Algumas notas sobre demografia, terras e elites no ... · no Recôncavo da Guanabara do século...
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Revista Latino-Americana de História
Vol. 3, nº. 11 – Setembro de 2014
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Algumas notas sobre demografia, terras e elites
no Recôncavo da Guanabara do século XVIII
Victor Luiz Alvares Oliveira
Resumo: O texto tem como objetivo levantar algumas questões demográficas nas relações
entre os indivíduos na freguesia de Jacarepaguá, situada no recôncavo da cidade do Rio de
Janeiro. Neste sentido procura-se analisar as implicações da demografia nas relações sociais
que caracterizavam um grupo enquanto elite naquela região, tendo como base questões sobre
a propriedade da terra e o acesso à mão de obra. Para tratar destas questões o estudo conta
com um suporte composto por relatórios oficiais, visitações paroquiais e testamentos dos
fregueses referentes ao século XVIII, importantes fontes para se conhecer as informações
relacionais e demográficas da época.
Palavras-chave: Demografia – Elites – Recôncavo da Guanabara.
Abstract: This paper has the aim to raise some questions about demography and its
interference in the relationship between individuals at Jacarepaguá, a catholic parish in the
surroundings of the Rio de Janeiro colonial city. In this sense, it seeks to analyze the
implications of demography in social relations that characterized elite as a group in that
region, based on issues of land ownership and the access to labor. To address these issues the
study has a support consisting of official reports, parish visitations and wills of the local
population for the eighteenth century, important sources to meet the information and
relational demographic of the time.
Key words: Demography – Elites – Rio de Janeiro rural environs.
A nova igreja de Nossa Senhora do Loreto de Jacarepaguá estava quase pronta em
1737. Construída para ser a igreja matriz da freguesia, o edifício original do século XVII já
estava em condições precárias, havendo a necessidade de se construir um novo templo para os
fiéis. Com o esforço dos fregueses, que contribuíram para a construção da nova igreja, ela
conseguiu ser finalizada, faltando somente a capela mór que ainda estava por fazer. Esta obra,
Mestrando em história social pelo Programa de Pós Graduação em História Social da UFRJ. Bolsista do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq. Contato: [email protected].
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porém, parecia ser um obstáculo maior do que a boa vontade da população local. Por isso o
pároco da freguesia suplicou ao rei novas contribuições para o término da capela:
Diz o Padre Antonio de Sousa Moreira, vigário colado na freguesia de N. S.
do Loreto de Jacarepaguá do Bispado do Rio de Janeiro que tendo-se feito a
Igreja da dita Senhora com a ajuda dos fregueses, além da esmola, que vossa
majestade foi servido dar-lhes, se acha a capela mór por fazer, e como aquele
povo é muito pequeno, que somente tem cento e cinquenta e seis fogos, e
não podem pela sua pobreza concorrer para mais do que tem dado.
(ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, Rio de Janeiro, 22 de
setembro de 1734. Caixa 38, Doc. N.º 8745-8747).
O argumento utilizado pelo pároco era, de fato, pertinente. A freguesia de Nossa
Senhora do Loreto de Jacarepaguá era uma das freguesias rurais do entorno da cidade do Rio
de Janeiro que, apesar de pontilhada por algumas fazendas e engenhos, era marcada por uma
baixa ocupação populacional no século XVIII. A região começou a experimentar a
colonização portuguesa já no século XVI, quando as primeiras sesmarias foram concedidas e
os primeiros engenhos montados. Neste movimento de colonização participaram algumas
famílias que viriam a se distinguir como as melhores famílias da terra, a chamada “nobreza da
terra”. Estas famílias, responsáveis em boa parte pela construção dos engenhos cariocas nos
primeiros séculos de colonização, construíram também a sua distinção social pautada no
discurso do serviço ao rei, com o qual buscavam alcançar mercês na forma de sesmarias,
privilégios ou ocupação de ofícios régios. Eram famílias que participaram da conquista da
cidade expulsando os franceses e índios bravos no século XVI e que também no século XVII
contribuíram para a retomada de Angola aos quadros do império português, dando exemplos
da sua distinção e serviço para com a Coroa real (FRAGOSO, 2003).
