ALBUQUERQUE JR - A história em jogo - a atuação de Foucault no campo da historiografia

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  • A histria em jogo:a atuao de Michel Foucault

    no campo da historiagrafiaDurval Muniz de Albuquerque Jnior*

    Resumo. Este texto aborda a contribuio dos trabalhos de Michel Foucault paraa historiografia, localizando-a na prpria maneira como o autor concebe a histria,seja do ponto de vista epistemolgico, seja do ponto de vista poltico. Analisaainda como, no cerne da prtica historiogrfica de Foucault, est a imagem dojogo, a figurao da sociedade e do passado como campos atravessados pelosmovimentos e enfrentamentos das foras sociais e por suas prticas de simulao,de fabricao de saberes e de subjetividades. A histria como saber e como vida jogo, agonia, sorte, mascarada, desfalecimento, corte, sofrimento e alegria, riso e dor.Palavras-chave: Michel Foucault. Historiografia. Jogo. Poder. Fico.

    Sempre me intrigou o fato de que, durante muito tempo, oshistoriadores e cientistas sociais brasileiros dedicaram pouca atenoao carnaval e ao futebol, duas manifestaes centrais da cultura doPas. Isso talvez tenha ocorrido devido ao modo como a festa

    * Durval Muniz de Albuquerque Jnior professor da Universidade Federal doRio Grande do Norte.

    Anos 90, Porto Alegre, v. 11, n. 19/20, p.79-100, jan./dez. 2004

  • e o jogo foram comumente pensados na cultura ocidental, ou seja,como momentos parte da vida cotidiana, como atividades semfinalidade, improdutivas, opostas realidade, seriedade da ordemsocial; como momentos de atividade voluntria, livre e desin-teressada, fruto de atitudes gratuitas, que constituiriam momentos,tempos e espaos apartados da rotina, resultantes de situaes ideais,situaes artificiais, que no representariam o funcionamento dasestruturas normais e fundamentais que dariam sustentao a umadeterminada sociedade. A festa e o jogo, portanto, no fariam partedas estruturas nucleares e essenciais de uma dada cultura ou de umdado sistema social, sendo prticas consideradas de divertimento,de alienao ou de inverso da vida social regular.

    Mesmo autores como Johan Huizinga (2004) e Roger Caillois(1990), que se dedicaram ao estudo dos jogos, de sua importnciapara as vrias culturas humanas e seu papel no processo de civilizao,vo reafirmar a viso idealizada do jogo, constituindo ele ummomento parte da normalidade da vida social. medida que teriamcontribudo para a aprendizagem da obedincia a regras, para aobservncia de limites, para o exerccio do clculo e levado aoautodomnio, polidez e cortesia nas relaes sociais, tais atividadeshaviam tido um papel civilizador fundamental. Os autores consi-deram, porm, que o mundo contemporneo, ao contaminar osjogos, as festas e os esportes com elementos como o interesse, olucro e a propaganda, estaria desvirtuando o esprito ldico quepresidiria essas atividades. Anunciam, assim, o fim do esprito ldicoe, com ele, a prevalncia, nas sociedades contemporneas, dasperverses das atitudes psicolgicas que estariam na base de qualqueratividade de jogo, ou seja, a competio, a sorte, a simulao e avertigem: nessas, a violncia substituiria a competio regulamentada(agn); a superstio ou o abandono da vontade triunfaria sobre aespera ansiosa e passiva pela sorte (alea); a alienao sairia vitoriosasobre o gosto pela simulao (mimecry); e o gosto pela vertigemseria substitudo pelo consumo de drogas e lcool ou pelos esportesde risco (ilinx).

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  • Mesmo no campo da Filosofia, as reflexes em torno dos temasda festa e do jogo no so muito recorrentes; esses no seriam, ento,temas dignos de ser pensados. Tanto na Filosofia clssica, quantono cristianismo, o jogo sempre abordado para fazerem-lherestries. Ele considerado apenas um momento de descanso parao retorno renovado ao trabalho ou ao pensamento; ele serve ao bomhumor e pode ser aprendizado de autolimitao e moderao, maspode levar ao desregramento e ao vcio.1

    Para Leibniz (apud Duflo, 1999, p. 25), o jogo era prova daengenhosidade humana e aprendizado da arte de inventar; ele nosensinaria a pensar, mas sua prtica seria uma estima incerteza etestemunho de um esprito vontade. Para Pascal, o jogo seria aexpresso da necessidade humana de estar em movimento, danecessidade que teria o homem de divertir a si mesmo para esquecerda morte; o jogo seria uma espcie de ebriedade e vertigem queevitaria o tdio, uma forma de agitao para levar ao esquecimentode nosso carter mortal, seria, portanto, movimento no-essencial,a busca de enganar-se a si mesmo (Pascal, 1963, frag. 417, p.173). com Kant que o jogo torna-se um tema a ser abordado em Filosofia.Ele tomado como o aprendizado humano de sua liberdade dianteda natureza, como a expresso da autonomia de sua vontade e darazo, como o aprendizado humano de que ele a sua prpria lei, oseu prprio limite. Para o autor, o jogo o princpio de animaode todo o ser, j que o ser humano seria constitudo pelo jogo denossas faculdades, esse pensado como a unio possvel que deixariaexistir a distino recproca de seus elementos; ns, humanos,seramos produto, portanto, do jogo da concordncia e distinode nossas faculdades (Kant, 1965, p.135). Mas com Schiller e,posteriormente, com Nietzsche que o jogo deixa de ser insignificantepara tornar-se paradigma.2 A agonstica que este representa passa aser tomada como fundamento epistemolgico e tico da interpre-tao da vida social e da histria humana. O jogo torna-se um modelode representao do mundo, e a luta, a rivalidade, a emulao e aguerra passam a ser pensadas como a base de todo edifcio social,como atividades centrais na elaborao das culturas.

