Aguiar e Silva - Pr�-Romantismo e Romantismo

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:.C:;U ili/e t;' . <J(vvt~ ," SIC. i/ /7 I ~1 rt"l ~w. eX e I /-7 f(/...c-«-6~ uo, /16 J' . 1- 0 seculo XVIII, sob a ponto de vista da periodo- logia literaria, constitui uma epoca extremamente compli- cada, pois nele confluem correntes barrocas retardatarias e correntes neoc1assicas ou arcadicas; nele se desenvolve o chamado estilo rococ6 e nele irrompe 0 pre-romantismo. Para tomar este quadro ainda mais complexo, verifica-se que sac frequentes, e por vezes muito pronunciadas, as assincronias entre os escidios de desenvolvimento das diversas literaturas europeias. Epoca de crise, de desagregas:ao e de renovamellto dos valores estetico-literarios, caracterizado por urna natural tendencia para 0 ec1ectismo, 0 seculo XVIII nao apresenta qualquer estilo que tenha exercido urn dominio homogeneo e prolongado. Acontece, por exemplo, que urn escritor se pode integrar simulclneamente no neoc1assicismo e no pre-romahtismo - 0 caso de Bocage e muito elucidativo -, ou pode acontecer que urn poeta tenha' iniciado a sua carreira dentro dos moldes do barroco tardio e que tenha aderido depois ao credo neoc1assico, apresentando ainda, em conjuns:ao com estes elementos, urna forte coloras:ao

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1- 0 seculo XVIII, sob a ponto de vista da periodo-logia literaria, constitui uma epoca extremamente compli-cada, pois nele confluem correntes barrocas retardatariase correntes neoc1assicas ou arcadicas; nele se desenvolveo chamado estilo rococ6 e nele irrompe 0 pre-romantismo.Para tomar este quadro ainda mais complexo, verifica-seque sac frequentes, e por vezes muito pronunciadas, asassincronias entre os escidios de desenvolvimento dasdiversas literaturas europeias.

Epoca de crise, de desagregas:ao e de renovamellto dosvalores estetico-literarios, caracterizado por urna naturaltendencia para 0 ec1ectismo, 0 seculo XVIII nao apresentaqualquer estilo que tenha exercido urn dominio homogeneoe prolongado. Acontece, por exemplo, que urn escritor sepode integrar simulclneamente no neoc1assicismo e nopre-romahtismo - 0 caso de Bocage e muito elucidativo -,ou pode acontecer que urn poeta tenha' iniciado a suacarreira dentro dos moldes do barroco tardio e que tenhaaderido depois ao credo neoc1assico, apresentando ainda,em conjuns:ao com estes elementos, urna forte coloras:ao

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pre-rom~tica (6 0 caso expressivo de Joao Xavier deMatos) (I).

..divergentes. Apresentar Voltaire, por exemf'lo, como urnautor estruturalmente rococ6, equivale a desconhecer asubsta?cia do iI~minismo: «qu~ l~aja elementos de gostorococo em VoltaIre», acentua Bmm, «pode ser aceite, desdeque tal seja precisado numa completa descriyao crftica daobra voltairiana, e nao absurdamente alargado a motivocentral da persollalidade e do estilo do autor do Siecle deLouis XIV e das tragedias classicista-iIuministas»(4).

Na verdade, 0 rococ6 devera antes ser consideradocomo uma das linhas de forya, como urn dos componentesartfsticos do emaranhado seculo XVIII, como a expressaode certos aspectos da sensibilidade c do espfrito destaepoca. Entre os caracteres mais relevantes do estilo rococ6devem. s.:r re~e~dos: a r~cusa do sublime, do «grand gout;c da Vlsao traglca da vIda; 0 gosto pela natureza simplese tranquiIa, ccnado para eIegantes e voluptuosas «feteschampetres» e para temos idilio~; conce[yao da vida comourn ~onho de feIicidade (5), valorizayao da intimidade, querna :VIda,quer na arte; preciosismo estilistico, graciosidade,pohdez, frfvola elegancia, afectayao sentimental, erotismorefinado, velada melancolia que perpassa sob os sorrisosdas festas e a grac;a dos idilios; gosto pela ironia, peloesprit. Esta sensibilidade traduz-se significativamente emcertas palavras e expressoes francesas que podemos consi-derar como particularmente caracterfsticas do rococ6:mignardise, marivaudage, petit, gamineries foIles, jolies baga-telles, galanterie, fragiles merveilles, etc.

2 - Por estas razoes, parece inaceitivel a tentativalevada a cabo por alguns estudiosos no sentido de colocara generalidade das manifestayoes literarias do seculo XVIIIso~ o. signo de uma 6ni.ca ·categoria periodol6gica e esti-lisoca: 0 rococ6(2). Efecovamente, 0 conceito de rococ6,originmo .das artes plasticas, tern sido considerado poralguns crfocos como 0 elemento fundamental para a inter-pretac;ao dos autores mais dfspares do seculo XVIII, comoMari,:aux e Voltaire, Rousseau. e Chenier, etc. (3). Taistent~t1vas, como observa Walter Binni, s6 sao posslveismediante uma forte confusao que permite reduzir a urnesquema unitario atitudes culturais c estilisticas muito

(1) - Cf. J. do Prado Coelho, «SubsIdios para 0 estudo de ]oao Xavierde MatoS», in Revista da Faculdadede Letras. 1957.