Este texto tem como objetivo analisar as relações de uma das famílias da nobreza da
terra de Jacarepaguá com as pessoas comuns desta mesma freguesia, tendo como pano de
fundo o desenvolvimento da população local e as suas possíveis interferências nestas relações,
principalmente no que diz respeito à organização produtiva dos engenhos e no prestígio social
de uma família de mando tradicional na freguesia. Para tanto, é importante iniciar tendo em
mente o desenvolvimento demográfico da paróquia.
A primeira informação sobre a população de fregueses da qual disponho data de pouco
tempo depois de 1661, quando foi criada a paróquia de Jacarepaguá. Trata-se de uma
visitação paroquial do ano de 1687 encontrada no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de
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Janeiro. Apesar de não ficar claro no documento, acredito que esta visita pastoral
pode ter sido motivada pela elevação do Rio de Janeiro à diocese em 1676, tendo como
intenção conhecer melhor o estado das almas no momento em que a nova instituição
começava seus trabalhos. Não por menos a visita conta com informações que abrangiam a
parte sudeste, sul e algumas do norte da América portuguesa (Vitória, Porto Seguro, São
Paulo e entre outras), área de responsabilidade da nascente diocese. A partir desta visitação
foi possível recuperar algumas estimativas demográficas para as freguesias do Rio de Janeiro:
Tabela 1: Fogos e População segundo visita de 1687.
Sé Candelária Irajá Jacarepaguá Campo Grande Marapicu
Fogos 650 600 200 186 70 65
Pessoas 3.500 3.500 1.800 400 313 396
Nota: as regiões de Campo Grande e Marapicu ainda eram capelas curadas na época, se separando das
freguesias para melhor administrar os sacramentos pelo território.
A população de Jacarepaguá ao final do século XVII ainda era ínfima se comparada
com outras freguesias. Até mesmo capelas curadas como o seu vizinho Campo Grande
possuía população próxima da sua. A baixa estimativa populacional indica que provavelmente
os fogos (unidades familiares) eram compostos por poucos integrantes. Dividindo o número
de pessoas pelo número de fogos encontramos uma média de 2,15 pessoas por fogo em
Jacarepaguá. Muito provavelmente o visitador não levou em consideração os escravos na
contagem, ao contrário do que fez em algumas freguesias como a de São Gonçalo, aonde
distinguiu os 250 fogos entre as 800 pessoas livres e mais 700 escravas. De qualquer forma a
estimativa condiz com uma freguesia que, apesar de crescente, só havia sido oficializada fazia
poucos vinte e seis anos e ainda engatinhava. Demonstração disso era a porcentagem da
população de Jacarepaguá no total da capitania: os seus 400 habitantes representavam cerca
de 2,1% das 18.578 pessoas que viviam em toda a capitania do Rio de Janeiro em 1687
segundo os dados da visitação deste ano.
Em meados do século XVIII, como visto logo no início do texto, o pároco da freguesia
contava 156 fogos no ano de 1734, apresentando portanto uma redução se comparado com os
cálculos de 1687. Não fica clara a razão deste retraimento populacional entre um ano e o
outro, no entanto é possível que ele seja interferência do descobrimento do ouro nas regiões
de Minas Gerais que atraiu indivíduos de várias partes da América Portuguesa, incluindo as
freguesias do recôncavo da Guanabara. Caminhando o século XVIII, porém, a tendência seria
a de crescimento, como mostra a relação das freguesias feita a pedido do vice-rei Marquês de
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Lavradio e concluída em 1779. Nela encontramos a freguesia de Jacarepaguá com
198 fogos e oito engenhos de açúcar instalados. Ao final do século XVIII o recôncavo do Rio
de Janeiro estava mais povoado se comparado com o final do século anterior. Quem dá
indícios desta mudança é a visitação do Monsenhor Pizarro realizada em 1794, que nos legou
informações abrangentes de várias freguesias do entorno da Guanabara. Nos registros
deixados pelo visitador encontram-se as seguintes estimativas:
Tabela 2: Fogos e População segundo visita do Monsenhor Pizarro em 1794.
