Alimentar ou ser alimentado - TCC VALMIR VALÉRIO
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CINCIAS E TECNOLOGIA CENTRO DE ESTUDOS DE GEOGRAFIA DO TRABALHO CEGeT
www.fct.unesp.br/ceget
Alimentar ou ser Alimentado? A Expanso da Agroindstria Canavieira e a Soberania Alimentar em Flrida Paulista/SP
VALMIR JOS DE OLIVEIRA VALRIO
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VALMIR JOS DE OLIVEIRA VALRIO
Alimentar ou ser Alimentado? A Expanso da Agroindstria Canavieira e a Soberania Alimentar em
Flrida Paulista/SP
Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Departamento de Geografia da Faculdade de Cincias e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente, para obteno do ttulo de bacharel em Geografia, sob orientao do professor Antonio Thomaz Junior.
Presidente Prudente, 2011
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TERMO DE APROVAO
VALMIR JOS DE OLIVEIRA VALRIO
Alimentar ou ser Alimentado? A Expanso da Agroindstria Canavieira e a Soberania Alimentar em
Flrida Paulista/SP
Monografia aprovada como requisito parcial para obteno do ttulo de bacharel em Geografia, da Universidade Estadual Paulista UNESP - pela seguinte banca examinadora:
Orientador: Professor Dr. Antonio Thomaz Junior Departamento de Geografia, UNESP
Professor Dr. Bernardo Manano Fernandes Departamento de Geografia, UNESP
Professora Dra. Snia Maria Ribeiro de Souza
Presidente Prudente, Novembro de 2011
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DEDICATRIA
Para minha esposa, mulher e amiga, Daniela Ferrarezi Valrio,
Pelo apoio, pacincia e dedicao que me permitiram ser Pai, Estudante e Pesquisador.
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AGRADECIMENTOS
Como seres sociais nossa formao est intrinsecamente ligada s relaes
estabelecidas no decurso da vida, com as quais tornamo-nos o que somos e
moldamos a forma como vemos e pensamos o mundo. Assim, manifesto minha
gratido:
minha av, Ana Madalena Cndido, agricultora camponesa que com
sabedoria soube intervir sempre com preciso, guiando-me pelos caminhos
tortuosos daqueles que cresceram filhos de me solteira numa dcada de recesso
e misria, na qual fui apresentado ao fenmeno da fome, em plena dcada de
oitenta;
minha me, Jovelina Alves de Oliveira, mulher forte e corajosa, que ousou,
sozinha, criar trs filhos sem jamais deixa-los sorte das dificuldades, oferecendo-
nos a base do que somos hoje;
minha irm, Vnia Patrcia, por ter me iniciado nas letras desde os mais
tenros momentos, nos quais, de forma ldica, conduziu-me ao gosto pela leitura;
minha esposa, Daniela Ferrarezi Valrio, sem a qual meus passos ficariam
mancos, desprovidos do apoio que sempre encontrei nos momentos de dificuldade;
Ao meu orientador, Antonio Thomaz Junior, pelas lies que me fizeram
despertar para o estudo das causas de um flagelo que conheci na infncia, no qual a
privao de alimentos expressa perversidade de uma sociedade em que as coisas
se sobrepem aos homens;
Aos Professores do Departamento de Geografia da UNESP de Presidente
Prudente, pelos ensinamentos que me permitiram ver o mundo a partir da Geografia,
no qual o homem protagoniza o movimento que faz do espao liberdade ou crcere,
fartura ou fome, vida ou morte, de acordo com a disposio dos atores e fatores que
consubstanciam as diversas pores do espao;
Aos membros do CEGeT (Centro de Estudos de Geografia do Trabalho),
pelos momentos de reflexo que me permitiram avanar nas aes de pesquisa;
Aos Professores do CEFAM (Centro Especfico de Formao e
Aperfeioamento do Magistrio) de Tupi Paulista/SP, pelo aprendizado que se
consolidou como o divisor de guas na minha trajetria de vida.
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EPGRAFE
[...] a cana t tomando conta do mundo! E a fome vai entrar [...] (Amara Maria de Oliveira, agricultora camponesa de Flrida Paulista/SP)
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Resumo:
Devido s caractersticas de uso e ocupao do territrio nas ltimas duas dcadas, marcadas pela substituio da heterogeneidade da paisagem camponesa pela monotonia dos mares verdes do agronegcio, o municpio de Flrida Paulista contempla elementos representativos para analisarmos algumas das resultantes entre a expanso da cana-de-acar e a produo de alimentos voltados ao abastecimento dos locais prximos. Com isso buscamos entender, com base no recorte eleito para estudo, o percurso do alimento no espao, desde as pequenas propriedades camponesas que ainda resistem imposio do formato nico, at os diversos pontos de venda/aquisio de alimentos disponveis na rea urbana, alm do CEASA de Presidente Prudente/SP, responsvel pela distribuio da maior parte dos produtos alimentcios encontrados nas bancas do municpio. A expanso das reas monocultoras encontra-se sintonizada aos imperativos da lgica do abastecimento alimentar referenciado no movimento do alimento no espao, no qual reas antes policultoras, produtoras de alimentos, so sobrepostas pela geometria monocultural dos canaviais, o que diminui as possibilidades de abastecimento local e refora o discurso de que os alimentos devam ser garantidos a partir de sujeitos estranhos ao lugar. Alimentar ou ser alimentado, soberania ou segurana, poder de deciso que emana autonomia ou dependncia, constituem o eixo central no debate aqui proposto, de modo a identificar, a partir do movimento que denuncia a lgica por detrs do alimento, atores e setores entre a terra e o alimento. Com o objetivo de compreender as implicaes do modus operandi prprio ao agronegcio canavieiro para os recursos terra e gua, elementos centrais na consolidao do espao da Soberania Alimentar, analisamos ainda as principais caractersticas edafoclimticas do municpio e regio, o que permitiu vislumbrar condies em que sujeitos e territrios fazem da terra e da gua cmplices de um modo de vida ou refns de um modo de produo.
Palavras-chave: produo de alimentos; soberania alimentar; segurana alimentar; cana-de-acar.
Resumen:
Debido a las caractersticas de uso y ocupacin del territorio en las dos ltimas dcadas, marcado por la sustitucin de la heterogeneidad del paisaje campesino por la monotona del mar verde de la agroindustria, el municipio de Florida Paulista incluye elementos representativos para analizar algunos de los desdoblamientos de la expansin de la caa de azcar y de la produccin de alimentos destinados al abastecimiento de los lugares ms cercanos. Con esto tratamos de entender, basados en el recorte elegido para el estudio, cual es la ruta de los alimentos en el espacio, a partir de pequeas propiedades rurales que todava resisten a la imposicin del formato nico, a los distintos puntos de venta/compra de alimentos en las zonas urbanas, y CEASA de Presidente Prudente/SP, responsable por la distribucin de los alimentos que se encuentran en la mayora de las tiendas de esta ciudad. La expansin de las reas de monocultivos est en sintona con los
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imperativos de la lgica de la oferta de alimentos que hace referencia al movimiento de los alimentos en el espacio, en el que las reas antes dedicadas a la produccin de diversas culturas, los productores de alimentos, se superponen por la geometra del monocultivo de la caa de azcar, lo que reduce las posibilidades de abastecimiento local y refuerza el discurso de que los alimentos se debe ser abastecidos por elementos exgenos al lugar d consumo. Alimentar o ser alimentados, la soberana o la seguridad, la toma de decisiones que emane de la autonoma o dependencia, constituyen el eje central del debate que aqu se propone identificar, a partir del movimiento que denuncia la lgica que se mueve por detrs de la produccin de los alimentos, actores y sectores entre la tierra y la comida. Con el fin de comprender las implicaciones del propio funcionamiento de la agroindustria de la caa de azcar para los recursos tierra y agua, elementos clave en la consolidacin de la zona de la soberana alimentaria, he analizado las principales caractersticas de suelo y clima de la ciudad y de la regin, una idea de lo que las condiciones en que los sujetos y territorios componen la tierra y el agua, cmplices de una forma de vida o rehenes de un modo de produccin.
Palabras clave: produccin de alimentos; Soberana alimentaria; seguridad alimentaria; caa de azcar.