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  • Tendo uma relao privilegiada com o pensamento deNietzsche, a obra de Michel Foucault no conta com qualquer ttuloou texto que aborde o tema do jogo. No entanto, a palavra jogoespalha-se por muitos dos seus escritos e figura em muitas de suasentrevistas e aparies pblicas. No texto Nietzsche, a genealogia e ahistria (Foucault, 1984a, p.23), a palavra jogo aparece em diversasocasies, quando Foucault tentar diferenciar a maneira como,normalmente, os historiadores figuram o passado e a relao dahistria com ele, da forma como Nietzsche e, por extenso, o prprioFoucault, praticavam histria e relacionavam-se com os relatos queconstituem o que chamamos de memria. A palavra jogo no aparecea apenas como metfora, mas como forma de conceber ofuncionamento da sociedade, de figurar como se passa a histria,um modo de ver o mundo, de pens-lo e relacionar as empirias e osconceitos. Para Foucault, a histria resultado de jogos mltiplos,de inmeros afrontamentos entre foras e saberes, fruto daemergncia de uma disperso de acontecimentos que soconseqncia de embates, que emergem em meio a foras litigantes.Por isso, a histria praticada como genealogia restabelece os diversossistemas de submisso: no a potncia antecipadora de um sentido,mas o jogo casual das dominaes (Foucault, 1984a, p.17).

    A prtica da histria para Foucault recusa, como o faz agenealogia de Nietzsche, a pesquisa das origens. Se a histria uma competio incessante de foras, nos comeos histricos s seencontra o clamor das lutas, o rudo dos enfrentamentos. Oshistoriadores devem estar atentos no para as causas dos fatos,tomadas como um evento anterior que se desdobra e continua emum posterior, mas para a multido de elementos que se aproximame se cruzam num dado momento e que resultam em umacontecimento. No incio no esto a unidade e a identidade deuma causa, mas a disperso dos fatores, a multiplicidade doselementos, as foras que ingressam em um campo de luta e as matriasde expresso, o arquivo discursivo que essas foras encontram paradar forma s suas reivindicaes. Procurar uma tal origem tentarreencontrar o que era imediatamente, o aquilo mesmo de uma

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  • imagem exatamente adequada a si; tomar por acidental todas asperipcias que puderam ter acontecido, todas as astcias, todos osdisfarces; querer tirar todas as mscaras para desvelar enfim umaidentidade primeira (ibid., p.23). Buscar a origem dos fatos , ento,procurar acabar com a brincadeira dos homens no tempo, fazercom que eles sejam adequados a si mesmos, idnticos sua prpriadefinio, o historiador colocando a bola embaixo do brao edizendo: acabou o jogo, no brinco mais! O historiador das origens,criana emburrada, o estraga prazeres.

    Para Foucault, se o historiador tiver o cuidado de entrar decorpo e alma na histria, admitindo que s se faz a histriaparticipando de seu prprio jogo, que no se pode escrever a histriacomo um espectador, torcendo da arquibancada, sendo umhistoriador atleta e no um historiador assistente, se perceber ques se escreve a histria suando a camisa, no a olhando de binculode um camarote refrigerado, ele aprender que atrs das coisas halgo inteiramente diferente: no seu segredo essencial e sem data,mas o segredo que elas so sem essncia, ou que sua essncia foiconstruda pea por pea a partir de figuras que lhes eram estranhas(Foucault, 1984a, p.17). Como a bola de futebol, os objetos e ossujeitos histricos so feitos de mltiplos gomos, da costura s vezesmal feita e aparente, de diferentes temas, enunciados, conceitos,contedos, formas. E todos eles tm furos, rachaduras, por ondesempre ameaam vazar a sua essncia de vento. Suas formasenfatuadas e rolias podem, com um simples gesto de corte feitopelo saber do historiador, pela lmina de sua crtica, tornar-se alstima de uma bola murcha, traste deixado em escanteio.

    Foucault recusa a idia de que, nas origens, as coisas, o mundo,os homens estavam em estado de perfeio, eram mais autnticos,mais inocentes ou mais puros. A histria no vista como umatrajetria de queda ou, ao contrrio, como um percurso que marcauma ascenso. As quedas e levantamentos marcam todo o jogo dahistria, eles so circunstanciais, acidentais, eventuais, fortuitos,repetitivos, mas no formam um percurso coerente, nem marcamuma continuidade. No corpo a corpo que a histria, no combate

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  • permanente que move suas foras, nada garante de sada aautenticidade, a inocncia ou a perfeio do que ir ocorrer.Colocados em uma arena, que a sociedade, os homens lutam paraatingirem seus objetivos, para realizarem seus projetos, paramaterializarem seus sonhos e, para isso, escolhem caminhos diversos,se posicionam em diferentes lugares, adotam tticas e estratgiasdistintas e lanam mo de suas habilidades e de todo o aprendizadoque puderam fazer em sua vida, mas o resultado final ningum podeprever. Se a meta ser alcanada, se a vitria vir, isso depender doimpondervel das mltiplas jogadas, dos inmeros lances edeslocamentos feitos pelos demais jogadores e, inclusive, doimpondervel, do golpe de sorte, do lance mgico que destri todosos esquemas previamente estabelecidos. Pensar a histria como sendoum jogo , inclusive, contar com a bola entre as pernas, com o golcontra, com o drible desconcertante, com o tento feito com a mo,com o impedimento, com a penalidade.

