um trnsito grande para a pista de dana no piso principal. Pode-se perceber com clareza que o pblico presente se preparou para ir ao Forr. um evento social, de divertimento, encontro, namoro, lazer. Para isso, as pessoas se vestem de maneira mais especial, se banham, se perfumam, se enfeitam. O fato de ser um local reconhecidamente para danar tambm interfere nesta preparao, pois o indivduo no quer ser rejeitado na dana por parecer sujo ou maltrapilho. A decorao do local, como em outros Forrs que eu freqentei, tinha como tema alguns cones reconhecidamente envolvidos com o nordeste e o povo nordestino. Neste caso, a jangada (embarcao de trabalho, turismo nas praias), a catedral de Braslia (religiosidade e trabalho), o rancho fundo (que se refere ao povo que vem do interior do pas, o sertanejo, e neste caso o sertanejo nordestino tambm), o monumento da Amrica Latina (trabalho, cultura) e finalmente o grafite que cobre boa parte dos muros de So Paulo e aqui se faz presente como um elemento caracterstico da cidade de destino. Mas na msica e nas performances que, a meu ver, a questo da migrao e da negociao que se estabelece entre o migrante e a cidade de destino se faz mais enftica. O desfile de diferentes grupos se apresentando um aps o outro no palco me faz lembrar um programa de domingo na televiso, como Fausto ou Silvio Santos. Esta mesma conformao foi encontrada em outras casas de Forr de classe baixa na capital paulista, mas no em um Forr na periferia da cidade de Recife, no nordeste. Isso significa que o pblico migrante tambm assduo telespectador destes programas de auditrio exibidos na televiso, e que tal atividade integra a sua nova vida na cidade grande de forma mais regular. Isso compreensvel visto que atividades de lazer e divertimento na cidade so de modo geral pagos e este custo pesa no salrio ganho ao final do ms, que tem mltiplos destinos prioritrios (como enviar dinheiro para a famlia que ficou no nordeste, por exemplo). A presena marcante de teclados, ao invs

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do acordeom, , a meu ver, um dos elementos mais reveladores do processo migratrio. Embora o Forr seja uma manifestao que tem quase que por smbolo (usando o termo no sentido peirceano) o acordeom, ou mais comumente chamada de sanfona, durante o deslocamento para a cidade grande o msico migrante trocou a sanfona pelo teclado. De acordo com uma senhora que estava presente no Forr, isso se deve ao fato de que a gente tem que modernizar. Ela j havia tido aulas de sanfona, mas agora estava estudando teclado. Um fato interessante de se notar e que muitas vezes passa despercebido quando se considera a migrao de Luiz Gonzaga, um dos principais cones da musica nordestina para danar. Gonzaga aprendeu a tocar sanfona de boto, tambm conhecida por p-de-bode ou sanfona de oito baixos, com o pai, no interior do nordeste. Quando Gonzaga migra para o Rio de Janeiro, ele vai adotar a sanfona de teclado, de cento e vinte baixos, que ele aprende com Domingos Ambrsio em Minas Gerais. A meu ver, esta mudana tambm estava relacionada com a questo da modernizao e com a migrao. A sanfona de teclados vista no meio popular como um piano porttil, e neste caso a palavra piano significa classe mdia e alta, dinheiro, status e sofisticao. O mesmo significado por traz do hodierno teclado. Portanto, tocar Forr com um teclado significa adaptar o Forr cidade grande, uma tentativa de incluso, modernizao e ascenso social. O indivduo migrante est quotidianamente empenhado em se adaptar cidade, aos horrios, ao esquema de trabalho, comida, ao sistema de transporte, ao modo de viver a vida, e embora, ele necessite continuar danando, tocando, e praticando o Forr, a adeso ao teclado mostra com clareza a sua disposio para esta adaptao, pois ele abre mo de um signo muito prximo do seu contexto natal, no caso a sanfona, trocando-o por um signo encontrado na cidade, o teclado. Mas esta transio no feita muito facilmente, e, na poca, o fato da mdia estar dando muita importncia ao chamado Forr universitrio que priorizava o trio de sanfona, zabumba e tringulo criado por Gonzaga, influenciava as conformaes dos grupos, por isso no s Frank Aguiar estava se apresentando acompanhado de acordeom, mas tambm os Irmos Quops. No entanto, com Frank Aguiar o acordeonista apenas executa pequenos motivos, ligaes meldicas e fill-ins. No conjunto dos Irmos Quops o acordeom faz dois solos virtuossticos, chamando a ateno para a capacidade sonora do instrumento e para a habilidade tcnica do msico, procedimento que comum em Forrs no nordeste. Pode-se perceber que a adaptao do migrante na cidade feita numa base diria e quase que em tempo integral. Esta adaptao extremamente dinmica e fluida. Existe uma grande predisposio para experimentar, testar, conhecer o novo. Tambm existe uma forma de recalque que se auto-valoriza inferiormente e tende a supervalorizar os signos da cidade