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LISTA DE TABELAS
01 Casas de moradia habitadas na zona rural do municpio de Flrida
Paulista nos anos de 1995/96 e 2007/2008
52
02 Total de casas de moradia na zona rural do municpio de Flrida
Paulista/SP nos anos de 1995/96 e 2007/2008
53
03 Nmero de proprietrios residentes na U.P.A. nos anos de 1995/96 e
2007/2008
57
04 Familiares do proprietrio que trabalham na U.P.A. no municpio de
Flrida Paulista/SP
58
05 Pequenas e Grandes Unidades de Produo Agrcola em relao
rea ocupada nos anos de 1995/96 e 2007/2008 no municpio de
Flrida Paulista/SP
58
06 Produtos alimentcios encontrados em relao ao nmero de
propriedades em que cada um foi localizado
64
07 Produtos encontrados nos pontos de venda existentes na rea urbana
de Flrida Paulista/SP de acordo com a origem dos mesmos
67
08 Quantidade de alimentos entregues semestralmente nas escolas e
creches de Flrida Paulista/SP
71
09 Cronograma do percentual da rea mecanizvel onde no se pode
efetuar a queima
99
10 Cronograma do percentual da rea no mecanizvel, onde no se pode
efetuar a queima
99
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LISTA DE QUADROS
01 Principais caractersticas dos sistemas de relevo presentes nas bacias
dos Rios Aguape e Peixe (modificado de IPT 1981)
94
02 Principais tipos de solos encontrados no interflvio Aguape/Peixe 96
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LISTA DE MAPAS
01 Localizao da rea de estudo 20
02 Principais rotas de abastecimento alimentar para Flrida Paulista via
CEASA de Presidente Prudente/SP
86
03 Localizao da rea de estudo internamente microrregio da Nova
Alta Paulista
90
04 Localizao da rede hidrogrfica em relao hipsometria do relevo:
Microrregio da Nova Alta Paulista/SP
95
05 Aptido edafoclimtica para a cana-de-acar no Estado de So Paulo 98
06 Espacializao da cana-de-acar no municpio de Flrida Paulista/SP 105
07 Localizao da rede hidrogrfica em relao hipsometria do relevo em
Flrida Paulista/SP
106
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LISTA DE GRFICOS
01 Evoluo da rea plantada com caf no municpio de Flrida
Paulista/SP de 1990 a 2009 (ha)
55
02 Populao urbana, rural e total de Flrida Paulista entre os anos de
1970 e 2010 (pessoas)
56
03 Comparativo entre a evoluo da populao residente na zona rural e a
rea total destinada ao cultivo de produtos alimentcios no perodo de
1991 a 2009/2010
73
04 Evoluo da rea plantada com alimentos e cana-de-acar no perodo
de 1990 a 2009 em Flrida Paulista/SP (ha)
75
05 Origem dos alimentos encontrados nos pontos de venda da rea urbana
de Flrida Paulista/SP
84
06 Ocupao do territrio agrcola em 1995/96 e 2007/2008 Flrida
Paulista/SP
87
07 Produo anual de leite: Flrida Paulista (mil litros) 88
08 Precipitao mensal mdia de 1970 a 2003 Flrida Paulista/SP (mm) 91
09 Precipitao total anual de 1970 a 2003 Flrida Paulista/SP (mm) 91
10 Balano hdrico-climatolgico para o municpio de Flrida Paulista/SP 92
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LISTA DE FOTOS
01 Escola desativada no Bairro do Alcio em Flrida Paulista/SP 54
02 Igreja desativada no Bairro do Alcio em Flrida Paulista/SP 54
03 Territrio campons (abaixo) e territrio do agronegcio (acima) em
Flrida Paulista/SP
60
04 Consrcio caf-feijo em Flrida Paulista/SP 62
05 Consrcio caf-mamo em Flrida Paulista/SP 63
06 Produo de feijo para subsistncia em Flrida Paulista/SP 65
07 Horta para subsistncia em Flrida Paulista/SP 65
08 Alimentos entregues pelos produtores participantes do PNAE no
municpio
70
09 Formas de relevo predominantes no municpio de Flrida Paulista/SP 93
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SUMRIO
Introduo 16
1 Procedimentos metodolgicos 24
2 O campesinato e a soberania alimentar: da maneira de viver ao
jeito de produzir
28
2.1 Demarcaes tericas para uma abordagem geogrfica da Soberania
Alimentar
35
2.1.1 O espao da Soberania Alimentar 36
2.1.2 Soberania e Segurana Alimentar: uma distino necessria 39
2.1.3 Identificar limites para avanar no debate 43
2.2 Por detrs do prato: atores e setores entre a terra e o alimento 47
3 O campesinato no espao rural de Flrida Paulista 52
3.1 O abastecimento alimentar em Flrida Paulista/SP 66
3.2 O abastecimento alimentar pblico no municpio (PNAE e PAA) 69
3.3 A Soberania Alimentar como produto da simbiose cidade-campo:
realidades e possibilidades (A geografia entre a terra e o prato)
73
3.3.1 A geografia entre a terra e o prato 74
3.4 Das distintas temporalidades aos descaminhos da Soberania Alimentar 78
3.5 Os circuitos espaciais de produo e consumo de alimentos 80
3.6 Os (des) caminhos do alimento em Flrida Paulista/SP 83
4 Terra e gua no territrio canavieiro: o quadro natural em questo 89
4.1 O quadro natural de Flrida Paulista/SP 89
4.1.1 Clima 89
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4.1.2 Relevo 92
4.1.3 Hidrografia 95
4.1.4 Solos 96
4.2 A fome com a vontade de comer: da aptido edafoclimtica ao modus
operandi da agroindstria canavieira
97
4.2.1 Uso de agrotxicos na cana-de-acar 100
5 Do discurso positivo negao da Soberania Alimentar: o
agronegcio e a modernidade destrutiva do capital
103
5.1 Para alm dos canaviais: projetos de sociedade em disputa 107
6 Consideraes finais 111
7 Referncias 114
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16
Introduo
Ao questionarmos a procedncia dos alimentos que consumimos, colocamos
em relevo territrios e territorialidades com as quais o alimento teve origem a partir
do tempo biolgico inerente s espcies vivas, seus requisitos em relao aos
componentes edafoclimticos que caracterizam a diversidade de quadros naturais
no espao (nacional/internacional), seu percurso da planta na terra at as bancas de
venda/aquisio/consumo e os sujeitos responsveis por articular os diversos
territrios e territorialidades que, em conjunto, permitem identificar a condio
alimentar1 nas diversas escalas.
A abordagem do fenmeno alimentar pressupe atentarmo-nos para a
condio especfica que caracteriza a alimentao das pessoas no que diz respeito,
por um lado, ao direito a uma alimentao saudvel, acessvel, sintonizada
diversidade de padres alimentares existentes nas mais variadas combinaes do
quadro natural em relao ao contexto histrico que particulariza cada poro do
espao, legando-lhes padres alimentares com estatuto territorial especfico e, por
outro, imposies alimentares oriundas de um modelo de abastecimento centrado no
movimento do alimento no espao, no qual a alimentao das diversas populaes
fica na dependncia dos interesses centrados na lgica da mercadoria.
O uso do territrio condiciona o alcance das foras de ligao entre pontos
potencialmente habilitados na constituio de uma rede scio-espacial alimentar,
soberana, quando do predomnio do movimento endgeno dos fluxos alimentares,
ou dependente, condio eufemisticamente denominada segurana alimentar, ou
seja, a segurana de ser alimentado. Desse modo, o recorte eleito para estudo
apresenta caractersticas marcantes em relao ao processo de substituio da
heterogeneidade caracterstica da paisagem camponesa pela homogeneidade que
marca os mares verdes, o que permite analisar o fenmeno alimentar a partir do uso
do territrio.
A expanso da atividade canavieira pressupe a incorporao de novos
territrios, o que resulta na uniformidade guiada pela territorializao do monoplio
1 Para alm de demarcar neologismos, consideraremos condio alimentar como sntese das relaes que
definem o abastecimento alimentar interno ou externo a um determinado territrio.
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agroindustrial2. Este processo revela, pois, a desigual disputa por territrio na qual
figura de um lado a cana-de-acar e a sua face monocultural e, de outro, as demais
culturas. Nesse cenrio de disputa, uma diversidade de cultivos, incluindo um
grande nmero de culturas alimentcias, como o milho, feijo, mandioca, etc.,
praticadas predominantemente nas pequenas propriedades camponesas, tem sua
existncia ameaada frente aos imperativos do agronegcio e sua marcha destrutiva
sobre as terras novas do Oeste Paulista.
Nossa opo pelo recorte territorial limitado ao municpio de Flrida Paulista,
parte da representatividade do mesmo em relao dinmica expansionista da
cana-de-acar no bojo da territorializao do monoplio agroindustrial canavieiro.
Considerado internamente microrregio da Nova Alta Paulista (dezesseis
municpios), o municpio em questo possui a segunda maior rea agrcola
(52.502,1 ha) e a maior rea plantada com cana-de-acar (23.013,6 ha ou
aproximadamente 44% do total)3. Por outro lado, chama a ateno o relativamente
grande4 nmero de proprietrios residentes na unidade produtiva (18,36%), assim
como o expressivo contingente de familiares do proprietrio que trabalham na
mesma (1.156 pessoas)5.
A partir do recorte territorial eleito para estudo, procedemos anlise dos
elementos formadores daquilo que compe a geografia alimentar local, estrutura
scio-espacial responsvel pela definio da origem dos alimentos consumidos
numa determinada parcela do espao, o que permite avaliar o grau de dependncia
em relao aos gneros alimentcios necessrios para a alimentao das pessoas,
pressuposto para o entendimento do espao no bojo da Soberania Alimentar.
Com isso, nossas compreenses estiveram referenciadas no entendimento da
origem dos principais alimentos encontrados no municpio, assim como nas
estratgias que possibilitam a continuidade daqueles que resistem
homogeneizao da paisagem que resulta da tomada do territrio pela cana-de-
acar.
Devido ao alto preo das terras em virtude da pouca disponibilidade nas
regies canavieiras tradicionais do Estado de So Paulo, tais como Ribeiro Preto,
Campinas/Piracicaba, Bauru/Jau, somado ao fato da maior parcela da rea agrcola 2 Cf. THOMAZ JUNIOR, 1989; 2002.
3 Cf. LUPA, 2008.
4 Relativamente grande devido ao contexto no qual figuram, marcado por grandes extenses plantadas com
cana-de-acar. 5 Cf. LUPA, 2008.
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regional constituir pastagens, predominantemente pastagens degradadas e em
decadncia, alm de condies edafoclimticas ideais ao desenvolvimento da
gramnea e predomnio de baixa declividade, ou seja, aspectos e particularidades
favorveis para a mecanizao, a Nova Alta Paulista desponta como destino certo
para as articulaes e investimentos necessrios frente satisfao da crescente
demanda, tanto do acar como principalmente do lcool carburante.
Dada a posio privilegiada na atual conjuntura energtica nacional e
internacional, amparada na panaceia do combustvel projetado como limpo,
renovvel, seguro e supostamente adequado constituio de medidas que
contribuam para o combate ao aquecimento global, alm de responder como o
provvel substituto do petrleo, a cana-de-acar ganha contornos de santidade e
cristalizada num eficaz aparato miditico-ideolgico via polticas estatais, tal como o
Programa Nacional de Produo do Biodiesel (PNB) e outras medidas que
beneficiam direta e indiretamente o imprio do agronegcio.
Com a substituio da heterogeneidade produtiva do territrio campons pela
paisagem monocultural resultante da territorializao do capital agroindustrial
canavieiro, emergem questes de ordem scio-espacial, pois, afinal, tal expanso
pressupe a incorporao de territrios antes regidos por dinmicas diametralmente
opostas quelas ligadas homogeneidade da forma de uso imposta pela cana-de-
acar.
Os debates acerca da questo da fome e da alimentao humana tm se
realizado no bojo da dicotomia segurana x Soberania Alimentar, com diferenas
substanciais no que se refere aos contedos sociais e geogrficos que resultam de
tais propostas. Assim, para alm de definir o fenmeno sob o ponto de vista das
especificidades individuais, buscamos demarcar realidades e possibilidades
referentes ao abastecimento alimentar local, de modo a identificar sujeitos, territrios
e territorialidades responsveis pela produo, distribuio e consumo de alimentos,
numa escala que vai da dependncia absoluta autonomia territorial alimentar,
condio sine qua non para a afirmao da Soberania Alimentar enquanto
paradigma de uma sociedade emancipada nas disposies alimentares.