Irajá Jacarepaguá Campo Grande Guaratiba Jacutinga Marapicu
Fogos 274 224 314 341 343 166
Almas 2.854 1.700 3.243 2.851 2.340 1.534
Engenhos 12 8 14 6 8 4
A tendência geral no período entre a visitação de 1687 e a de 1794 é de crescimento
populacional das freguesias rurais. Pizarro adverte ainda sobre Jacarepaguá que o número de
pessoas na verdade excedia a sua estimativa, pois muitas não constavam no rol de fregueses
da paróquia que ele deve ter usado como fonte para o seu relatório (ARAÚJO, 2008, tomo I,
p.44). Apesar do crescimento significativo da freguesia a sua população ainda tinha pouco
peso no total da capitania. Suas 1.700 almas representavam agora aproximadamente 1,75% do
total da população das freguesias e vilas rurais do Rio de Janeiro, que em finais do século
XVIII alcançaram significativos 96.804 habitantes segundo os números da visitação de
Pizarro. Portanto, apesar do crescimento populacional da região de Jacarepaguá, nota-se que
ela ainda era uma região pouco povoada. Se tomarmos a última estimativa de 1.700 habitantes
dividida entre o espaço da freguesia, que seria de 286,3 km², teriamos uma estimativa
baixíssima de aproximadamente 5,9 habitantes por km² em 1794 1. Obviamente que todos
estes números são apenas aproximações, mas que nem por isso deixam de apontar para uma
região que era parcamente povoada. Para efeitos de comparação basta lembrar que pela
mesma época, no ano de 1799, nasceram 2.130 pessoas somente nas freguesias urbanas do
Rio de Janeiro, enquanto nestas mesmas freguesias morreram 2.296 pessoas segundo o
Almanaque Histórico da cidade feito para aquele ano. A dimensão populacional de
Jacarepaguá era realmente pequena se comparada com o desenvolvimento populacional
urbano, sugerindo a imagem de uma freguesia de extensa área mas com uma baixa densidade
demográfica.
1 Os cálculos foram realizados tendo em vista o número das almas e os limites da feguesia descritos por Pizarro,
assim foi possível reconstituir aproximadamente a área da freguesia com o programa GoogleEarth (disponível
em: http://www.google.com/earth/, acesso em: 30/09/2013).
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Foi em meio a esta pequenina população que veio a crescer a família
Sampaio e Almeida, cujos primeiros integrantes lutaram na conquista da cidade e apareceram
como uma das primeiras famílias a se fixar na freguesia de Jacarepaguá (RUDGE, 1983).
Antônio de Sampaio, o primeiro representante português, lutou ao lado do governador Mem
de Sá na expulsão dos franceses e por isso conseguiu sesmarias e ainda ocupar alguns cargos
na Câmara da cidade (BELCHIOR, 1965). No decorrer do século XVII e XVIII outros
integrantes da família ocupariam cargos na Câmara e conseguiriam patentes militares como os
postos de capitão e alferes na milícia local, demonstrando que o prestígio da família
continuava assegurando benesses e era reconhecido pelos fregueses de Jacarepaguá. Se
observarmos os testamentos da região podemos notar algumas relações desta família com
outras pessoas da pároquia que se desdobram para questões sobre a sua posição de potentados
locais.
Com base em dois livros de óbitos da freguesia de Jacarepaguá (livro de Óbitos de
1734 -1796 e Livro de Óbitos de 1796-1829) foi possível recuperar 55 testamentos entre os
anos de 1734 até 1800. Os testamentos eram instrumentos relacionados com a salvação da
alma aonde o testador dispunha de 1/3 dos seus bens para gastar com o seu enterro, missas
pela sua alma ou mesmo doações e esmolas para quem quisesse. Portanto, era uma parte da
sua riqueza da qual podia dispor livremente, ao contrário dos 2/3 que já estavam
comprometidos com os herdeiros necessários (seu conjugê ou filhos, por exemplo). Entre os
55 testamentos encontrados para Jacarepaguá temos 40 pessoas que deixaram alguma doação
da sua terça parte, esta doação poderia variar entre algum valor em réis, um escravo, algum
móvel e entre outros. Algumas vezes o testador explicitava a razão da doação, como a doação
com fins de constituir um dote. Neste caso temos somente 4 pessoas que assim o fizeram, ou
seja 10% dos 40 testadores que doaram. Dentro deste número aparece com proeminência
Inácio de Sampaio e Almeida, proveniente da quarta geração da sua família e que à época da
sua morte em 1754 era senhor do engenho do Rio Grande, situado em Jacarepaguá.
