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A. Garcia; C. Bitencourt Neto & D. C. Góes 3 Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 6 (1), jan - jun, 2013,3- 19 Amizades de brasileiros residindo no exterior: significado, dificuldades e origem Friendships of Brazilians living abroad: meaning, difficulties and origin Agnaldo Garcia 1 ; Cloves Bitencourt Neto & Dominique Costa Góes Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil Resumo Esta pesquisa teve como objetivo investigar as relações de amizade de brasileiros residindo no exterior com brasileiros ou pessoas de outras nacionalidades. Sessenta brasileiros residindo na Ásia, Europa e América do Norte havia pelo menos seis meses responderam a um questionário sobre o início e episódios marcantes das amizades, dificuldades e o significado da amizade e a descrição dos amigos. Os episódios marcantes geralmente estavam ligados a experiências compartilhadas ou apoio social. As dificuldades encontradas ocorreram principalmente na comunicação e foram atribuídas a diferenças culturais, diferenças individuais, distância geográfica e falta de tempo. O significado da amizade estava associado ao companheirismo ou compartilhar atividades e interesses e apoio social. A descrição dos amigos atribui a estes uma série de características relacionais, como proximidade, companheirismo e disponibilidade para ajudar. Com base nas propostas de Hinde (1997), busca-se discutir a relação entre os aspectos estudados em um modelo teórico para amizade no contexto de migração. Palavras-Chave: Relações interpessoais, Amizade, Migração humana. Abstract This research aimed at investigating the friendships of Brazilians living abroad with other Brazilians or people from other countries. Sixty Brazilians living in Asia, Europe and North America for at least six months answered a questionnaire about the beginning and remarkable episodes of their friendships, difficulties and the meaning of friendship, and described friends. The remarkable episodes were often linked to shared experiences or social support. The difficulties encountered were mainly in communication, due to cultural and individual differences, geographic distance and lack of time. The meaning of friendship is associated with companionship or sharing activities and interests, and social support. The description of friends involves a series of relational characteristics, such as closeness and companionship and willingness to help. Based on Hinde’s proposals, the paper discusses the possible relation among the aspects studied in a theoretical model for friendship in the context of migration. Keywords: Interpersonal relations, Friendship, Human migration. 1 Contato: [email protected]

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Amizades de brasileiros residindo no exterior:

significado, dificuldades e origem

Friendships of Brazilians living abroad:

meaning, difficulties and origin

Agnaldo Garcia 1; Cloves Bitencourt Neto &

Dominique Costa Góes

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Brasil

Resumo

Esta pesquisa teve como objetivo investigar as relações de amizade de brasileiros residindo no exterior

com brasileiros ou pessoas de outras nacionalidades. Sessenta brasileiros residindo na Ásia, Europa e

América do Norte havia pelo menos seis meses responderam a um questionário sobre o início e

episódios marcantes das amizades, dificuldades e o significado da amizade e a descrição dos amigos.

Os episódios marcantes geralmente estavam ligados a experiências compartilhadas ou apoio social. As

dificuldades encontradas ocorreram principalmente na comunicação e foram atribuídas a diferenças

culturais, diferenças individuais, distância geográfica e falta de tempo. O significado da amizade estava

associado ao companheirismo ou compartilhar atividades e interesses e apoio social. A descrição dos

amigos atribui a estes uma série de características relacionais, como proximidade, companheirismo e

disponibilidade para ajudar. Com base nas propostas de Hinde (1997), busca-se discutir a relação

entre os aspectos estudados em um modelo teórico para amizade no contexto de migração.

Palavras-Chave: Relações interpessoais, Amizade, Migração humana.

Abstract

This research aimed at investigating the friendships of Brazilians living abroad with other Brazilians

or people from other countries. Sixty Brazilians living in Asia, Europe and North America for at least

six months answered a questionnaire about the beginning and remarkable episodes of their

friendships, difficulties and the meaning of friendship, and described friends. The remarkable

episodes were often linked to shared experiences or social support. The difficulties encountered were

mainly in communication, due to cultural and individual differences, geographic distance and lack of

time. The meaning of friendship is associated with companionship or sharing activities and interests,

and social support. The description of friends involves a series of relational characteristics, such as

closeness and companionship and willingness to help. Based on Hinde’s proposals, the paper

discusses the possible relation among the aspects studied in a theoretical model for friendship in the

context of migration.

Keywords: Interpersonal relations, Friendship, Human migration.

1 Contato: [email protected]

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De acordo com o Ministério das Relações

Exteriores (2011), com base em consultas

feitas no final de 2010 a Embaixadas e

Consulados do Brasil, havia 3.122.813

brasileiros vivendo no exterior. Por outro

lado, o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (2011), com base no Censo 2010,

chegou a uma cifra muito inferior,

totalizando 491.645 emigrantes brasileiros, o

que possivelmente é um número

subestimado, em função da metodologia

adotada para a estimativa. A falta de

informações sobre brasileiros no exterior

não se restringe a dados populacionais, mas

atinge também a vida social desses

brasileiros no exterior, de modo geral, e suas

amizades, em particular.

A literatura acerca da rede social de

brasileiros no exterior e, particularmente,

suas amizades, ainda é escassa. A figura do

amigo tem estado presente em vários

estudos sobre migração internacional de

brasileiros, indicando sua participação no

processo migratório, tanto no local de

origem quanto no local de destino dos

migrantes. Fazito e Rios-Neto (2008), ao

revisar a literatura sobre o tema,

identificaram um sistema de migração

internacional de brasileiros para os EUA

envolvendo emigrantes, familiares e amigos

no Brasil, familiares e amigos nos EUA,

agentes independentes, agências de turismo,

falsificadores, retornados, igrejas na

comunidade de imigrantes, pastores e

coiotes (mexicanos). Dentro desse sistema,

as redes pessoais, baseadas nos laços

familiares e de amizade, ocupariam espaços

importantes.