No perodo em que procedemos s nossas investigaes acerca da produo
de alimentos com base no estudo de caso a partir do municpio de Flrida
Paulista/SP, a grande mdia nacional e internacional dedicou amplo espao para o
fato do aumento acentuado no ndice Global de Preos dos Alimentos da FAO
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19
(Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao) que, em
dezembro de 2010 chegou a 214,7 pontos, acima dos 213,6 pontos registrados no
ano de 2008, momento em que as constantes elevaes nos preos dos alimentos
provocaram diversas manifestaes ao redor do planeta6.
No mesmo sentido, Jean Ziegler, Relator Especial da ONU sobre o Direito
Alimentao, argumenta que a expanso indiscriminada das plantaes com
monocultura destinada produo de combustveis renovveis comporia uma
ameaa ao direito alimentao das camadas mais pobres, com destaque para a
cana-de-acar, matria-prima para a produo do lcool carburante7.
Milhares de cidades e vilarejos passam a ser cercados por esse monstro, que a cana-de-acar. Durante um tempo o acar sofreu um declnio, e a agricultura se desenvolveu. Agora esse monstro est de volta, devorando a terra da agricultura. O acar voltou a ser santificado, como na poca da colnia, quando a oligarquia enriqueceu e a msica, a cultura, tudo era pago pelo acar. [...] O etanol aumenta a misria e o desemprego. A terra se torna to cara que as famlias no conseguem mais subsistir. um retrocesso social histrico e um afastamento de tudo a que o Brasil moderno aspira.8
Em acepo diametralmente oposta, Arnoldo de Campos, Diretor de Gerao
de Renda e Agregao de Valor do Ministrio do Desenvolvimento Agrrio (MDA),
verifica que no existe concorrncia entre a produo de biocombustveis e a
produo de alimentos no Brasil, afirmando que a produo de alimentos e a
produo de energia poderiam caminhar juntas, sem prejuzo primeira9.
Nesse sentido, buscaremos entender o comportamento da agricultura
camponesa frente expanso da monocultura canavieira no municpio de Flrida
Paulista/SP, com as atenes voltadas aos rebatimentos no mbito da Soberania
Alimentar; analisada a partir das influncias da composio fundiria na produo de
alimentos e, assim, da maneira que se apresenta a questo agrria em relao
complexa trama de relaes que compem o circuito produtivo agroalimentar e as
diversas formas de uso da terra e do territrio.
Para tanto, verificaremos a viabilidade e os benefcios do modelo de produo
camponesa em relao ao formato projetado pelo agronegcio, na dimenso das
relaes entre o urbano e o rural que permitem tanto a manuteno da vida no
6 Folha on line, 05/01/2011.
7 Cf. THUSWOHL, 2007.
8 Folha on line, Controvrsia, 05/12/2007.
9 Cf. THUSWOHL, 2007.
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20
campo, como a produo de alimentos sos e de qualidade direcionados aos
consumidores da cidade.
Nossas reflexes referentes s resultantes da relao entre a expanso das
plantaes com cana-de-acar e a produo de alimentos voltada aos
consumidores locais (municpio de Flrida Paulista) estiveram pautadas no conceito
de Soberania Alimentar, por meio do qual o fenmeno alimentar analisado a partir
da capacidade interna de um dado territrio em abastecer a demanda por alimentos.
A partir do recorte territorial eleito para estudo (Mapa 01) procedemos
anlise das relaes entre a expanso da cana-de-acar e a produo de
alimentos, de modo a evidenciar a condio alimentar do municpio, tendo em vista o
abastecimento alimentar interno ou externo aos limites do territrio.
Mapa 01: Localizao da rea de estudo.
Fonte: IBGE. Elaborao: VALRIO, 2011.
A anlise da composio produtiva das pequenas propriedades subsidiou-nos
com elementos para entender os significados do espao campons em relao ao
fenmeno alimentar, assim como os elementos empricos que o embasam enquanto
categoria terica.
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21
As implicaes da territorializao da monocultura canavieira para a produo
de alimentos podem ser verificadas por diversas portas de entrada. A paisagem
visual primeira a se impor ao espectador desavisado, de forma a expor a
sobreposio de outras dimenses componentes da paisagem: sons, odores,
sabores e formas de vida que, sobrepostos pela geometria agroindustrial, redundam
na alterao da ecologia dos lugares, na qual uma diversidade de insetos, pssaros
e outros animais de grande importncia para o xito das atividades agrcolas so
eliminados para dar lugar esterilidade dos desertos verdes.
Em campo, pudemos constatar elementos que denunciam os efeitos
predadores da alterao da paisagem para aqueles que, mesmo cercados pela
homogeneidade agroindustrial, persistem na atividade agrcola. Pudemos verificar,
por meio de depoimentos, o desaparecimento de uma espcie especfica de
besouro, responsvel pela polinizao das flores do maracuj, fato que, segundo os
agricultores, onera e dificulta a continuidade do cultivo.
A compreenso da paisagem em sua ntegra pressupe considerarmos
mltiplas dimenses correspondentes s diversas percepes dos sentidos
humanos, desde a viso, passando pela percepo do deslocamento do ar no
espao (tato), pela percepo dos odores (olfato), at a extenso sonora prpria aos
mais variados contextos scio-espaciais que, uma vez alterados por meio da
imposio do formato nico, resultam na sobreposio de dimenses heterogneas
em favor de uma paisagem: a forma da cana, a cor da cana, o odor da cana, o sons
da cana. Expressa de forma monocultural, a paisagem canavieira se impe de forma
incontestvel integralidade das formas de vida e para todos os sentidos e formas
de perceber o espao.
Mesmo constrangida em meio ao imprio dos canaviais, a produo
camponesa local expressa uma marcante participao no fornecimento de
alimentos, tanto para a comercializao na rea urbana (pontos fixos + feira-livre)
como por meio de projetos oficiais de aquisio e distribuio de alimentos, alm da
diversidade de culturas alimentcias presentes nas propriedades visitadas, conforme
verificado quando da realizao dos trabalhos de campo. As poucas interaes entre
os pontos constituintes da rede scio-espacial alimentar local indicam deficincias
que, por um lado, impedem uma maior oferta de produtos locais nas bancas do
municpio e, por outro, retiram do campo possibilidades de gerao de renda e
manuteno da famlia na terra.
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22
A constatao do aumento acentuado das reas de cana-de-acar, vista a
partir do fenmeno da produo de alimentos, enseja pensarmos as implicaes da
generalizao do territrio canavieiro para os recursos terra (solo) e gua, elementos
centrais para consolidao da Soberania Alimentar, tendo em vista o modus
operandi prprio agroindstria canavieira em relao ao quadro natural em que se
d o processo, da a oportuna sugesto conceitual de agrohidronegcio10.
Terra, gua e famlia compem os sustentculos principais na estruturao do
territrio da Soberania Alimentar, assim, para alm dos efeitos imediatos da
substituio da heterogeneidade das paisagens camponesas pela monotonia da
paisagem homogeneizada, chamamos a ateno para as implicaes no mbito das
bases fundamentais com as quais as geraes futuras tero que cultivar seus
alimentos, minadas pela contaminao por resduos txicos.
A pouca quantidade de estudos com o foco na identificao de resduos
contaminantes procedentes da cana-de-acar e seus efeitos para a sade humana
mascara impactos presentes e futuros. Aqui e acol, quando realizados, alguns
estudos isolados referentes a diferentes tipos de monocultura indicam ndices
alarmantes de contaminao, como no caso da contaminao de leite materno por
agrotxicos em Lucas do Rio Verde/MT, realizado pela UFMT.
Dadas as condies de relevo em relao quantidade de precipitao anual
para o municpio, a espacializao do territrio canavieiro e s aes prprias ao
agronegcio, tais como as frequentes aplicaes de agrotxicos por meio de avies
de pulverizao, projeta a contaminao por processos de lixiviao e escoamento
superficial, prejudicando a qualidade dos solos, da gua e dos alimentos produzidos.
Durante o processo de anlise dos primeiros resultados, referente origem
dos alimentos disponveis nas bancas do municpio, a constatao do predomnio do
abastecimento alimentar externo aos limites do territrio nos levou a aventar a
possibilidade de traar a rota do abastecimento alimentar para o municpio, de modo
a identificar quais os principais sujeitos responsveis pelo fornecimento de
alimentos. Para tanto, foi necessrio alargarmos nossos horizontes espaciais at a
Central de Abastecimento de Presidente Prudente/SP (CEASA), rgo apontado
pela maioria dos comerciantes locais como principal fonte fornecedora de alimentos
para Flrida Paulista e regio.
10
Cf. THOMAZ JUNIOR, 2009; 2010.
-
23
Principal entroncamento de produtos alimentcios para o abastecimento da
regio, o trabalho de campo junto ao CEASA de Presidente Prudente possibilitou-
nos acesso s informaes referentes aos caminhos percorridos pelos alimentos
desde as reas produtoras at a Central de Abastecimento, o que nos permitiu
vislumbrar a geografia dos alimentos consumidos no municpio de Flrida Paulista.
Por se tratar de um fenmeno intrinsecamente relacionado evoluo e
atividade humana, realizamos uma breve discusso acerca dos significados do
alimento e da alimentao no desenvolvimento histrico do homem, com destaque
para os sujeitos compreendidos entre a terra e o alimento que, pensado a partir da
ascenso do capitalismo, ganha novos contornos e significados, encimados na
misso evangelizadora do capital de transformar tudo e todos em mercadorias11.
11
Cf. THOMAZ JUNIOR., 2009, p. 196.
-
24
1- Procedimentos metodolgicos
O recorte territorial limitado ao municpio de Flrida Paulista compe nosso
primeiro critrio metodolgico, o estudo de caso na tica qualitativa. As
caractersticas de uso e ocupao do solo no espao em questo ilustram de
maneira marcante o fenmeno da expanso agroindustrial canavieira e os efeitos
que advm de tal processo para os pequenos agricultores familiares, assim como a
repercusso na produo e no abastecimento de produtos alimentcios, o que
permite inferncias de carter geral quanto ao fenmeno estudado, assim como sua
generalizao em situaes anlogas (SEVERINO, 2009, p.121).
