Allan Neves Oliveira Silva* · correção e superação do pensamento de Aristóteles de um modo...
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ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, xi + 298 p.
Allan Neves Oliveira Silva* ___________________________________________
Abu ‘Ali Ibn Sina (980-1037 d.C.) está entre as figuras que mais
influenciaram o pensamento medieval, estendendo-se por gerações de
pensadores em diversas áreas do conhecimento e cruzando fronteiras
linguísticas, étnicas e religiosas. Seu destacado alcance, de fato, reflete sua
maestria em catalisar, sintetizar e inovar o conjunto de ideias que preenchiam o
rico ambiente intelectual circunvizinho de Bukhara (cidade próxima de onde
nasceu, hoje Uzbequistão) e de Khurasan (território onde viveu maior parte de
sua vida, hoje parte do Irã), ambas situadas no que foi o antigo império persa. No
limiar do século XI, o movimento de tradução do grego ao árabe já havia
chegado ao seu fim com a quase totalidade do corpus aristotélico traduzido,
assim como boa parte dos chamados comentadores neoplatônicos gregos de
Atenas e Alexandria; a escola de Bagdá, empenhada em comentar e definir o
pensamento do Estagirita, já havia tido seu apogeu com al-Farabi (m. 950); e a
teologia islâmica (kalâm), que se engajava em temas caros aos filósofos como a
criação, atributos divinos e o porvir da alma humana, assim como o gnosticismo
ismailiano, que importou fortemente do neoplatonismo grego e de sábios persas,
estavam marcantemente em voga. O contexto em que viveu, entretanto, não
minimizou seu potencial, que, como ele aponta em sua autobiografia, se firmava
singular e prolífico desde cedo; mas, antes, o que produziu a partir dele o fez se
projetar historicamente até as fronteiras opostas do império islâmico com seu
diálogo com Averróis (m. 1198), indo daí para a Europa cristã – onde seu nome
latino, Avicenna, se fazia soar – e adiante, mostrando-se ilustre no mundo
islâmico até tempos recentes.
* Doutorando na Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista do CNPq.
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
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A despeito da importância de Avicena, o relativo estreito leque de
pesquisas aprofundadas sobre suas doutrinas, a carência de edições críticas
apropriadas de suas obras e a ainda tímida abordagem compreensiva da
dimensão e extensão de sua influência se fazem sentir sobremaneira. A verdade é
que, considerando a magnitude de Avicena frente ao que contamos de material
sobre ele, temos em nossa frente um autor que ainda nos é estranho, revelando,
por efeito, o quando ainda é estranha ao próprio pesquisador da tradição
medieval a filosofia árabe islâmica. Tem havido, contudo, um crescente esforço
de estudo qualificado nas últimas décadas para aplainar tais lacunas. O livro
editado por Peter Adamson contribui em grande medida para isso. Trata-se de
uma coletânea de artigos redigidos por prestigiosos pesquisadores sobre as mais
diferentes facetas do autor, cobrindo também em boa dose seu legado. É um
título que apresenta a virtude de oferecer ao leitor de filosofia um panorama da
figura, doutrina e influência do pensador árabe de forma acessível e técnica,
localizando-o ao mesmo tempo no cenário atual de pesquisas e de disputas
interpretativas. Como aponta o próprio título, os escritos são ensaios críticos
que trazem a valiosa contribuição de fazer avançar as pesquisas sobre Avicena
com a apresentação de interpretações e informações originais, fazendo
contraponto ao que temos disponível e indicando ao estudioso da filosofia árabe
o caminho ainda a se trilhar.
As duas primeiras contribuições, de David Reisman1 e Dimitri Gutas2,
oferecem um acurado retrato do personagem na ambiência social, cultural e
intelectual em que estava inserido. Reisman destaca a importância crucial do
patronado para Avicena, primeiramente para sua própria formação filosófica e,
em seguida, para conseguir os próprios meios para redigir e para congregar seus
discípulos. O interessante é que o que faz com que Avicena seja adotado por
auxílio benfeitor de governantes e nobres não são (ao menos não inicialmente)
1 REISMAN, D. “The Life and Times of Avicenna: Patronage and Learning in Medieval Islam”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 7-27. 2 GUTAS, D. “Avicenna’s Philosophical Project”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 28-47.
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seus dotes filosóficos, mas o seu talento para curar. É este que lhe garante –
como narra em sua autobiografia – ocupar com a idade de 18 anos o posto de
médico na corte do governante samânida Nuh b. Mansûr, o qual lhe abre uma
biblioteca de rico e variado acervo. Reisman argumenta que essa adoção marca a
primeira de uma série de fases da produção filosófica do nosso autor, a saber, a
confecção sobretudo de compêndios em favor de seus protetores, tendo,
portanto, um modo de exposição próprio, mas que vem assinalar sua maturação
enquanto pensador autônomo (pp. 10-1). Esse foi um meio conveniente para
conseguir a estabilidade necessária para seu exercício intelectual, já que Avicena,
graças a sua autoproclamada e reconhecida capacidade autodidata, nunca esteve
filiado a um estabelecimento de ensino institucionalizado. Com isso, tem início a
sua fase de composição de obras pedagógicas para alunos que começaram a
agregar seus ensinos, as quais comportam um teor mais sistemático e
aprofundado. De fato, o progressivo conhecimento das obras do Estagirita –
mais primordialmente, do Organon – o faz se confrontar, em um primeiro
momento, com seus conterrâneos bagdadis, a quem acusa de não raciocinar com
exatidão segundo os princípios lógicos por eles próprios defendidos, e, em
seguida, com o próprio Aristóteles. Como aponta Reisman: “A interpretação
deles de Aristóteles e outros filósofos gregos conduziria em parte Avicena a
propor sua ‘filosofia dos Orientais’, que romperia com a prática servil de mero
comentário a Aristóteles” (p. 15). É nessa efervescência que tem início sua fase
de rivalidade e disputa, mesmo pública, com os sábios da época e sua firmação
enquanto autoridade. Um episódio marcante é a discussão de problemas lógicos
que Avicena protagoniza com o pensador bagdadi Abu l-Qasim al-Kirmani (pp.
14-9), que é intrigantemente apresentado pelo pesquisador em seu contexto de
turbulência política.