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como melhores e se tornam objetos do desejo. Esta percepo resultado de uma ampla divulgao feita principalmente pela indstria cultural e pelos meios de comunicao de massas, que em si j so vistos como signos de superioridade, tecnologia, e modernidade. Mas a dinmica da vida no permite que apenas estes valores sejam considerados, e o que eu posso perceber uma necessidade de equilbrio entre as inovaes e o que j conhecido. Da que possvel encontrar sanfona e teclados juntos no palco. Tambm possvel encontrar um Forr com uma estrutura de nightclub, pois a cidade e o indivduo migrante esto interagindo. Portanto a casa de Forr no contexto de classe social baixa na cidade de So Paulo um local onde possvel se detectar claramente os procedimentos envolvidos na adaptao dos migrantes nordestinos na cidade e ainda perceber o importante papel exercido pela mdia e os meios de comunicao de massas para sinalizar quais os signos considerados modernos e representantes da cidade que passam a ser almejados como fetiches, que ao serem adquiridos e absorvidos colocaro o migrante mais prximo do seu objetivo: a completa adaptao cidade grande, a sua aceitao pelo restante da comunidade citadina no mais como um migrante ignorante e caipira, mas como um cidado moderno. Mas neste processo, a cidade tambm obrigada a ceder e absorve o migrante e o seu Forr. Referncias citadas Fernandes, Adriana. 2005. Music, migrancy, and modernity:a study of Brazilian Forr. Tese (Doutorado em Msica, Etnomusicologia). Urbana: University of Illinois at UrbanaChampaign. Kearney, Michael. 1986. From the invisible hand to visible feet: anthropological studies of migration and development. Annual Review of Anthropology 15: 331-61. Matos Mar, J. 1961. Migration and urbanization The Barriadas of Lima: an example of integration into urban life. In: Urbanization in Latin America, edited by P. M. Hauser. New York: Columbia University Press, UNESCO. Pearse, Andrew. 1961. Some characteristics of urbanization in the city of Rio de Janeiro. In: Urbanization in Latin America, edited by P. M. Hauser. New York: Columbia University Press, UNESCO. Wilson, Tamar Diana. 1993. Theoretical approaches to Mexican wage labor migration. Latin American perspectives 20(3): 98-129.

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Comentrios sobre o mundo do choro atualAdriano Maraucci Ra [email protected] (UDESC) Accio Tadeu de Camargo Piedade [email protected] (UDESC) Resumo: A presente comunicao pretende discutir aspectos do mundo do choro na atualidade, enfocando especialmente as novas tendncias e suas tenses em relao ao choro mais tradicional. Partindo de uma viso geral dos estudos sobre choro dos ltimos anos, comentaremos alguns nomes e grupos atuais, discutindo tambm questes referentes forma musical, aspectos fraseolgicos, modelos de improvisao, harmonia, entre outros. Alm disso, trataremos de investigar, atravs do discurso nativo, a construo identitria relativa s diferentes concepes deste gnero musical, as correlaes entre choro e msica instrumental e a forma como os msicos encaram a situao do choro no Brasil hoje. Palavras-chave: Choro. Tradio. Novas tendncias. Segundo a historiografia da msica brasileira, o choro surgiu no final do sculo XIX como uma das conseqncias artsticas de uma srie de fatos importantes. A abertura dos portos no inicio do sculo XIX traz de forma intensa a cultura europia, suas orquestras e danas de salo, aumentando a circulao de partituras. Com a hospedagem definitiva dos monarcas no Brasil, mostrou-se necessria uma transposio estrutural-cultural que trouxe consigo novos hbitos e idias, transformando rapidamente a cidade do Rio de Janeiro. Neste cenrio, consolidou-se a nova e emergente classe mdia no pas. Ao longo do sculo XVIII, era comum o chamado trio de pau e corda (cavaquinho, violo e flauta, que na poca era de madeira de bano) e desta formao surge o choro, que inicialmente designava esta prpria formao instrumental. Somente aps este momento inicial que a palavra choro passou a designar uma certa forma de tocar as msicas europias em voga. A classe mdia emergente formava o pblico que consumia e produzia msica na segunda metade do sculo XIX. Alguns funcionrios pblicos eram msicos e tocavam choro em suas reunies. O choro, nesta sua fase inicial, era a forma de tocar as melodias j consagradas na Europa e outras j conhecidas do repertrio clssico, que eram interpretadas de modo mais leve e brincalho, sobretudo quanto ao ritmo. Tinhoro (1991:63) aponta para o fato de que o maxixe surgiu como uma necessidade interpretativa dos msicos que tocavam na Cidade Nova (regio popular da cidade do Rio de Janeiro), de aproximar o que tocavam ao tipo de dana que eles acompanhavam. Assim, como polca havia chegado da Europa em meados da segunda metade do sculo XIX e virado uma verdadeira febre, o choro surgiu como esta maneira peculiar de interpret-

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la. Nesse perodo de passagem entre o sculo XIX e XX, formaram-se no Rio de Janeiro grupos como o Choro Carioca (considerado um dos primeiros), que se tornaram muito populares em festas caseiras, transformando-se em um marco inicial do gnero (Cazes, 1999). Na sua trajetria rumo constituio como gnero musical, o choro como formao instrumental se transformou em modo de tocar. Ou seja, indo da sonoridade instrumental performance, o caminho do choro mostra como o som dos violes e cavaquinho, pandeiro e a flauta, foi se tornando importante na cultura brasileira. Porm, a interpretao das danas europias atravs desta sonoridade se dava atravs de um jeito carioca, de fundo de quintal (Moura, 1983: 52), e este seu modo performtico, que inclua elementos estruturais, como a polifonia da baixaria do violo de 7 cordas, isto e outras coisas, fez o choro ir alm de um modo de tocar e para consolidar-se como um gnero que iria atravessar um sculo culturalmente muito conturbado, para chegar com fora e identidade no sculo XXI. Vejamos como o choro vai seguindo este percurso. Para uma compreenso mais abrangente do choro que vem sendo tocado a partir de meados da dcada de 80, preciso destacar o perodo de consagrao identitria do choro, compreendido no perodo entre 1930 e 1960. possvel enxergar esse perodo como um espao de tempo de profundas modificaes no universo da msica popular, e, no obstante, do samba e do choro, pois, por volta da dcada de 30, Noel Rosa (aliado a outros sambistas como Geraldo Pereira e Moreira da Silva) por fim estilizaram o samba que tinha a cara do Rio de Janeiro, se descolando um pouco daquela sonoridade mais baiana (ou afro). Muitos chores haviam tido contato com este samba mais afro, e agora participaram desta mudana de paradigma (Sandroni, 2001), que introduziu no samba novas sncopas e extenses na formas. Muitos chores (como o prprio Pixinguinha) conviveram com os sambistas nas rodas das tias baianas: fundamental considerar a importncia desse dilogo samba-choro, j que a histria do choro no pode ser compreendida sem a histria do samba, ambos sendo fabricaes de um Brasil que se constitua na capital da Repblica (Vianna, 1995), em seus lugares chave, como a casa da Tia Ciata (Moura, 1983). Entre os anos 20 e 30, assim, Pixinguinha comea a formular o que se tornaria uma das principais caractersticas do choro: a sua forma em trs partes. Na dimenso meldica, consolidaram-se padres de repeties, arranjo, contracanto e maneirismos meldicos que viriam, posteriormente, a extrapolar o mbito do choro. Para Piedade (2006), h um aspecto na musicalidade brasileira que claramente chorstico, que migra, na forma de tpicas (figuras de retrica musical) para outros gneros e discursos musicais. Passados mais ou menos 30 anos dessa prtica estandardizada, no final dos anos 50 o choro iniciou seu perodo de adormecimento que iria durar at os anos 80. Relacionam-se a