A presença de amigos também foi

verificada entre os motivos da emigração

por mulheres brasileiras que migraram para a

Europa (Lisboa, 2007), além do acesso à

educação ou a oportunidades de maior

qualificação profissional, experimentar

diferentes sensações e ir atrás da rede

familiar que já se encontra no país.

Diversos autores reconheceram a

participação e a relevância de amigos nas

migrações internacionais de brasileiros.

Segundo Soares (2002), o indivíduo, ao

migrar, tende a seguir as rotas traçadas por

parentes e amigos antes dele, indo com

conhecidos ou à procura de conhecidos,

servindo as relações pessoais de ponto de

apoio à movimentação espacial,

especialmente as redes em torno de relações

de parentesco, de amizade, de trabalho e de

origem comum. Segundo Fusco (2009), a

maior parte dos indivíduos que ingressa em

fluxos migratórios internacionais,

especificamente para os Estados Unidos,

pertence a determinados grupos sociais de

familiares ou de amigos. Para Siqueira, Assis

e Campos (2010), os emigrantes brasileiros

se utilizam das redes sociais para minimizar

os riscos presentes na migração de longa

distância, indicando a existência, no caso de

Estados Unidos e Japão, de uma ampla rede

migratória, que envolve agências de turismo,

intermediários, instituições religiosas, redes

de parentesco, amizade e solidariedade

étnica ligada à migração, com destaque para

os laços informais com parentes, amigos e

conterrâneos. Apesar da participação de

amigos no processo de emigração de

brasileiros, pouco se sabe sobre o significado

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dos amigos e da amizade para brasileiros no

exterior.

Mesmo considerando outros grupos

nacionais, são poucos os estudos

relacionando diretamente amizades e o

processo de migração internacional. Kugele

(2006) analisou as amizades de jovens

adultos nômades e os efeitos da mobilidade

social em suas amizades, discutindo a

relevância dos amigos na reintegração social

e o significado da comunicação para manter

e estabelecer amizades. Haug (2003)

considerou amizades interétnicas como um

indicador de integração social entre jovens

imigrantes italianos e turcos na Alemanha,

com base em amizades desses jovens com

alemães. Investigando jovens imigrantes de

Taiwan vivendo nos Estados Unidos, Tsai

(2006) aponta o papel do contexto

sociocultural para o jovem imigrante

reconstruir suas redes de amizade, vivendo

com a sua comunidade étnica, devido à

limitação no conhecimento de inglês, o que

aumentava as redes de novas amizades, o

que foi considerado como um fator de

proteção para esses imigrantes.

Outros autores têm investigado amizades

entre diferentes raças ou etnias, sem

referência direta ao processo de imigração

propriamente dito, investigando grupos

étnicos diversos dentro de um mesmo país.

Nesse caso, alguns estudos têm indicado a

identificação racial e étnica como um fator

nas escolhas de amigos (Fong & Isajiw,

2000; Kao & Vaquera, 2006). Em outros

casos, têm sido destacadas as dificuldades de

comunicação entre pessoas de diferentes

grupos étnicos, dificultando a formação de

amizade (Vorauer & Sakamoto, 2006).

Contudo, quando amizades entre membros

de diferentes grupos étnicos se formam,

essas servem para reduzir o preconceito

entre os grupos envolvidos (Aberson,

Shoemaker & Tomolillo, 2004),

contribuindo positivamente para a

compreensão de atitudes multiculturais, de

cuidado e simpatia por pessoas de outras

etnias (Verkuyten & Martinovic, 2006).

Algumas investigações recentes

conduzidas no Brasil relacionaram amizade e

migração e são relevantes para a presente

pesquisa. Garcia e Goes (2010) investigaram

amizades de universitários de Guiné-Bissau e

de São Tomé e Príncipe residindo no Brasil.

Doze entrevistas foram conduzidas sobre a

rede de amigos e as amizades mais próximas

desses estudantes. A maioria dos amigos era

da mesma nacionalidade ou brasileiros,

residia na mesma cidade e foi conhecida no

Brasil e foi percebida pelos próprios

participantes como relevante para a

adaptação ao Brasil. Os autores concluíram

que os amigos são fundamentais para a

adaptação social e cultural desses estudantes.

Garcia e Rangel (2011) investigaram

amizades de universitários cabo-verdianos

residindo e estudando no Brasil, destacando

a predominância de amigos da mesma

nacionalidade residindo na mesma área

metropolitana. Os participantes destacaram

o valor da amizade e a ajuda recebida. As

dificuldades percebidas nas amizades

estavam relacionadas à distância dos amigos,

características pessoais e dificuldades de

comunicação. Os episódios marcantes

estavam ligados a lazer e ajuda do amigo. A

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maioria das amizades foi considerada como

relevante para a adaptação ao Brasil.

Garcia, Goes, Moura e Pepino (2010)

investigaram os episódios marcantes nas

amizades de universitários africanos no

Brasil, considerados importantes por revelar

aspectos internos à díade de amigos e

pontos relacionados ao contexto social. Os

autores destacaram apoio e companheirismo

como as principais propriedades do

relacionamento em suas dimensões diádicas

e as festas e demais eventos sociais, como o

contexto social mais amplo dessas amizades

e a existência de diferenças culturais no

conteúdo das amizades.

Esta pesquisa tem como referencial

teórico a obra de Hinde (1997) sobre

relacionamento interpessoal e as propostas

de Adams e Blieszner (1994) sobre amizade.

Hinde (1997), referindo-se ao

relacionamento interpessoal, destaca a

importância dada aos aspectos descritivos e

a consideração de diferentes níveis de

complexidade e suas relações mútuas.