A fase de maturidade de Avicena é marcada pela composição de suas
duas maiores obras: Livro da Cura (Kitâb al-Shifâ’) e Indicações e notas (Al-Ishârât
wa-l-tanbîhât). Reisman ressalta que Avicena assume uma postura que se
caracteriza em três frentes (pp. 19-20): 1) seu embate com al-Kirmani e outros
adeptos da mesma Escola realça sua posição polemista contra os
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autodenominados “aristotélicos”; 2) o confronto é intelectualmente fundado,
visto que Avicena, reconhecendo a competência de Aristóteles, se presta a
mostrar a falência dos métodos e práticas de seus seguidores na própria
linguagem lógica – silogístico-demonstrativa – do mestre grego; 3) superando o
Estagirita e seus seguidores no próprio território deles, Avicena procede a firmar
sua filosofia de modo próprio não apenas em conteúdo, mas também em meio
de veiculação e divulgação para a comunidade intelectual. As duas primeiras
frentes são materializadas no Livro da Cura, onde Avicena, no Prólogo, menciona
explicitamente os bagdadis e adverte o leitor sobre seu projeto de remodelagem,
correção e superação do pensamento de Aristóteles de um modo sistemático e
coeso. Nesse ínterim, Avicena nomeia sua própria investidura de “oriental”
(mashriq), que, como esclarece Reisman, seguindo a aclamada tese de Gutas,
trata-se de um qualificativo geográfico que remonta à parte oriental (Khurasan)
do império islâmico, em contrapartida aos “ocidentais” de Bagdá. Avicena não
apenas inova em conteúdo, mas no gênero literário sem precedentes com o qual
apresenta seu sistema nas Indicações. Aí, o filósofo adota largamente o recurso
do entimema (argumento que elide uma das premissas) e omite as conclusões,
permitindo que o leitor a elas chegue através de uma das premissas e de
pequenas descrições ou apontamentos que lhes “indicam”. Com essa forma de
exposição, tinha-se em vista seu discipulado e iniciados, que deviam chegar à
verdade por um esforço próprio de inferência e raciocínio (p. 22). Reisman
aponta ainda que a produção não fez Avicena dispensar o patronado, e que, de
fato, mesmo nos anos finais de sua vida outros nobres o comissionaram, o que
redundou em escritos com diferentes modos de exposição (pp. 22-6). Fica claro
como a filosofia de Avicena foi construída em um cenário altamente dinâmico e
como isso afetou a estrutura formal de sua escrita, sem, contudo, interferir no
projeto autônomo de filosofia que ele desde muito cedo concebeu.
Gutas vem destacar com sua contribuição os constituintes desse projeto
e os elementos importados para sua realização. Informa-nos que,
fundamentalmente, Avicena contava com uma formação alinhada à tradição
aristotélica. Primeiro, porque tinha à sua disposição a maioria dos textos do
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Estagirita e boa parte de seus comentadores (esp. Nicolau de Damasco,
Alexandre de Afrodísia, Temístio, João Filopono), conhecendo apenas pouco e
indiretamente Platão. E, sobretudo, porque importou o currículo de ensino
filosófico da escola de Alexandria, principal e direta fonte grega dos árabes (pp.
29-30). De acordo com esse currículo, a lógica fomentaria a parte primeira e
propedêutica do conjunto restante das disciplinas filosóficas teóricas: física
(entende-se a física de Aristóteles e zoologia), matemática (i.e., quadrivium:
aritmética, geometria, astronomia e música) e metafísica. A partir daí se
seguiriam as disciplinas práticas como a ética e a política (p. 31). De fato, foi
exatamente nesta ordem que seu opus magnum, o Livro da Cura, foi redigido. Isso
porém, como enfatiza Gutas, não era um mero modo de divulgação organizada
do saber, mas, antes, era para Avicena o reflexo exato da estrutura da realidade.
Tal concepção lhe permitiu ir além da tradição que o influenciou. Como coloca
Gutas de modo significativo: “Ele foi o primeiro filósofo a escrever sobre todo
conhecimento filosófico (o que ele chamou simplesmente de al-‘ilm, conhecimento)
dentro de uma composição única como um todo unificado: ele desenvolveu a
summa philosophiae” (p. 32, suas ênfases).
Gutas nos apresenta ainda duas importantes teses. A primeira, já clássica
e aderida largamente pela comunidade acadêmica, é que a concepção aviceniana
da justaposição entre verdade científica e a estrutura ontológica é racionalmente
justificada através de um conceito nuclear e orgânico em seu sistema: hads (pp.
36-7). Abdicando da escolha em tempos anteriores de traduzi-lo como
“intuição” (intuition), Gutas opta por uma expressão mais neutra, “adivinhar
corretamente” (guess correctly), para descrever o vocábulo que Avicena usa
quando se refere ao ato intelectual de alcançar o termo médio no argumento
silogístico redundando na conclusão. Trata-se de um importe direto de
Aristóteles (Segundos Analíticos I.34), mas que Avicena usa de uma maneira
integrada em seu sistema de conhecimento, fazendo uso dele não apenas em
seus tratados, mas, de modo mais pessoal, em cartas a discípulos e na
autobiografia para descrever a aquisição do saber inteligível pela alma (inclusive a
dele próprio!) e o progresso científico do homem na história. É pela noção de
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hads, em outras palavras, que Avicena fornece de maneira racional, pois
silogisticamente fundada, o link entre o mundo, seus efeitos e causas, e o que
conhece o homem dele. A outra tese de Gutas, mais recente, vem chamar
atenção ao “empirismo racional” (pp. 39-40) do filósofo árabe. Tal expressão não
vem apenas a qualificar as marcantes e numerosas colocações sobre os sentidos
externos e internos, assim como sobre as premissas de experiência (tajriba;
mushâhâdât), mas também a noção de autorreflexão ou consciência (qadâyâ
i‘tibâriyya) que é famosamente exposta pelo argumento do homem suspenso no
ar, uma experiência de si. Para Gutas, esses elementos sustentam o eixo empirista
da filosofia aviceniana, que, de certo modo antecipa o que veremos em John
Locke, e que varre qualquer carga exegética forte da terminologia emanacionista
– ou, antes, neoplatônica – ou quiçá inatista que emprega. Uma leitura similar é
oferecida por Deborah Black nesta coletânea.
Pela noção de hads estar essencialmente integrada com a concepção
silogística do mundo, o artigo de Tony Street3 na coleção, intitulado Avicenna on
the Syllogism, vem agregar a nosso entendimento esse tema fundamental na obra
lógica do autor. Street nos mostra como Avicena sofistica aspectos da teoria da
proposição e demonstração aristotélicas dialogando fortemente com a tradição e
se desvinculando dela. No que tange à proposição, uma questão bastante
disputada era sobre como compreendê-la na ausência de um operador modal,
isto é, de um termo que define a necessidade, possibilidade ou impossibilidade da
afirmação ou negação expressa no enunciado (pp. 54-5). Tal condição “absoluta”