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este fenmeno fatos como os movimentos culturais dos anos 60, a globalizao cultural, a crise do modernismo, a chegada poderosa da televiso, o aumento na velocidade de transferncia da informao e as fortes ondas do estrangeiro, como os movimentos hippie, o rocknroll; enfim, h vrios fatores que causaram esta retrao no apenas no choro, mas que sufocaram tambm o samba e o bolero neste perodo. A partir de meados dos anos 80, grupos que comeam a arranjar temas clssicos do choro, isto atravs de substituies harmnicas e novos caminhos contrapontsticos, menos lineares e tonais (Zagury, 2005), alm de utilizarem, na instrumentao, baixo eltrico, guitarra e bateria, como o grupo N em pingo dgua. Durante os anos 90, o Brasil fez parte da onda mundial de valorizao das identidades tradies locais, aps a desterritorializao e a fragmentao identitria causada pela globalizao (ver Harvey, 1993). Jovens msicos buscaram as fontes da musicalidade brasileira nos repertrios que estavam abandonados pela mdia e pelos estudos musicais: gneros nordestinos como frevo, baio e maracat, gneros afrobahianos como afox e samba-de-roda, entre muitos outros. Surgiram vrias fuses, como o Mangue Beat, e grupos que procuram executar os repertrios autnticos da msica brasileira, como o choro. O conservadorismo chorstico encontrou neste momento uma fora para o restabelecimento de seu tempo mtico, anterior s experimentaes e aberturas dos anos 80: o velho choro consolidado na poca de Pixinguinha voltou com tudo, e a sonoridade do regional volta a agitar a cultura brasileira, e cresce o interesse dos jovens por este rico mundo conservado, autenticamente brasileiro. Os grupos de choro mais recentes, como o Trio Madeira Brasil, parecem preservar apenas a instrumentao como legado do choro-raiz, pois tocam msicas de muitos compositores no considerados chores. J o grupo carioca Tira a Poeira, realiza a provocao de seu nome executando choros clssicos com a sonoridade clssica, porm como inovaes musicais no mbito das improvisaes e na insero de sees novas. Muitos violonistas atuais tocam choro com viola caipira, pandeiristas acompanham cantores de MPB e tocam em trios de jazz; hoje se toca jazz com instrumentos do choro, msica erudita na viola, etc. Alguns instrumentistas atuais, como Hamilton de Holanda, Rogrio Caetano e Gabriel Grossi, tiveram sua iniciao musical no choro, mas depois expandiram seus repertrios: possvel v-los acompanhando velhos mestres do choro, mas tambm tocando com cones da musica instrumental brasileira, como Hermeto Paschoal e Guinga (Campos, 2005). Esta circulao caracterstica da poca atual, embora haja muitas tenses entre estes dois gneros: o choro e a msica instrumental. Esta tenso tem a ver com o fortalecimento das identidades que retomou

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certa tradio conservadora do choro e com estas fronteiras nubladas que dividem os gneros (ver Piedade, 2005). Portanto, o choro atual saiu de seus obscuros anos 60 e 70 com uma nova fora: o interesse jovem. Da resistncia e da estratgia de sobrevivncia baseada em ncleos familiares conquista de um pblico fiel, idealizao do choro como patrimnio musical do Brasil, ao surgimento de gravadoras exclusivas (como a carioca Biscoito Fino), bem como de uma fatia do mercado editorial (os songbooks e mtodos). Atravessador de sculos, o choro passou da condio de trio de pau e corda para um modo de tocar, saiu do quintal, consolidou-se na musicalidade brasileira, resistiu s foras inimigas no seio da famlia e, hoje, est sendo estudado, tocado e apreciado por um pblico crescente. Referncias citadas Campos, Lcia Pompeu de Freitas. 2005. O choro contemporneo de Hermeto Paschoal. In Anais do XVo Congresso Nacional da ANPPOM. Rio de Janeiro. Cazes, Henrique. 1999. Choro, do quintal ao municipal. Rio de Janeiro: Editora 34. Harvey, D. 1993. A condio Ps-moderna. So Paulo: Loyola. Moura, Roberto. 1983. Tia Ciata e a pequena frica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte. Piedade, Accio Tadeu de Camargo. 2005. Jazz, Msica Brasileira e Frico de Musicalidades. Revista Opus. 11: 197-207. ______ 2006. Msica Popular, Expresso e Sentido: comentrios sobre a Teoria das Tpicas na Msica Brasileira. Paper a ser apresentado na III Encontro Nacional da Associao Brasileira de Etnomusicologia (ABET), (em preparao). Sandroni, Carlos. 2001. Feitio decente: transformaes do samba no Rio de Janeiro (19171933). Rio de Janeiro: Zahar. Tinhoro, Jos Ramos. 1991. Pequena Histria da Msica Popular: da modinha lambada. 6 edio. So Paulo: Art Editora. Vianna, Hermano. 1995 O Mistrio do samba. Rio de Janeiro: UFRJ. Zagury, Sheila. 2005. Neochoro Os novos grupos de choro e suas re-leituras dos grandes clssicos do estilo. Anais do XV Congresso Nacional da ANPPOM. Rio de Janeiro.