    Por que temos tanta dificuldade em pensar a surpresa, o acasoe o improvvel como elementos que fazem parte da vida e do processohistrico? Como narradores do passado, ainda buscamos conformaro tempo e suas cambalhotas a esquemas prvios de interpretao,com seus determinantes e personagens fixos, previsveis, que jogamsempre da mesma forma, que seguem sempre a rotina j esperada e,que, mecanicamente, desempenham a funo designada antes doincio do prprio jogo. O historiador, nesses termos, o tcnicoretranqueiro, que busca garantir a previsibilidade do imprevisvel,profissional da rotina, que odeia a criatividade, o jogador louco,indisciplinado, rebelde; que retira toda a juventude da prpriaexistncia, sua capacidade infinita de se tornar diferente do que , odevir como potncia da histria.

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    preciso saber reconhecer os acontecimentos dahistria, seus abalos, suas surpresas, as vacilantesvitrias, as derrotas mal digeridas... A histria comsuas intensidades, seus desfalecimentos, seus furoressecretos, suas grandes agitaes febris como suas

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  • sncopes, o prprio corpo do devir. preciso sermetafsico para lhe procurar uma alma, [um sentido,o anncio de uma parusia]. (Foucault, 1984a, p.19-20).

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    A histria tudo e nada promete; ela tanto a alegria instantnea,o gozo furioso da vitria, que pode se transformar, em minutos, nadesiluso da derrota acachapante, por goleada, como pode ter,inclusive, o rosto sem graa do empate, do zero a zero. Por que ns,historiadores, esperamos sempre falar do grandioso espetculo, davitria retumbante, da glria que produz heris ou anti-heris?Porque somos incapazes de falar do cotidiano cinza, dos sacrifciosdirios, do suor e lgrimas derramados no silncio de umaconcentrao ou de um vestirio, da angstia e do sofrimento deum dolo esquecido, de uma estrela solitria, de um grmio rebaixado,de um internacional desclassificado.

    O historiador, como os fs enlouquecidos, quer viver dasgrandezas repetidas, das promessas de grandes decises e de grandesconquistas. Mesmo quando nos nomeamos historiadores docotidiano, micro-historiadores ou historiadores dos excludos, noperdemos nossa mania de grandeza: o moleiro friulano torna-se orepresentante de uma classe, o representante de nosso humanismometa-histrico; o rei africano desterrado torna-se o representantede uma etnia em luta por sua libertao; o lder operrio travestidode salvador da humanidade; o tringulo amoroso carioca torna-serepresentante da resistncia operria.3 No conseguimos jogar umjogo rasteiro, no conseguimos olhar para esses personagens da beirado gramado, no conseguimos abord-los em sua singularidade, emsua maneira muito prpria de armar o jogo, de passar a bola, desafar-se das situaes de dificuldade. Continuamos pensando o sabere a cincia como prticas que elevam, que vem de cima mesmoquando dizemos olhar de baixo; queremos sempre as alturas, asexcepcionalidades; adoramos as excees, mesmo quando dizemosestar tratando das regras, das estruturas. Baixemos a bola, tentemos

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  • pensar que a histria tambm deve olhar para os peladeiros, para oscanhotos, para os cabeas-de-bagre, para os ps-murchos que tambmatuam na histria e so responsveis pelo seu resultado final. Quandoresponderemos verdadeiramente provocao de Levi-Strauss, quenos jogou em rosto a nossa vocao para a construo de mitos?4

    Ver o mundo como jogo pens-lo a partir de uma pragmtica, colocar no centro de sua interpretao as prticas humanas, prticasem conflito e que carecem de significao. A histria seria fruto dasbatalhas em torno do poder e da verdade. Em suas aes, os homensentrariam em disputas em torno de domnios, fossem polticos,fossem de conhecimento. Nessas disputas, a linguagem representariauma das principais armas, pois seria atravs dela que seriamdemarcados espaos de poder, campos de atuao, identidades,lugares de sujeito, domnios de objetos; seria atravs dela que seestabeleceriam as aproximaes e os distanciamentos, os pactos e asexcluses, os nomes e os silncios que instituem uma ordem social.Como um dos sentidos que guarda a palavra jogo, a sociedade seriaum conjunto complexo de relaes, de funes, de tticas, deestratgias, de deslocamentos, um conjunto aberto e inumervel emque a imprevisibilidade estaria presente.