Dentre as 4 pessoas que dotaram com vistas ao casamento o seu testamento é o mais
generoso, dando sete doações para constituir dotes, sendo que em dois casos eram para
pessoas que moravam no seu engenho: para Tomé Teixeira e Micaela de Sampaio havia dado
um crioulo quando se casaram, e para as filhas deste casal, quando se casassem, a quantia de
cem mil réis. Deixou mais o valor de três mil cruzados para a sua neta dona Angela, que
segundo suas ordens explícitas eram para formar o seu dote, assim como o restante de toda a
sua terça para as suas outras netas com esta mesma finalidade matrimonial.
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Estas dotações podem ser levadas em consideração juntamente com outros
fatores como a relação da propriedade da terra, do acesso à mão-de-obra e da produtividade
em um panorama cuja escala demográfica, como vimos, era diminuta e as terras existiam em
abundância. Neste sentido tão importante quanto a posse da terra era o controle da mão de
obra para torná-la produtiva, como lembra José de Souza Martins. Segundo este autor um dos
traços que caracterizaria a economia colonial brasileira era a centralidade do trabalhador no
processo produtivo e não a posse da terra, pois esta ainda não passara por um processo
hegemônico de posse através da compra, o que só viria a acontecer após a lei de terras de
1850. Sendo assim a terra poderia ser adquirida através da ocupação por homens livres de
sesmarias não aproveitadas, de forma que a questão chave para o rendimento na economia
colonial passava antes pela posse de mão-de-obra que trabalhasse a terra do que pela posse da
terra propriamente dita (MARTINS, 2013). Longe de ser um consenso, a interpretação de
Martins que aponta para uma “fronteira aberta” no Brasil colonial já foi criticada por autores
como Sheila de Castro Faria, que percebeu nos seus estudos sobre a capitania de Campo dos
Goitacazes uma série de impedimentos para a livre ocupação das terras, tais como a presença
de índios agressivos que tornava a ocupação incerta ou as intrincadas relações de poder que
interfiriam na posse e na ocupação de um território:
A terra não era, portanto, um bem ilimitado e, muito menos, acessível a
todos. A aquisição de sesmaria era restrita aos que possuíam certas regalias
que os diferenciavam dos outros, incluindo aí o apoio da administração
portuguesa. A constituição de redes de poder e solidariedade vedava a
muitos esta forma de acesso legalizado. Podemos supor que foram as terras
mais bem situadas geograficamente as que primeiro se mostraram
interessantes aos colonos. A criação ou ereção de um povoado em vila ou
cidade representava a possibilidade de manter o indígena à distância e
promover uma ocupação eficiente, e só alguns homens, provavelmente os
que tinham maiores condições bélicas, conseguiram argumentar em favor da
instituição desses núcleos coloniais (FARIA, 1998, p.125).
Acredito que nesta complexa teia que envolve terras, homens e a posse efetiva do
espaço, há que se levar também em consideração a relação entre homens livres e as famílias
proprietárias, principalmente as famílias de elite. José de Souza Martins não atribui força aos
trabalhadores livres do período colonial, uma vez que mesmo a sua presença quantitativa no
meio social não impôs uma desagregação da sociedade escravista, na verdade ela
complementava e integrava esta sociedade. Martins não vislumbra, portanto, o peso que estes
trabalhadores poderiam ter em uma produção essencialmente escravista (MARTINS, 2013,
p.30). Não obstante, creio que para além do aumento da posse de escravos pode ter sido
importante também o bom relacionamento das famílias de elite com os vizinhos e moradores
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livres na freguesia, principalmente os que pudessem ter partidos de canas para alimentar os
engenhos dos senhores além da própria produção canavieira daquele senhor. Deste modo
potencializava-se um incremento na produção de cana que passava ao largo da forma
tradicional de aumento da mão de obra por meio da compra de mais escravos.