Para atingir nossos objetivos recorremos tanto a dados e informaes
primrias, tais como observaes, descries, entrevistas e questionrios, como
secundrias, (CEPAGRI; CIIAGRO; EMBRAPA; LUPA, 1995/96 e 2007/2008;
INPE/CANASAT, 2003/2004 a 2009/2010; IBGE/SIDRA, 1996 a 2007, indicadores e
estatsticas da UDOP, UNICA, Ministrio da Agricultura), entre outras.
Com o objetivo de apontar os significados geogrficos circunscritos aos
alimentos disponveis nas bancas de comercializao do municpio de Flrida
Paulista, analisamos o caminho percorrido pelos alimentos desde os pontos de
comercializao at a origem de produo dos mesmos, de modo a delimitar
sujeitos e territrios responsveis pela materializao da condio alimentar local.
Para tanto, foram realizados trabalhos de campo nos pontos de venda de produtos
alimentcios da rea urbana de Flrida Paulista e no CEASA de Presidente
Prudente/SP, principais entroncamentos do abastecimento alimentar para os
moradores do municpio.
De posse das informaes acerca da espacialidade dos alimentos disponveis
para venda nas bancas do municpio, procedemos anlise dos circuitos
responsveis pela (des) articulao do abastecimento alimentar local, o que implicou
na realizao de trabalhos de campo nas pequenas propriedades produtoras que
ainda resistem imposio do formato nico, nas quais buscamos identificar
elementos explicativos quanto ao desencontro entre produtores e comerciantes
locais.
Para alm da constatao do aumento das reas plantadas, buscamos
demarcar as potenciais implicaes da territorializao da cana-de-acar para o
-
25
solo e para a gua, elementos centrais na consolidao do espao da Soberania
Alimentar. Dessa forma, com o auxlio do software gvSIG, elaboramos um mapa
hipsomtrico no qual sobrepomos a rede hidrogrfica do municpio e regio, de
modo a analisar a disperso dos resduos prprios ao modus operandi da
agroindstria canavieira, marcada pela larga utilizao de agrotxicos e maturadores
qumicos que, entendidos a partir do quadro natural em questo, permitem
inferncias quanto ao transporte de resduos por processos de lixiviao e
escoamento superficial.
A elaborao dos produtos cartogrficos necessrios localizao da rea de
estudo, correlao entre relevo e rede hidrogrfica e movimento dos alimentos,
pautou-se na utilizao de bases fornecidas pelo Projeto de Mapeamento
Topogrfico do IBGE e imagens SRTM procedentes do Projeto Brasil em Relevo,
da Embrapa.
Pelo fato de lidarmos com elementos submetidos de forma inextricvel ao
tempo biolgico, a base natural na qual se assentam as atividades agrcolas compe
um dos referenciais imprescindveis ao entendimento da especificidade dos
impactos gerados pelas diversas formas de uso e ocupao do territrio. Assim,
realizamos um breve levantamento acerca das principais caractersticas de clima,
relevo, hidrografia e solos da rea de estudo, o que nos subsidiou com elementos
para inferir quanto aos impactos resultantes da nova equao territorial (quadro
natural + territrio canavieiro), assim como s estratgias espaciais do capital
canavieiro, tendo em vista os requisitos edafoclimticos da cana-de-acar.
A espacializao do territrio canavieiro na escala do municpio e regio foi
analisada por meio das imagens disponibilizadas pelo Projeto INPE/CANASAT,
responsvel identificar e mapear a cana-de-acar atravs de satlites de
observao da terra. Com isso, verificamos a situao geogrfica das reas
monocultoras em relao ao quadro natural em que se d o fenmeno, assim como
em relao s propriedades visitadas.
Pelo fato de nosso objeto de pesquisa no estar restrito ao urbano ou ao
rural, mas na interao reciprocamente vantajosa entre estas dimenses
diferenciadas do espao, fez-se necessria a elaborao de instrumentos de anlise
capazes de captar os principais enunciados relativos ao fenmeno do abastecimento
alimentar no municpio, o que nos levou aplicao de questionrios fechados em
todos os estabelecimentos fixos de comercializao de alimentos, mais a feira-livre,
-
26
realizada s sextas-feiras, de modo a compor uma tipologia dos alimentos
encontrados em relao origem dos mesmos, interna ou externa ao municpio.
Com o objetivo de elaborar uma leitura de conjunto acerca dos principais
significados do fornecimento alimentar na rea urbana do municpio, preparamos
uma tabela onde buscamos ilustrar por meio de cores, o movimento dos alimentos
no espao, de modo a compor uma corografia das frutas, verduras e legumes
encontrados no bojo da geografia compreendida entre a terra e a prateleira, o que
permitiu inferncias quanto ao grau de dependncia alimentar no espao em
questo.
A entrevista com os responsveis pelos rgos pblicos (CATI, Prefeitura
Municipal) e privados (lojas de insumos agrcolas, Sindicato Rural) permitiu avaliar a
participao da esfera pblica nas questes relativas ao campo e a produo e
abastecimento de alimentos no municpio, alm de contribuir com preciosas
informaes quanto localizao dos pequenos produtores que ainda resistem na
atividade agrcola.
Dentre as atividades previstas para a compreenso do fenmeno ao qual nos
propomos desvendar, o trabalho de campo ocupou lugar de destaque, subsidiando-
nos com elementos que, advindos dos sujeitos que vivenciam na prtica a realidade
em questo, traduzem nosso principal referencial na apreenso do objeto de estudo
eleito para anlise na tica qualitativa, abrangendo tanto a pesquisa exploratria
como a explicativa12.
Munidos das informaes acerca da localizao dos principais aglomerados
rurais, pontos onde se encontram localizadas a maior parte das pequenas
propriedades produtoras de alimentos, estabelecemos um primeiro contato com os
agricultores encontrados em campo, de modo a agendar dia e horrio mais
adequados realizao da entrevista propriamente dita, de acordo com a
disponibilidade de cada agricultor.
A diviso das atividades de campo em duas etapas comps um recurso
metodolgico com o qual buscamos contemplar dois principais objetivos: tornar a
entrevista menos distante, por um lado, devido ao impacto causado por pessoas
estranhas chegando de surpresa em um espao cuja dinmica pe em relevo
qualquer elemento alheio aos sujeitos do territrio. Por outro lado, as visitas de
apresentao permitiram a composio de um mapa com a localizao daquelas 12
Cf. SEVERINO, 2009, p. 123.
-
27
propriedades eleitas como representativas da realidade encontrada, de acordo com
nossos critrios metodolgicos, o que facilitou o planejamento das atividades
referentes segunda etapa dos trabalhos de campo, as entrevistas propriamente
ditas.
Dessa forma, procedemos realizao das entrevistas semiestruturadas ou
no-diretivas13 a partir do discurso livre, deixando o informante vontade para
expressar sem constrangimentos suas representaes, balizando discretamente o
dilogo com base nos objetivos propostos. As atividades de Trabalho de Campo
foram realizadas em dois finais de semana, da sexta ao domingo, de modo a
contemplar a rea urbana na sexta-feira e a rea rural no sbado e domingo,
estratgia que nos permitiu dar conta tanto do contexto urbano (rgos pblicos e
privados, feira-livre, aplicao de questionrios fechados nos pontos de venda de
alimentos, etc.) como do rural (observaes, descries, entrevistas, etc.), alm de
facilitar o encontro e o dilogo com os agricultores que, durante os dias teis
concentram-se nas atividades da lavoura.
Com o objetivo de estabelecer uma tipologia das variedades de alimentos
encontrados no espao rural em questo, elaboramos uma tabela a partir das
principais culturas alimentcias encontradas, o que nos auxiliou na descrio
detalhada de todas as culturas praticadas, tanto para subsistncia como para a
comercializao, colocando em relevo uma diversidade de culturas alimentcias
fundamentais manuteno da famlia na terra e que as pesquisas oficiais insistem
em negligenciar.
Face aos limites de operacionalidade das principais definies relativas
Soberania Alimentar, dedicamos um captulo especialmente para a discusso acerca
dos princpios norteadores para uma abordagem geogrfica da capacidade de
abastecimento interno nos limites do territrio em questo, momento de reflexo que
nos orientou metodologicamente nas intervenes em campo, subsidiando-nos com
instrumentos adequados coleta de dados nas condies naturais em que os
fenmenos ocorrem14, durante as pesquisas de campo.
13
Ibidem, p. 125. 14
Ibidem, p. 123.
-
28
2- O campesinato e a Soberania Alimentar: da maneira de viver ao jeito de
produzir
Em face do que (OLIVEIRA, 2001) considera como elementos da produo
camponesa15, elegemos o conceito de campons como ferramenta terica de
abordagem do sujeito social envolto no territrio por ns estudado. Para o autor, a
produo camponesa seria caracterizada por elementos como a fora de trabalho
familiar, a utilizao da parceria, do trabalho acessrio e a propriedade da terra e
dos meios de produo, compondo a produo simples de mercadorias. Assim, a
pertinncia do conceito de campons se justificaria simplesmente pela gnese do
campons enquanto classe, gestado na contradio do modo capitalista de
produo.
Sujeito rodeado de polmicas e muitas vezes negado, o campons e sua
existncia histrica tm fomentado debates em torno da compreenso dos seus
papis na contemporaneidade. Diferentes vertentes tericas analisam um mesmo
personagem a partir de distintos enfoques, tanto para negar como para afirmar a
pertinncia conceitual do campesinato.
Em meio aos pressgios de sua extino a partir da intensificao das
relaes de produo capitalista na agricultura, (THOMAZ JUNIOR, 2009) discute o
processo de diferenciao do campesinato a partir de autores clssicos e
contemporneos.16 Em Lnin (1982) a convivncia da nova agricultura capitalista
com o que descreve como velho sistema de pagamento em trabalho, ou semi-
servido, apresenta-se como obstculo construo do socialismo, enfatizando que
somente com a expanso das relaes capitalistas seria possvel transformar o
campo, por meio da industrializao/mecanizao. A indstria seria responsvel pelo
direcionamento do modo de vida urbano/fabril para o campo, provocando uma
revoluo nas condies de vida das populaes rurais. Posteriormente, com base
na importncia da participao dos camponeses na Revoluo Russa de 1905, rev
suas formulaes argumentando que, os restos do regime servil no campo
resultaram muito mais fortes do que se pensava17.