(mutlaqa), que caracteriza a ausência do operador, foi diferenciada por Avicena
em proposição “absoluta geral” (mutlaqa ‘amma) e “absoluta especial” (mutlaqa
khassa). Tomemos o exemplo de um enunciado universal afirmativo como “Todo
A é B”. Como o componente modal não é expresso, ela pode ser lida de modo
geral, como “Todo A é ao menos uma vez B”, ou de modo especial, como
“Todo A é ao menos uma vez B e ao menos uma vez não-B”. Ao inserir
operadores temporais para discriminar proposições desprovidas de modalidade,
3 STREET, T. “Avicenna on the Syllogism”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 48-70.
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Avicena, segundo a interpretação proposta por Street, estabelece novas
condições de verdade para elas. Assim, as contrárias “Todo A é B” e “Nenhum
A é B”, embora tenham qualificadores opostos, podem ser verdadeiras, já que,
sendo uma delas tomada em sentido especial, A está ao menos uma vez incluso
no domínio de B e ao menos uma vez no de não-B. Neste “ao menos uma vez”,
Avicena implica, de modo amplo, não apenas a possibilidade, mas a
potencialidade, do que é A realizar-se ou de existir como tal (wujûd), como B (tal
como na proposição absoluta “Todo homem morre”). A divisão proposta está
emoldurada em uma ontologia e, portanto, tem uma aplicação que extrapola sua
lógica alcançando a metafísica (p. 58). No que concerne à demonstração, Avicena
confronta a chamada “regra da mais fraca” defendida por Teofrasto, segundo a
qual a força de uma conclusão em um dado silogismo é definida pela quantidade,
qualidade e modalidade do que é expresso na mais fraca das premissas. Avicena
contesta isso argumentando que a força da conclusão é definida pelo que
expressa a premissa maior com algumas exceções reconhecidas. Essa teoria será
criticada por lógicos posteriores, em especial pela adesão da ontologia à lógica
modal. Como pontua Street: “Avicena está construindo sua lógica modal em
torno de insights quanto a naturezas e as diferenças essenciais entre naturezas
que são reveladas pelas potencialidades diferentes e constituintes” (p. 62).
Adotados ou criticados, seus desenvolvimentos no campo da lógica têm um
tremendo impacto entre os filósofos árabes posteriores (pp. 63-5). Street ainda
fornece ao leitor, como apêndice, um guia bibliográfico bastante útil das obras
lógicas de Avicena incluindo estudos especializados sobre a temática (pp. 67-70).
Seguindo a ordenação do saber concebida por Avicena, depois da lógica, a
filosofia da natureza é colocada em escrutínio, a começar por Jon McGinnis4, que
analisa conceitos fundamentais da Física (al-Tabî‘iyyât) da Cura, em contraste com
a tradição peripatética. O primeiro deles é o de movimento (haraka), sobre o
qual Avicena estabelece dois sentidos por meio de uma distinção que é estranha
a Aristóteles. Um deles é o sentido que se tem na imaginação (khayâl), pelo qual
4 MCGINNIS, J. “Avicenna’s Natural Philosophy”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 71-90.
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é apreendido que um determinado corpo se deslocou de um ponto a a um
ponto b em determinado tempo t. Nessa perspectiva psicológica, o movimento é
um processo visto como acabado, já que visualiza o corpo movido sob uma
contagem temporal com início e fim. Quando trazido ao mundo concreto (fî al-
a‘yân), entretanto, onde o tempo cede estritamente lugar ao instante (sua fração
indivisível), o movimento é dimensionado em sua dinâmica de processo que se
realiza. Avicena conecta a noção de instante à de movimento, afirmando que há
movimento em um instante. Enquanto que tal afirmação parece contraintuitiva
por sugerir a violação da lei de contradição, Avicena responde a isso
reendossando ao seu leitor a distinção feita entre os sentidos de movimento: a
contradição existiria, de fato, se compreendêssemos t¹ e t² em um instante, uma
compreensão fundada no nível psicológico, mas entender o movimento
radicalmente na perspectiva extramental significa que, se um corpo se move, ele
se encontra em um estado x em um instante, e, necessariamente, em um estado
y em um instante seguinte (pp. 72-5). A distinção de perspectivas entre a
psicológica ou conceitual e a concreta ou física também desempenha um papel
crucial na reflexão de Avicena sobre o contínuo e o átomo, pois ele admite que
o contínuo – um composto material uniforme – pode ser potencialmente
dividido ao infinito, mas isso só enquanto experiência de pensamento. No que
tange à divisibilidade do corpo físico do domínio concreto, contra o que pensa
Aristóteles, isso seria impossível (pp. 75-8). Ao contrário do que as expectativas
poderiam indicar, porém, dessa mesma arquitetura teórica também uma vigorosa
refutação do atomismo é ensaiada, atomismo este reinante e racionalmente
sustentado pelos teólogos islâmicos (mutakallimûn) asharitas. Isso porque estes
não endossam apenas a existência de uma parte indivisível da matéria (com o que
concordaria o filósofo persa), mas, no que sustentam, a noção de átomo
compreende também a indivisibilidade conceitual. McGinnis nos apresenta a
refutação aviceniana a essa possibilidade pelo argumento de agregação (ta’lîf):
para um corpo se constituir enquanto uma magnitude espacial única é necessário
que suas partes se agrupem, se conglomerem quantitativamente de modo a
formar um corpo qualquer. Mas isso não seria possível se eles fossem
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conceitualmente indivisíveis, pois, teoricamente, eles não teriam limites (então,
partes), o que é indispensável para que a sobreposição de um componente a
outro dê origem a um todo físico (pp. 78-81).
Na categoria da qualidade e da substância com relação aos compostos
físicos, Avicena exibe o impulso criativo que o deixou conhecido enquanto
filósofo da natureza. A relação entre os elementos naturais (terra, água, ar, fogo)
com as qualidades sensíveis primárias (frio-quente, seco-úmido) é bem delimitada
por nosso autor, que argumenta contra a natureza substancial dessa relação,
defendida por alguns comentadores aristotélicos gregos, e contra a ideia de que
a origem dos elementos naturais ocorre em virtude do grau extremo que suas
respectivas qualidades sensíveis atingem – a água sendo resultado dos extremos
do úmido e do frio, etc. A respeito deste último, Avicena contra-argumenta que,
fosse esse o caso, não seria possível nomear água este elemento que pode tanto
congelar quanto entrar em ebulição. De fato, também a transição da água para o
ar, ou qualquer outra mudança substancial, isto é, a mudança que envolve a
passagem de uma forma substancial a outra, marca o contexto em que Avicena
recorre ao que ficou conhecido no mundo latino por dator formarum, uma feliz
tradução de wâhib al-suwar, “doador de formas”. Trata-se de uma inteligência
celeste separada (o intelecto agente de suas obras psicológicas) que fica
responsável por emanar a nova forma substancial sempre que o composto
estiver preparado ou predisposto para tal. É a causação metafísica fortemente
presente para explicar fenômenos físicos (pp. 86-8).
O artigo de Peter Pormann5 traz luz a um campo basilar do pensamento
aviceniano ainda por muito a ser explorado e que lhe rendeu um epíteto de
peso, o de médico. Avicena não apenas teorizou, enquanto filósofo e médico,
sobre a medicina (tibb), mas também a levou ao domínio prático, cujo exercício
desde cedo, como dito, lhe garantiu acesso à elite política e intelectual. Sua
reflexão sobre ela no campo filosófico consiste, do ponto de vista mais amplo,
5 PORMANN, P. “Avicenna on Medical Practice, Epistemology, and the Physiology of the Inner Senses”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 91-108.