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Ensino e aprendizagem de conhecimentos musicais na Barca Santa Maria, Joo Pessoa-PBAlexandre Milne Jones Nder [email protected] (UFPB) Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar caractersticas dos processos de ensino e aprendizagem de conhecimentos musicais, utilizados pelo mestre Deda na preparao dos integrantes do grupo de manifestao cultural Barca Santa Maria para a realizao das apresentaes. O trabalho de pesquisa tem como suporte metodolgico uma ampla investigao bibliogrfica, que busca construir nexos interpretativos para as situaes de ensino-aprendizagem que emergiram de forma marcada e recorrente durante os ensaios e apresentaes da barca, bem como um trabalho sistemtico de investigao no campo, contemplando observao participante, captao de relatos orais, na forma de entrevistas e histrias de vida, registros sonoros, fotogrficos e em vdeo. A partir dos resultados preliminares, tendo em vista que a pesquisa ainda est em andamento, foi possvel descrever, compreender e refletir sobre aspectos que constituem a transmisso de conhecimentos musicais no grupo, atentando para os procedimentos bsicos de ensino e aprendizagem de msica reincidentes na manifestao: a imitao, a improvisao e a corporalidade. Palavras-chave: Nau Catarineta. Ensino. Aprendizagem. Paraba. A Barca, tambm conhecida como Nau Catarineta, uma dana j registrada em vrios estados do Brasil. O escritor Mrio de Andrade a considerava uma dana dramtica, pois envolve no s a dana e a msica, mas tambm um entrecho teatralizado que pe em cena vrios personagens relacionados ao universo nutico das conquistas portuguesas. Cmara Cascudo, no seu dicionrio do Folclore Brasileiro, no verbete Nau Catarineta, caracteriza esta manifestao sendo uma xcara (forma potico-narrativa cantada) que foi includa no auto do Fandango. No verbete, registra as vrias acepes do termo, entre elas a de designao de um auto popular, tambm conhecido como Marujada (no leste e sul do Brasil), Chegana de Marujos e Barca (no Norte e Nordeste). A Barca Santa Maria, que realiza seus ensaios no CSU (Centro Social Urbano), no bairro de Mandacaru, Joo Pessoa, Paraba organizada pelo mestre Deda (Jos de Carvalho Ramos). Segundo Deda, esse grupo teve incio com Joaquim Lus da Silva popularmente conhecido como mestre Joaquim Vinte e Um, que segundo dados da Misso de Pesquisas Folclricas enviada por iniciativa de Mrio de Andrade, aprendeu com mestre Eduardo em 1918. Essa manifestao completa formada por cinqenta e seis componentes- vinte e oito oficiais e vinte e oito marinheiros-, a Saloia (nica mulher presente) e a dupla Rao e Vassoura, personagens cmicos da manifestao. Os instrumentos presentes na orquestra, grupo responsvel pela execuo musical, so, entre outros, violo, cavaquinho,

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pandeiro, surdo. O grupo hoje formado por pessoas do grupo da melhor idade1, brincantes que j participavam da manifestao ainda sob direo de outros mestres, jovens e organizadores de outras atividades culturais. Neste trabalho de pesquisa que venho realizando, tenho por objetivo revelar os elementos centrais da msica na Nau Catarineta Santa Maria, dando nfase aos processos utilizados pelo organizador da manifestao para transmitir os conhecimentos musicais, aprendidos quando brincante, para os integrantes do grupo. Buscando relacionar os processos de transmisso com uma interpretao cultural dos dados, investigo as transformaes pelas quais passou a manifestao ao longo do tempo em relao s condies sociais e culturais de seus produtores e mudanas ocorridas no seu contexto de produo. Sendo a orquestra responsvel pela execuo musical, busco compreender a relao de seus integrantes com a manifestao. Em sua pesquisa, o trabalho tem como suporte, uma metodologia que contempla referencial terico capaz de construir nexos interpretativos para aquelas situaes de ensinoaprendizagem que emergiram de forma marcada e recorrente durante os ensaios e apresentaes, utilizando-se da perspectiva etnomusicolgica e antropolgica no estudo de processos de transmisso musical, atentando para as inter-relaes de contexto, colaboradores envolvidos e suas prticas sociais e musicais. Para colher informaes sobre os brincantes, foram feitas entrevistas em grupo, nas quais as manifestaes de que haviam participado, e em que circunstncias deu-se essa participao. Foram colhidos relatos orais do mestre e dos msicos que me possibilitaram entender as transformaes ocorridas ao longo do tempo em relao ao modo de organizao do grupo e das apresentaes. A pesquisa de campo realizada atravs da observao participante, captao de registros sonoros, fotogrficos e em vdeo. No estudo da Barca, compreendo essa manifestao como algo em constante processo de mudanas vinculadas ao seu contexto de produo. Combato a idia que sua idade de ouro deu-se no passado, nesse caso as modificaes por que passaram esses objetos, concepes e prticas so compreendidas como deturpadoras e desconhecidas (Arantes, 1986: 36). Entendo a cultura popular como um processo dinmico que est sempre se renovando, considerando, assim, inadequada uma leitura da manifestao relacionada essncia e ao entendimento por modelos pr-estabelecidos, que tm funo de estruturao. Essa perspectiva de essncia e carter genuinamente popular est relacionada a uma viso homogenizadora, esttica, excludente e em certa medida, arbitrria, do universo focado (Ayala, 1987: 3).

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Nome dado ao grupo de recreao para idosos no CSU.