15
Cf. OLIVEIRA, 2001, p. 55. 16
Lnin (1982), Kautsky (1986), Engels (1981), Chayanov (1974), Oliveira (1991), Abramovay (1992), entre outros. 17
Lnin (1982) p. 340 apud Thomaz Junior, (2009) p. 179.
-
29
Engels, (1981) afirma que ao campons deveria ser reservado o papel de
operrio agrcola, podendo assim contribuir para a revoluo. Na mesma linha de
pensamento, Kautsky, (1986) argumenta que o parcelamento das terras
impossibilitaria a emancipao dos camponeses, o que o faz apostar no sistema
cooperativo como pressuposto para a superao da condio camponesa e a
edificao do socialismo. Nesse sentido, (THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 180) aponta
que, dessa forma:
[...] estava prescrita a adoo de tcnicas modernas, o aumento da produtividade do trabalho, a especializao da produo em determinados produtos, o rebaixamento dos custos de produo, enfim, todos ou quase todos os elementos essenciais ao empreendimento capitalista, em total observncia extino da organizao camponesa.
Em Chayanov, para alm da possibilidade de descamponizao, o processo
de diferenciao atuaria como estratgia de manuteno do modo de vida
campons. Discutindo a economia capitalista, (CHAYANOV, 1981, p. 139) indica a
existncia de exploraes econmicas sustentadas por lgicas fora do modo
capitalista de produo. Internamente ao que denomina economia familiar, o grau
de auto-explorao seria determinado por um equilbrio entre a satisfao da
demanda familiar e a penosidade do trabalho para tal. Assim, para a famlia
camponesa, uma vez percebido um aumento da produtividade do trabalho,
consequentemente haveria uma diminuio do grau de auto-explorao de sua
capacidade de trabalho, sendo a quantidade de produto determinada pelo equilbrio
entre o montante de esforos da famlia e o grau de satisfao de suas
necessidades. Referindo-se a isso, afirma:
[...] alguns estudos empricos demonstram que, em inmeros casos, as peculiaridades estruturais da explorao familiar camponesa abandonam a conduta ditada pela frmula costumeira de clculo capitalista do lucro. (CHAYANOV, 1981, p. 140).
De sujeito social desenhado a partir do seu modo de vida, figura
metamorfoseada do agricultor familiar18, o homem do campo passa a ser visto
enquanto profissional, a par das relaes de produo modernizadas e da adoo e
manuseio de tcnicas que os vinculem ao mercado, transformando modo de vida em
profisso. Em relao aos significados da dicotomia conceitual campons x
agricultor familiar, (THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 194) indica que:
18
Cf. ABRAMOVAY 1998.
-
30
Tamanha rede de articulaes, mediaes e contradies serve para plantar uma formulao ideolgica, com o fim do campesinato, com vistas a colher os frutos muito rapidamente, dado a eficincia dos fundamentos que vinculam a agricultura familiar s relaes tecnolgicas modernas do modelo agroexportador do agronegcio, e que est associado fragilizao e ao desmantelamento da estrutura camponesa.
Atento ao movimento contraditrio que revela e refaz sentidos e significados
do universo do trabalho, o autor assevera que, sendo o capital um processo, este
engendra e reproduz no somente relaes capitalistas, mas tambm recria
relaes no capitalistas de produo.19 Assim, o campesinato, como parte do
processo metablico do capital, absorvido, reproduzido, redimensionado e
recriado pelo capital, havendo a um marcante estreitamento de relaes entre
formas diferentes de expresso do trabalho20, apontando para a necessidade de
considerarmos as diferentes expresses do campesinato21.
No contexto da atual fase de reestruturao produtiva do capital, a constante
mudana no patamar tecnolgico altera procedimentos tcnicos e promove
readequaes nas rotinas de trabalho, redimensionando processos custa do
desmonte de setores inteiros. Do ponto de vista do metabolismo social do capital, a
migrao de atividades laborativas, vnculos territoriais e diferentes formas de
externalizao do trabalho, refletem o que Thomaz Junior, (2009, p. 205) define
como a plasticidade do trabalho, constantemente refeita na materializao das
diferentes expresses da lavra humana.
Em decorrncia disso, estaramos frente a uma cada vez maior dificuldade em
conceituar a classe trabalhadora, composta agora por novas identidades laborais,
territorialmente expressas no rompimento com as predefinies da diviso tcnica
do trabalho. Dessa forma, focamos o campesinato enquanto parte da classe
trabalhadora, a partir da dinmica geogrfica do trabalho e suas mltiplas
territorialidades, que refletem os rompimentos das fronteiras cidade-campo e dos
contedos sociais do trabalho22.
Devido ao fato de ser regida por uma lgica diferenciada daquela do capital, a
diversificao produtiva da unidade camponesa expressa, num primeiro momento,
estratgias para garantir a subsistncia da famlia produzindo o mximo dos gneros
19
Cf. THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 196. 20
Cf. THOMAZ JUNIOR, 2009, loc. cit. 21
Ibidem, p. 203. 22
Ibidem, p. 233.
-
31
necessrios e, noutro, a oferta de alimentos sos e baratos destinados ao consumo
urbano por meio da comercializao do excedente produtivo. Nesse cenrio, tendo
em vista a atual dinmica expansionista da cana-de-acar no municpio e regio,
destacamos a importncia da reflexo em torno das consequncias de tal processo
na conformao do espao agrcola em estudo, de forma a considerar a estrutura
fundiria e a consequente concentrao de terras, par siams da monocultura e do
agronegcio, reavivando debates em torno da questo agrria brasileira.
Para que a produo de alimentos sos e de qualidade voltada aos pequenos
circuitos constitua realidade na vigncia da atual fase de mundializao do capital23,
faz-se necessrio pensar de forma integrada o sistema produtivo (produtor) de
alimentos, considerando tanto a estrutura de produo e o projeto social que lhe
fundamenta, como os objetivos e pressupostos para uma produo voltada aos
consumidores prximos s reas de produo, o que nos remete reforma agrria
atrelada Soberania Alimentar.
Considerada a partir da heterogeneidade produtiva e da multiplicidade de
formas, culturas e prticas componentes do modo de vida campons, vinculamos a
agricultura camponesa aos preceitos de autonomia para a produo, distribuio e
consumo de alimentos em respeito sustentabilidade ambiental, social e
econmica; de acordo com os hbitos alimentares dos povos e da demanda local.
Tal vinculao nos remete ao comportamento da agricultura camponesa em meio ao
processo de incorporao de terras ao empreendimento canavieiro e as implicaes
na destinao de espaos para a produo de alimentos constituintes da cesta
bsica que, atualmente, caracterizam-se cada vez mais como espaos residuais,
repondo debates em torno da necessidade da reforma agrria como pressuposto de
uma sociedade emancipada e soberana.
No Brasil, a estrutura fundiria concentrada marca a distribuio e o acesso
desigual s terras. Fruto da diviso em capitanias hereditrias e sua subdiviso em
sesmarias, a alta concentrao fundiria reflete o direcionamento de interesses
originados como herana colonial. Com a proclamao da independncia e o fim do
regime escravista, a Lei de Terras de 1850 vem para legalizar grandes extenses de
terras, agora sob o jugo dos mecanismos de compra e venda ditados pelo mercado,
23
Cf. CHESNAIS, 2001.
-
32
atravs do pagamento em dinheiro, fato que restringia ou mesmo impossibilitava aos
recm-libertos, o acesso a terra24.
Por conseguinte, o campesinato no contexto do desenvolvimento do modo
capitalista de produo na agricultura brasileira, gestado a partir da crise do
trabalho escravo, o que valeria dizer que o campons fruto da histria atual do
capitalismo no pas25.
Com a evoluo do capitalismo na agricultura e o consequente aumento da
industrializao, o processo urbano-industrial passa a ditar os usos do territrio e a
definir as formas de existncia do trabalho no campo. Nesse sentido, a incorporao
de tcnicas industriais e a adoo de procedimentos do modo industrial de
produo, resultam no estabelecimento do fetiche da modernidade no campo26.
Assim, tudo aquilo que destoa do receiturio prescrito pelo paradigma da
tecnificao agrcola passa a ser visto como atrasado, arcaico ou simplesmente
superado.
Desse modo, o campesinato e sua maneira tradicional de semear a terra com
sementes crioulas, em respeito aos calendrios naturais dos cultivos e rotatividade
da produo, encontra-se ameaado frente s exigncias que vislumbram na sua
relao com o mercado e na incorporao de novas tcnicas o nico caminho para
continuarem existindo, porm, agora, subsumido ao rtulo de empreendedorismo do
agricultor familiar.
A dualidade agricultor familiar x campons, para alm de mera questo
semntica, deixa transparecer os interesses em torno do no reconhecimento do
campesinato enquanto classe, em favor da ampla propagao da figura do
empresrio rural, eficiente e em sintonia com os preceitos do mercado.
De forma diferente, as experincias da agricultura camponesa e a prtica da
policultura, em harmonia com a preservao da diversidade dos ecossistemas e da
biodiversidade, permitiriam o uso de uma variedade de prticas e conhecimentos
tradicionais, alm da autonomia dos povos para decidirem livremente sobre os
vnculos entre a produo agropecuria e os consumidores, com base nos pequenos
circuitos de produo/consumo e na associao da reforma agrria Soberania
Alimentar.
Assim, considerando o circuito produtivo agroalimentar: 24
Cf. OLIVEIRA, 2001, p. 28. 25
Ibidem p. 49. 26
Cf. THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 357.
-
33
[...] desde a produo familiar camponesa e empresarial, passando pelo circuito industrial-processador e pelos mecanismos de comercializao, at chegar aos consumidores finais, podemos atestar que a reforma agrria e a soberania alimentar tm a ver com o conjunto da sociedade, no sendo exclusivas da dimenso agrria ou rural, como habitualmente se apresentam (THOMAZ JUNIOR, 2009, p. 149).