Adams e Blieszner (1994), tratando de

amizades, também propõem investigar

aspectos internos e externos (contexto),

incluindo estrutura e processos. Segundo

Hinde (1997), diferentes níveis de

complexidade, incluindo processos

intraindividuais, interações, relacionamentos,

grupos e sociedade, além de estruturas

socioculturais e o ambiente físico, afetariam

e seriam afetados uns pelos outros de forma

dialética.

Assim como Hinde (1997), Adams e

Blieszner (1994) também buscam um

modelo integrador para o estudo da amizade

entre adultos, integrando aspectos internos

ao relacionamento (como as dimensões

tradicionalmente estudadas, como

intimidade, compromisso, satisfação, entre

outras) e aspectos externos (de contexto,

como aspectos culturais, sociais, históricos,

religiosos, entre outros).

Adams e Blieszner (1994) consideram

estrutura e processos nas díades de amigos e

nas redes de amizade. A estrutura da

amizade envolve o grau de similaridade entre

amigos, sua proximidade emocional, status e

diferenças de poder e intimidade. Os

processos interativos da amizade são

dinâmicos e incluem processos cognitivos,

afetivos e comportamentais. Finalmente,

deve-se levar em conta o contexto estrutural

e cultural das interações de amizade,

incluindo suas mudanças no tempo. Esses

elementos são similares aos propostos por

Hinde (1997), cujo arcabouço conceitual

para os relacionamentos em geral também

integra aspectos internos e externos à díade

(incluindo aqui o grupo e a sociedade como

níveis de complexidade mais abrangentes

que o do relacionamento, além de fatores

sociais, culturais e ambientais). O autor

também inclui aspectos cognitivos, afetivos e

comportamentais como elementos do

relacionamento a ser investigados.

O objetivo desta pesquisa foi investigar as

relações de amizade de brasileiros residindo

no exterior com brasileiros ou pessoas de

outras nacionalidades. Os objetivos

específicos foram investigar a descrição dos

amigos, os episódios marcantes e o

significado da amizade, as dificuldades e a

origem da amizade. Com base nos modelos

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propostos pelos autores acima, são

propostos alguns elementos a ser

considerados em modelos de amizades

relacionadas ao processo de migração

internacional.

O trabalho se justifica pela falta de

informações sobre amizades em contexto de

imigração, especialmente em torno de

brasileiros, contribuindo particularmente

para a consideração de fatores culturais nas

amizades. Do ponto de vista social,

conhecer em maior detalhe as amizades de

brasileiros no exterior pode contribuir para a

busca de melhores condições de vida para

cidadãos brasileiros vivendo em outros

países.

Método

Participantes

Participaram da pesquisa sessenta brasileiros

residindo no exterior havia pelo menos seis

meses, com idades entre 17 e 56 anos, sendo

37 mulheres e 23 homens, 32 casados e 28

solteiros, sendo que 20 residiam na Ásia, 20

na Europa e 20 residiam na América do

Norte, conforme Tabela 1.

Tabela 1: País de residência dos participantes

Ásia

Participantes Europa Participantes América

do Norte

Participantes

China 10 França 4 EUA 16

Japão 4 Itália 4 México 3

Indonésia 1 Espanha 4 Canadá 1

Timor Leste 1 Áustria 2

Malásia 1 Inglaterra 2

Tailândia 1 Alemanha 1

Índia 1 Dinamarca 1

Emirados Árabes 1 Hungria 1

Portugal 1

Total 20 20 20

Procedimento de coleta e análise de

dados

Os participantes foram identificados a

partir de indicações de amigos ou parentes

de brasileiros residindo no exterior e a partir

de comunidades de brasileiros no exterior.

Os possíveis participantes foram contatados

via internet (e-mail) e foram convidados a

responder um questionário com questões

fechadas e abertas sobre suas relações de

amizade no exterior (com estrangeiros e/ou

brasileiros), assim como preencher um

Termo de consentimento informado para

participação na pesquisa. Um questionário

com questões abertas e fechadas foi

especialmente desenvolvido para a realização

da presente pesquisa. A pesquisa foi

aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa

do Programa de Pós-Graduação em

Psicologia da Universidade Federal do

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Espírito Santo (UFES).

Trata-se de pesquisa de natureza

exploratória, descritiva e qualitativa. Os

dados foram tratados buscando-se descrever

e discutir alguns aspectos dessas amizades.

O material obtido foi organizado e analisado

de acordo com os pontos abaixo. Os dados

foram discutidos à luz da literatura sobre

amizades internacionais. Os seguintes

pontos foram analisados: descrição dos

amigos, o significado e a origem das

amizades, episódios marcantes e dificuldades

com amigos.

Com base em estudos preliminares,

alguns tópicos foram selecionados para

serem investigados considerando-se sua

contribuição para a construção de uma base

descritiva sobre amizades na situação

investigada, conforme proposto por Hinde

(1997). Assim, a descrição dos amigos e o

significado da amizade visavam conhecer a

concepção dos participantes acerca dos

amigos e da amizade de modo mais

conceitual, como a origem das amizades, os

episódios marcantes nas amizades e as

dificuldades na amizade também são

elementos descritivos, mas de natureza mais

episódica. Dessa forma, buscou-se uma base

descritiva mais ampla para as amizades.

Quanto ao procedimento de análise, os

dados foram objeto de análise de conteúdo

(Bardin, 1977; Franco, 2008; Flick, 2009),

buscando-se identificar as categorias

emergentes em cada um dos aspectos

investigados, de modo indutivo, de acordo

com sua similaridade.

Resultados

De acordo com o referencial empregado

(Hinde, 1997), foram investigados três níveis

em relação às amizades de brasileiros no

exterior: a pessoa do amigo, episódios

marcantes (interações) e o significado da

amizade (relacionamento). A origem ou

início das amizades se mostrou relacionado

ao contexto social, que reúne as

características que Hinde (1997) denominou

de grupo, com suas estruturas socioculturais

e ambiente físico, dentro de uma sociedade

mais ampla.