Voltando ao caso de Inácio de Sampaio e Almeida, a imagem abaixo nos ajuda a
desenvolver alguns dos pontos tomados anteriormente:
Excetuando as vultosas doações deixadas para as suas netas, todas elas com a
finalidade de constituir um dote considerável, as outras doações ocorrem quando o casal em
questão contraía o casamento, portanto Inácio de Sampaio conferia valores em réis ou
escravos para a ajuda de novos casais. Desta forma ele cumpria o seu dever como o chefe de
família em assegurar um bom casamento para seus descendentes, no caso suas netas, e ainda
proporcionava uma espécie de distribuição da riqueza senhorial para fora dos limites da
família nuclear, pois patrocinava outras uniões exteriores construindo uma relação social
hierarquizada entre o testador, a “cabeça” da fazenda, e os integrantes de sua parentela ou do
seu círculo de clientes, que poderia englobar diversos casais da freguesia. Era o caso de
Antônia de Sampaio, sua irmã natural filha de seu pai com uma ex-escrava, e de Guiomar de
Sampaio, sua filha natural que teve com uma parda forra. As origens espúrias destes parentes
não parece que lhes causaram problemas, pois Inácio de Sampaio aprovava o casamento tanto
de sua irmã como de sua filha e aparecia como seu patrocinador.
Mas porque o interesse em manter nucleos familiares da sua parentela ou de fora dela?
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A resposta certamente passa, como apontado um pouco antes, pelo próprio papel de Inácio de
Sampaio como potentado local e na consequente obrigação que vinha enquanto símbolo do
poder local: cuidar da sua família e das pessoas da sua fazenda. Porém, surgem também
questões que podem ser analisadas no âmbito maior do arrendamento de terras do Rio de
Janeiro.
Segundo o historiador Antonio Carlos Jucá, o sistema de arrendamento de terras do
Rio de Janeiro colonial diferia muito do mesmo encontrado na capitania da Bahia. Em solo
baiano praticamente todo o território da região canavieira estava ocupado ou em posse de
alguém, sendo assim o usufruto da terra se dava somente através da compra ou do
arrendamento. Portanto, além de pagarem os 50% do açúcar retirado da sua cana beneficiada
no engenho do senhor, os lavradores ainda tinham que pagar também uma renda para o
proprietário da terra referente ao seu uso. O inverso acontecia no Rio de Janeiro, uma vez que
o que mantinha os lavradores subordinados ao senhor de engenho era o monopólio do próprio
engenho onde a cana era beneficiada. Ou seja, segundo Jucá:
Na verdade, ela (a terra) era utilizada como mecanismo de atração para que
este (senhor de engenho) conseguisse lavradores que lhe fornecessem cana,
repartindo assim os custos inerentes à produção de um engenho (…) A chave
para compreender por que os lavradores de cana fluminenses mostravam-se
tão favorecidos, se comparados aos seus colegas nordestinos, está nas formas
de acesso à terra nas diferentes regiões. Ou, em outras palavras, no grau de
monopólio que existia sobre ela. Ao contrário do que se verificava nas áreas
açucareiras do Nordeste, no Rio de Janeiro a disponibilidade de terras livres
parece ter perdurado por muito mais tempo (SAMPAIO, 2003, p.107-108).
A posse de terras no Rio de Janeiro poderia ser menos concentrada no século XVII
como afirma Jucá, porém esta mesma situação parece que não se confirmou em todo o
recôncavo da Guanabara ao final do século XVIII. O relatório feito para o Marquês de
Lavradio em 1779 aponta que a maioria das freguesias do distrito de Guaratiba (Jacarepaguá,
Guaratiba, Itaguaí, Campo Grande, Jacutinga, Iguaçu e Marapicú) não possuíam terras
devolutas:
Neste distrito não há terras devolutas: as terras que se acham por cultivar são
os sertões dos Engenhos e Fazendas, os quais são necessários
indispensavelmente aos mesmos engenhos para em cada ano tirarem deles o
grande número de carros de lenha que conforme a moagem: tirarem paus
para moenda, madeiras de carros, tábuas para caixões, madeira para a
reedificação dos Engenhos e haverem terras para se plantarem as canas
(Relatório do Marquês de Lavradio, p.329).