    Uma histria pensada como jogo aquela aberta s incertezas,em que qualquer teleologia ou previsibilidade so afastadas. Trata-se de uma histria que prev o acaso como possibilidade e comoagente dos processos sociais; uma histria em que cada momentoresulta das foras em presena e em luta, sem a atuao externa denenhuma fora transcendente ou metafsica; uma histria queapresenta racionalidades apenas parciais, regionais, racionalidade decada lance e de cada partida, de cada evento e de cada momento,uma histria que no apresenta uma racionalidade absoluta ou emtodo o seu conjunto; uma histria na qual os homens so capazes deinventar respostas novas para os desafios que se lhes apresentam, acada momento, em cada tempo diferente. Essa a histria pensada,pois resultado da prpria capacidade de fico, de imaginaohumana. Tanto a histria vivida quanto a histria escrita seriamtestemunhas da capacidade infinita de os homens imaginarem novos

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  • lances, novas narrativas, novos caminhos, novas metas, novos sentidospara suas prprias vidas.

    Foucault vai retomar o prprio sentido original da palavrainterpretao. Se o saber histrico nasce de um trabalho interpretativo,isso quer dizer que ele surge de uma atividade de simulao, defico, de representao, de construo de mscaras que permitemdar um rosto, uma fisionomia, uma presena, uma aparncia aomundo e aos seres. Nesses termos, o historiador recupera o seuparentesco com os vates da antiguidade, que, mais do que contaremuma histria, a interpretavam em praa pblica, e seu desempenhoera fundamental para a prpria credibilidade daquilo que testemu-nhavam. Interpretar os eventos, interpretar os documentos, significafigurar para eles uma inteligibilidade, dar a eles uma forma, torn-los matria para a construo de uma dada realidade do passado,dot-los de uma coerncia, tram-los de forma que paream desenhara figura de um passado que emergiria em seu perfil e em suamaterialidade. Interpretar o passado dar vida a suas possveis figuras, recont-lo, reviv-lo, encarnando-o em seus possveis rostos, emsuas gesticulaes factveis, em seus diferentes disfarces e com suasinmeras astcias.

    Foucault (1984a, p.26) diz que interpretar se apoderar deum sistema de regras, faz-las entrar em um outro jogo e submet-las a novas regras, ou seja, o prprio trabalho interpretativo inscreve-se no campo do ldico, fazer o jogo dos sentidos, dotar os discursosde novas significaes, dar-lhes novas mscaras, desloc-los deseu lugar consagrado, inverter o sentido do jogo levado a efeito atento, brincar com as possveis alternativas de figurao. Por isso,as figuras de linguagem que mais aparecem nos textos de Foucaultso as ironias, as catacreses e os oxmoros, ou seja, aquelas em que aspalavras no guardam nenhuma pretensa relao de semelhana comaquilo que pretendem nomear, nas quais o carter de fabricao, dedisparate, de jogo entre os significados e seus pretensos significantes,os discursos e seus supostos referentes, objetos e sujeitos, soadmitidos e explicitados de sada.

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  • Como em todo jogo, o espetculo, o aparecer, o vir cena oprprio ser das coisas, no existindo uma essncia que estariaescondida nos vestirios e s apareceria aos noventa minutos departida, por um suado esforo de interpretao. O jogo, como ahistria, o que acontece, s enquanto acontecimento. Da mesmaforma que, a partir das mesmas regras, possvel jogarem-se inume-rveis partidas, a partir dos mesmos dados, muitas interpretaesso possveis, muitas combinaes dos mesmos elementos sofactveis. Pode-se, pois, contar inmeras vezes os mesmos fatos hist-ricos, de diferentes maneiras.

    Pensar a histria como jogo pens-la como atravessada poruma agonstica que tem, na luta e na simulao, as atividadesprincipais dos homens. A vida social inexiste sem o conflito, sem aluta pelo poder e sua transformao em representao, em simulao,em sentido, em saber. Todas as culturas humanas seriam produtodesses jogos de poder e saber, que, no pensamento de Foucault,guardam pouca relao com o esprito ldico idealizado de Huizingae Caillois. Foucault tende a concordar com estes autores sobre acentralidade do ldico, ou seja, da inveno, da competio, doacaso, da imaginao e da vertigem nas relaes entre os homens ena construo da vida social; mas no v o jogo como uma realidadeapartada da ordem social e uma situao ideal, que serviria de modelopara o funcionamento da sociedade e para as relaes sociais. Ojogo seria imanente vida social, seria imanente histria; noscomeos de qualquer evento histrico, estaria a disperso de forasem luta e a posterior elaborao de um sentido, de uma mscara, deuma identidade para aquilo que foi fabricado, para aquilo queemergiu do prprio confronto.

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    A emergncia de um acontecimento se d sempre emum determinado estado das foras, que devem sermostradas, pelos historiadores, em seu jogo, a maneiracomo lutam umas contra as outras, ou seu combatefrente a circunstncias adversas, ou ainda a tentativaque elas fazem se dividindo de escaparem da

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  • degenerescncia e recobrar o vigor a partir de seuenfraquecimento (Foucault, 1984a, p.23).

    Refletir sobre o jogo da histria pensar, a cada vez, que forasentraram em campo em dado evento, que regras produziram ouque regras seguiram no momento de atuarem e como essas forastornaram-se sujeitos desse acontecimento. Tal reflexo implica aindapensar que cada sujeito social faz-se sujeito no prprio momentoque atua, que joga, que sua existncia depende da existncia do outro,da relao agnica com o outro, que lhe limita e lhe define comoaliado ou como inimigo, pensar que o grande jogo da histria serde quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daquelesque as utilizam, de quem se disfarar para pervert-las, utiliz-las aoinverso e volt-las contra aqueles que as tinham imposto (ibid.,p.25).