A descrição dos amigos

Considerando-se os três continentes, os

amigos quase sempre foram descritos de

modo positivo, com a utilização de um

grande número de adjetivos ou

características. Procurou-se organizar o

conteúdo das descrições em grupos ou

categorias. Três grupos são propostos:

características relacionais, características

relacionadas à atração interpessoal e

similaridades.

No primeiro grupo, uma ampla gama de

adjetivos e expressões foi empregada para

descrever as características relacionais ou a

forma como o amigo se relaciona com

outras pessoas. Primeiramente, um grupo de

qualificações reafirma a condição de amigo

ou determina o tipo de amigo considerado,

como o amigo de todos os momentos ou

horas, bom amigo, melhor amigo, grande

amigo, alguém que valoriza a amizade, amigo

verdadeiro, amigo para todas as horas, além

de amigo, ótimo amigo, amigo mesmo,

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amigo-surpresa, primeiro amigo, amigo mais

marcante, alguém que vale a pena conhecer e

ter como amigo e amigo para tudo. Outras

características atribuídas ao amigo foram sua

proximidade (muito próximo, presente,

como irmão, mãe ou pai), a intimidade com

ele (íntimo) e sua lealdade (fiel ou leal).

Também frisaram o amigo como alguém que

gosta, respeita e cuida do outro (querido,

tem carinho e respeito, trata bem, preocupa-

se comigo, anjo). O valor do amigo é

destacado ao ser considerado fundamental,

precioso e raro.

O companheirismo é enfatizado em

expressões como companheiro,

companheiro de aventuras, super

companheiro, parceiro, compartilhar

“alegrias de estar em outro lugar e tristezas

de estar longe da família e dos amigos”,

compartilhar o “choque cultural”,

experiências e atividades, além de fazer

“descobertas juntos”.

Outro traço do amigo é sua

disponibilidade para ajudar, sendo prestativo,

ajudando muito ou dando apoio, sendo

conselheiro, disponível, pronto ou disposto

a ouvir, sempre apoiando ou disposto a

ajudar, que sabe ouvir e dar conselho, sendo

alguém com quem se pode contar, com

quem se aprende muito, aquele que “ensinou

as primeiras palavras em alemão” ou que

ajuda em relação ao trabalho.

Além das características já mencionadas

nos parágrafos anteriores, uma série de

adjetivos e expressões caracteriza a forma

como o amigo se relaciona com outras

pessoas, como o fato de ser confiável ou de

confiança, sincero, carinhoso,

compromissado, comunicativo, sociável,

sensível, agradável, amigável, atencioso,

educado, generoso, “ter um coração

imenso”, ser acolhedor, humano, “de ótima

convivência”, transparente, comprometido,

um “amor de pessoa”, doce, caloroso, gentil,

extrovertido, compreensivo, amoroso,

verdadeiro, paciente, “sem preconceitos”,

meigo, jovial e discreto. E ainda reservado,

fechado, impaciente, carente, tímido,

teimoso e autoritário. Há aqui, a menção de

diversas facetas do relacionamento, como

confiança, sinceridade, carinho,

compromisso, comunicação, entre outras.

Um segundo grupo de características

atribuídas aos amigos, de natureza positiva,

poderiam ser consideradas como elementos

de atração interpessoal, como o fato de ser

uma pessoa simpática, carismática, ótima,

admirável, interessante, inteligente, tranquila,

calma, despreocupada, batalhadora,

determinada, firme em suas decisões,

autoconfiante, constante, alguém que

“coloca seus interesses em primeiro lugar”,

livre, culta, séria, muito especial, com muita

energia, que “gosta de coisas sofisticadas”,

criativa, enérgica, forte, introspectiva,

positiva, perfeccionista, organizada, simples,

sistemática, centrada, concentrada,

desapegada, responsável, “aberta a novas

coisas ou novidades”, “aberta a novas

culturas”, aventureira, espiritualista, madura,

“gente boa”, “personalidade boa”, ágil,

audaciosa, curiosa, esperta, sagaz, excêntrica,

louca e pirada (ousada), conservadora,

política, romântica e inocente. O humor é

uma característica do amigo que se mostra

alegre, bem-humorado, divertido, engraçado,

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de alto astral, animado, contente, feliz, de

bem com a vida e brincalhão.

Alguns descreveram o amigo apontando

similaridades com ele, como “a gente se

identifica muito”, ou possui “ritmo quase

semelhante ao meu” ou é aquele que tem “o

gosto musical mais parecido com o meu”.

Ou ainda apontaram interesses em comum,

como “boas conversas”, gostar de “contar

histórias interessantes”, “dedicação à

família”, “estar com várias mulheres ao

mesmo tempo”, também possuir “ex-mulher

e filho”, além de “guardar dinheiro para

voltar para seu país”. Também foi pontuada

uma vez a diferença entre os amigos, ao ser

descrito como “um pouco diferente de

mim”. Em poucos casos, os interesses e

atividades do amigo serviram para descrevê-

lo, como o fato de ser “o maior bebedor que

conheço” ou ser alguém “interessado pela

cultura brasileira” ou que gosta de “curtir a

vida”.

Finalmente, raras vezes, a nacionalidade e

a cultura serviram para descrever o amigo,

como ser “um húngaro um pouco diferente

dos outros” ou “a melhor representante da

cultura americana que poderia ter

conhecido” ou ainda “bem aculturada”.

Raramente os amigos foram descritos com

base em características físicas, de idade ou

preferência sexual, como ser bonito, “um

senhor de idade” ou gay, e poucas

características do amigo eram aparentemente

negativas, como o fato de ser preguiçoso,

irresponsável, orgulhoso, medroso,

pessimista, teimoso, nervoso e irônico.