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Os componentes estruturais e o contexto social do suporte para que as manifestaes populares se modifiquem, mantenham-se ou desapaream. Numa pesquisa que procura entender melhor assuntos relacionados cultura popular, necessrio que sejam analisados aspectos como grupo social, conflitos, interesses, condies econmicas e culturais, para evitar uma compreenso apenas superficial. A msica pensada como parte integrante da cultura, nela determinante e por ela determinada, pode ser considerada como veculo universal de comunicao, no sentido que no se tem notcia de nenhum grupo cultural que no utilize a msica como meio de expresso (Nettl, 1983). Vale ressaltar que esta afirmao no implica em conceber a msica como uma linguagem universal, uma vez que tal concepo seria errnea, tendo em vista que cada cultura tem formas particulares de elaborar, transmitir e compreender a sua prpria msica (Queiroz, 2004). Ela no pode ser estudada em si mesma, ou seja, deve ser relacionada com seu contexto de produo. Distines entre a complexidade de diferentes msicas e tcnicas no nos acrescentam nada sobre propostas expressivas e sua fora em determinado contexto ou sobre a organizao intelectual envolvida em sua criao (Blacking, 1973). A partir da participao nos ensaios, foi possvel entender a relao corpo, ritmo e canto. Danar, representar e cantar se apresentam como atividades totalmente interligadas, sendo assim fundamental o entendimento dessas relaes para levantarmos inferncias sobre a aprendizagem musical. Durante os primeiros ensaios entendia as coreografias relacionadas apenas com a representao dos entrechos cnicos-dramticos. Outro ponto que me deixava intrigado era que o mestre no ensinava isoladamente as msicas a serem cantadas, sua resposta era sempre a mesma: - Deixa a dana entrar, que depois a gente v a msica. No decorrer dos ensaios, com o aprendizado das jornadas2 o mestre corrigia algum que estava cantando fora do ritmo segurando em seus ombros e fazendo com que ele relacionasse o movimento corporal com o canto. Fui ento percebendo que a dana determinava o andamento da msica e auxiliava na memorizao dos pontos acentuados na melodia. Atravs do apito e coreografia o mestre passa informaes caractersticas da msica. Cantar e danar esto intimamente relacionados. Durante um dos ensaios de sbado, estvamos aprendendo um passo conhecido por Tombo, que no marca o pulso, mas sim, faz o rtmico com os ps, que acompanha a jornada cantada. Vendo que um dos participantes no estava conseguindo realizar o passo, o mestre comea a danar na sua frente servindo de referncia. No adiantou,2

Jornadas so as msicas cantadas durante a apresentao. Elas auxiliam, atravs da letra a compreenso da parte encenada.

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o garoto no conseguiu acompanhar. Nesse momento Deda pede para o rapaz expressar uma parte da msica que correspondia a clula rtmica da jornada, utilizando apenas a slaba T. Depois de repetir vrias vezes, ficou claro o ritmo utilizado e o rapaz conseguiu realizar a coreografia. A dana a principal responsvel pela manuteno da pulsao coletiva. H, portanto, uma relao rtmica entre a coordenao dos ps, a melodia cantada, o acompanhamento da orquestra e tudo isso aliado a uma escuta do todo. Toda vez que pedi para algum danante me ensinar determinada jornada ela sempre vinha acompanhada da coreografia. Notei que para melhorar meu desempenho era preciso incorporar a coreografia. Na Barca, quando um danante afirma que sabe cantar ele quer dizer tambm que pode realizar suas coreografias. Podemos notar a partir desses exemplos o quanto o ensino e a aprendizagem ocorrem sem a interveno de palavras ou frases de sobre o que fazer e como. A transmisso musical ocorre pela ateno nos gestos corporais e nas construes de pontes entre a coreografia realizada e o canto. Vendo a gravao em vdeo de uma apresentao da Barca, realizada pela da misso de pesquisas folclricas em 1938, nota-se uma diferena na coreografia em relao as apresentaes com o grupo atual, algumas vezes os passos eram mais acelerados, duravam mais ou era realizada um esforo corporal e expressivo mais intenso. Essa idia tambm foi reforada pela memria dos que participaram da manifestao danando ou apenas assistindo quando relatavam que esta exigia esforo fsico tambm por seu longo tempo de durao. Conversando com o mestre sobre essas modificaes, ele me disse que sabia como fazer os passos certos (os apresentados na gravao de 1938), mas que estava adaptando as condies atuais. Afinal de contas o grupo hoje formado em sua maioria por adultos e pessoas idosas que por suas condies fsicas no conseguiriam realizar os passos sem que fossem adaptados s novas condies. No grupo, muitos integrantes j tinham participado de manifestaes culturais populares, facilitando o aprendizado de alguns passos, visto que foram assimilados em outras brincadeiras. Depois da familiarizao com a manifestao, houve momentos onde se deu nfase ao aprendizado das respostas e outros na qual a parte dramtica foi mais exigida. Danar no ritmo, para as pessoas que no haviam brincado, veio tambm medida que relacionavam msica e dana, auxiliados pelos mais experientes, colocados na frente e no centro. Atravs da imitao e do fazer em equipe, so captadas as instrues. A orquestra no grupo da Barca foi inicialmente formada pelo cavaquinho, caixa e pandeiro; durante os ensaios, integrou-se o violo. Por ter mais de um instrumento tonal, ne-