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em classificá-la no quadro de disciplinas do saber. Neste quesito, Pormann
esclarece, o espaço que a medicina ocupa oscila desde ser uma ciência natural
derivativa (al-hikma al-tabî‘iyya al-far‘iyya) na Epístola sobre a Divisão das Ciências
(Risâla fî Aqsâm al-‘ulûm) até, na tardia Os Orientais (al-Mashriqiyyûn), a de possuir a
condição mais periférica de ciência corolária ao lado de astrologia e agricultura
(p. 93). Enquanto médico, Avicena escreve sobre essa ciência na introdução do
massivo Cânon de Medicina (Al-Qânûn fî al-tibb), classificando-a nas dimensões
teórica (nazarî) e prática (‘amalî). O médico compreende e lida com os
elementos, misturas e humores que constituem os organismos físicos, suas
faculdades e partes anatômicas, os compostos que reagem e interagem com eles
(comida, bebida etc.), e os que trazem ao equilíbrio e à cura, preservando sua
saúde. Esse é o limite de sua atuação; ir além, isto é, buscar pela causa daquilo
que constitui seu campo de atuação é trabalho do filósofo, do filósofo da
natureza. (p. 94). Na terminologia utilizada podemos notar a ressonância de
Galeno, que foi bem conhecido nas terras islâmicas. De fato, declara Pormann,
Avicena desenvolve a dimensão empírica da ciência médica, tão marcada pela
tradição grega, e enfatiza a noção de experiência (tajriba), meio pelo qual ele, de
modo qualificado e organizado, orienta o teste de drogas ou medicamentos em
faculdades orgânicas diversas e registra seus efeitos (pp. 98-99).
É interessante observar como Avicena combina, de modo apurado, suas
visões de médico e filósofo em temas que se tocam, e nenhum outro se faz mais
influente que o dos sentidos internos (al-hawâss al-bâtina) da alma. Trata-se das
faculdades anímicas que lidam com os dados sensíveis uma vez que eles são
percebidos e veiculados pelos órgãos externos. Nelas repousa o limiar da
questão entre corpo e alma e sua interação. Como nos informa Pormann,
Galeno foi peça de leitura importante, mas também o foram Posidônio e o
cristão Nemésio de Emesa (ambos do século IV d.C.), que propagavam suas
reflexões quanto à centralidade do cérebro na relação corpo-alma a partir da
notória descoberta dos nervos feita pelos gregos (pp. 102-3). Avicena aprofunda
essa gama de conhecimentos e define cinco sentidos internos para a alma, que
estão sediados em três ventrículos cerebrais – frontal, médio, dorsal – e que
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sofrem quando suas específicas sedes corpóreas são danificadas, como consta no
De anima (Kitâb al-Nafs) da Cura. Com efeito, a razão de 5:3, em vez de 3:3, é
apenas detectada pelo filósofo e passa despercebida ao médico. A função de
perceber noções derivadas dos dados sensíveis difere da função de armazená-las,
o que exige a duplicação das faculdades perceptivas: o sentido comum (al-hiss al-
mushtarak) e a estimação (wahm), a última das quais se fez bem conhecida na
tradição latina (pp. 105-7). Pormann nos mostra ainda como passagens textuais
sobre sentidos internos na obra médica e na filosófica de Avicena se sobrepõem
mostrando seu nível de sistematicidade e a base empírica de que fazia uso para
fundamentar suas proposições teóricas.
Ascendendo das faculdades internas corpóreas ao nível intelectual, Dag
Hasse6 nos apresenta seu escrito em contornos polêmicos, tratando do mais
debatido tema da epistemologia aviceniana. O problema é fundamentalmente
exegético, pois Avicena em diversas obras explica sua teoria da intelecção, ou
aquisição das noções (s. ma‘nâ) ou formas inteligíveis (s. al-sûra al-ma‘qûla),
empregando dois arcabouços terminológicos que advêm de tradições diferentes
e que são aparentemente contraditórios. Ele, em certos momentos, explicita que
o intelecto (‘aql) humano alcança as formas inteligíveis por um procedimento de
abstração (tajrîd) sobre as formas sensíveis (s. al-sûra al-mahsûsa) que estão
armazenadas na imaginação, despindo-as completamente da materialidade que as
torna particulares. Entretanto, em outras ocasiões de uma mesma obra, a
aquisição intelectual humana é descrita como o resultado da emanação (fayd) dos
conceitos universais a partir do intelecto agente (al-‘aql al-fa‘‘âl), que é uma
inteligência celeste separada do mundo natural, quando quer que o intelecto
humano esteja pronto ou disposto para tal. Emerge, pois, a questão: de onde
vêm os universais inteligíveis, e como precisamente o ser humano os adquire?
Hasse, na primeira metade de seu artigo, realça as tradições – respectivamente,
aristotélica e neoplatônica – sobre as quais são baseadas as diferentes descrições
oferecidas por Avicena mostrando a correspondente segmentação em duas
6 HASSE, D. “Avicenna’s Epistemological Optimism”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 109-119.
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correntes de leituras pela bibliografia especializada, correntes que, de modo
geral, ao aderir a uma das descrições, classifica a outra como apenas metafórica.
Essa foi a postura do próprio Hasse anos atrás em favor da leitura abstracionista,
e que ele, na segunda metade, tenta ajustar para comportar o vocabulário
emanacionista.
Hasse explora a distinção feita por Avicena (cuja origem remonta a
Alexandre de Afrodísia) entre as formas que se encontram na matéria e as
abstratas, estas sendo os existentes separados, inteligências celestes e Deus (pp.
114-5). Ademais, as mesmas essências ou quididades que se encontram unidas à
matéria enquanto formas do composto natural existem em um estado abstrato
(mujarrad) no intelecto agente separado. Se as formas são naturais, o vocabulário
da abstração para as adquirir de modo imaterial, universal, está justificado e
endossa ainda uma vez mais o empirismo com o qual se compromete Avicena.
Mas, e quanto à emanação e às formas abstratas no intelecto agente? Hasse
argumenta que, ao sustentá-las, um outro problema é visado, qual seja, não a da
fonte primeira dos inteligíveis alcançados pelo indivíduo cognoscente, mas a da
origem última deles e, portanto, sua proveniência de ser. Desse modo,
“[e]pistemologicamente, o modo normal de adquirir as formas universais é a
abstração dos particulares, mas ontologicamente as formas vêm do intelecto
agente” (p. 115). O emanacionismo, Hasse destaca, desempenha ainda um papel
específico na teoria do conhecimento de Avicena, que é o de responder às suas
interrogações sem precedentes sobre a existência de uma memória intelectual
na alma. Um tal repositório para os inteligíveis é rejeitado longamente no De
anima em razão 1) da materialidade do corpo que não pode comportar a
imaterialidade de noções abstratas e 2) de o intelecto humano, imaterial, não
poder conservar aquilo que pensa, pois, ao se encontrarem em um substrato
(mawdu‘) intelectual, elas devem ser pensadas em ato. Aqui notamos a distinção
cara ao nosso autor entre percepção e preservação, o intelecto agente
aparecendo como o substrato no qual os inteligíveis abstraídos pelo homem são
“armazenados” e eternamente inteligidos em ato. Para Hasse, a teoria da
emanação vem exatamente resolver o problema da memória intelectual e
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preservar o homem de, para reaver noções já adquiridas, ter de se engajar em
uma nova e laboriosa busca empírica com seus correlatos processos cognitivos
(pp. 116-7). Nessa tentativa de interpretação conciliatória, então, o intelecto
agente é inexistente na aquisição primeira pelo homem dos inteligíveis e vem, de
modo auxiliar, resolver um problema que o próprio Avicena detectou. Estando
exclusivamente a encargo e em poder do homem adquirir as noções universais
por si próprio, estamos, finaliza Hasse, frente a uma complexa teoria que, porém,
resguarda um “otimismo epistemológico” (p. 119), expressão que dá título ao
artigo.