Em suma, a descrição dos amigos é

ampla e diversificada, destacando-se

propriedades que foram denominadas

“relacionais”, pois qualificam o amigo como

alguém que apresenta certas propriedades ao

se relacionar. Outras características parecem

indicar algo que se admira no amigo,

possivelmente servindo como um fator de

atração interpessoal, sendo raras as possíveis

críticas. Alguns aspectos são, por vezes,

associados à condição específica do

imigrante, como o companheirismo

(incluindo o compartilhar interesses e

atividades com o amigo) e a disponibilidade

para ajudar.

O significado da amizade

Os participantes descreveram o

significado da amizade de modo

diversificado e positivo. Contudo, três

aspectos principais podem ser identificados:

reconhecimento da relevância da amizade,

companheirismo e apoio social.

Um primeiro aspecto a ser mencionado é

a importância ou relevância da amizade e

dos amigos em suas vidas. Segundo os

participantes, as amizades significavam

muito, era algo maravilhoso, importante,

inesquecível, um patrimônio, de modo que

amigos não podem faltar. Ainda são um

sentido ou parte importante da vida, cuja

opinião faz diferença na vida. O amigo

completa o outro em vários aspectos, é

alguém de quem se que gosta e com quem

quer passar a vida. Para alguns, a amizade

significava tudo ou muito, algo importante,

especial ou indispensável. Em poucos casos,

amizades foram consideradas como pouco

significativas, não significando muito ou o

participante “não esperava muito das

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amizades estrangeiras”. Ainda destacaram a

amizade verdadeira, baseada em um

sentimento verdadeiro, forte, genuína.

Amigos também foram comparados com

uma figura familiar, irmão, irmã, pai ou mãe,

com o intuito de destacar sua importância.

O companheirismo foi outro elemento

central para o significado das amizades.

Esteve presente em expressões como

“alguém sempre presente”, com quem se

pode contar ou confiar. O amigo é “alguém

com quem se mantém boas conversas”, uma

“companhia que me entende”, um

“companheiro para horas difíceis”, com

quem “se dá bem”. O fato de se estar em

outro país estava relacionado com

“compartilhar dificuldade de morar em

outro país” e “compartilhar a dificuldade do

idioma e treinar juntas a nova língua”. O

significado da amizade envolvia diversão e

alegria e a amizade também foi associada a

apoio, segurança, bem-estar, carinho,

atenção, amor, sinceridade, proteção,

respeito mútuo, conforto e união.

O apoio foi outra dimensão central da

amizade. Amigos foram considerados “fonte

de sabedoria, conselho e crescimento

individual”, ajudando o outro a crescer. O

apoio específico do amigo em um país

estrangeiro também foi indicado de diversas

formas, como “ajudar a conhecer o país e se

relacionar com seus habitantes”,

“fundamental para adaptação no país”, e

ainda “ponto de referência para a cultura

local, permitindo o aprendizado e

conhecimento de uma nova cultura”. O

amigo também foi visto como o primeiro

contato em uma nova cultura, apoio nas

questões burocráticas, tutor em um mundo

desconhecido, quem apresentou os amigos

estrangeiros, contribuindo para a vida social,

a melhor companhia que encontrou no país,

“por um longo período foi o único amigo”.

O amigo também representou “ajuda com o

idioma ou para conhecer ou se aproximar de

outras culturas”. Amigos ainda permitiam o

contato com a própria cultura, com o Brasil,

a família e as raízes brasileiras.

De forma geral, ao tratar do significado

da amizade como algo mais amplo, não

apenas apontaram a importância da amizade

em si, como destacaram algumas dimensões

específicas das amizades, especialmente o

companheirismo e o apoio, centrais para o

significado das amizades, inclusive no

contexto de migração internacional.

A origem das amizades

A origem das amizades foi associada a

um contexto institucional, a um grupo

social, a um evento social, à internet ou a

pessoas específicas. Os participantes se

referiram a um contexto institucional

específico, como o contexto

escolar/universitário, incluindo cursos de

idiomas, aulas de dança e atividades

relacionadas a intercâmbio cultural. O

trabalho e a igreja também foram indicados

como contextos onde amizades tiveram

origem, assim como a vizinhança e o

condomínio. Grupos sociais indicados

foram associações de brasileiros ou latinos, a

própria família e um grupo musical (banda

de jazz) como a origem das amizades.

Outras formas pelos quais esses amigos se

conheceram foi através de eventos sociais,

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como festas, feiras e viagens. A internet

também foi indicada, incluindo o Orkut e

um site de troca de conhecimentos

linguísticos português-inglês.

O contato pessoal também foi apontado

como a origem de amizades. Nesse caso, um

amigo ou parente serviu de elo para formar

uma nova amizade. Na Ásia, quatro amigos

se conheceram através de outro amigo e um

amigo foi apresentado por um familiar do

participante. Na Europa, em seis amizades,

um amigo apresentou o participante para

outros amigos.

Episódios marcantes nas amizades

Os episódios marcantes se referiam

principalmente a experiências

compartilhadas e a apoio social. As

experiências compartilhadas foram

classificadas em quatro grupos e duas

formas de apoio foram indicadas.

Um primeiro grupo de experiências

compartilhadas diz respeito às atividades

cotidianas, como dividir a mesma moradia,

dormir na casa do outro, compartilhar

refeições e trabalho voluntário, estudar ou

trabalhar juntos, compartilhar caronas,

conviver diariamente e partilhar atividades

religiosas (oração e revelação).

Um segundo grupo diz respeito a

compartilhar dificuldades ou experiências

relacionadas a um momento especial de

vida, como compartilhar dúvidas e

inseguranças e apuros passados juntos,

casamento e maternidade na mesma época,

partilhar “a experiência de ser estrangeiras,

mulheres e ter um companheiro nativo”, de

morar no exterior, compartilhar “a falta de

seus parceiros românticos que moravam em

países diferentes”.