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As terras e sertões que ainda não haviam experimentado a ocupação e alteração
humana estavam, como fica claro no trecho acima, sob reserva das famílias em posse dos
engenhos e fazendas. A terra é pensada como maneira de abastecer os engenhos, que por sua
vez faziam o comércio movimentar e desta forma contribuíam para o enriquecimento do
erário régio português. Assim sendo, a terra é vista como local para futura expansão da
produção açucareira e dificilmente a sua ocupação dependia da livre e espontânea vontade de
qualquer pessoa disposta a começar sua vida no local sem a anuência de alguma família de
elite proprietária.
Nesta situação as famílias pobres e sem terras estavam certamente sob desvantagem
em comparação com os senhores de engenho e fazendas da freguesia. Mesmo assim a relação
das famílias de elite com estas famílias mais pobres ainda constituía um aspecto importante, e
isto acontecia não só pela manutenção do prestígio das primeiras, mas também em termos
econômicos e produtivos como lembrado anteriormente por Jucá. No testamento do senhor de
engenho Inácio de Sampaio e Almeida é possível sugerir que o atrativo para as famílias livres
de plantadores de cana poderia se constituir não só em terras aráveis ou no monopólio do
engenho, mas também na própria doação e nos vínculos que esta criava entre doador e
beneficiado. O patrocínio de casamentos realizado por Inácio de Sampaio na forma de
escravos ou em valores ajudava a manter o casal na terra, criando potenciais utilizadores do
seu engenho, lavradores que mais tarde poderiam levar as suas canas plantadas para serem
beneficiadas no seu engenho. Como o panorama demográfico era escasso talvez os senhores
de engenho não contassem muito com canas provenientes de partidos que não os da sua
própria fazenda, entretanto esta podia ser uma boa estratégia para dinamizar a produção de
açúcar ao incorporar outro tipo de mão-de-obra na sua produção, buscando aumentar ou
assegurar o seu produto sem que o senhor de engenho incorporasse mais escravos.
Mas precisariam os senhores de engenho de homens livres lavrando para prover suas
indústrias açucareiras? Uma região que era alimentada por escravos via Atlântico em meados
do século XVIII talvez não precisasse deles. No caso do engenho do Rio Grande infelizmente
não há como saber qual era a sua escravaria em meados do século XVIII quando Inácio de
Sampaio falece, só é possível se aproximar da sua posse de escravos através dos registros de
batismos. Tomando como referência os anos de 1752 até 1759 encontramos a família
Sampaio e Almeida na posse de 15 escravos que foram batizar suas proles. Eram 3 do próprio
Inácio de Sampaio, 11 de Manoel Pimenta de Sampaio (filho de Inácio e herdeiro do Engenho
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do Rio Grande após a morte do seu pai) e mais 2 escravos de Úrsula de Oliveira, esposa de
Inácio (Batismos de Escravos, 1752-1795, fls. 1, 6v., 12, 49v., 40, 32v. 51, 34, 29, 48, 39, 42
e 33). Este número é uma estimativa por baixo, uma vez que o número de escravos deveria ser
maior. O levantamento de 1779 apontava o engenho do Rio Grande ainda nas mãos de
Manoel Pimenta de Sampaio, contando à época com 40 escravos para o seu serviço. Ou seja,
o engenho dos Sampaio e Almeida provavelmente se alimentava do tráfico atlântico de
escravos e parecia contar com escravos suficientes para o seu funcionamento 2.