A investigação sobre a epistemologia continua com Deborah Black7, que
explora as diferentes proposições de conhecimento classificadas por Avicena
segundo a noção de assentimento (tasdîq), que está ultimamente ancorada no ato
elementar da alma de reconhecimento de sua própria existência, exemplificado
pela famosa experiência de pensamento do homem suspenso no ar. O filósofo
nos oferece uma extensa lista (Black enumera 11, p. 124) de tipos de
proposições que variam em grau de certeza (yaqin), desde as autoevidentes,
como proposições matemáticas simples (“O todo é maior que a parte”), até as
baseadas em testemunhas (“A torre Eiffel está na cidade de Paris”), ou que nos
são ditadas por opiniões geralmente aceitas e autoridades (“Mentir é mau”). A
força epistêmica de tais proposições, em seus distintos graus, nos declara
Avicena, se afastando da tradição aristotélica, não está na necessidade (ou
contingência) lógica que elas transmitem enquanto objetos cognitivos, mas é
diretamente proporcional ao ato do indivíduo cognoscente de assentir à
informação que se lhe apresenta. O assentimento, conceito central aqui, se
refere ao ato mental de conferir valor de verdade ao objeto conceitualizado de
conhecimento (tasawwur). A certeza stricto sensu é retratada como o grau
máximo de assentimento a uma dada proposição. Avicena parece flertar com o
inatismo quando admite que as proposições de primeiro tipo, as matemáticas,
7 BLACK, D. “Certitude, Justification, and the Principles of Knowledge in Avicenna’s Epistemology”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 120-142.
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são acessadas pela “inteligência natural” (fitra) de modo “inato” (gharîza) e
“imediato” (fi l-hâl). A despeito desses designativos sobre aquelas proposições,
Black esclarece que ele os emprega apenas para designar que “a aquisição delas
requer nada mais do que a concepção de seus termos” (p. 126). Sua atitude de
conectar a força epistêmica com a realidade intrínseca do indivíduo cognoscente,
que detém sua certeza primeira e imediata na autoconsciência (um campo
promissor de estudos), permite render-lhe, segundo Black, o título de
fundacionalista moderado (p. 123), possuindo sugestivas aproximações com Kant
(p. 127).
Vale ressaltar que também os princípios éticos são compreendidos no
enquadrinhamento epistemológico oferecido por nosso autor, e que, portanto,
se o rigor lógico e a investigação empírica a eles não chegam no mesmo teor que
a outras premissas do saber, seu estatuto de verdade não chega senão até onde
o indivíduo consegue assentir. Em outras palavras, proposições como “Mentir é
mau”, ou as ditadas por autoridades religiosas e círculos sociais, por não
poderem ser verificadas seja racionalmente, seja empiricamente, têm a força
dada apenas pelo consenso comunitário ou veiculado pelos instrumentos sociais
de poder. Analisa Black: “O bem e mal dos atos humanos não podem ser
intuídos intelectualmente, mas, antes, o reconhecimento deles é condicionado
pela educação, pelo temperamento individual do agente moral e experiência, e
por várias outras influências sociais. Avicena não vê isso como problemático ou
relativista” (p. 136). Temos aqui uma das poucas reflexões ainda existentes sobre
a ética em Avicena, que neste quesito estava em conflito com os teólogos
mutazilitas, para os quais as noções de bem e mal têm uma realidade em si que
pode ser apreendida intelectualmente pelo homem.
A metafísica (mâ ba‘da al-tabîa) é o tema tratado por Stephen Menn8, que
explora pontos doutrinais face às influências que Avicena recebeu para elaborá-la
enquanto a ciência magna que coroa seu sistema de filosofia. E nenhuma figura se
fez mais importante em seu empreendimento do que al-Farabi, que escreveu
8 MENN, S. “Avicenna’s Metaphysics”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 143-169.
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sobre a finalidade da Metafísica de Aristóteles, sua composição e importância
para as outras ciências em Sobre os Objetivos da Metafísica de Aristóteles. A
tradição peripatética via dificuldade (e se vê ainda hoje) de conciliar os dizeres de
seu mestre segundo os quais a ciência da metafísica estuda o ser enquanto ser e
seus atributos per se (livro gama) com os de que seu tratamento concerne a
Deus, primeiro motor, e às substâncias imateriais separadas (livro lambda). Al-
Farabi engenhosamente concilia ambas as colocações fazendo uma distinção
fundamental na universalidade e imaterialidade dos objetos de que trata essa
disciplina: ela não estuda apenas o conceito mais universal, isto é, existente
enquanto existente, e seus correlatos, mas também investiga o ente mais
universal, causa de todas as coisas, Deus (p. 145). Avicena adota tal reflexão que
concilia nesta ciência universal, respectivamente, o título de “filosofia primeira”
(al-falsafa al-ûla), ignorado pelos primórdios da falsafa com al-Kindi, com o de
“teologia” (al-ilahîyyât). Esse projeto é arquitetado por Avicena com um ponto de
partida, o sujeito (mawdû‘) – o existente enquanto tal –, cuja existência não
precisa ser provada por se tratar de uma verdade elementar alcançada de modo
necessário e imediato pela alma, e um ponto de chegada, o objeto (matlûb) –
Deus –, cuja existência deve ser provada. Diversas noções como as de quididade,
unidade (que recebe importante parcela de atenção por Menn), causalidade,
universais, atributos divinos, profecia e vida futura, delineiam o campo de atuação
dessa ciência.
O ponto em que a metafísica aviceniana mais radicalmente difere da
aristotélica é que para o filósofo árabe (esse é, de fato, um consenso que resulta
da veia neoplatônica da escola de Bagdá) Deus, a causa primeira, não é o
primeiro motor, nem mesmo é motor ou causa de movimento, mas trata-se,
antes, da causa de existência (p. 146). Quanto à noção de existente enquanto
existente, Avicena a esquadrinha com um sofisticado arcabouço metafísico que
importa e dialoga com o que é propriamente encontrado já em terras islâmicas.
A noção de existente é tratada e relacionada com outras noções primeiras como
“coisa” (shây’) e “um” (wâhid). Mais notadamente, é analisando a própria
constituição metafísica do existente que a aclamada distinção entre quididade ou
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essência (mahîyya) e existência (wujûd) tem seu lugar na metafísica aviceniana.