    A vida social e a histria teriam, para Foucault, as mesmascaractersticas que definem o que seria uma atividade de jogo. Ahistria seria movimento, seria ao criativa, inveno constante denovos lances, mesmo que seus sujeitos estejam limitados por regras,por normas, que tenham que obedecer a regulamentos. A histria possvel porque os homens, mesmo limitados por um dado contexto,por um conjunto de regras e prescries, ainda que atuando em umespao e em um tempo delimitados, so capazes de driblar a potnciado mesmo e a imposio da repetio e criarem o diferente, anovidade, de produzirem a surpresa e o inesperado. A histria, comoo jogo, faz-se de risco e habilidade, de variao e mudana, de limitee inveno, de regras imanentes e de restries voluntrias.

    Foucault pensa a histria como mediada, assim como o jogo,por estratgias e tticas, as quais podem estar a servio da criatividadeou da reao, podem levar vitria ou serem derrotadas, que podemservir de impedimento ou de incentivo atuao das foras em luta.A histria feita de disputas em que os contendores tentam alianase buscam enfrentamentos, em que o domnio das regras, oestabelecimento das regras e a possibilidade de burl-las ou us-las

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  • contra o inimigo uma constante. Mesmo tendo os homens criadoinmeras instncias sociais que buscam arbitrar a observncia destasregras, a histria faz-se como potncia criativa, porque essa arbitragemsempre pode ser enganada, ser corrompida, ser ludibriada e usadaem proveito das foras em luta.

    Assim como um jogo, a histria est sempre sendo jogada acada vez, ela descontnua mesmo que se faa por repeties eapresente regularidades. Assim como nas partidas de futebol, queseguem sempre as mesmas regras, em que a semelhana do jogoparece garantida, mas o resultado sempre incerto, em que acombinao das jogadas e os lances nunca se repete, em que cadapartida singular e irrepetvel, assim tambm so os eventoshistricos. A histria no tem um sentido dado a priori, no temuma racionalidade e uma finalidade que a atravessam desde ocomeo; como no jogo, o sentido da histria o seu prprioacontecer. O resultado final de qualquer enfrentamento na histrias se define em seu ltimo instante; no h previsibilidade possvel,somente probabilidade de que as coisas se passem tal como oesperado.

    A escrita da histria concebida por Foucault como aelaborao de um discurso que, como qualquer outro, no estpermanentemente submetido ao poder, nem oposto a ele. precisoadmitir um jogo complexo e instvel em que o discurso(historiogrfico) pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e feito dopoder, e tambm obstculo, escora, ponto de resistncia e ponto departida de uma estratgia oposta (Foucault, 1977, p.96). O discursoda histria tanto pode veicular e produzir poder, refor-lo, comopode vir a min-lo, debilit-lo e permitir barr-lo. Longe estFoucault da anlise simplista e grosseira do poder, como umamaquinaria sem sada, que vez por outra tentam atribuir a ele.5 Pensaro poder como um elemento fundamental do jogo da histria tom-lo como resultante sempre indefinida e indeterminada do embatedas foras que compem um dado campo social, tom-lo comosendo materializado em um conjunto de regras e de normas, queesto sempre sendo negociadas, jogadas. Ao invs de um monstro

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  • cinza, o poder em Foucault aparece em sua dimenso ldica,brincalhona, estratgica, astuciosa, em sua potncia de simulao,mascaramento, inverso e traquinagem.

    H uma grande resistncia, entre os historiadores profissionais,em aceitar a maneira como Foucault pratica a histria. Acostumadosa pensar o processo histrico como uma totalidade coerente eracional, como um processo que possui um princpio de coerncia,uma essncia ou uma verdade que deve ser buscada, mesmo quandose sabe que dela apenas se pode se aproximar, esses princpios,digamos, morais que o historiador deve seguir so semprereafirmados.6 Ele tem que estar comprometido com a razoabilidadee com a veridicidade do que faz, ou seja, o historiador no devebrincar em servio, ele seria um mau jogador, um ser sem senso dehumor, um homem srio falando de coisas muito srias. Mas, parauma criana, brincar ou jogar tambm algo muito srio, ela est,muitas vezes sem saber, fazendo o aprendizado das prprias regrassociais, est internalizando a sociedade. Tambm podemos aprendercom os jogos da histria, com suas brincadeiras e mascaradas, comsuas sncopes e seus desfalecimentos. Como em qualquer jogo, nahistria tambm se pode sorrir ou chorar, afirmar a vida ou morrerem campo, pode-se ganhar ou perder, mas todos os lances levam-nos a um aprendizado, formulao de uma experincia, que podenovamente ser recolocada em jogo no prximo evento.