Entretanto o panorama favorável apontado acima não ficaria estático. Apesar de
possuir uma escravaria considerável, as terras do Rio Grande e seu engenho apresentavam
também um grande número de moradores livres em finais do século XVIII. A partir do
minucioso relatório de Sebastião José Guerreiro França feito para o distrito de Guaratiba em
1797 é possível saber quantos fogos e pessoas existiam na época, inclusive separando os
fogos por local de residência. Segundo este relatório, a freguesia de Jacarepaguá possuía 249
fogos com 2.224 pessoas, dentre elas apresentavam-se 1.235 escravos ou aproximadamente
55,5% da população. Deste total temos a seguinte divisão demográfica/espacial da freguesia:
2 Segundo a historiadora Manoela Pedrosa o número médio de escravos nos engenhos do recôncavo da
Guanabara durante os séculos XVII e XVIII ficava em torno dos 40, o que colocava o engenho do Rio Grande
dentro desta média. (PEDROSA, 2011)
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Em finais do século XVIII o engenho do Rio Grande, que por esta altura
estava nas mãos de Vasco Fernandes Rangel de Sampaio, integrante da sétima geração dos
Sampaio e Almeida, conseguiu aglutinar no seu entorno o maior número de pessoas que
residiam sob a esfera de um engenho na freguesia. Isto sugere que esta família senhorial
conseguiu entrar em negociações e acordos com outras famílias de homens livres para que
estes ficassem sob a sua influência, o que do ponto de vista da mão-de-obra no engenho
parecia vital naquele final de século. Vejamos a divisão da escravaria por engenhos segundo o
mesmo relatório de 1797:
Divisão da Escravaria por Engenhos em Jacarepaguá, 1797
Observando a tabela fica claro a dependência de alguns engenhos quanto aos escravos
dos moradores. O Engenho de Fora, cujo proprietário era Francisco Teles Barreto de
Meneses, juiz de órfãos do Rio de Janeiro, não possuía nenhum escravo do próprio senhor.
Provavelmente o engenho contava para a sua produção de açúcar (que em 1797 havia sido de
150 arrobas mais 40 pipas de aguardente) unicamente com as canas lavradas nos partidos dos
seus moradores. De fato, neste mesmo engenho, 8 das 16 famílias que faziam morada nele se
declararam partidistas 3, contando todos os partidistas com um total de 50 cativos para o
trabalho, a maioria dos 59 escravos do engenho. Isto não acontecia porque Francisco Teles
3 As famílias partidistas eram famílias que produziam nas terras do senhor de engenho e não em terras próprias.
Neste caso o senhor de engenho poderia auferir algum tipo de renda pelo usufruto das suas terras, como a
taxação extra sobre o açúcar que as famílias partidistas levavam para beneficiar no engenho.
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não dispunha de escravaria, muito pelo contrário, estamos falando do maior
proprietário de escravos de Jacarepaguá. Contabilizava 230 cativos dos quais 195 eram
adultos que faziam o serviço nos seus outros dois engenhos, o Engenho da Taquara e o
Engenho Novo da Taquara. Ou seja, para o seu Engenho de Fora o juíz de órfãos contava
somente com as famílias para as quais aforava as terras ou tinha como partidistas, tornando
desnecessário recorrer ao mercado de escravos e contrair mais dívidas para tornar o seu
terceiro engenho produtivo.
O engenho do Rio Grande dos Sampaio e Almeida aparece como o caso mais peculiar
justamente por ser o que mais dependia da escravaria dos seus moradores. O proprietário do
engenho contava somente com 12 escravos para o serviço. Suspeito que este número seja
maior, talvez faltasse acrescentar os escravos de outros parentes dos Sampaio e Almeida na
conta, porém provavelmente isto pouco mudaria o panorama aonde 96 dos 108 escravos que
viviam no engenho estavam divididos entre as 59 famílias que residiam nele, o que implica
em dizer que o senhor de engenho detinha a posse de aproximadamente 11% da escravaria do
engenho. Dentro destas 59 famílias, 17 se declararam partidistas com 59 escravos trabalhando
em partidos de cana para o engenho (no mesmo relatório todos os 17 declararam produzir
cana). Isto aponta para uma grande dependência do trabalho de famílias partidistas livres para
a produção açucareira, demonstrando que práticas como as mostradas no testamento de Inácio
de Sampaio em meados do século XVIII foram importantes para sedimentar laços com outros
núcleos familiares e incrementar a produção do engenho da sua família. Além disso, estes
números podem apontar também para a continuidade da influência dos Sampaio e Almeida na
freguesia, uma vez que eles aglutinavam em torno do seu engenho um dos maiores núcleos
populacionais de Jacarepaguá.