Neste quesito, Menn aponta de modo bem argumentado o débito existente para
com o Livro das Letras (Kitâb al-Hurûf), de al-Farabi, (uma obra crucial que poucos
estudam), e as obras do cristão jacobita Yahya ibn ‘Adi (m. 974). Menn sugere
que há uma correlação entre os conceitos de “existência afirmativa” (al-wujûd al-
ithbâtî) – que é usado por Avicena para expressar a realização ou instanciação da
quididade na alma, enquanto conceito, ou no mundo enquanto ente natural – e
“existência própria” (al-wujûd al-khâss) – que descreve a condição da quididade
por si mesma, desconsiderando qualquer instanciação sua – os quais remontam a
uma distinção feita por al-Farabi na referida obra (pp. 151-3). A existência
“afirmativa” se diferencia, como dito, entre o ser da quididade no mundo
exterior e na alma. Mas Avicena admite na Metafísica V.1 da Cura uma outra
existência da quididade – enquanto tomada em si mesma (e que está relacionada
com a existência própria) – que é a chamada “existência divina” (al-wujûd al-ilâhî).
Esta é uma noção já presente em Yahya ibn ‘Adi, mas que recebe outras
conotações em Avicena, que rejeita a independência ontológica separada das
quididades proposta por Ibn ‘Adi, pressuposto das formas platônicas (pp. 154-5).
Cumpre ainda notar que, contra as formas platônicas, Avicena incrementa sua
“maquinaria metafísica” com raciocínios que serão empregados em sua doutrina
dos universais e em sua argumentação de Deus enquanto existente necessário
(wâjib al-wujûd), a qual Menn sugestivamente aponta como sendo inspirada nas
Quaestiones II.28 de Alexandre de Afrodísia (pp. 158-9, n. 30).
Peter Adamson9 dá sequência à investigação metafísica explorando um de
seus pontos mais elevados, a prova da existência de Deus. De fato, a motivação
de sua contribuição se baseia em uma constatação aguçada: a famosa prova que
conduz à afirmação de um existente necessário, isto é, cuja existência deve
somente a si mesmo sem qualquer apelo exterior, não se constitui na prova de
Deus, pois este inclui atributos que não são imediatamente evidentes na noção
de wâjib al-wujûd, lit. “necessário de existência”. Em outras palavras, como
9 ADAMSON, P. “From the Necessary Existent to God”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 170-189.
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Avicena passa da noção de ser necessário por si para a de um ser que é
incausado, uno, causa primeira, intelecto, bom, generoso? Ele mesmo se mostra
consciente da necessidade de explicar essa investida, pois desenvolve uma
estratégia argumentativa (por ex. na Metafísica da Cura VIII.7) para chegar aos
atributos divinos, reconhecendo que, além da própria necessidade de existência,
e partindo dela, ele pode ser descrito (wasf) por meio de negações e de relações.
Adamson salienta essa estratégia e sugere um modo mais esquemático de
compreendê-la que faz referência a um traço interno e a um traço externo da
divindade (pp. 174-5).
Segundo Adamson, a extração de atributos por meio de negações e
relações é uma estratégia prefigurada na própria noção de existência necessária.
Quando Avicena trata do ser necessário, ele trata de um ente que tem e deve a
si mesmo sua existência ou, em outras palavras, não tem uma causa que o faça
existir (o traço interno). Por sua existência, chegamos então imediatamente a
seu caráter de ser incausado, um atributo negativo que serve de base para outras
negações. Por outro lado, as relações que o necessário de existência possui
remonta a algo outro que si mesmo (o traço externo), e que acaba por ser –
dado que, como Avicena argumenta, não há senão um ser necessário por si
mesmo – seu efeito: o caráter de ser causa se revela, pois, um atributo que serve
de base para outras relações. Adamson, então, expõe como esse esquema opera
na enumeração dos atributos de unicidade (pp. 177-9), simplicidade (179-81),
inefabilidade (pp. 181-2), intelecção (pp. 183-5) e bondade (pp. 185-8), este
último aparentemente o mais distante de ser extraído, mas que está firmemente
ancorado no estatuto de Deus enquanto causa e, portanto, na relação que possui
com seus efeitos. Deus, por portar e ser a própria existência, é a perfeição que,
em vez de contentar-se em retê-la apenas para si, distribui-a, ao criar, a todas a
suas criaturas. Isso situa Deus, para Avicena, “acima da perfeição” (fawqa al-
tamâm). Adamson observa que essa mesma expressão é empregada na pseudo-
Teologia de Aristóteles, mas no filósofo árabe vem acomodar um significado
diferente: o que assinala Deus como causa por excelência, como doador de
existência (p. 187).
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Os três artigos que finalizam a coletânea traçam um painel geral da
fortuna de Avicena nas tradições árabe-islâmica, judia e latina. Robert
Wisnovsky10 assume a tarefa de delinear o campo mais obscuro e complexo de
estudos do nosso autor, trilhando pelo oriente (fora, portanto, do ofuscamento
causado pela ascensão e legado de Averróis na Andaluzia) o caminho desde a
morte de Avicena, atravessando os séculos até a era contemporânea.
Primeiramente, o que fica manifesto é que, no oriente, Avicena foi tomado como
paradigma filosófico reinante, e Aristóteles foi quase que totalmente deixado de
lado, pois o primeiro, além de desenvolver todos os pontos do pensamento
deste, ainda agregava e discutia temas caros à agenda islâmica, como Deus, suas
provas e seus atributos, criação do mundo e profecia. Baseado nisso, a postura
dos filósofos e intelectuais em relação a sua filosofia foi tripla: a de adesão total, a
de aceitação com ajustes e transformações e a de completa rejeição (pp. 193-7).
Wisnovsky pioneiramente explora o primeiro grupo que mostra a ascensão de
um verdadeiro “avicenismo”, que explicava e defendia as ideias de seu mestre.
Acontece que Avicena, por brilhante que tenha sido, não era infalível, de modo
que em certos temas de extrema importância seu pensamento não se mostrava
claro o suficiente ou antes era assomado de inconsistência, já que eram tratados
aparentemente de maneira diferente em obras distintas. Isso fez com que seus
seguidores empreendessem um esforço de conciliar Avicena com ele mesmo –
um esforço similar, alude Wisnovsky, ao que filósofos gregos do período
helenístico fizeram com Aristóteles (pp. 199-202). Com isso visava-se blindar a
filosofia de Avicena contra seus críticos, que não eram poucos. Ainda assim,
entretanto, mesmo o mais destacado dentre eles, al-Ghazali (m. 1111), que
escreveu a Incoerência dos filósofos (Tahâfut al-falâsifa) para mostrar as doutrinas
dos “filósofos” (lê-se, “Avicena”) como racionalmente equivocadas e contrárias à
fé islâmica, absorveu fortemente dos escritos do nosso autor (sua lógica,
psicologia, bem como distinções e conceitos de sua metafísica) e incorporou seu
pensamento na escola sunita, no kalâm e na espiritualidade sufista. Essa
10 WISNOVSKY, R. “Avicenna’s Islamic Reception”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 190-213.
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“influência indireta”, que encontramos também em filosofias tão distintas como
as elaboradas por Suhrawardi (m. 1191) e Ibn ‘Arabi (m. 1240), de orientação
mística-iluminacionista, mostra o duradouro e onipresente impacto de Avicena
(pp. 205-7).