(2) - 0 voclbulo «roc0c6» deriva do franc& rocaille. que design a«obra ornamental que imita os rochedos e as pedras naturaisl). Os neoclassicose os romll.nticos conferiram a palavra «rococ6» um sentido fortemente depre •.ciativo: «diz·se, em geral, de tudo 0 que 6 velho e fora de moda, nas artes, naIiteratura, nos trajes, nas maneiras, etc.» (defini9lio apresentada no Comple·ment au dictionnaire de l'Academie, de 1842). No final do scculo XIX,· 0 voca·bulo transitou para a terminologia da hist6ria da arte, sobretudo na Alemanha,passando depois para 0 domlnio dos estudos literarios. Veja-se uma breve his·t6ria da palavra em WaJter Binni, Classicismo e neoclaSsicismo nella lettera·tura del Settecento. Firenze, La Nuova Italia, 1963, p. 4 ss. Sobre 0 conceitode rococ6 nas artes plasticas, v. Fiske Kimball, The creation of the rococo,New York, The Norton. Library, 1964; sobre 0 conceito de rococ6 na literatura,a1cm do estudoja mencionado de Walter Binni, v. Helmut Hatzfeld, Literaturethrough art. New York, Oxford Univ. Press, 1952; A. Anger, LiterarischesRokoko. Stuttgart, Metzler, 1962; Roger Laufer, Style rococo, style des lumieres,Paris,.Corti, 1963. A recente obra de Philippe Minguet, &thtEtique du rococo,Paris, Vrin,·.1966, ocupa·se do rococ6 sobretudo nas artes plasticas, mas 0

seu interesse 6 muito grande para 0 historiador da literatura.(3) - cr. as obras de Hatzfeld e de Laufer mencionadas na nota anterior.

(4) - Walter Binni, op. dt., p. 14. Alcm de HatzfeJd, a critica de Binnidirige-se a Leo Spitzer, autor de um ensaio (<<L'explication de texte applicataa Voltaire», Critica stilistica e storia del Iinguaggio, Bari, Laterza, 1954) emque Voltaire 6 estudado como urn escritor rococ6.

(S) - Cf. Remy G. Saisselin, «The rococo as a dream of happiness»in Journal of art and aesthetic criticism. 1960, XIX, n.O 2, pp. 145-152; R:Mauzi, L'idee de bonheur au XV/lIt siecle, Paris, Armand Colin, 1960.

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.3 _10 conceito de prt~romantismo data das primeirasdecadas do seculo XX, tendo sido defendido e fundamen-tado sobretudo por Paul Van Tieghem, historiador lite-rio frances(6). Como 0 pr6prio vodbulo indica, 0 conceitode pre-romantismo abarca as tendencias esteticas e asmanifestas:oes de sensibilidade que no seculo XVIII, sobre-tudo a partir da sua segunda metade, se afastam doscanones neoclassicos, anunciando ja 0 romantismo. Istomo significa que 0 pre-romantismo constitua apenas umapreparas:ao do romantismo e que se apresente, por conse-guinte, como urn movimento literario desprovido de fei~oespr6prias, motivo por que a expressao «l'omantismo doseculo XVII!», utilizada por alguns cr£ticos para designaro pre-rom~tismo (7), e inexacta e abre caminho a con-fUlloes. "

o pre-romantismo nao possui verdadeiramente ahomogeneidade.de uma escola literaria, nem apresenta urncorpo sistematico de doutrin~. Isto nao quer dizer, porem,que estejamos diante de uma designas:ao desprovida deconteudo, pois e inegavel que desde meados do seculo XVIIIse manifestam, nas principais literaturas europeias, novosconceitos .esteticos, uma nova temati,..a 'e uma nova sen-sibilidade que, nao obstante as suas divergencias, apre-sentam entre si evidentesafinidades e paralelismos.

A Inglaterra desempenhou urn papel primacial nafloras:ao do pre-romantismo, bastando citar os nomes deYoung, autor dos Night thoughts (1742), de Richardson,

..de; Gray, de Macpherson, autor dos celebres poemas atri-bufdos a Ossian (1760); na Alemanha, 0 pre-romantismoexplode com 0 movimento do Sturm und Drang ; em Frans:a,reyela-se em autores como Diderot, Bernardin de Saint--Pierre, Prevost, Rousseau, etc.; em Portugal, 0 pre--r6mantismo afirma-se atraves de Jose Anasclcio da Cunha,de Bocage, da Marquesa de Aloma, de Filinto Elfsio,de Xavier de Matos, de Tomas Ant6nio Gonzaga.

Uma .caracterlstica fundamental da literatura pre--romantica consiste na valoriza~ao do sentimento. 0 cora-s:ao triunfa do racionalismo neoclassico e it uminista, trans-formando-se na fonte por excelencia dos valo res humanos.A sensibilidade aparece como 0 mais legitimo titulo denobreza das almas e a bondade e a virtude sac conside-radas como atributos naturais das almas sensiveis. A vidamoral passa deste modo a ser regida pelo sentimento,sobrepondo-se os direitos do coras:ao as exigencias da lei,das convens:oes e dos preconceitos sociais, em suma, asexigencias das normas jurldicas ou eticas impostas doexterior.

A literatura comes:a a devassar os segredos da inte-rioridade humana, dissecando gostosa e despudoradamenteos recantos mais intimos da alma e do corpo. Primeirageras:ao europeia de egotistas, os pre-roman ticos criaramuma literatura confessionalista que alcans:a por vezes umaaudacia e urna profundidade ainda hoje singulares (bastaapontar Les cOhJessionsde Rousseau) e que provoca vio-lentas reacs:oes afectivas em largo numero de leitoresdo tempo (caso do Werther de Goethe, que originou najuventude europeia urna onda de suicldios).