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cessria a afinao conjunta dos instrumentos. Embora no tenham a msica como sua principal fonte de renda, os msicos sempre tm a expectativa de receber algum dinheiro por sua atuao. Algumas vezes, como os msicos no estiveram presentes, ensaiamos com um CD, gravado pela organizao no-governamental Cachoera!, em 1996, na casa do mestre Deda. A orquestra no vista como parte integrante do grupo. O dinheiro recebido paga, primeiramente, os msicos e depois dividido entre o mestre e os participantes. Nos ensaios, mesmo sem receber, o mestre pede contribuies entre os colaboradores para pagar os msicos. Vale ressaltar que os integrantes da orquestra tocam em vrias manifestaes. Isso no s ocorre com eles, mas tambm com os brincantes. Formando assim um universo de pessoas que participam de vrias manifestaes. Com base nesse estudo, foi possvel concluir, mesmo que de forma preliminar, que no existe de forma isolada uma situao de transmisso de conhecimentos musicais dentro dos ensaios. H, sim, o entendimento da performance como um todo: qualquer explicao de como se dana ou se canta feita dentro dos ensaios articulada com outros elementos (jornada, parte encenada...) e centrada na dinmica da oralidade. Existem momentos em que so dadas informaes sobre as partes dramticas, mas em relao dana e ao canto o aprendizado realiza-se principalmente de duas formas; com auxlio do mestre, quando com as mos nos ombros do danante atenta-o para o ritmo da msica, ou no momento que um participante mais antigo dana e canta a seu lado servindo de referncia. O movimento corporal auxilia no canto, na memorizao e estruturao das partes. A msica da Barca Santa Maria no resultado isolado e sim produto da relao existente entre tradio, aspectos modernos e condies apresentadas que, para serem aceitos, devem passar pelo crivo de normas, dadas pelo mestre, que estabelece o que pode e o que no fazer parte da manifestao. Referncias citadas Andrade, Mrio de. Danas dramticas do Brasil. So Paulo: Martins, 1959. Arantes, Antonio Augusto. O que Cultura popular. 11 ed. So Paulo: Brasiliense, 1986. (Primeiros Passos: 36) Ayala, Marcos; Ayala, Maria Ignez. Cultura Popular no Brasil. So Paulo: tica, 1987. Bastide, Roger. Sociologia do folclore brasileiro.So Paulo, SP> Anhembi, 1959, p.9. apud Ayala, Marcos; Ayala, Maria Ignes Novais. Op. Cit. Blacking, Jhon. How musical is man? Washington: University of Washington press, 1973. Brando, Carlos Rodrigues. O que folclore? So Paulo: Brasiliense, 1982. Cascudo Lus da Cmara. Dicionrio do folclore brasileiro. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1988.

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Garca Canclini, Nestor.Culturas hbridas: estratgias para entrar e sair da modernidade. Traduo; Heloza Pezza Cintro e Ana Regina Lessa. 2. ed. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1998. Queiroz, Luis Ricardo S. Educao musical e cultura: singularidade e pluralidade cultural no ensino e aprendizagem da msica. Revista da ABEM, Porto Alegre, n. 10, p. 99-107, 2004. Queiroz, Maria Isaura Pereira de. Relatos orais: do indizvel ao divisvel. In: Experimentos com histrias de vida.So Paulo: Vrtice, Revista dos Tribunais, 1988, p.14-43. Schafer, R. Murray. A afinao do mundo. Traduo de Mariza T. Fonterrada. So Paulo: Ed. Unesp, 2001. ______. O ouvido pensante. Traduo de Mariza T. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva e Maria Lcia Pascoal. So Paulo: Ed Unesp, 1991.

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A imigrao japonesa cantada por okinawanosAlice Lumi Satomi [email protected] (UFPB) Resumo: O trabalho focaliza algumas das canes (re)criadas, diletantemente, na terra receptora, cujos textos literrios reportam fatos e locais marcantes da imigrao japonesa, na especificidade da minoria okinawana. Tais peas foram recolhidas em Casa Verde e Vila Carro subrbios ao norte e leste de So Paulo, onde se encontram as maiores subsedes da Associao Okinawa do Brasil. A abordagem da mostra de canes concentra-se na imagem potica, j que se tratam de pardias, cuja manuteno do texto sonoro garante a nostalgia e o ufanismo pela terra natal. Aps esboar as possveis razes da existncia rarefeita de criaes musicais, o artigo apresenta quatro exemplos de cantigas, de autoria de dois professores de msica vernacular, e termina, buscando explicar esse comportamento musical em contexto transterritorializado de uma minoria totalmente integrada na sociedade brasileira, mas que se mantm coesa e, relativamente, isolada na megalpole. Embora o texto potico relate as aventuras e desventuras da imigrao, sempre h um texto subjacente de reconstrues de valores ancestrais como as de unio, esperana e nostalgia. Palavras-chave: Recriaes. Minorias. Imigrao japonesa. Msica okinawana. Causas do ato rarefeito de compor O presente artigo retoma a temtica sobre as recriaes musicais da minoria japonesa esboadas no captulo As criaes musicais ou kaeuta (Satomi, 1998) e em seus outros desdobramentos (Satomi, 2002 e 2004). Vale ressaltar que essas ponderadas reinvenes musicais no se encontram, normalmente, presentes no cenrio da performance, ou seja, embora apresentem semanticamente uma realidade singular, no so reconhecidas pela comunidade enquanto repertrio. Primeiramente, devido resistncia cultural bastante acentuada do okinawano desde a terra de origem, pois Ryky1 foi um reino independente, at o sc. XIV, numa regio estratgica, despertando a cobia dos imprios vizinhos. Assim, j foi reino subordinado comercialmente China, ao Japo, a partir do sculo dezessete, e, politicamente controlado por este ltimo desde a era Meiji. Um hiato, do ps-guerra at 1972, manteve a ilha sob comando dos Estados Unidos, que ainda hoje ocupam 11% da ilha principal com suas bases militares2. Conseqentemente, o rykyano apega-se firmemente sua autonomia cultural, preservando dialeto, religio e as artes tradicionais.Arquiplago ao sul do Japo que contm 146 ilhas divididas em trs partes: Amami (da prefeitura de Kagoshima), ao norte, Okinawa e Sakishima. A maioria dos imigrantes veio da parte central Okinawa. 2 Ocasionalmente, brotam resqucios de sentimento anti-americano. Certa vez um dos professores de msica clssica desabafou: prefiro ouvir msica sertaneja [a miditica], que eu no entendo nada, do que a msica enka1