Da produo ao consumo, a satisfao das necessidades de alimentao em
respeito diversidade cultural e produo de alimentos de qualidade destinados
ao abastecimento dos locais prximos, compe uma peculiar geografia produtiva
nas escalas local e regional, responsvel pela produo de uma variedade de
alimentos comercializados em diversos pontos de venda na rea urbana dos
municpios, alm de contriburem para a subsistncia e manuteno da famlia
camponesa.
Sustentado pela conjuntura favorvel tanto na escala nacional como
internacional, o agronegcio canavieiro esboa um aumento cada vez maior das
reas plantadas com cana-de-acar, com reflexos no desencadeamento da disputa
territorial, vindo tona o conflito entre modelos de sociedade distintos.
A atual dinmica expansionista da cana-de-acar encontra-se em estreita
relao com os imperativos da reestruturao produtiva do capital em escala
internacional, projetando uma agricultura amparada no cultivo de grandes extenses
com monocultura e na contnua intensificao e precarizao do trabalho27. Disposta
entre os interstcios do monoplio territorializado, a agricultura camponesa conforma
ilhas em meio ao mar de cana.
Devido ao fato da existncia de uma descontinuidade territorial entre
aquelas mdias e grandes propriedades tidas como adequadas e disponveis
para a expanso da cana-de-acar, o capital canavieiro passa a articular
estratgias de cooptao tambm sobre as pequenas propriedades camponesas,
imprescindveis para a formao do territrio tcnico-logstico do agronegcio
moderno e sua geometria caracterstica, impactando de forma negativa na
conformao de um espao em sintonia com os preceitos da Soberania Alimentar
enquanto paradigma de uma sociedade emancipada.
O conceito de Soberania Alimentar teria surgido no mbito das lutas
promovidas pela Via Campesina desde a segunda metade da dcada de noventa,
momento em que se discutiam novas alternativas para a produo de alimentos. De
27
Cf. THOMAZ JUNIOR, 2009.
-
34
acordo com o Documento Temtico Cinco, produto da Conferncia Internacional
sobre Reforma Agrria e Desenvolvimento Rural, realizada em maro de 2006, na
cidade de Porto Alegre/RS:
O conceito de Soberania Alimentar foi desenvolvido pela La Via Campesina, e trazida para o debate pblico durante a Cimeira Mundial da Alimentao em 1996, e tem sido, desde ento, endossada por uma gama alargada de organizaes da sociedade civil volta do mundo [...] (p. 07).
A Soberania Alimentar implica na defesa do direito dos povos e dos pases
em decidir sobre suas prprias polticas e estratgias de produo, livres das
amarras dos grandes conglomerados agro-qumico-alimentares e destinados ao
abastecimento de suas populaes, de forma que a produo de alimentos seja
garantida em sintonia com a deciso dos povos sobre o que, quando e em quais
condies produziro.
No bojo do capitalismo mundializado, a internacionalizao da economia
brasileira tem levado a uma violenta expanso das culturas de exportao, em
detrimento das culturas destinadas ao abastecimento do mercado interno, para
alimentar a populao brasileira, levando a alterao de hbitos alimentares e
introduo de novos produtos, como bem ilustrativo o caso da soja e da
generalizao de seu leo como produto bsico na alimentao nacional. Assim, o
processo de desenvolvimento do capitalismo na agricultura marcado pela sua
industrializao, entendida internacionalmente por meio das alianas e fuses com a
participao e o beneplcito do Estado (OLIVEIRA, 2001, p. 23-24).
Thomaz Junior (2007b) alerta para o perigo da produo agropecuria
voltada para o mercado, indicando ser a mesma, objeto de controle de poucas
empresas. Tais empresas decidiriam de acordo com seus pressupostos de
acumulao e maximizao dos lucros, o perfil dos alimentos a serem produzidos e
a definio dos hbitos alimentares aos moldes do que define como sociedade
macdonaldizada, em aluso s articulaes promovidas por conglomerados
agroindustriais na tentativa de uniformizar padres de consumo na escala global28,
propondo pensar a Reforma Agrria e a Soberania Alimentar como prerrogativa do
conjunto da sociedade, sintonizada aos enunciados gerais da classe trabalhadora.
Analisada a partir do exposto, a capacidade de abastecimento interno numa
dada parcela do espao deixa transparecer o carter estrutural contido na definio
28
Idem, 2007b, p. 03.
-
35
da Soberania Alimentar, fato geogrfico originado a partir da ativao de pontos e
linhas numa perspectiva de integrao e reciprocidade funcional, o que pressupe
uma abordagem integrada que d conta tanto da cidade como do campo, tanto do
homem como do meio. Da semente na terra ao prato que sacia, o fenmeno da
alimentao humana define o espao da Soberania Alimentar, cuja abordagem
geogrfica permite apreender alcances e delimitar escalas, revelando sujeitos,
territrios e territorialidades.
2.1- Demarcaes tericas para uma abordagem geogrfica da Soberania
Alimentar
Tal qual j asseverara Josu de Castro, dentro desses princpios
geogrficos, da localizao, da extenso, da causalidade, da correlao e da
unidade terrestre, que pretendemos encarar o fenmeno da fome (1961, p.19). O
fenmeno da fome sintetiza a expresso mais nefasta do descompasso entre as
necessidades de suprimento nutricional do homem em relao ao potencial de
satisfao que a diversidade do quadro natural pode oferecer no decurso do
processo histrico. A ausncia de determinados elementos nutritivos nos regimes
habituais de alimentao faz com que se instale a fome parcial, oculta, coletiva,
fome endmica que mata lentamente, mesmo os que comem todos os dias. Parcial
devido ausncia de alguns nutrientes; coletiva pelo fato de atingir toda a
populao.
Se na poca em que Josu de Castro elaborara sua Geografia da Fome o
dilema brasileiro estava posto na disputa entre po ou ao, hoje, devido ao
acentuado movimento de territorializao do capital agroindustrial canavieiro no
campo e a consequente homogeneizao do territrio, sobressai a expresso
atualizada do dilema nacional: po ou lcool, ou como j dissemos anteriormente,
prato ou tanque29.
O tema da fome atrelado ao debate da Soberania Alimentar evidencia a
multidimensionalidade envolta na constituio de padres alimentares que atendam
de maneira satisfatria a nutrio humana, para alm do cardpio macdonaldizado 29
Cf. VALRIO, 2009.
-
36
que procede das articulaes patrocinadas por grandes conglomerados agro-
qumico-alimentares na tentativa de homogeneizar hbitos e prticas alimentares na
escala do globo, resultando em graves anomalias nutricionais.
Da obesidade mrbida anemia aguda, transparecem faces diferenciadas de
um mesmo processo. A industrializao dos hbitos alimentares acompanhada
pari passu pela sua mercantilizao, o que refora o abismo entre os que comem e
os que no, entre os famintos do fast food e seus notrios ndices de carncia
vitamnica e nutricional e aqueles privados do mnimo necessrio sua manuteno
biolgica; famintos na gula ou famintos na fome, uma sociedade de famintos.
A afirmao de um sistema de abastecimento alimentar suficientemente
competente para com o suprimento integral das necessidades nutricionais de uma
dada populao, passa pela construo de sistemas alimentares autnomos,
soberanos, que assegurem a satisfao das necessidades na linha direta de deciso
das populaes, onde a terra de trabalho represente mais que um pedao de terra,
um modo de vida que reflete a inseparabilidade entre um campo vivo e um prato
cheio.
Em texto anterior (VALRIO, 2009), ao discutirmos os efeitos do aumento das
reas plantadas com cana-de-acar para a produo de alimentos, demarcamos
alguns limites relacionados a dimenso terico-conceitual envolta na definio das
principais caractersticas da produo de alimentos direcionada ao abastecimento
dos locais prximos e de acordo com as prticas e hbitos tradicionais, projetada no
conceito de Soberania Alimentar.
Em busca de respostas s questes originadas a partir dos limites colocados
com a ausncia de uma definio geogrfica da Soberania Alimentar, propomo-nos
aqui a este desafio de gigante. Longe de acreditar na possibilidade de definies
prontas e acabadas ou mesmo em resolver a questo, buscamos to somente
demarcar limites e possibilidades para avanar nas respostas, de sorte que a dvida
e o questionamento compuseram eixo central no debate aqui proposto,
possibilitando reunir elementos para propor uma abordagem geogrfica da
Soberania Alimentar, o que nos remete s principais categorias de anlise da
Geografia como instrumental privilegiado de estudo e reflexo.
2.1.1- O espao da Soberania Alimentar
-
37
De acordo com a formulao de Santos, (2002) o espao constitui um
conjunto indissocivel de sistemas de objetos e sistemas de aes, considerados
numa totalidade solidria e tambm contraditria, onde a histria acontece por meio
da interao entre tais sistemas, ou seja:
De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se do as aes e, de outro lado, o sistema de aes leva criao de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. assim que o espao encontra a sua dinmica e se transforma (SANTOS, 2002, p. 63).
Com o argumento de se tratar de uma necessidade epistemolgica, o autor
diferencia a paisagem e o espao apontando que, enquanto a paisagem refere-se ao
conjunto de formas expressas nas heranas que representam as sucessivas
relaes localizadas entre homem e natureza, o espao contempla tais formas
acrescidas da vida que as anima. A configurao territorial, muitas vezes utilizada
em substituio paisagem, expressa o conjunto de elementos naturais e artificiais
que fisicamente caracterizam uma rea, sendo a paisagem uma poro da
configurao territorial possvel de abarcar com a viso. Assim,
No espao, as formas de que se compe a paisagem preenchem, no momento atual, uma funo atual, como resposta s necessidades atuais da sociedade. Tais formas nasceram sob diferentes necessidades, emanaram de sociedades sucessivas, mas s as formas mais recentes correspondem a determinaes da sociedade atual. (SANTOS, 2002, p. 104). (grifos do autor).