Ao que tudo indica existia uma via de mão dupla, pois ao mesmo tempo em que as 59
famílias que viviam no Rio Grande dependiam da boa vontade dos Sampaio e Almeida para
residirem em suas terrras – uma vez que o horizonte não vislumbrava terras sem donos na
freguesia – esta família senhorial também dependia do reconhecimento local para se manter
enquanto uma das melhores famílias da região. Em finais do século XVIII poderia-se dizer
inclusive que a dependência dos Sampaio e Almeida era ainda maior, pois deixava de
depender somente do reconhecimento social para depender agora em maior escala do trabalho
que seus clientes pudessem oferecer para a sua fábrica de açúcar. Este cenário beneficiava as
famílias do Engenho do Rio Grande (as verdadeiras possuidoras de escravos no engenho)
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fornecendo para elas alguma possiblidade de barganha com os Sampaio e Almeida
que talvez se encontrasse em valores menores pelo arrendamento da terra ou então em outros
benefícios.
Os modestos padrões demográficos da freguesia de Jacarepaguá, apesar de
demonstrarem uma faixa de crescimento entre os séculos XVII e XVIII, não impediram que
alguns núcleos famíliares livres se inserissem na dinâmica de poder e até mesmo de produção
dos grandes engenhos da região. Mesmo sendo uma freguesia alimentada pelo tráfico
altântico de escravos, o cativo não obscureceu nem tornou insignificante a parca população
livre da freguesia. Fosse por razões políticas e de organização social aonde famílias
tradicionais da freguesia buscavam manter a sua influência local, ou fosse até mesmo por
questões de mão-de-obra nos engenhos, as famílias da nobreza da terra construíram relações
com outras famílias livres para sustentar a sua posição diferenciada na hierarquia e manter
suas terras produtivas mesmo quando dispunham de grande escravaria, a exemplo do caso do
Engenho de Fora visto mais acima. Por isso, apesar do cenário demográfico diminuto, o
indivíduo livre talvez tenha encontrado situações aonde podia negociar benefícios ou
barganhas com as famílias senhoriais, reforçando a dinâmica das negociações na construção
das hierarquias sociais pelos seus diferentes atores.
Apesar de ser ainda muito cedo para conclusões definitivas, os resultados encontrados
aqui, principalmente para o final do século XVIII, demonstram que existe uma necessidade de
se pensar o papel das famílias livres e sua escravaria na produção colonial, seja ela voltada
para a produção interna ou como parte integrante da produção do açúcar voltada para o
exterior. O seu papel preponderante em alguns casos suscita ainda muitas perguntas e
questões não levantadas, mas que, não obstante, demonstram que as famílias livres podem ter
uma importância maior do que a imaginada para a produção açucareira do Rio de Janeiro
colonial setecentista.
Documentação
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro
Notícias do Bispado do Rio de Janeiro do ano de 1687. VP-38.
Livro de Óbitos de Livres de Jacarepaguá, 1734 – 1796. AP-0208
Livro de Batimos de Escravos de Jacarepaguá, 1752 – 1795. AP-0191
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Arquivo Histórico Ultramarino
Requerimento do Padre Antonio de Sousa Moreira, Vigário da freguezia de N. S. do Loreto
de Jacarepaguá, do Bispado do Rio de Janeiro, em que pede uma esmola para a construção da
capella mór, por ter a freguezia apenas 156 fogos e serem pobres os seus moradores. Rio de
Janeiro, 22 de setembro de 1734. Caixa 38, Doc. N.º 8745-8747.
Mapas descritivos da população das freguesias de Campo Grande, Jacarepaguá, Guaratiba,
Marapicú, Jacutinga, Aguaçú e Taguaí do distrito de Guaratiba, capitania do Rio de Janeiro,
feitos por ordem do vice-rei do Estado do Brasil, conde de Resende [1797]. Rio de Janeiro,
Caixa 165, Doc. 62.
Family Search
Livro de Óbitos de Livres de Jacarepaguá, 1796-1829. Disponível em:
www.familysearch.org, acesso em: 08/11/2013.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Relação do Marquês de Lavradio, parte II. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, tomo LXXVI,
1913.
Almanaque Histórico da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro para o ano de 1799. Rio de
Janeiro, Imprensa Nacional, vol. 267, 1965.
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Janeiro: Brasiliana Editora, 1965.
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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
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terra do Rio de Janeiro, século XVII. Algumas notas de pesquisa. Tempo, v.15, p. 11-35,
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MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 2013.
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