Wisnovsky chama a atenção para a peculiar recepção de Avicena de
acordo com suas obras. Duas se destacam: a Cura e as Indicações, esta, como
dito, a última grande e sistematizadora obra redigida de maneira hermética para
fins didáticos avançados. A despeito da gigantesca diferença entre as duas obras
no que tange a inteligibilidade de leitura e clareza de exposição de doutrina, as
Indicações ocuparam acentuadamente o cenário nos comentários sobre a filosofia
aviceniana por mais de cinco séculos após a sua morte, enquanto a Cura passou a
preponderar do século XVI ao XIX (uma lista dos comentadores é oferecida na
página 191). A opção dos pensadores posteriores se torna ainda mais curiosa
pelo fato de a maioria das obras sistematizadores de Avicena serem escritas de
modo claro, antecipando ou sumarizando a Cura (Kitâb al-Shifâ’), como o Livro da
Salvação (Kitâb al-Najât) e os Elementos de filosofia (‘Uyûn al-hikma), entre outras.
A razão disso, analisa Wisnovsky, é que, no que se refere às Indicações, “seu
estilo compresso e opaco de composição permitiu aos comentadores provocar
implicações filosóficas do modo que eles queriam, ao contrário das mais
explícitas articulações na Najât e na ‘Uyûn al-hikma, que resistiam à interpretação
criativa. Isso deu a eles uma liberdade interpretativa que não teriam tido com a
Najât e a ‘Uyûn al-hikma, e, a fortiori, com a Shifâ” (p. 198). De fato, o grupo dos
avicenianos e o dos que extraíram seus pensamentos a partir de embates
teóricos com o filósofo persa mantinham em contínua atividade o ambiente
intelectual islâmico após o século XII segundo uma agenda exegética que acabou
perdendo força apenas a partir do século XVI, embora tenha seguido atuante. O
esfacelamento do império – sobretudo com a onda xiita no Irã relacionada à
dinastia safávida, e a consequente expulsão dos pensadores sunitas que tanto
beberam do saber aviceniano – enfraqueceu esse movimento, o que foi
alimentado por uma revisão do currículo de ensino nas madrasas (escolas
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sunitas) em todo o mundo islâmico segundo uma orientação mais religiosa (pp.
209-11).
Gad Freudenthal e Mauro Zonta11 qualificam a recepção de Avicena entre
os filósofos e cientistas judeus de um under-appreciated enigma (p. 214) e
procuram minimizar isso com sua contribuição. Cumpre dizer, antes de tudo,
que entre os judeus há uma peculiaridade extra ao fato de que, como no caso
dos muçulmanos, haver uma extensão geográfica do oriente (Oriente Médio) ao
ocidente (Andaluzia): eles redigiram filosofia tanto no idioma árabe quanto no
hebraico. Portanto, a pergunta sobre quais ideias e doutrinas foram conhecidas
diretamente de Avicena pelos judeus é diferente da questão sobre quais de suas
obras foram traduzidas do árabe para o hebraico.
Do lado árabe, Moisés Maimônides foi a figura principal do pensamento
medieval judeu, além de ter sido médico. Ele declara conhecer Avicena em sua
mais importante obra, o Guia dos Perplexos, e mesmo estimá-lo (p. 216). Esse
apreço é justificado por seu débito em temas como teologia negativa, distinção
entre essência e existência e profetologia, uma constatação feita pelo estudioso
Sholomo Pines e aderida pela comunidade (p. 217). Entretanto, o “enigma”
começa a se mostrar quando se tenta rastrear que escritos exatos o filósofo
judeu conhecia e que tipo de contato foi esse. Além de não informar isso com
clareza, Maimônides não raro conflui os nomes de Aristóteles e Avicena,
atribuindo teses caras deste – como a noção de “existente necessário” – ao
Estagirita. Entretanto, como é bem documentado, um texto basilar que tinha
nesta época uma forte circulação no meio andaluz parece oferecer as pistas: são
as Intenções dos filósofos (Maqâsid al-falâsifa), de al-Ghazali, que não deve ser
confundido com sua Incoerência dos filósofos. Nas Intenções, al-Ghazali sumariza as
principais doutrinas dos “filósofos” (lê-se, “Avicena”), para, em seguida, refutá-las
em sua Incoerência. Esse prelúdio teve sua fortuna como um excelente manual de
exposição do pensamento filosófico em vigor. E Maimônides, testemunho desse
11 FREUDENTHAL, G., ZONTA, M. “The Reception of Avicenna in Jewish Cultures, East and West”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 214-241.
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livro, sem reputar sua verdadeira procedência, atribuiu as ideias filosóficas aí
contidas diretamente a Avicena. Essa é uma leitura bem acolhida pelos
pesquisadores acadêmicos, mas Freudenthal e Zonta avançam uma sugestão do
porquê de o nome de Aristóteles ser pronunciado pelo pensador judeu neste
contexto: “na Andaluzia, Aristóteles continuou a ser visto como o líder e a fonte
principal do modo filosófico de pensamento. Maimônides (e seu meio) pode ter
associado as doutrinas encontradas na Maqâsid com o nome emblemático de
Aristóteles. Similarmente, quando Maimônides passa a julgar a filosofia de
Avicena, sem dizer qual, se qualquer, obra ele tinha em mente, ele pode
simplesmente estar expressando uma das mashhurât – ideias geralmente aceitas –
correntes e aceitas em seu meio cultural geral andaluz” (pp. 218-9). Al-Ghazali,
assim, desempenha um papel crucial na difusão do pensamento de Avicena, um
papel (até onde se consegue visualizar no estado corrente de pesquisas) mais
importante que o do próprio Avicena, de cujas obras filosóficas não se sabe se, e
ao certo quais, estiveram no painel intelectual judeu (p. 223).
Isso não impediu o nosso autor de ter tido declarados aderentes que dão
pistas de um contato direto: cumpre citar em especial Abraham Ibn Da’ud (este,
com toda probabilidade, o tradutor de Toledo de nome Avendauth, m. 1180) e
Moses ha-Levi (m. séc. XIII), que mostram ter uma familiaridade com a Salvação
(pp. 221-2). Do lado oriental, a evidência é patente: Ibn Kammuna (m. 1284),
nascido no Iraque, poderia ser chamado de aviceniano e, de fato, como era
costume intelectual corrente nessas terras, também escreveu um comentário às
Indicações (pp. 219-20). Ao todo, porém, o acesso a Avicena é difuso e tem um
quadro difícil de determinar pelo fragmentado e pouco confiável conjunto de
menções não-contextualizadas, o mesmo ocorrendo, no meio judeu arabófono,
com o Cânon de Medicina.