A sensibilidade pre-romantic a apresenta muitas vezesum caracter temo e tranquilo, como a suave emos:ao quese experimenta ante uma bela paisagem ou como as melan-

(6) - V. Paul Van Tieghem, Le preromantlsme, Paris, 1924, 1930, 1947o 1960 (4 vols).

(7) -cr. Daniel Mornet, Le romantlsme en France au XVIllt slicle, 2.-ed., Paris, Hachetto, 1925,

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c6licas ~ doces Iagrimas que suscita uma saudosa Iem-branya.·Outras vezes, porent, esta tema melancolia dolIugarao. d~o ~ a angustia, a JPsteza irremediavel e aagttas:ao sombna, comprazendo-se enta~ 0 poeta nas visoeslugubres, nas paisagens noctumas, agrcstes e solidrias,nas tintas negras do locus horrendus, como se verificaneste excerto de Bocage:

E vas, a Cortesaos da E~curidade,Fantasmas vagos, Mochos piadores,Inimigos, como eu, da Claridade:

Em banJos acuJi aos meus clamores:Quero a vossa meJonha sodedade I

Quero fartar meu Corafao de horrores (8).

. trata apenas de uma maior capacidade descritiva do mundoexterior, trata-se acirna de tudo de uma nova visao dapaisagem: ~I!..tE~a natureza e 0 eu estabelecem-se relas;oesafectivas; os lagos, as arvores, as montanhas, etc.,asso-ciam-se intirnamente aos estados de alma, e 0 escritorestende sobre todas as coisas 0 veu das suas emoc;:oes edos seus sonhos. A. literatura pre-romfultica se deve arevelas;aoda beleza melanc6lica do Outono, nao do OutonoIisonho e fecundo, estas;ao dos frutos e das colheitas, quea arte c1assicaja descrevera e pintara, mas do Outonoelegiaco e solitario, tempo das folhas caidas, do sol palidoe dos crepusculos magoados. Deve-se ainda ao pre-roman-tismo a descoberta da paisagem montanhosa, contrastadae selvagem, para 0 que muito contribufram as descris;oes depaisagens alpinas que se encontram em La nouvelle Heloisede Rousseau.

A literatura pre-romantica traduz ja urn forte dec1i-

Inio das influencias greco-latinas e urn acentuado distan-ciarnento dos canones esteticos do c1assicismo, emboraalgumas vezcs os escritores pre-romanticos se vejam obri-gados a vazar uma sensibilidade nova dentro das formaspoeticas e estillsticas da tradic;:ao c1assica. A rebeldiacontra as regras e as imposic;:oes do c1assicismo atingiuo mais alto grati de exasperac;:aono Sturm und Drang: 0

genio, f~damento da criac;:aopo.etica nas d?~trinas do pre--romantismo, e uma fors;a alhela ao dormmo da razao, einsusceptivel, por conseguinte, de ser submetida a pre-ceitos.· .

As influencias greco-Iatinas sac gradualmente subs-tituidas por novos modelos e por novas fontes. Shakespeareconstitui 0 mais influente modelo do pre-romantismo euro-peu, devendo ser tambem mencionados os poemas deOssian, as Noites de Young, as Estafoes de Thomson, ospoemas buc6licos de Gessner, etc.

ds dolorosos pressagios, os sonhos ruins, a morteconstituem outros aspectos desta tematica atormentada dopre-rornantismo.

A poesia cia noite e dos mmulos, originaria da litera-tura inglesa, e de que as obras rnais representativas sacThe night thoughts de Young e a Elegy written in a countrychurchyard de Gray, teve grande voga no pre-romantismo

\ europeu. A meditas;ao sobre a noite, os sepulcros e a morte. insere-se na tematica pessimista atras indicada, e traduz"a nostalgia do irtfinito e a funda insatisfas;ao espiritualque ji angustiam os pre-romanticos e que hao-de revelar-sernais exacerbad:unente nos romanticos.

o sentimento da natureza e da paisagem constituioutro trac;:orelevante da literatura pre-romantica. Nao se

(8) _ Apud Poetas pre-romdnticos. sel., inlrod. e nolas de Jacinto doPrado Coelho, Coimbra, Atl9.ntida, 1961, p. 82.

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4 _i 0 voclbulo <<romantico»,tal como «barroco» ou«classico»,apresenta uma ~t6~a com~lexa (9). Do adver-bio latino * romanice, que slgnificava «a manetra dos ro~a-nos» derivou em £rances 0 voclbulo romanz, escntorom~ant depois do seculo XII e roman a partir do seculoxvn. A paIavra rommant designou primeir~ente a ~-gua vulgar, por oposic;:aoao latim~ tendo vrndo. d:po~ adesignar tambem urna certa espeoe de composlc;:ao lite-dria escrita em lingua vulgar, em verso ou em pros~,cujos temas consistiam em complicadas aventur as her61-cas ou corteses.o voclbulo £rances rommant passou para a linguainglesa sobre a forma romaunt. Cerca de ~eados ~o ~culoxvn encontramos J' a em uso, em £ranees e em mgles, os, d 'adjectivos [omanesque e romantic, correspon entes aque-les substantivos (10). .