    Foucault, como Nietzsche, vai procurar recolocar o corpona histria. As cincias humanas, por muito tempo, recusaram-se atratar do corpo, da materialidade do corpo. Na Filosofia, tnhamospensamentos e pensadores sem corpo; na Histria, os personagensno tinham desejo, nem necessidades corporais, no tinham sangue,mesmo participando de tantas guerras e revolues. Foucault pensao corpo como a superfcie de inscrio dos acontecimentos(enquanto que a linguagem os marca e as idias os dissolvem), lugarde dissociao do Eu (que supe a quimera de uma unidadesubstancial), volume em perptua pulverizao (Foucault, 1984a,p.22). A histria genealgica articula corpo e acontecimento, corpoe linguagem, mostrando as marcas e as runas que o tempo produz

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  • em nossas carnes e nas imagens que temos de ns mesmos. A histriapensada como jogo pe no centro de nosso campo as peripcias doscorpos, a anlise do que eles fazem e de como explicam o que fazem,a descrio de suas atuaes, deslocamentos, fraturas, indisposies,choques, atraes, desejos, sedues. So os corpos pensados comodocumentos, como pergaminhos em que vm se escrever e inscreveras memrias das mltiplas experincias que vivenciamos.

    Por que temos tanta dificuldade em auscultar os corpos dospersonagens dos quais tratamos, em tate-los, massage-los, comoanatomistas do social que devemos ser? Por que fazemos uma histriato higienizada, em que nossos personagens no tm odor, so feitosapenas para serem vistos e no para agradar ou desagradar aos outrossentidos? A histria ainda o lugar do imprio do olhar, pois aindacontinuamos, como os gregos, buscando testemunhos, mesmoquando pretendemos faz-la para estimular os leitores a deixaremde ser meros espectadores de seu desenrolar. Como poderemos tornara histria um saber sedutor se ela no tem corpo, se seus personagensesto mortos e parecem mesmo com defuntos conservados emformol? Como pode seduzir os vivos algo que no tem vida, que sefaz por frmulas conceituais? No esprito do que escrevia Nietzsche(1991, p.22-34), a histria conceitual uma monstruosidade, oresfriamento do que calor e vida, a mumificao do que foi vivoe quer ainda respirar. Como podemos atrair os leitores da histriapara personagens que no tm sexo, no desejam, no brincam, nojogam?

    Como jogadores que somos, a nossa histria no estdocumentada apenas nas smulas que escrevemos e que guardamosem arquivos, no est apenas nas resenhas que produzimos a respeitode nossas vidas e aes, mas ela est documentada em cada cicatrizque marca nossos corpos, em cada sinal, em cada tatuagem, emcada escarificao, em cada dor que veio se alojar em nossas peles ouem nossas entranhas. Cada ferida cicatrizada um monumento aum instante dolorido que passou, um resto de tempo petrificado.Embora sendo um saber que privilegia o olhar e seus testemunhos,contraditoriamente a histria tem tido uma enorme dificuldade em

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  • lidar com imagens, talvez porque a aparea o corpo, o incmodode um corpo, mesmo quando ainda est congelado por uminstantneo de uma mquina fotogrfica. O corpo, mesmo em umapose repetitiva, parece nos amedrontar. Quando ele aparece emmovimento, a dificuldade e a estranheza parecem se ampliar. Essespersonagens que se movem figuram to diferentes dos personagenscanhestros que conseguimos produzir em nossas narrativas, que nosamedrontam, porque nos interpelam no sentido de sermos capazesde dizer o corpo em movimento, em deslocamento, a identidadearruinada por um simples gesto, o dilaceramento constante daquiloque gostamos de chamar de Eu. Colocados diante de nossa prpriaimagem, sentimos a desiluso de ver que nunca correspondemos imagem que temos de ns mesmos, que dir a imagem queconstrumos dos outros. Nossas identidades so fruto de um jogopermanente, jogo de esconde-esconde, uma brincadeira de mscaras,num carnaval organizado e submetido a um emaranhado de regras.

    Pensar a histria como jogo corresponde, em Foucault, a umapostura epistemolgica, mas tambm a uma postura tica. Nosltimos livros que escreveu, Foucault (1984, 1985) estavapreocupado em entender atravs de que jogos construmo-nos comoo sujeito de uma sexualidade, de uma moralidade. Sua preocupaoera procurar pensar o sujeito para alm da imposio socrtico-platnica do conhecer a si mesmo. Ele vai deslocar essa questo apartir da pergunta nietzscheana, que era a mesma colocada pelosgregos antes de sua entrada na filosofia racionalista, ou seja: o queestamos fazendo de ns mesmos? A constituio da subjetividade,de uma identidade de sujeito, passa a ter a uma implicao polticaimediata. Perguntar pelo qu se est fazendo consigo mesmo perguntar-se pela forma como se est governando a prpria vida,como est se fazendo uso dos prazeres, como se est cuidando de simesmo e escrevendo a si mesmo, como se est se relacionando comseu prprio corpo e com seus desejos. A construo de ns mesmospassava por esse jogo incessante que jogamos com ns mesmos ecom os outros. a pergunta pelo treinamento que estamossubmetendo o nosso prprio corpo e nossa prpria mente, que

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  • exerccios, que dietas, que limites estamos impondo a ns mesmos.Para que sejamos um craque na vida, precisamos desse trabalho deauto-emulao, de autoconstituio, tentando transformar a prpriavida na melhor jogada, num gol de placa, numa obra de arte. Nolugar do imperativo de conhecer uma essncia que estaria guardadano interior de um si mesmo discutvel, coloca-se a conclamaopara a fabricao de um si mesmo, que nunca est pronto e quenunca pode deixar de ser convocado a se exercitar novamente.