Numa perspectiva geogrfica de abordagem, a Soberania Alimentar se
apresenta, por um lado, pela heterogeneidade da configurao territorial expressa
na diversidade de elementos naturais e artificiais que compe um dado territrio em
relao forma de uso que o caracteriza e, por outro, devido existncia de pontos
e linhas30 articuladas em forma de rede de modo a compor um sistema territorial
capaz de abastecer a demanda interna por alimentos. Assim considerada a
Soberania Alimentar, impem-se questes de operacionalizao escalar, exigindo
reflexo e aprofundamento. No mbito operacional, como definir a escala de
constituio da Soberania Alimentar? Qual seria sua morfologia? E o mtodo de
abordagem?
30
Referimo-nos aos pontos enquanto unidades produtivas de gesto familiar, por um lado, e unidades de distribuio e consumo prximas s reas de produo, por outro; linhas (materiais e imateriais) representadas
pelas estradas, rodovias, rios e demais acessos que caracterizam a fluidez fsica do territrio, alm das relaes econmicas, sociais e polticas capazes de articular o territrio e conferir-lhe unidade e soberania nas determinaes sobre agricultura e alimentao.
-
38
Desse modo, propomos a abordagem geogrfica da Soberania Alimentar
como forma de identificar escalas e sistemas territoriais capazes de consolidar o
abastecimento alimentar dos homens e mulheres que constituem um territrio
soberano, considerado aqui como o conjunto de aes e relaes que permitem o
predomnio do movimento centrpeto sobre o centrfugo numa parcela estabelecida
do territrio (HAESBAERT, 2004, p. 123).
Ao discutir o conceito de territrio e seus componentes formadores,
Haesbaert (2004) recorre obra de dois filsofos franceses31 para fazer a leitura do
social desde o desejo e da, a passagem do desejo ao poltico; o desejo como uma
fora ativa primria que requer um agenciamento, pois o desejo vem sempre
agenciado. Nesse sentido, o desejo cria territrios, pois compreende uma srie de
agenciamentos que:
[...] so, assim, moldados nos movimentos concomitantes de territorializao e desterritorializao. Todo agenciamento territorial e duplamente articulado em torno de um contedo e uma expresso, reciprocamente pressupostos e sem hierarquia entre si. Um territrio, portanto, pode ser visto como o produto agenciado de um determinado movimento em que predominam os campos de interioridade sobre as linhas de fuga [...] (HAESBAERT, 2004, p. 143).
O territrio constitui, assim, um ato, uma ao, uma relao, um movimento
de territorializao e desterritorializao, um ritmo, um movimento que se repete e
sobre o qual se exerce um controle. como se tomssemos como exemplo a
dinmica territorial do trabalho, vista a partir da contradio capital x trabalho e os
desafios para o exerccio do controle social sobre toda a sociedade, e toda a ordem
de conflitos e tensionamentos vigentes (THOMAZ JUNIOR, 2009).
Neste ponto, o conceito de territrio expe pressupostos para a efetivao da
soberania alimentar. Para que haja a Soberania Alimentar, faz-se necessrio a
soberania territorial, ou seja, o controle endgeno do movimento de territorializao
e desterritorializao responsvel pela dinmica territorial no espao e no tempo,
constituindo uma rede entre pontos dispersos num dado territrio, articulada por
linhas (materiais e imateriais) que possibilitam tanto o abastecimento alimentar,
como a ativao de tais pontos enquanto unidades produtivas de gesto familiar.
Curien (1988) define rede como toda infraestrutura que permite o transporte
de matria, energia ou informao, inscrita num territrio caracterizado pela
31
Cf. GUATTARI, 1986, p. 316 apud HAESBAERT, 2004, p. 118.
-
39
topologia dos seus pontos de acesso ou pontos terminais, seus arcos de
transmisso, seus ns de bifurcao ou de comunicao, pois, atravs das redes,
a aposta no a ocupao de reas, mas a preocupao de ativar pontos e linhas,
ou de criar novos (SANTOS, 2002, p. 262).
A paisagem revela formas que permitem adentrar o visvel e transcender as
aparncias, caracterizando uma especfica distribuio de formas-objetos32, porta de
entrada para identificar e qualificar os sujeitos que delimitam territrios e
territorialidades, de modo a expor as estruturas que condicionam o funcionamento
do espao, sua dinmica, seu contedo e significados sociais.
O territrio projeta o alcance das decises soberanas numa dada parcela do
espao, possibilitando demarcar escalas de constituio de economias alimentares
locais, territrios soberanos onde impera a preservao das funes vitais da
reproduo individual e societal, em sintonia com o estabelecimento de um sistema
de trocas compatvel com as necessidades requeridas (ANTUNES, 1999, p. 19-20).
Sob a gide da Soberania Alimentar, o territrio expressa a materializao
das mediaes de primeira ordem33, aproximando o trabalhador dos meios de
produo numa totalidade scio territorial pensada para o homem, em oposio
lgica de subordinao estrutural do trabalho ao capital.
A apreenso da lgica de funcionamento expressa na dinmica social
materializada no espao abre as portas para entendermos as vias de constituio
dos elementos que compem um sistema alimentar e o alcance de suas
determinaes (escalas), o que permite avaliar sua soberania ou sua dependncia
em relao ao mercado.
Com isso, por meio da operacionalizao terico-conceitual das principais
categorias de anlise da Geografia, esperamos poder avanar na leitura geogrfica
da Soberania Alimentar, de modo a descrever paisagens, delimitar territrios,
identificar formas e funes que permitam apreender o espao na dimenso das
relaes necessrias para a afirmao do abastecimento alimentar prximo s reas
de produo e em sintonia com a soberania dos territrios.
2.1.2- Soberania e Segurana Alimentar: uma distino necessria
32
Cf. SANTOS, 2002, p. 103. 33
Cf. ANTUNES, 1999, p. 19-20.
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40
Originado no mbito dos embates promovidos pela Via Campesina desde
1996, momento em que se discutiam novas alternativas para a produo de
alimentos, o conceito de Soberania Alimentar34 define o direito de todos os povos ou
pases para poderem decidir sobre suas prprias polticas de agricultura e
alimentao, de forma a privilegiar a produo local para o abastecimento das reas
prximas e, assim, garantir a produo de alimentos na linha direta da deciso dos
povos, da classe trabalhadora sobre o que, como, quanto e em quais condies se
produzir (THOMAZ JUNIOR, 2008c, p. 08). Desse modo,
A Soberania Alimentar supe novas relaes sociais, libertas das determinaes do capital, portanto da opresso e das desigualdades entre homens e mulheres, grupos raciais, classes sociais, sendo que o direito de acesso terra, gua, aos recursos pblicos para produzir, s sementes e biodiversidade seja garantido para aqueles que nela produzem os alimentos, social e culturalmente definidos pelos trabalhadores, ou seja, produtores e consumidores (THOMAZ JUNIOR, 2008c, p. 25).
Com base em documento preparado pelo Comit Internacional de
Planejamento para a Soberania Alimentar (IPC) a pedido da Organizao das
Naes Unidas para a Alimentao e a agricultura (FAO), entendemos a Soberania
Alimentar enquanto conjunto de polticas e aes necessrias para que a reforma
agrria e o desenvolvimento rural possam verdadeiramente reduzir a pobreza e
cumprir o direito alimentao, terra, elaborao de polticas prprias de
agricultura e alimentao em respeito aos territrios indgenas, pescadores
tradicionais, etc. e o estabelecimento de prioridade para a produo alimentar
voltada aos mercados locais e nacionais35.
O sculo XXI nos pe frente a uma enorme variedade de novos desafios,
alguns, encimados em contradies que remontam ao perodo colonial. Expresses
como: mundo rural em crise, crise no campo, crise de alimentos, aumento da
fome no mundo, expem traos das atuais polticas de articulao neoliberal onde
instituies financeiras internacionais como o Banco Mundial (BM), o Fundo
Monetrio Internacional (FMI) e a Organizao Mundial do Comrcio (OMC),
impem um conjunto de polticas macroeconmicas e setoriais que tem conspirado
para eliminar a viabilidade econmica dos pequenos agricultores e camponeses.
Tais polticas tm atuado no sentido de fomentar a liberalizao do comrcio e a
34
Para mais detalhes, ver: Conferncia Internacional sobre Reforma Agrria e Desenvolvimento Rural. 35
Ibidem, p. 04.
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41
consequente inundao dos mercados locais com alimentos importados abaixo do
preo mnimo praticado, contra os quais os pequenos agricultores no podem
competir, o que resulta no desmonte da produo agrcola direcionada a alimentar
as pessoas prximas s reas de produo36.
No bojo da abrangncia conceitual pretendida na definio da Soberania
Alimentar, estaria ainda a prioridade da produo agrcola local, o acesso dos
camponeses e daqueles agricultores sem terra aos recursos gua, terra, sementes,
crdito, acompanhamento tcnico, a criao de mecanismos de proteo aos preos
agrcolas oriundos da importao de alimentos, alm do reconhecimento e
valorizao dos direitos e do papel das mulheres agricultoras no desempenho de
funes primordiais na produo agrcola e na alimentao, de modo a desenvolver
economias alimentares locais baseadas na produo e processamento local [...]37.
Assim pensada,
A soberania alimentar assegura o direito de cada pessoa a uma alimentao localmente produzida e nutritiva, a um preo justo, segura, saudvel, culturalmente apropriada e, a uma vida com dignidade (Conferncia Internacional sobre Reforma Agrria e Desenvolvimento Rural, p. 09). Grifo nosso
Para Thomaz Junior (2008c), faz-se necessria a distino entre segurana
alimentar e Soberania Alimentar, sendo que a primeira estaria relacionada com a
obrigao dos Estados nacionais em garantir o acesso aos alimentos em
quantidades suficientes, sem se por em questo a origem dos mesmos, enquanto a
segunda implicaria na defesa do direito dos povos e dos pases em definir suas
prprias polticas e estratgias de produo de alimentos destinados ao
abastecimento de sua populao (p. 08), o que configura a Soberania Alimentar
como um conceito abrangente que sintetiza uma complexa trama de relaes na
materializao de um espao em consonncia com a soberania dos territrios numa
peculiar geografia produtiva, expresso geogrfica da Soberania Alimentar.
Longe de trazer soluo para os problemas relacionados fome no mundo, o
conceito de segurana alimentar tem alimentado, na verdade, a circulao de
mercadorias na escala do globo. Convertida em mercadoria, a alimentao das
pessoas perde o carter de centralidade contido na produo de alimentos, em favor
36
Ibidem, p. 05. 37
Ibidem, p. 08.