No seculo xvn, 0 adjectivo ingles romantic signi£i~a«como os antigos romancCS), e pode qualificar uma pat-sagem, uma cena ou w:n monurnento - em 1666, Pepys

(9) - Sobre a bist6ria da palavra <<romftntico». cf.:' Alexis Fran90is,<<Romantique», in Annales Jean-Jacques Rousseau" V (1909), e «Oll en estromantique'l», Melanges offerrs d F. Baldensperger, Paris, ~930, vol. 1; Fernand Baldensperger, <<Romantique"':" ses analogues et eqUivalents», in J/.ar.vard studies and notes in philology and literature, XIV (1931); L. P. S[~lIlh<<Four words: romantic, originality, creative, genius», Words and idIOms.London, Constable; 1925: Mario Praz, <<Romantic: an approximative term»,The romantic agony, 2.&cd., London, Oxford Univ. Press, 1951; Rene We1lek.(<Theconcept of romanticism», Concepts of criticism, New Haven - London,Yale Univ. Press, 1963.

(10) _ ~ a partir da segunda metade do secul0 XVII que 0 Oxfor~ dictio-nary dA acolhida Afamilia de palavras derivadas de romaunt. Segundo info~aF. L. Lucas, The decline andfall of the romantic ideal, Cambridge, at the Uruv.Press, 1948, p. 17, as datas de acolhida daquelas palavras no Oxford dlctlonarysllo as seguintes: romancial, 1653: romanc(cal, 1656; romancy, 1654; romantic,1659: romantica/, 1678; romanticly, 1681, etc.

refere-se ao castelo de Windsor como <<themost romanti-que castle that is in the world» (11)-, ou pode oferecerurn signfficado estetico-literario. Com efeito, Rene Rapinmenciona, em 1673, a «poesie romanesque du Pulci, duBbiardo, et de l'Arioste», e Thomas Rymer, no ano se-glfinte, traduz este passo de Rapin do seguinte modo:«Romantick Poetry of Pulci, Bojardo, and Ariosto~ (12).Neste texto de Rymer, 0 vodbulo «romantico~ possuic1aramente:urn significado litedrio, referindo-se ao caracterfantasioso e romanesco de alguns poemas que, por issomesmo, pareciam afastar-se das normas estritamente c1as-sicas. '

Nao admira que na atmosfera racionalista que en-volve a cultura europeia desde os finais do seculo xvn,o vocabulo romantic ,Passe a significar quimerico, ridiculo,absurdo, qualidades (ou defeitos) que se atribufam precisa-mente aos romances e poemas romanescos, quer da lite-ratura medieval, quer de Ariosto, de Boiardo, etc. Talcomo «g6tico~, romantico designa, na epoca do iluminis-mo, tudo 0 que e produzido pela imaginac;:aodesordenada,aquilo que e inacredicive1 e que reflecte urn gosto art£s-tico irregular e mal esclarecido.

No entanto, a par deste significado pejorativo, a pa-lavra que virnos a, analisar oferece no seculo XVIII urnouto sentido: a medida que a imaginac;:ao adquire impor-tfulcia e a medida que se desenvolvem formas novas desensibilidade, romantic passa a designar 0 que agrada aimaginac;:ao,0 que desperta 0 sonho e a comoc;:aoda alma,aplicando-se as montanhas, as florestas, aos castclos, etc.Nesta acepc;:ao- que, como foi dito acima, ja remonta ao

(11) - cr. Mario Praz, Tht romantic agony. p. 12.(12) - Tcxtos citados em Rene Wellek, Concepts of criticism, p. 131.

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secu10XvrI -, foi-se ohliterando a conexao do vodhulocom 0 genero litedrio do romance, tendo vindo romantica exprimir sobretudo os aspectos melanc61icos e selvagenscia natureza.

o vodbulo ingles romantic era vertido para franeesora por rOl1lanesq,~e,ora por pittoresque. Em 1776, porem,Letourneur, no prefacio da sua tradtiqao da ohra de Sha-kesoeare, distingue romantique de romanesque e de pitto-resq~,e, analisando os respectivos matizes semanticos eexpondo os motivos que 0 levavam a preferir romantique,«palavra ingl.esa»: 0 vodhulo, .segundo Letourne~r,«encerra a idela dos elementos assoClados de uma manelranova e variada, pr6pria para e~pantar os c;entidos», evo-cando, alem elisso, 0 sentimento de terna emoqao que seapodera cIa- alma peraute uma paisagem, urn monurnento,uma cena, etc. Em 1777, 0 marques de Girardin, na suaohra De Iacomposition ;~es paysages, usa igualmente 0dajectivo romimtique, mas a palavra adquire definitiva-mente direito de cidadania na l£ngua francesa, quandoRousseau, nurn passo famoso das suas Reveries d' un pro-meneur solitaire, escreve que «asmargens do lago de Biennesao mais selvagens e romanticas do que as do lago de I

Genebr:i.»(13). Atraves do frances, 0 vocabulo penetroudepois noutras l£nguas, como 0 espanhol e 0 portugues.

Voltemos, todavia, ao significado literario da palavraromantico, que, como ficou acima exposto, esta ja. docu-mentado no, seeulo XVII. 0 vodbulo romantic reapa-rece, com urn sentido similar ao que apresenta no textoja. mencionadode Rymer, na History of english poetry(1774) de Thomas Warton, cuja introduqao se intitula

. «The origin of romantic fiction in Europe». Para Warton,o termo romantic designa a literatura medieval e parte daliteratura renaseentista (Ariosto, Tasso, Spenser), isto e,urna literatura que se afa.sta das normas e convenq5esvigentes na literatura greco-latina e no neoc!assicismo.Friedrich Bouterwek, na sua Hist6ria da poesia e da elo-quencia desae 0 Jim do secufo XIII (Geschichte der Poesieund Beredsamkeit seit dem Ende des dreizehnten Jahrhun-derts, 180r-180s), considera como auto res «romanticos»nao s6 Ariosto e Tasso, mas tambem Shakespeare, Cer-vantes e Calder6n, quer dizer, autores que se inseriamnuma tradiqao literaria diferente da tradiqao neoc!assica(e e significativo, efectivamente, observar que quase todosos autore$ classificados como «romanticos» por Bouter-wek, haviam de ser mais tarde integrados no barroco).