    Ns, historiadores, temos muita dificuldade em pensar o sujeitocomo um exerccio, como uma funo que se exerce numa ao,num discurso, como algo que no esteja pronto no incio da ao,que no venha antes do discurso, mas que seja seu resultado final,sujeito que s aparece j na prorrogao. Estamos sempre buscandoo sujeito originrio, aquele que deu o pontap inicial na ao, aqueleque comeou o jogo, que deu a sada, quando isso pouco importa,pois o jogo ou a histria so o que se desenrola da para frente, e seuresultado independe por completo de quem veio por escalaomomentnea ou da posio que o sujeito ocupava ao dar o primeiropiparote no jogo. Sempre alertamos para o fato de que os sujeitosem histria so coletivos, de que fazem parte de uma grande equipe,de que na histria no se joga sozinho; sempre dizemos que a histria,como o jogo, passa-se entre os jogadores, feita das suas jogadas, deseus lances, mas mesmo assim estamos sempre buscando aquele que,da marca da cal, deu o chute decisivo, cobrou o pnalti salvador,aquele heri que sozinho ganhou o jogo, aquela mo salvadora que,no ltimo instante, desviou a trajetria do balo.

    No desconhecemos que as aes individuais so importantes,que h realmente jogadores mais decisivos que outros, aqueles quefazem a diferena, que abrem espaos para outros, mas, mesmo esses,no conseguiriam atuar sem a colaborao dos demais, pelo simplesfato de que, sem outros, no haveria jogo, sem as relaes entre ossujeitos e os lugares que essas relaes distribuem no haveria histrianem sujeitos. No importa qual o nome prprio de quem vem ocupara posio de goleiro, de zagueiro ou de atacante, mas a funo queexerce no jogo, o papel que lhe atribudo, o lugar de sujeito ou a

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  • camisa que lhe tocou envergar; o que importa a distribuio nocampo e o lugar que assume no coletivo que se movimenta. S nosconstitumos em destaque em relao aos demais, s nosindividualizamos, nos singularizamos na relao com o outro, snos reconhecemos e somos reconhecidos como sujeito em confrontocom outros que esto ao nosso lado ou nossa frente; somos sempre,pois, um produto do coletivo.

    Da mesma forma que temos dificuldade em pensar os sujeitosda histria como imanentes aos prprios acontecimentos, ao prpriojogo das foras e dos saberes que os constituem, temos dificuldadede pensar o objeto histrico, o acontecimento em sua singularidade,em sua fabricao agonstica. A tradio teleolgica e racionalistaque prevalece no campo da historiografia tende a dissolver oacontecimento singular em uma continuidade ideal como se ocampeonato, em sua totalidade, fosse o que determinasse o resultadodas partidas que o compem, como se, entre elas, houvessepreviamente uma determinao que definisse os resultados.

    A histria efetiva faz ressurgir o acontecimento noque ele pode ter de nico e agudo. preciso entenderpor acontecimento no uma deciso, um tratado, umreino, ou uma batalha, mas uma relao de foras quese inverte, um poder confiscado, um vocabulrioretomado e voltado contra seus utilizadores, umadominao que se enfraquece, se distende, se envenenae uma outra que faz a sua entrada, mascarada. As forasque se encontram em jogo na histria no obedecemnem a uma destinao, nem a uma mecnica, mas aoacaso das lutas. Elas no se manifestam como formassucessivas de uma inteno primordial; como tambmno tm o aspecto de um resultado. Elas aparecemsempre na lea singular do acontecimento (Foucault,1984a, p.28).

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    Foucault tem a coragem de afirmar que a histria um saberperspectivo, ou seja, que as narrativas que fazemos de um dado

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  • acontecimento tm a nossa prpria participao. Ns tambmentramos no jogo quando se trata de escrever a histria. Somos, aomesmo tempo, narrador e rbitro, tcnico e jogador, torcedor eatacante; estamos implicados naquilo que fazemos, nos resultados aque chegamos. No d mais para acreditar na encenao de que nsapenas abrimos mo de nossa individualidade para que outros entremem cena e tomem a palavra. No d para levar a srio o jogo de faz-de-conta da objetividade e do princpio da verdade atrs do qualnos escondemos para s falarmos de nossas prprias posies polticase historiogrficas como se estivssemos falando em nome da histriaou da razo, da objetividade e dos fatos. Chega de ensaios racionalistasque mal escondem o seu rancor e sua demagogia, como diziaNietzsche em A Genealogia da Moral.

    Eu no posso mais suportar estes eunucosconcupiscentes da histria, todos os parasitas do idealasctico; eu no posso mais suportar estes sepulcroscaiados que produzem a vida; eu no posso suportarseres fatigados e enfraquecidos que se cobrem desabedoria e apresentam um olhar objetivo (Nietzscheapud Foucault, 1984a, p.32).