Um terceiro grupo se refere a

experiências compartilhadas relacionadas a

lazer e à diversão, como festas, viagens ou

visitas a pontos turísticos, passar férias

juntos, comer ou beber juntos (churrascos,

jantares), ir a bares ou boates, passeios,

shows, festivais culturais, concertos, locais

para dançar, além de praticar esportes, ver

filmes e jogar (jogos e videogame).

Um quarto grupo de experiências

compartilhadas estava relacionado a

conversas sobre diversos assuntos pessoais

(como acontecimentos marcantes da vida,

trabalho, relacionamentos, perspectivas

futuras, perdas e expectativas familiares,

família, assuntos íntimos, experiência de

vida, desabafos, repartir sentimentos

profundos, segredos compartilhados) ou

culturais (história do país, filmes, livros,

diferenças culturais e dificuldades no país).

Ainda se referiram a gargalhadas e rir juntos.

Vários episódios se referiam a alguma

forma de apoio social recebido ou

fornecido, frente às dificuldades e

problemas. Esses episódios foram divididos

em dois grupos: episódios em que os

participantes reconheciam o apoio como

relacionado à adaptação ao novo país e

episódios de apoio sem explicitar a condição

de migrante.

Nos episódios relacionados à adaptação

ao novo país, o apoio foi considerado

marcante para ajudar a lidar com outra

cultura e sociedade. Nesse sentido, o apoio

de amigos foi importante para encontrar

emprego em outro país para lidar com a

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▲ Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 6 (1), jan - jun, 2013,3- 19

saudade de casa, para se sentir acolhido

nessas condições, para realizar estudos e

viagens em outro país, para enfrentar

momentos de tensão de guerra no país, para

enfrentar momentos difíceis no país,

inclusive em situação de ilegalidade ou

renovação do visto.

Contudo, os amigos também forneceram

apoio em diversas situações que não foram

relacionadas diretamente à condição de

migrante. Nesses casos, o apoio se deu

frente a dificuldades familiares (como

casamento ou namoro, separação,

nascimentos, perdas), dificuldades pessoais

ou de saúde (gravidez, problemas de saúde,

acidentes, vulnerabilidade e dor), problemas

no trabalho ou estudos (mudanças de

emprego e acidente de trabalho), problemas

com propriedades ou animais de estimação

(resgate de moto após acidente ou

automóvel, conserto de computador, pintura

da casa, cuidar do cão do amigo). De forma

geral, reconheceram o apoio de amigos em

alguma forma de crise, necessidade ou uma

situação difícil.

Duas dimensões se destacam nos

episódios marcantes das amizades de

brasileiros no exterior: compartilhar de

experiências e apoio social. Enquanto a

situação de imigrante aparece em algumas

experiências compartilhadas em um país

estranho, o fato de viver em outro país está

presente em diversos episódios de apoio

dado e recebido de amigos.

Com base nos episódios relatados, os

amigos fornecem apoio social aos amigos na

condição de migração. Por outro lado, os

amigos também compartilham uma série de

experiências em comum. Nesse sentido,

pode-se supor que, mesmo em uma situação

estranha, os amigos permitem compartilhar

uma série de atividades, desde conversar até

atividades mais complexas, permitindo assim

a manutenção do curso e qualidade de vida.

Assim, os amigos parecem suprir um meio

social estável e familiar, que serve de

proteção social, permitindo uma variedade

que atividades e de companheirismo. Assim,

os amigos parecem desempenhar duas

funções complementares: ajudar ou apoiar o

amigo e servir de parceiros em uma

diversidade de atividades e interesses

compartilhados. Os amigos forneceriam um

ambiente social protetor e mantenedor da

vida normal.

Dificuldades na amizade

Poucas foram as dificuldades citadas nas

amizades investigadas. Aquelas que foram

mencionadas podem ser classificadas em

cinco grupos. O primeiro grupo se refere a

dificuldades na comunicação, especialmente

em relação a idioma. O segundo grupo se

refere a diferenças culturais. Um exemplo

diz respeito ao jeito caloroso das brasileiras,

o que podia ser mal interpretado. Outras

diferenças apontadas foram o senso de

humor e tipos de piadas. Ainda foram

consideradas diferenças culturais a falta de

intimidade, postura fechada e ser

independente e exigente, apresentar

tradições e costumes diferentes, além da

forma de se pensar, o que se considerava

politicamente correto ou incorreto e mesmo

o nível de higiene e a religião. Em terceiro

lugar, algumas dificuldades foram associadas

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Amizades de brasileiros residindo no exterior: significado, dificuldades e origem 14

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a diferenças pessoais ou individuais. Nesse

caso, foram apontadas características

pessoais como o amigo ser inflexível,

fechado, instável, preguiçoso ou muito ativo.

Um quarto tipo de dificuldades foi a falta de

similaridade com o amigo, em que o

participante reconhecia a “falta de pontos

em comum”, não compreendia “a visão de

mundo do participante” (possivelmente por

ser diferente da sua), além de diferenças de

opinião e interesses diferentes. Finalmente,

uma quinta categoria inclui a distância

geográfica e falta de tempo para se

encontrarem.

De forma geral, as dificuldades ocuparam

um lugar secundário na descrição das

amizades e parecem estar ligadas a fatores

individuais e culturais. Nesse caso, os

participantes atribuíram características

individuais (como ser mais independente e

exigente) à cultura.

Discussão

Com base no modelo proposto por

Hinde (1997), para relacionamentos

interpessoais, procuramos analisar a amizade

em três níveis diferentes: a pessoa do amigo,

a interação entre amigos (episódio marcante)

e o relacionamento de amizade (significado

da amizade). Primeiramente, com a

descrição dos amigos, esperava-se ver as

características atribuídas à pessoa do amigo,

como parte do fenômeno da amizade.

Houve uma grande diversidade na descrição

dos amigos, predominando o caráter

positivo. Diversas características foram

consideradas de natureza relacional,

indicando que, ao descrever o amigo, os

participantes já atribuem a eles propriedades

que revelam como eles se relacionam.