Friedrich Schlegel, embora num dos seus Fragmentospublicados no Athenaeum conceba a poesia romanticacomo aquela relacionada com 0 genero· literario doRoman (14),. advoga tambem urna noqao latamente hist6-rica de literatura romantica, abrangendo autores comoShakespeare, Cervantes e Dante: «Assim posso eu pro-curar e encontrar 0 Romantismo nos primeiros modernos :em Shakespeare, em Cervantes, na poesia· italiana, nesseseculo dos cavaleiros, do amor e das 1endas, donde sarrama palavra e a coisa ... » (15). Noutro fragmento do Athe-naeum, Friedrich Schlegel afirma que (<;1 universalidadede Shakespeare e como que 0 ponto central da arte roman-tica»(16).

(14) - Sobre 0 significado de «romllntico» em Friedrich Schlegel, cf.Arthur O. Lovejoy, <<Themeaning of «romantic» L.l early german romanti-cism», Essays in the history of ideas, New York, Capricorn Books, 1960.

(IS) - Texto incluldo no vol. Les romantlques allemands, Paris, Descl6ede Brouwer, 1954, p. 273.

(16) - Ibid., p. 268.

(13) - As Reveries d' un promeneur solitaire foram concluldas em 1778,tendo sido publicadas em 1782. 0 passo mencionado pertence 11«cinquiemepromenade».

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A par deste conceito latamente hist6rico de literaturaromantica, aparece tambem com frequencia, no inicio doscculo XIX, um conceito tipol6gico de romantismo, cor-porizado principalmente na oposiyao classico-romantico.Goethe reivindicou a paternidade desta famigerada dis-tinyao, mas foi indubiravelmente August Wilhelm Schlegelquem, inspirando-se em boa parte na oposiyao estabele-cida por Schiller entre poesia inglnua e poesia sentimen-tal (17), elaborou a mais sistematica e mais influente expo-siyao sobre as diferenyas existentes entre a arte classicae a arte romantica. Na decima terceira liyao do seu Cursode literatura dramatica, A. W; Schlegel caracteriza a arteclassica como uma arte que exclui todas as antinomias,ao contrario da arte romantica, q~e se compraz na sim-biose dos generos e dos elementos heterogeneos: naturezae arte, poesia e prosa, ideias abstractas e sensac;5es con-cretas, terrestre e divino, etc.; a arte antiga e uma espe-cie de «nomos rftmico, uma revelac;ao harmoniosa e regu-lar da legislayao - fixad~ para sempre - de um mundoideal em que se reflectem os arquetipos etemos das coi-sas», ao passo que a poesia romantica «e expressao deuma misteriosa e secreta aspirac;ao pelo Caos incessante-mente agitado a fim de gerar novas emaravilhosas coi-sas»; a inspirac;ao da arte classica era simples e clara,diferentemente do genio romantico que, «apdar do seuaspecto fragmencirio e da sua desordem aparente, estacontudo mais perto do misteno do universo, porque, se a

inteligencia jamais pode apreender em cada coisa isoladasenao uma parte da verdade, 0 sentimento, em contrapar-tida, ao abranger todas as coisas, compreende tudo e emtudo penetra:t; a tragedia classica pode ser comparada aurn grupo escult6rico, pois tanto na escultura como natragedia classica «cada figura corresponde a urn caracter,e Ia maneira como elas estao agrupadas constitui a acc;ao»,ao passo que 0 drama romantico deve ser comparado comurn quadro de pintura, «onde nao somente aparecem figu-ras nas atitudes mais variadas e formando grupos comos movimentos mais diversos e mais ricos, mas tambemobjectos que se encontram a volta das personagens e atea representac;ao dos longes, de tal modo que 0 conjunto seencontra banhado por uma luz magica que, precisamente,determina e orienta 0 seu efeito singular» (18). A tradu-c;ao francesa do Curso de literatura dramJtica, realizadaem 1813 por M.me Necker de Saussure, divulgou em lar-gas camadas de publico a antinomia clJssico-romantico;a obra de M.me de Stael De l'Allemagne, publicada emLondres em 1813 e em Paris em 1814, em cujo capitulo Xlda Segunda Parte Sf" resumem as ideias de A.W. Schlegelacerca das diferenc;as entre a arte classica e a arte roman-tica, contribuiu de modo decisivo para a difusao daquelaantinomia. A celebre afirmac;ao de Goethe de que «0 clas-sicoe a saude, 0 romantico e a doenc;a», exprime tambemuma concepc;ao tipol6gica do romantismo e do classicismo,opondo 0 equilibrio e 0 desequilibrio, a serenidade ea agitac;ao, etc.

Importa agora averiguar quando e como a designa-c;ao de romantico. comec;ou a aplicar-se a literatura con-temporanea. Na Alemanha, onde 0 romantismo se afirma

(17) - Schiller expOs esta doutrina na sua obra Sobre a poesia Ingenua esentimental (Obcr naive und sentlmentallschc Dlchtung, 1795-1796). A «poesiaI ngenua» 6 a poesia natural, essenclalmente objectiva, phistica e Impessoal,caracterlstica da antlguidade greco-latina; a «poesia sentimental» 6 a poesiasubjectiva, pessoal, musical, fruto do confiito entre 0 eu 0 a sociedade, entre 0ideal e 0 real, e caracterlstica da 6poca modema e cristiI.