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Na realidade brasileira, em se tratando de uma minoria da minoria, h motivos redobrados para reforar o sentimento de pertena, enfim, a resistncia cultural, como se pode comprovar nas seguintes falas de nisei okinawanos. Aproximando da minoria nordestina, Beth Shimabukuro3 define: Somos o pessoal da msica mais cadenciada, da pele mais escura, dos olhos mais redondos, da alma mais tropical e do bolso mais pobre do Japo. O jornalista Humberto Kinj4 ainda ressalta com uma analogia bem paulistana: ser okinawano como ser corinthiano: sofredor, mas orgulhoso; pobre, mas com garra. Mas, fundamente fiel! Em segundo lugar, valoriza-se mais a interpretao do que a composio. Shuhei Hosokawa (1993: 141) observou que no Brasil comum disputar a melhor interpretao de msicas novas, mas nos concursos de amadores da Colnia, normalmente, disputava-se a melhor interpretao de msicas antigas. O presente trabalho se detm no enfoque do texto literrio, onde acontece o ato criativo. A criaes recolhidas so, predominantemente, pardias. Segundo relato de imigrantes, a tradio das pardias instalou-se desde a viagem do navio, uma maneira de afugentar a ansiedade, medo, e, mais tarde, em terra firme, para desabafar a decepo e as agruras. Os causos cantados No dito popular o termo causos remete a estrias, mas na presente abordagem a fantasia refere-se apenas potica gerada sobre fatos reais, comeando com uma verso romanceada da prpria aventura da imigrao. Ouvi, pela primeira vez, a cano Nosso amor na chegada de Santos numa das aulas das senhoras da AOB. Elas aprendiam sem conter a alegria de entoar no ritmo da terra de origem um texto identificvel com o prprio passado, pois pelas mos calejadas aparentavam ter vindo no pr-guerra, poca em que todos os imigrantes vieram de navio e enfrentaram a vida rdua na lavoura. Nobuo Agena (19391998), o autor da maioria dos exemplos, foi um dos principais dinamizadores da cultura okinawana, principalmente no bairro da Casa Verde, onde residia. rfo da segunda guerra emigrou para o Brasil, aos 20 anos, tentando a vida primeiro como lavrador e depois como feirante. Em 1993, assim que obteve o ttulo de professor shihan, em Okinawa, fundou a Filial

[gnero urbano], contaminada de termos do ingls. 3 Entrevista concedida a Dorrit Harazim, na matria intitulada Vidas em suspense, na revista Veja (27/24: 626), publicada em 1998. A jornalista destaca a ateno esmerada da esposa e seis filhas sobrevida de treze anos do sr. Paulo Shimabukuro, explorando as causas culturais daquela admirvel dedicao. 4 Matria Racismo e orgulho assinada pelo editor do jornal Utin News (1/3: 3), jornal mensal, em portugus, da comunidade okinawana, em 1996.

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Brasileira da Preservao Rykyana de Miny msica de tradio popular para distinguir de msica da corte. A traduo aproximada da primeira estrofe do poema seria:Voc e eu, viu Chiruzinha? / Sim Ahizinho! / Embarcamos no navio via frica. / Por Hong Kong, ndia e frica / Superamos ondas agitadas e calmas / Voc e eu / Nosso amor na chegada de Santos.

As estrofes subseqentes resumem a primeira fase do plantio de caf e os projetos futuros da segunda fase, quando o imigrante se conforma em no vislumbrar o retorno a terra natal, mantendo um cunho otimista. A estrutura potica similar a um jogral, com a seguinte seqncia alternada pelos intrpretes, que encenam um casal: pergunta e resposta, solo e coro. O instrumento adotado para acompanhar a msica vernacular, clssica ou popular, o tricrdio de brao longo chamado sanshin, similar ao sanxin chins e provvel antecessor do shamisen. O sanshin representa simbolicamente a cultura rykyana, pois, no lugar principal de uma residncia, enquanto o chins exibe um livro, o japons, uma espada e o uchinanchu (ou rykyano), um sanshin. O instrumento marca a altura e a pulsao principal, como uma importante e indispensvel referncia para a linha vocal, que quase sempre est em defasagem rtmica. No bairro da Vila Carro tambm h uma cano sobre a imigrao. Seikichi Yonamine5, o fundador da outra agremiao de msica tradicional popular, musicou o poema de Shmo Higa. Em busca da harmonia, na vertente da concepo binria yin-yang, a cantiga Conto do Imigrante apresenta no incio de cada estrofe, os dissabores e, na metade restante,Proveniente de Nishihara, em 1957, dedicou-se ao comrcio na rea de ferragens. Aprendeu msica de forma auto-didata, obtendo o ttulo de professor shihan, na matriz em Okinawa, em 1991.5

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o encorajamento ou as solues para conviver e vencer as dificuldades, imprimindo a dose de otimismo e conformismo. Por exemplo, na quinta e sexta estrofes, temos uma autntica estrutura da poesia ryka de trinta slabas (8+8+8+6) no seguinte texto: Pobre do imigrante que / lastima suas agruras / Unido em uma colnia / brota a coragem. A estria do imigrante / desabafa suas penas / A msica e poesia aliviam / a saudades do corao.

Alguns dos imigrantes que se fixaram em Campo Grande, o segundo maior foco de okinawanos, emigraram inicialmente para o Peru. Para escapar da explorao humana da lavoura peruana, muitos japoneses decidiram enfrentar a inacreditvel travessia dos Andes rumo ao Brasil. Logicamente, muitos no conseguiam sobreviver diante de tal faanha. No incio de 1997, pouco depois de voltar da comemorao do 90 Aniversrio da Imigrao Japonesa no Peru, Agena escreveu a cano Andesu no Haha [Mame dos Andes], contando uma dessas malogradas caminhadas pela extensa cordilheira andina.