Assim, há a menção de diversas

características ligadas diretamente à amizade,

partindo da descrição do outro como amigo

ou um determinado tipo de amigo. Várias

outras características apontam para traços

que se manifestam na amizade e que são

atribuídas aos amigos. Assim, enquanto a

diversão e o lazer são indicados como parte

da amizade, os amigos são vistos como

divertidos e engraçados. Enquanto o apoio

está presente na amizade, ao amigo se atribui

a característica de ser prestativo ou alguém

disposto a ajudar ou apoiar. O

companheirismo é visto na pessoa do amigo

ao ser tratado como companheiro. Há uma

série de características relacionais que já

atribui ao amigo o que ocorre plenamente

na amizade. Outras características parecem

indicar fatores que estariam associados à

atração interpessoal, como ser inteligente ou

determinado. Poucas vezes são citados

interesses e atividades para descrever o

amigo.

Assim, ao descrever um amigo, várias das

características da amizade já são vistas na sua

pessoa, relacionadas a apoio, proximidade,

companheirismo, humor, entre outros. Ao

falar sobre o amigo, fala-se dessa pessoa em

relação de amizade.

Os episódios marcantes também foram

de natureza diversa, a maior parte

relacionada a lembranças de alguma forma

de apoio social (recebido ou fornecido)

relativo à adaptação ao novo país e

experiências de companheirismo marcantes,

incluindo momentos de lazer vividos com

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esses amigos, experiências compartilhadas e

conversas com amigos. Os episódios

revelam uma menor diversidade de

características, especialmente ligadas a apoio

e companheirismo ou compartilhar diversos

aspectos da vida. Os episódios estão

diretamente relacionados às características

dos amigos (como ser prestativo e

companheiro), indicando de forma mais

sintética, e possivelmente mais próxima da

experiência concreta, momentos ou

interações importantes.

Apesar de o significado da amizade ser

diversificado, geralmente foi positivo, assim

como a figura do amigo e os episódios

marcantes. Ao se referirem ao significado da

amizade, os participantes enfatizaram-na

como algo importante, apontando para a

necessidade de sua autenticidade, a presença

do companheirismo, além do apoio, carinho,

união, atenção, sinceridade, confiança,

segurança, bem-estar, amor, proteção e

conforto, além de lazer e alegria. Em relação

aos significados específicos do apoio do

amigo em um país estranho, referiram-se à

ajuda com o idioma ou para conhecer ou se

aproximar de outras culturas. De forma

geral, os participantes apontaram a

importância da amizade em si e destacaram

algumas dimensões específicas das amizades,

especialmente o companheirismo e o apoio.

Os dados referentes à descrição dos

amigos, dos episódios (interações) e do

significado da amizade (relacionamento)

indicam como os amigos são percebidos por

brasileiros no exterior. Do ponto de vista

teórico, esses três elementos mostram

relações dialéticas no sentido de a amizade já

ser vista na pessoa do amigo, nos episódios

vividos e no significado da amizade, vista

como um tipo de relacionamento. As

relações entre pessoas (descrição do amigo),

interações (episódios marcantes) e

relacionamentos (o significado da amizade)

são dialéticas, no sentido de que cada nível

afeta o estágio seguinte e é por ele afetado

(Hinde, 1997).

A pessoa do amigo é descrita de forma

ampla e diversa, sendo proposto que parte

dessa descrição se faz com base em

características relacionais. Assim, a pessoa

do amigo é, ao menos em parte, descrita

como alguém que apresenta determinadas

características ao se relacionar, como ser

atencioso ou generoso. Características

similares aparecem na descrição do amigo e

dos episódios marcantes, como o fato do

amigo ser prestativo e o episódio se referir a

um evento de ajuda. Também há

características em comum entre as interações

e o relacionamento como um todo.

Levando-se em conta os três níveis, dois

pontos se destacam nos dados ao se

referirem às amizades no contexto de

migração, o apoio e o companheirismo, no

sentido de compartilhar experiências.

Ambos são vistos como exercendo funções

importantes no contexto da imigração. Já na

descrição dos amigos, aparecem

informações sobre o papel do amigo

relacionado à condição específica do

imigrante, como o companheirismo

(incluindo o compartilhar interesses e

atividades com o amigo) e a disponibilidade

para ajudar.

Os episódios marcantes também, por

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Amizades de brasileiros residindo no exterior: significado, dificuldades e origem 16

▲ Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 6 (1), jan - jun, 2013,3- 19

vezes, explicitam o contexto da imigração,

especialmente episódios relatando

experiências compartilhadas e apoio social.

Enquanto o apoio social parece mais

evidente nessa situação, os episódios

também se referem a uma diversidade de

experiências compartilhadas com amigos,

sugerindo que estes podem formar uma

“microssociedade”, que permite ao migrante

viver uma vida social rica e diversificada.

Assim, os amigos serviriam de apoio frente a

situações adversas, inclusive aquelas

decorrentes da condição de migrante, mas

também forneceriam um meio social

positivo para o exercício de uma vida social

ampla e diversificada.

Apoio social e experiências

compartilhadas relacionadas ao contexto de

migração estão presentes nas descrições de

amigo, nos episódios marcantes e no

significado da amizade em torno de

companheirismo (compartilhar atividades e

interesses). De forma geral, as dificuldades

ocuparam um lugar secundário nas amizades

e se referem à falta de compartilhamento de

algo, seja tempo, espaço, idioma,

características individuais ou características

culturais. Problemas de comunicação têm

sido reconhecidos como obstáculos à

formação de amizade entre grupos

diferentes (Vorauer & Sakamoto, 2006).

Enquanto a discussão até o momento

destacou as características individuais, a

interação e o relacionamento, o contexto

social ficou evidente ao se tratar da origem

das amizades. Esta foi associada a dois

fatores principais, a um contexto social ou

institucional, como o trabalho,

escola/universidade ou igreja, e a pessoas

em particular que servem de elo para

apresentar novos amigos, como os próprios

amigos ou parentes.