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poderosamente desde finais do secu!o XVIII com a revistaAthenaeum (1798), foram os escritores do grupo deHeidelberg - von Arnim, Brentano e Gorres - os pri-meiros a adoptar para si pr6prios a designa~ao de roman-ticos; em 1819, no decimo primeiro volume da sua Ge-schichte der Poesie und Beredsamkeit, ja Bouterwek estu-dava como romanticos Brentano e 0 gropo de Jena; em1833, Heine publicou 0 seu volume intitulado RomantischeSchule. Na Inglaterra, onde 0 romantismo domina desde 0

principio do seculo XIX, s6 bastante tarde foi aplicada adesigna~ao de romanticos aos escritores dos primeirosanos daquele scculo (19), ao passo que na Fran~a pareceter sido Stendhal, em 1818, 0 priineiro escritor a desi-gnar-se a si pr6prio como romantico: «Sou um romanticofurioso, que~ di.zer, sou· por Shakespeare contra Racine epor Lord Byron contra Boileau» (20).

Tanto na Icllia como na Fran~a, onde 0 romantismoe tardio em re1a~ao as literaturas inglesa e alema, exis-tem gropos romanticos, opondo-se conscientemente aescritores classicos, desde 1816 e 1820, respectivamente,embora as manifesta~oes mais significativas do roman-tismo frances ocorram alguns anos mais tarde (publi-ca~o de Cromwell, 1827; representa~a6 e «batalh:l» deHernani, 1830)(21). Nas literaturas espanhola e portu-guesa, aparecem os primeiros. grupos romanticos durantea terceira decada do seculo XIX, concomitantemente coma lnstaura~ao de regimes liberais nos dois paises da Penfn-

sola Iberica e com 0 regresso de exilados que, na Fran~ae na Inglaterra, haviam conhecido as novas tendenciasestetico-literirias.

5 - Num importante estudo que consagrou aoromantismo, Rene Weliek defende, contra 0 parecer deArthur Lovejoy e de outros cnticos, que 0 romantismoconstitui de facto um movimento unificado, oferecendoatraves da Europa «a mesma concepc;:ao da poesia, dasobras e da natureza da imaginac;:ao poetica, a mesmaconcepc;:aoda natureza e das suas relac;:ocscom 0 homem,e, basicamente, 0 mesmo estilo poetico, com um uso daimagistica, do simbolismo e do mito que e claramentedistinto dodo neoclassicismo do seculo XVIII» (22). Naverdade, se se verificam assincronias e diferenc;:asmutuasacentuadas entre· as varias Jiteraturas romanticas euro-peias, nao e menos certo que em todos os movimentosromanticos nacionais se revelam alguns prindpios basi-lares que permanecem constantes e que conferem unidadesubstancial ao penodo romantico. Os principios roencio-nados por Rene Weliek - identica concep~ao da poesia, daimaginac;:aopoetica, da criac;:aoartfstica, etc. - sac inques-tionavelmente de primeira imporrancia, mas nao nosocuparemos agora deles, pois que ja os estudamos noutrocapitulo da presente obra(23). Parece-nos, porem, queestes roesmos prindpios promanam de um outro principiomais geral que constitui 0 fundamento primario de toda aestetica e de toda a psicologia romanticas - uma novaconcepc;:ao do eu, uma forma nova de Weltanschauung,radicalmente diferentes da concepc;:ao do eu e da Welt-anschauung tfpicas do racionalismo iluminista.

(19) - cr. Rene WelIek, Concepts of criticism, pp. 149·150.(20) - Stendhal, Correspondance, Paris, Divan, 1934,t. V, p. 137.(21) - Sobre 0 debate rom~tico italiano, cr. Mario Fubini, «La

polemica romantics», Romanticismo italiano, Bari, Laterza, 1953: sobre osgropos rom~tlcos franceses. cf. Rene Bray, Chronologie du romantlsme (1804.·1830), Paris. Nizet, 1963.

(22) - Rene Wellek, Concepts of criticism, pp. 160·161.(23) _ Cf., no capitulo III da presente obra. os panigrafos 2.1 e 5.3.

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6;- A concep~o do Eu elaborada pela filosofia idea-lista germanica, sobretudo por Fichte e Schelling, consti-tui urn dos elementos dorsais do romantismo alemao e,de modo difuso, de todo 0 romantismo europeu.