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Atravessando com determinao / a brancura da neve benevolente/ A paisagem andina / corao apertado / O cu mostra uma viagem malograda. Caminhada sem fim na / cordilheira andina / O vulto do nenezinho / me puxa pelos cabelos / o cu aponta decepo.

H muitas metforas locais, tais como: brancura, tem a conotao de morte, luto; o cu aponta, de destino traado; puxar o cabelo, de arrependimento. Sobre o processo composicional de Agena, aps receber um comentrio admirado sobre o montante de onze criaes escritas no perodo de um ano, o professor fez questo de frisar que no ele o responsvel pela autoria, justificando que, quando est dormindo ou em estado alfa, ouve vozes como se fossem um apelo para que ele possa registrar determinadas histrias, como a do Andes e a da cano seguinte, As sete flores. E concluiu: Assim, quando acordo, tenho um tema para ser expandido, sintetizado em poesia e depois transformado em msica. Num dos festivais da cano, em Okinawa, uma aluna da Casa Verde foi selecionada para representar o Brasil, interpretando a pea As sete flores, a cantiga mais antiga do professor Agena recolhida na pesquisa. Em 1995, ele a formatou segundo o padro da poesia ryuka, acrescido de uma espcie de refro de treze (8+5) slabas. A elaborao partiu de um crime que vitimou uma famlia inteira de compatriotas seus em Juqui, sudeste do estado de So Paulo. Juqui um importante stio histrico da imigrao, pois a expanso okinawana se deu ao longo das ferrovias rumo ao noroeste e da linha Santos-Juqui. Segundo um pesquisador dos mbya-guarani da regio, o fato mencionado pela cano parece estar relacionado tragdia que acometeu a famlia Fugushi, em 1969, em Manoel da Nbrega, km 93, entre Ana Dias e Itariri. O processo judicial continua misteriosamente arquivado e poucos sabem ou falam sobre o assunto. Agena relata que apareceram sete corpos, incluindo uma mulher grvida, com uma moeda em cima de cada corpo. O assassinato, pela sua proporo brbara, foi atribudo aos guarani, que estariam envolvidos em questo de terras. Entretanto, h desconfiana que tenha sido cometido por fazendeiro(s) dos arredores. Por isso, na quarta estrofe, o autor, como porta-voz da comunidade, isenta totalmente a minoria vizinha daquela acusao injusta. A aldeia mata adentro / vive a tribo guarani / Amizade verdadeira / vive no corao. Na terceira estrofe, o monte de Juqui, nica testemunha do ato hediondo, revela a tendncia do imigrante em reconstruir a paisagem da qual se apartou: As montanhas de Unna / que no vejo h anos / mostram sua miragem / na aldeia Juqui / Esto tristes / as sete flores. Unna o nome de um monte sagrado, onde, segundo lenda local, viveu a deusa criadora do dia e da noite.

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Na tradio religiosa, acredita-se que os espritos voltam terra natal e este o consolo ou conforto desta cano. A pea como um todo, texto e msica, segue a essncia da primeira cano do ps-guerra Himeyuri no Uta, uma homenagem s dezenas de jovens estudantes da Escola Normal, que preferiram explodir granadas junto ao corpo ao invs de entreg-lo aos soldados americanos, durante a segunda guerra.

Concluindo, como menestris modernos, os professores almejaram registrar fatos ou tragdias marcantes na comunidade, uma continuidade da conduta caracterstica da poesia rykyana. Os elementos inovadores dos exemplos mostrados residem basicamente no contedo do poema literrio, pois sujeitos como Santos, caf, ip, Amazonas, Juqui e guarani so denotaes prprias da terra adotiva. Contudo, so conotaes de cones ufanistas ressignificados, reforando valores e tica da ptria perdida. No conjunto das recriaes musicais observei que, independente do tema escolhido, as linhas e/ou entrelinhas da poesia servem para a manuteno dos preceitos de unio o amor filial, fraterno, conjugal e amistoso , cooperao mtua e respeito aos mais velhos. No contexto transterritorial acrescentaram-se outras pregaes tais como: aceitao da nova realidade, das geraes interraciadas, e a amizade com as maiorias japonesa e brasileira e outras minorias. Os elementos de permanncia da tradio residem, principalmente, no texto musical. Quando no se trata de pardia, os textos musicais so prottipos de canes consagradas da cultura da terra me. Quando se ouve a interpretao dos prprios compositores, percebe-se que todos os elementos musicais esto perfeitamente preservados: o timbre do sanshin como guia da linha vocal, a voz de garganta, muitas vezes apertada, os ornamentos peculiares da linha vocal portamentos, glissandos, oscilaes de quarto de tom no ataque, sustentao ou terminao de frase alm da gama hexatnica (algo similar ao modo mixoldio, com a stima menor), as relaes intervalares meldicas e a heterofonia mostrada nas quatro transcri-

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es. A msica, sobretudo em terras estranhas, deve manter com maior nitidez possvel as cores de sua herldica. Referncias citadas Hosokawa, Shhei. 1993. A histria da msica entre os nikkei no Brasil: enfocando as melodias japonesas. In: Anais do IV Encontro Nacional de professores universitrios de lngua, literatura e cultura japonesa. So Paulo: Centro de Estudos Japoneses (USP), 125-48. Satomi, Alice. 1998. As gotas de chuva do telhado: msica de Ryky em So Paulo. Dissertao em etnomusicologia. Mestrado em msica. Salvador: Universidade Federal da Bahia. ______. 2002. Ensaio sobre as criaes e recriaes da msica japonesa no Brasil. Comunicao apresentada no I Encontro Nacional da ABET. Recife. _