Do lado hebraico da filosofia judaica temos inicialmente um acesso ainda
mais mediatizado a Avicena. Não apenas al-Ghazali, com suas Intenções,
extensamente difundidas em hebraico, mas outra personagem ocupava o centro
da filosofia entre os judeus: Averróis. Seus escritos tiveram um profundo
impacto entre os intelectuais da Andaluzia e, como consequência, suas epítomes
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e grandes comentários foram traduzidos para servir de ponte ao pensamento de
Aristóteles. De fato, nas epítomes, o jovem Averróis tinha sua ótica exegética
em muito inspirada por Avicena. Ademais, e em contrapartida, não apenas suas
ideias revistas em seus grandes comentários tardios, mas também seu
“aristotelismo” antiaviceniano concentrado na Incoerência da Incoerência (Tahâfut
al-tahâfut) (resposta à Incoerência dos filósofos, de al-Ghazali) foi conhecido em
hebraico (pp. 226-7). Assim, embora Avicena tenha sido ofuscado pela tradução
de obras mais condizentes com o ambiente geográfico e intelectual, seu nome foi
bastante pronunciado em hebraico, ainda que de maneira indireta. Uma dose de
contrabalanço a essa onda de Avicena malgré lui, destacam Freudenthal e Zonta,
foi dada por Shem Tov Ibn Falaqera (m. 1195), que, em sua erudição, tinha certa
preocupação de retornar a fontes e assim o faz quando realça o débito de
Maimônides ao filósofo de Bukhara (pp. 232-4). A medicina, porém, não teve o
mesmo destino, pois seu Cânon de Medicina, embora traduzido tardiamente (séc.
XIII), foi lido em hebraico em mais de 150 manuscritos parciais e completos, o
que ocorreu devido ao florescimento das universidades europeias e
intelectualidade latina. Nesta época, ironicamente, ficava claro que o Avicena
árabe para os judeus já estava distante, pois o Cânon de Medicina, “a obra
hebraica de ciência mais bem disseminada”, foi traduzido do latim (pp. 236-7).
Ao contrário do que acontece com os meios islâmico e judaico, a
recepção de Avicena na tradição filosófica latina com o movimento de tradução
iniciado em meados do século XII em Todelo tem sido um campo mais
privilegiado de atenção. Porém, visto que a quantidade de publicações sobre a
influência aviceniana nos latinos é desproporcional com o que de fato se sabe e
se tem de fonte primária crítica publicada, Amos Bertolacci12 nos traz uma
pertinente avaliação na primeira parte de seu artigo. É bem reconhecido que a
Cura de Avicena foi traduzida na Espanha em sua maior parte (lógica, física,
metafísica; com exceção, portanto, da parte matemática) assim como o Cânon de
12 BERTOLACCI, A. “The Reception of Avicenna in Latin Medieval Culture”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 242-269.
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Medicina. O fato de a comunidade acadêmica começar a ter acesso a edições
críticas dessas traduções apenas a partir da década de 1960 (com o projeto
Avicenna Latinus, coordenado por Simone Van Riet) não impediu que rótulos
generalizantes pouco fundados para classificar tendências ou pontos doutrinais –
como o de “agostinismo avicenizante”, para citar apenas a renomada expressão
de Étienne Gilson – viessem à tona (pp. 243-4). Do que está disponível do
Avicena latino, muito há ainda por ser publicado – a lógica ainda é matéria
totalmente ignorada – para que seja possível uma compreensão abrangente e
completa do tema da influência, e a fim de que evitemos a abordagem até aqui
desnivelada e, por extensão, potencialmente enviesada de estudos (a área da
psicologia recebe a maior fatia) (p. 248). Efeito grave disso é a lacuna
historiográfica existente entre o final do século XII e início do século XIII com os
primeiros contatos com a obra aviceniana – antes de figuras como Guilherme de
Auvergne (m. 1249) e Alberto Magno (m 1280) –, a começar por escritos
filosóficos de um de seus eminentes tradutores, Domingo Gundisalvo (m. 1190),
período que só agora começa timidamente a ser investigado (pp. 249-50).
Dado o status quaestionis da pesquisa sobre a influência de Avicena,
Bertolacci, na segunda parte, nos oferece a agenda para a qual a comunidade
deve atentar na busca de um diagnóstico e narração acurados. A orientação
ideológica por trás do Avicena latino deve ser precisamente considerada para
uma justa avaliação da questão. Bertolacci nos oferece exemplos preciosos
focando na metafísica. Quanto à tradução, ocorre que na Prima Philosophia (título
vertido da Metafísica da Cura) o rico extrato de vocábulos que Avicena emprega
para designar a existência como concomitante necessário (lazim) da essência é
quase que sumariamente expresso pelo único verbo accidere. Acontece que essa
escolha (proposital ou não), que dá seguimento às críticas difundidas de al-
Ghazali e Averróis contra a teoria da distinção entre a essência e a existência,
ajudou a difundir que, para o filósofo persa, a relação da existência para com a
essência é de natureza acidental (pp. 256-8). Ademais, há um claro propósito
“desislamizador” na concepção da Prima Philosophia, visto que parte do livro X,
onde um vasto uso de vocabulário islâmico é feito para descrever a filosofia
ADAMSON,P.(ed.)InterpretingAvicenna
Translatio.CadernoderesenhasdoGTHistóriadaFilosofiaMedievaleaRecepçãodaFilosofiaAntigahttp://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ISSN2176-8765Vol.8(2016)
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prática, é suprimido pelo tradutor (p. 259). De modo abrangente, a orientação
ideológica afeta a visão sobre o papel de Avicena no painel filosófico corrente.
Ao contrário do que ocorre na fortuna pós-aviceniana no oriente islâmico, no
mundo latino, Aristóteles era o expoente maior, mas se fazia necessário
encontrar outros materiais que esclarecessem seu pensamento. Segundo
Bertolacci, a escolha da Cura para ser traduzida, pela sua estrutura esquemática e
fama de síntese peripatética, ocorreu porque ela atendia a esse propósito. Essa
missão, entretanto, será transferida aos longos comentários de Averróis, que se
tornaram bastante influentes. Essa transmissão da autoridade exegética fez a
recepção de Avicena nos primórdios da filosofia na Europa pós-Averróis ser
realizada em fases (pp. 260-1). Ademais, a figura de al-Ghazali, que foi tomado
como “discípulo” de Avicena por ter sido conhecido somente por suas Intenções,
desempenhou um papel considerável na difusão do nosso autor (pp. 264-6). O
interessantíssimo embate entre Avicena e Averróis no mundo latino é ainda
explorado por Bertolacci como tendo despertado diferentes reações com
respeito ao pensamento do filósofo persa nos séculos XIII e XIV, isso depois de
já ter havido, quando as obras do árabe andaluz ainda estavam se tornando
familiares, uma audaciosa tentativa de harmonização dos dois empreendida por
Alberto Magno (pp. 266-8).
A imponente grandeza e o valor de Avicena na história das ideias são
muito bem representados no conjunto editado por Peter Adamson. Cumpre
frisar que tão importante quanto a exposição clara e rigorosa do que se sabe
dele, a apresentação daquilo que não se sabe – sobretudo no que tange à
recepção posterior de seu pensamento e à parcimônia por parte dos intérpretes
em suas conclusões – é uma marca que transforma o título editado por Peter
Adamson em um confiável guia de estudo e pesquisa.