Desenvolvendo, como ele pr6prio reconheceu, algunsconceitos do pensamento kantiano, Fichte desviou de modototal a filosofia dos objectos exteriores, superando assima posi~o de Kant, que conservara os conceitos de «coisaem Sille de «numeno». Para Fichte, 0 Eu constitui a rea-lidade primordial e absoluta, tal como a consciencia de sirepresenta «0 principio absoluto de todo 0 sabeD>.0 Eufichtiano afirma-se a si pr6prio, revelando-se como Euabsoluto, pois «a sua essencia consiste Unicamente nofacto de se afirmar ele pr6prio como sendo», e como Eupuro, pois 0 Eu e uma actividade pura, isto e, urna acti-vidade que nao pressupoe urn objecto para se realizar,mas que cria esse objecto no pr6prio acto de se realizar:«Eu sou muito simplesmente 0 que sou, e sou muito sim-plesmente porque SOW). Quer .dizer, 0 Eu e simuldnea-mente agente e produto da acyao, tendo Fichte definidoesta natureza dupla e ao 1!lesmo tempo Unica do Eu como voclbulo Tathandlung. A actividade pura do Eu e 0 Eupuro sac infinitos, defmindo-se esta actividade pura comoa «faculdade absoluta de prduyao dirigindo-se para 0 ili-mitado e 0 ilimiclvel», isto (;, definindo-se como a infIni-tude do Eu. Se, num primeiro momento, 0 Eu se auto-afir-ma, a sua actividade nao e possivel sem uma oposiyao: 0Eu opoe-se urn nao-Eu. Desta oposiyao, que obriga 0 Eua reflectir-se e a limitar-se, depende a consciencia - quetem de ser consciencia de algurna coisa - e 0 desdobra-mento do ideal e do real, do conhecer e do ser.

A teoria fichtiana do Eu absoluto influenciou pro-fundamente a concepyao romantica do eu e do universo,pois os romanticos, interpretando erroneamente 0 pensa-

mento de Fichte (24), ideniificaram 0 Eu puro com 0 eudo individuo, com 0 genio individual, e transferiram paratste a dinamica daguele. 0 espirito humano, para os roman-ticos, constitui uma entidade dotada de uma actividadeque tende para 0 infinito, que aspira a romper os limitesque 0 constringem, numa busca incessante do absoluto,cmbora este permaneya sempre como um alvo inatin-glve!. Energia infinita do eu e anseio do absoluto, porurn lado; impossibilidade de transcender de modo totalo finito e 0 contingente, por outra banda - eis os grandesp610s entre os quais se desdobra a aventura do et: roman-tico. «Por toda a parte procuramos 0 Absoluto», escreveNovalis num dos seus Fragmentos, «e nunca encontramossenao objeetos» (25). .

o mundo romantico, diferentemente do mundo huma-rllstico e do mundo iluminista, escl radicalmente abertoao sobrenatural e ao misterio, pois representa apenas <mmaapariyao evocada pelo espfrito». No pr610go da segundaparte do ·romance de Novalis Heinrich von Ofterdingen,Astralis grita: «Espfrito da terra, 0 teu tempo passou!»Tudo 0 que e visivel e palpivel nao representa 0 real ver-dadeiro, pois que 0 autentico real nao e perceptivel aossentidos. 0 verdadeiro conhecimento exige que 0 homemdesvie 0 olhar de tudo quanto 0 rodeia e desya dentro desi pr6prio, Ii onde mora a verdade ta~ ansiosamente pro-eurada: «l~para 0 interior que se dirige 0 caminho mis-

(24) _ Com ereito, Fichte acentua na Doutrlna da clJncla que 0 Eu deveser concebido na inteira abstra~o de qualquer individualidade. cr. RogerAyrault, La genese du romantlsme allemand. Paris, Aubier, 1961, t. I, p. 203.Sobre a infiucncia de Fichte DO romantismo, vide Camille Schuwer, «Lapart de Fichte dans I'esthetique romantique», Le romantlsme allemand, texteset etudes publiCs sous la direction de Albert Beguin, Les Cahiers du Sud, 1949.

(23') - Les romantiques allemands, p. 206.

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terioso.1 Em n6s, ou em parte. nenhuma, esmo a etemidadee os seus mundos, 0 futuro e 0 passado. 0 mundo exteriore 0 universo das sombraS>l,conclui Novalis (26).

7 - Com esta concepyao do espfrito e do real, rela-ciona-se intimamente 0 conceito de Sehnsucht, palavraalema difici1mente traduzfvel que significa a nostalgia dealgo distante. no tempo e no espayo', para que 0 espfritotende irresistlvelmente, sabendo todavia deantemao quelhe e impossfvel alcanyar esse bem sonhado.

Friedrich Schlegel caracteriza a poesia romanticacomo «nma poesia universal progressiva», afirmando quea sua essSncia reside na sua insatisfas;ao perpetua (Sehn-sucht): 0 caracter especffico da arte romantica consiste«em jamais.poder atingir a perfeiyao, em ser sempre eem se tomar etemamente nova. Nao pode ser esgotadapOl' qualquer teoria e s6 uma crftica. divinat6ria poderiaarriscar-se a querer definir 0 seu ideal» (27).

Os her6is romanticos, de Rene a Chatterton, de Hein-rich von Ofterdingen a Don Alvaro, sentem-se empolgadospor um anelo indefinfvel, perseguindo com ardente deses-pero um ideal abscondito e distante, buscando angustio-samente a verdade que lhes poderia iluminai" 0 abismocia vida.

mftica que os romanticos frequentemente exaltam comosfmbolo e paradigma da condiyao titaruca do homem, poisque, tal como Prometeu, e 0 honiem um ser em partedivino, «um turvo rio nascido de uma fonte pural>, cujodestino e urdido de miseria, solidao e rebeldia, mas quetriunfa deste destino pela revolta e transformando emvit6ria a pr6pria morte, como proclamou Byrun: «Na tuapaciente energia, na resistencia e na revolta do teu inven-civel Espfrito, que nem a Terra nem 0 Ceu puderam aba-lar, herdamos n6s uma poderosa liyao; tu es para os Mor-tais um sfmbolo e urn sinal do seu destino e da sua forya.Como tu, 0 Homem e em parte divino, urn turvo rio nas-cido de uma fonte pura; e 0 Homem pode prever fragmen-tariamente 0 seu destino mortal, a sua rniseria,a suarevolta, a sua triste existencia solitaria, ao que 0 seu Espf-rito pode opor a sua essSnci~ a altura de todas as dores,uma vontade firme e uma consciSncia profunda que, mesmona tortura, pode descobrir a sua recompensa concentradaem si pr:6pria, pois que triunfa quando onsa desafiar eporque faz da Morte uma Vit6rial>(28).