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    Foucault prope trs usos para a histria, trs maneiras depratic-la, que reafirmam essa necessria aceitao do carter subjetivoe poltico de nossa atividade. Um deles o uso pardico ou irnico,que se ope histria vista como reminiscncia ou reconhecimento,propondo uma histria praticada como riso, como destruio dasverses consagradas da realidade, como produo de umdistanciamento entre ns e aqueles que nos antecederam, comoreposio diferencial dos saberes, dos discursos que produziramaquilo que achamos que somos. Outro o uso dissociativo edestruidor da identidade, que se ope histria como continuidadee tradio, postulando uma histria praticada como afastamento dacontinuidade, como dilaceramento dos modelos de identidade quenos chegam do passado e se impem como indispensveis. O terceiro

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  • o uso sacrificial e destruidor da verdade, que se ope histria-conhecimento, expressando uma histria praticada como descon-fiana em relao a todas as verdades que nos chegam prontas, atodas as certezas que nos chegam sem questionamento. A histriatem assim, para Foucault, todas as caractersticas de um saber pensadocomo jogo, pois ela implica a brincadeira com as mscaras, a violnciado embate e do combate, a entrada em cena do acaso e da sorte e odesejo de vertigem, da perda das referncias fixas que amarram nossoscorpos e mentes a dadas identidades, razes e lugares. A histria agn, lea, mimecry e ilinx, ou seja, conflito, acaso, simulao evertigem.

    Devemos encarar, pois, a prpria luta no campo historiogrficocomo um jogo em que cada texto, em que cada livro, em que cadaopinio um lance que se faz em uma partida. Encarar os debateshistoriogrficos desse modo talvez nos ajude a torn-los maisdivertidos e mais corteses, evitando que eles se transformem emuma guerra de todos contra todos, embates nos quais ferozmente sequerem eliminar o contendor e seu pensamento a golpes de adjetivosde desqualificao.

    Michel Foucault tem sido vtima sistemtica desse tipo decrtica, dentro e fora do Pas. Quando se trata de avaliar suacontribuio para a historiografia, tem faltado fair play a boa partedos colegas, e vemos um jogo cheio de caneladas, rasteiras,cotoveladas e entradas desleais.7 Todo o seu trabalho no campohistoriogrfico desqualificado com meia dzia de opinies epalpites, sendo quase sempre atingida sua pessoa e no seupensamento. Para comentar, preciso conhecer, regra to bsica emnosso futebol, mas que no aplicada em nossa academia.

    Foucault sempre tratado como um invasor do campo, comoalgum que, inclusive, quis acabar com a histria, mesmo que tenhadedicado toda a sua vida a faz-la e tenha se mostrado um praticantecriativo de nosso metier, estimulando uma ampla produo na rea.8

    Tratado como bico, Foucault seria uma ameaa para a nossa ativi-dade, pois, com ele, a prpria histria estaria em jogo, nosso sa-crossanto saber estaria ameaado de ser conspurcado e remetido

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  • para os obscuros domnios do irracionalismo, do esteticismo e doreacionarismo poltico. Surgem ento, como sempre, os salvadoresde ltima hora, que vo evitar que a histria sofra essa ameaa e esserebaixamento. Aqui, como em futebol ou em religio, devemosdesconfiar desses enunciadores do caos e do apocalipse, que queremtomar o jogo para si e impor regras que s eles esto dispostos aseguir; o que querem poder disfarado de verdade; querem acabaro jogo no momento em que acham que esto ameaados de seremderrotados. Isso sim o fim do jogo, o fim do ldico, o fim dapossibilidade de inveno e de criao; isso sim o fim da histria.A histria morreria no por criatividade, mas por paralisia, por faltade renovao em suas regras de produo. No o invasor a maiorameaa ao jogo, mas o que dele participa jogando na retranca,buscando evitar a surpresa e o inesperado; o que busca torn-lorotina e mesmice, o que faz um jogo burocrtico e odeia aquelecompanheiro que brilha e que desconcerta com a magia de sua arte.Michel Foucault da genealogia dos craques, dos fora de srie,daqueles que, mesmo quando so nosso adversrio, s nos resta sentare aplaudir.

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    History in focus: the role of Michel Foucault in the field of historiography

    Abstract. This text approaches the contribution of Michel Foucaults works tohistoriography, situating it in his own conception of history, from eitherepistemological or political point of view. This text analyzes how, in the center ofFoucaults practice of historiography, is the image of the game, the representationof society and the past as fields crossed by movements and confrontations of thesocial forces and by their acts of simulation, production of knowledge andsubjectivities. History as knowledge and life is a game, is agony, is luck, is masqued,is faint, is cut, is suffering and joy, is laughter and pain.Keywords: Michel Foucault. Historiography. Game. Power. Fiction.

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  • Notas

    1 Cf. Toms de Aquino, em Suma teolgica, e Francisco de Sales, em Introduo vida devota (apud Duflo, 1999, p. 20-21).2 Cf. Friedrich Schiller, em Cartas sobre a educao esttica do homem (apud Duflos,1999, p. 72 e segs.), e Nietzsche (2001).3 Aqui fazemos referncia a obras da melhor qualidade, em nosso campo, comoGinzburg (1987), Silva (1997) e Chalhoub (1986).4 Sobre o desafio lanado por Levi-Strauss aos historiadores, ver Dosse (2003).5 Ver a mais recente simplificao da complexidade do pensamento de Foucaultacerca do poder e sua relao com a produo de sujeitos, em Shalins (2004).6 Para um diagnstico dessa apavorante possibilidade de uma histriairracionalista, sem sujeito, sem objetividade e sem verdade, ver, por exemplo,Cardoso (1988) e Diehl (1998).7 Ver, por exemplo, a entrevista de Carlo Ginzburg em Pallares-Burke (2000, p.269-307).8 Essa a opinio, por exemplo, de Ronaldo Vainfas (Cardoso; Vainfas, 1997,p.150).

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