Se os amigos já têm seu papel

reconhecido antes da migração, seu papel

para os brasileiros que já se encontram no

exterior parece amplo, representando não

apenas uma fonte de apoio social em uma

situação especial, o que aparece no

significado das amizades, nas interações e na

descrição dos amigos, mas também

permitindo compartilhar experiências em

diversos sentidos, desde conversar até

atividades de lazer, em várias instâncias da

vida cotidiana. Esse papel dos amigos

complementaria o papel já apontado por

diversos autores.

Assim, os amigos no local de destino não

apenas motivariam a migração (Fazito &

Rios-Neto, 2008), mas exerceriam um papel

importante e diversificado na vida diária do

imigrante brasileiro no exterior, amigo esse

que pode ser brasileiro, nativo do país de

destino ou outro imigrante. Como indicado

por Lisboa (2007), os amigos fazem parte de

experimentar diferentes sensações em um

novo país, proporcionando uma diversidade

de atividades. Assim, como indicado por

Soares (2002), o migrante tem nos amigos

um ponto de apoio à sua movimentação

espacial. Mais do que isso, os amigos

formariam uma “microssociedade” que

permitiria uma série de atividades sociais.

Esse fato também está relacionado com as

observações de Fusco (2009), quanto a

maior parte dos migrantes pertencer a

determinados grupos sociais de familiares

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A. Garcia; C. Bitencourt Neto & D. C. Góes 17

▲ Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 6 (1), jan - jun, 2013,3- 19

ou de amigos. Também, como apontado por

Siqueira, Assis e Campos (2010), os amigos,

entre outros, minimizam os riscos presentes

na migração de longa distância, não somente

quanto a condições de sobrevivência básica,

como emprego e salário, mas também

quanto à manutenção de uma visa social

diversificada.

O presente trabalho contribui para a

literatura sobre amizade e migração

indicando como os amigos são percebidos

pelos brasileiros vivendo no exterior,

indicando um amplo e diversificado papel,

que não apenas responde pela motivação

para migrar, mas também a motivação para

continuar no lugar. Assim como apontado

por Kugele (2006), os amigos auxiliam na

inserção ou reinserção social dos migrantes,

sejam através de amizades com pessoas da

mesma nação ou de outras etnias (Haug,

2003). O amplo papel dos amigos como

rede de proteção também foi apontado por

Tsai (2006) para esses imigrantes.

Em relação a outros estudos relacionando

amizade e migração, os dados sobre as

amizades de brasileiros no exterior

apresentam similaridades com amizades de

estrangeiros no Brasil. Assim, Garcia e Goes

(2010) indicaram que amizades de

universitários de Guiné-

-Bissau e de São Tomé e Príncipe

residindo no Brasil eram percebidas como

relevantes para a adaptação ao Brasil. O

mesmo foi observado por Garcia e Rangel

(2011) quanto às amizades de universitários

cabo-verdianos residindo no Brasil, cujos

participantes destacaram o valor da amizade

e a ajuda recebida. De forma similar, os

episódios marcantes também estavam

ligados a experiências compartilhadas (lazer)

e apoio (ajuda do amigo). Garcia, Goes,

Moura e Pepino (2010), investigando os

episódios marcantes nas amizades de

universitários africanos no Brasil, também

destacaram apoio e companheirismo como

propriedades do relacionamento.

Com base em Hinde (1997) pode-se

propor a existência de relações dialéticas

entre os três níveis considerados (a pessoa

do amigo, episódios e relacionamento de

amizade) e a possibilidade de considerar os

três conjuntamente como forma de

enriquecer os estudos sobre amizade. Os

dados referentes à origem das amizades

também indicaram o papel relevante de

outras pessoas e de instituições, como

grupos de pessoas realizando atividades

específicas em um dado ambiente, de modo

que os dados sugerem que os fatores

apontados por Hinde, como grupos,

estruturas socioculturais e ambiente físico

também surgiram de modo integrado e

devem ser considerados nos estudos sobre

relações de amizade, especialmente no

contexto de migração internacional, em que

os relacionamentos ocorrem em um

ambiente culturalmente mais complexo.

Considerações finais

Amigos são elementos importantes na

rede social das pessoas em todas as fases da

vida, inclusive em situação de migração

internacional. Conforme indicado na

literatura, os amigos já têm seu papel

reconhecido antes da migração, ao

contribuir para motivar as migrações de

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Amizades de brasileiros residindo no exterior: significado, dificuldades e origem 18

▲ Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 6 (1), jan - jun, 2013,3- 19

brasileiros. Os dados da presente

investigação sugerem que os amigos

continuam a ser importantes durante a vida

dos brasileiros no exterior, fornecendo

apoio social em uma situação especial e

também contribuindo para a construção de

uma rede ou grupo social que permite

compartilhar uma ampla gama de

experiências.

Enquanto os estudos sobre migração têm

identificado o papel dos amigos e familiares

como fatores afetando a migração, o

presente estudo indicou que os amigos

desempenham um papel complexo na vida

daqueles que deixaram seu país de origem

para viver em outro país. Por outro lado, os

estudos têm focado mais as relações entre

diferentes etnias sem uma maior atenção aos

movimentos migratórios. Os resultados

indicam um papel importante dos amigos

em contexto de migração e ajudam a

compreender as relações entre amizade e

cultura.

Outras pesquisas sobre o tema são

necessárias, como investigar as diferenças

entre a primeira e a segunda geração de

imigrantes quanto a suas amizades em um

novo país, as diferenças nas amizades entre

aqueles que estão temporariamente no

exterior e os que pretendem permanecer e as

diferenças nas amizades de brasileiros de

acordo com a cultura do país para o qual

migraram.

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Recebido em: 22/05/2012 Aceito em: 12/09/2012