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42
da reproduo e ampliao permanente do mercado e do capital, pelo fato de sua
realizao estar condicionada circulao das mercadorias.
que ao imperialismo econmico e ao comrcio internacional a servio do mesmo interessava que a produo, a distribuio e o consumo dos produtos alimentares continuassem a se processar indefinidamente como fenmenos exclusivamente econmicos dirigidos e estimulados dentro dos seus interesses econmicos e no como fatos ligados aos interesses da sade pblica (CASTRO, 1961, p. 14).
Travestido na panaceia da segurana alimentar sombra da dita Revoluo
verde, consolida-se o desmonte deliberado das prticas camponesas de policultura
em sintonia com a especializao produtiva como expresso de um progresso em
que a circulao constrange outros objetivos menos nobres da produo agrcola,
como o abastecimento alimentar local, de modo que o abastecimento interno de
alimentos passa a depender de constantes importaes, reafirmando o mercado
como o lcus privilegiado de mediao entre produtor e consumidor.
Segurana alimentar e Soberania Alimentar so, assim, reciprocamente
excludentes. Enquanto a soberania traz a tona o sentido de domnio interno das
determinaes de agricultura e alimentao, a segurana reflete os interesses em
alimentar a circulao das mercadorias em favor da reproduo ampliada do capital,
o que se traduz na emergncia de pelo menos dois paradigmas38: o da terra de
negcio e o da terra de trabalho 39; ou ainda: a terra enquanto sustentculo de
produo e reproduo de mais-valia ou como expresso de um modo de vida que
implica na possibilidade da composio de um sistema territorial alimentar que
integra cidade e campo numa perspectiva de interao e reciprocidade. Assim,
Em muitos casos, e at dos principais, os fatores positivos que favorecem a agropecuria brasileira como negcio, constituram precisamente, como constituem ainda, as circunstncias negativas responsveis pelo baixo nvel de vida de nossa populao rural (PRADO JUNIOR, 1981, p. 24-25).
A Soberania Alimentar implica superao, ruptura e restabelecimento do
poder dos homens e mulheres de produzir o prprio alimento, em sintonia com
38
Cf. KHUN (2007, p. 30) indica que, alguns exemplos aceitos na prtica cientfica proporcionam modelos dos quais brotam as tradies coerentes e especficas da pesquisa cientfica. Desse modo, guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direes (Ibidem, p. 147). 39
Do ponto de vista dos grandes proprietrios de terra, a quem Prado Jr. denominara homens de negcio, a utilizao da terra constitui um negcio como outro qualquer; de forma diferente, para a massa de trabalhadores camponeses, proprietrios ou no, a terra e as atividades que nela se exercem constituem a nica fonte de subsistncia para eles acessvel (PRADO JUNIOR, 1981, p. 22).
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43
hbitos e prticas culturais originados a partir de uma rica trama de relaes que
particularizam cada lugar no decorrer do processo histrico, dando origem a prticas
alimentares com estatuto territorial especfico. Dessa forma, cristaliza-se no iderio
popular uma srie de associaes entre produtos alimentares e culinrias, em
relao a esta ou aquela regio.
Na esteira da segurana alimentar, o nico compromisso com o mercado e
a reproduo ampliada do capital, no deixando margem manuteno de sistemas
alimentares locais, minados com a liberalizao e inundao dos mercados com
alimentos importados abaixo do preo praticado, fato que inviabiliza a produo e
coloca em risco uma diversidade de culturas alimentares locais, projetando um
futuro sombrio no que se refere Soberania Alimentar enquanto autonomia de cada
povo para fazer da terra bero de uma sociedade emancipada e autnoma nas
decises sobre agricultura e alimentao.
Tal qual a soberania enquanto poder de deciso que emana independncia, a
Soberania Alimentar pressupe a autonomia de cada povo para produzir de acordo
com hbitos e prticas culturais de agricultura e alimentao, em sintonia com
sistemas alimentares constitudos na diversidade de combinaes resultantes da
heterogeneidade do quadro natural em relao ao processo histrico-social que os
caracterizam, de forma a permitir a manuteno/restaurao do poder de
produzir/consumir o prprio alimento, na linha direta da expresso cultural que
caracteriza cada lugar, cada modo de vida, cada conjunto especfico de sistemas de
objetos e sistemas de aes40 que se materializam na paisagem, configuram
territrios e animam o espao.
2.1.3- Identificar limites para avanar no debate
Conceito largamente utilizado nos ltimos anos para tratar questes relativas
crise de alimentos e fome no mundo, a Soberania Alimentar, definida segundo
algumas das principais conceituaes disponveis, encontra limites quando pensada
de forma operacional. Ou seja, considerada enquanto expresso de mltiplas
relaes no espao torna-se imperiosa a demarcao de como se apresentaria a 40
Cf. SANTOS, 2002.
-
44
Soberania Alimentar segundo as vrias escalas (local, regional, nacional etc.), assim
como em relao aos seus principais elementos constituintes na dimenso do
territrio, ou seja, sua configurao territorial, questes que ficam em aberto e
demandam reflexo e esforo terico para fazer avanar o debate.
Interessados em compartilhar os fundamentos da Soberania Alimentar na
construo de polticas alternativas de acesso terra e combate fome, diversos
Fruns, Conferncias e Reunies tm se dedicado ao assunto41, em especial
aqueles vinculados Via campesina. Vejamos algumas consideraes:
A soberania alimentar um direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessveis, produzidos de forma sustentvel e ecolgica, e seu direito de decidir seu prprio sistema alimentcio e produtivo. Isto coloca aqueles que produzem, distribuem e consomem alimentos no corao dos sistemas e polticas alimentrias, por cima das exigncias dos mercados e das empresas. [...] Nos oferece uma estratgia para resistir e desmantelar o comrcio livre e corporativo e o regime alimentcio atual, e para ENCAUZAR os sistemas alimentrios, agrcolas, pastoris e de pesca para a prioridade das economias locais e os mercados locais e nacionais [...] (DECLARAO DE NYLNY, 2007). Grifo nosso
Soberania alimentar o direito reclamado pelos movimentos sociais rurais, a nvel mundial, de todos os povos, pases ou unies de estados para poderem definir as suas prprias polticas de agricultura e alimentao, sem imposies de polticas por parte de agncias multilaterais nem nenhuma venda abaixo dos preos de custo (dumping) nos seus mercados locais, por pases terceiros (Conferncia Internacional sobre Reforma Agrria e Desenvolvimento Rural, 2006, p. 07). Grifo nosso
As vrias definies acerca da Soberania Alimentar expressam caractersticas
em comum quanto aos seus pressupostos, de tal forma que, o direito dos povos a
alimentos nutritivos e culturalmente adequados, o direito de cada pessoa a uma
alimentao localmente produzida e nutritiva, implica por em relevo os elementos
que estruturam a Soberania Alimentar como um direito inalienvel de todos os
povos, comunidades ou pases de produzir alimentos destinados ao abastecimento
dos locais prximos, abrangendo produo, circulao e consumo numa perspectiva
de totalidade territorial.
Para Santos, (2002) a totalidade compreende o conjunto de todas as coisas
e de todos os homens, em sua realidade, isto , em suas relaes, e em seu
41
Cimeira Mundial da Alimentao, Roma/Itlia, 1996; Frum Mundial de Soberania Alimentar, Havana/Cuba, 2001; Conferncia Internacional sobre Reforma Agrria e Desenvolvimento Rural, Porto Alegre/Brasil, 2006; Frum mundial de Soberania Alimentar, Selingue/Mali, 2007, entre outros.
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45
movimento42, assim, o seu conhecimento pressupe anlise e a anlise pressupe
sua diviso, ficando subentendida a ideia de que a totalidade comporta um conjunto
indissocivel de totalidades, produto de combinaes especficas em que as
variveis do todo se encontram de forma particular43.
A Soberania Alimentar seria, nesse sentido, uma totalidade dinmica que se
afirma modelando um subespao do espao global 44, sntese de mltiplas relaes
expressas desde uma unidade familiar de produo, quando a maior parte dos
alimentos consumidos tem origem interna propriedade, passando pela
comunidade, na medida em que os limites territoriais compreendem o abastecimento
alimentar a partir de um conjunto de unidades de produo demarcadas numa dada
poro do territrio, sem com isso abranger todo o municpio, at a escala do
municpio propriamente dito, quando do predomnio do abastecimento interno em
relao ao externo.
Neste exerccio terico de identificao escalar da Soberania Alimentar,
temos, num primeiro momento, aquilo que denominaremos escala primria de
constituio, definida a partir do predomnio do movimento centrpeto em relao ao
centrfugo numa determinada configurao territorial, expressa por meio da
capacidade de articulao e coeso entre, por um lado, produtores familiares ligados
produo alimentar e, por outro, centros de consumo prximos s reas de
produo, na proporo do potencial de transmisso de matria e energia das redes
(materiais e imateriais) existentes.
A abordagem escalar da capacidade de abastecimento interno de uma dada
populao na escala imediatamente posterior quela do municpio, impe quantificar
e qualificar o nmero de pontos potencialmente habilitados na produo de
alimentos no bojo da policultura, assim como a fora de ligao entre pontos e entre
pontos e linhas, de modo a avaliar o alcance das determinaes soberanas no que
se refere s decises sobre agricultura e alimentao.
Considerada a partir do exposto, a escala de abordagem da Soberania
Alimentar pode ser definida de acordo com o alcance de tais determinaes
soberanas at o limite da capacidade de articulao entre pontos e entre pontos e
linhas, definindo a territorialidade da soberania: local, zonal, regional, nacional, etc.,
o que configura a Soberania Alimentar como fato geogrfico expresso numa 42
Cf. SANTOS, 2002, p. 116. Grifo nosso 43
Ibidem, p. 125. 44
Cf. SILVEIRA, 1993, p. 204-205 apud SANTOS, 2002, p. 125.
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complexa trama de relaes scio territoriais, possveis de serem apreendidas por
meio da operacionalizao terico-conceitual das principais categorias de anlise da
Geografia.
Por meio da abordagem geogrfica da Soberania Alimentar possvel
mapear os usos do territrio de modo a analisar a diferenciao das