Sam, tal como Milton 0 pinta no Paradise lost-majestoso anjo caldo em cujos olhos belos mora a tristezae a morte; animado de urn herofsmo sombrio e orgulhoso,proclamando corajosamente a gl6ria e a grandeza do seudesafio ao Criador -, tornou-se outro grande sfmbolopara os romanticos, como personificayao cia rebeldia e claaspirayao de alcanyar 0 absoluto (29). Caim e igualmente

8 - A aventura do eu romantico apresenta uma fei-yao de declarado titanismo, configurando-se 0 her6i roman-tico como um rebelde que se ergue, altivo e desdenhoso,contra as ·leis e os lirnites que 0 oprimem, que desafiaa sociecIade e 0 pr6prio Deus. Prometeu e a figura

(26) - Ibid., p. 207.(21) - Ibid., p. 207.

(28) - Byron, <<Prometheus»,Poems, London - New York, Dent-Dutton, 1963,vol. I, p. 182. Sobre 0 mito de Prometeu na Iiteratura europda,cr. R. Trousson, Le theme de Promethee dans fa fitterature europeenne, Geneve,Droz, 1964, 2 vols.

(29) - Cf. na obra mencionada de Mario Praz, The romantic agony,o capItulo intitulado «The metamorphoses of Satan».

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interpretado pelos romanticos como um sublime rebeldeque, torturado pela miseria e pela dor do destino humano,avido da eternidade e do infinito, se recusa a obedecerdocilmente a Deus, chamando os outros homens a revoltaher6ica, preferindo a morte a vida efemera e escravizada:«Trabalhei e lavrei, suando ao sol, de acordo com a maldi-c;:aodivina: devo fazer mais alguma coi~a? Porque haviaeu de ser d6cil? Pela guerra travada com todos os ele-mentos antes que eles nos cedam 0 pao que comemos?Porque havia eu de ser reconhecido? Por ser p6, por ras-tejar no p6 ate que volte 30 p6?» (30). Tarnbem D. Joao, 0

gozador impenitente e libertino do teatro seiscentista, setransforma com 0 romantisrno num peregrino do absoluto,buscando reencontrar atraves do arnor, como Fausto atra-yes da ciencia, 0 parafso perdido, 0 segredo do universo, aunidade primordial.

Muitas vezes, os romanticos transferem para certasfiguras humanas a revolta, 0 desafio idealista, a fome deabsoluto que cOnSumiarnPrometeu, Sara, Cairn ou D. Joao.o bandido, 0 pirata, 0 fora-da-lei, filhos de Sara pela rebel-dia e pela generosidade, constituem figuras das mais admi-radas pelos romanticos, tendo Schiller criado .em KarlMoor, her6i do seu drama Die Rauber (1781), uma figurade bandido que ficou paracligmatica.

Tarnbem no homem jatal do romantismo se reencon-tram muitos elementos caracterlsticos de Sara, desde afisionomia - face· pilida, olhar sem piedade -, ate aotemperamento e as feic;:5espsico16gico-morais - melan-colia irradicavel, desespero, revolta, pendor inelutavel paraa destruic;:aoe 0 mal. Childe Harold, Manfredo, L:l.ra-eis outros tantos homens fatais atraves de quem Byron

exprimiu 0 seu titanismo e atraves dos quais se divulgouna Europa esse tipo de her6i romantico.

Outras vezes, sao as figuras dos poetas geniais, des-grac;:adose perseguidos pela sociedade, condenados a soli-dao, incompreendidos pelos outros homens, desafiando 0

d'~StinO,que os romanticos exaltarn como sfmbolos daaventura ticinica do homem. Por isso 0 romantismo sedeixou fascinar pela hist6ria e pela lenda de poetas comoDante, exilado e foragido, Tasso, enc~rcerado e demente,Cam5es, amante infeliz e desterrado, etc.

9 - Da falencia desta aventura, da impossibilidade derealizar 0 absoluto a que se aspira, nascem 0 pessimismo,a melancolia e 0 desespero, a volupia do sofrimento, abusca da solidao. 0 mal du siecle, a indefinivel doen<;:aquealanceia os romanticos, que lhes enlanguesce a vontade,entedia a vida e faz desejar a morte, s6 podera ser correc-tamente entendido no contexto da odisseia do eu roman-tico, pois que exprime 0 cansac;:oe a frustrac;:aoresultantesda impossibilidade de realizar 0 absoluto. Nas Viagens naminha terra, Carlos, ao analisar 0 seu problema psicol6gicoe moral, escreve estas palavras muito reveladoras acercado caracter do mal du siecle: «Eu estou perdido. E semremedio, Joana, porque a minha natureza e incorriglvel.Tenho energia demais, tenho poderes demais no corac;:ao.Estes excessos dele me mataram ... e me matam!»(31) 0mal du sieclenao se pode entender, portanto, como a sinto-matologia de aImas anemicas que, desprovidas de audi-cia para a aventura e isentas de fundos anseios, se fechamreceosas em si mesmas. A energia anfmica super-a bun-

(31) - Almeida Garrett, Viagens na minha terra, Lisboa, Portug2JiaEditora, 1963, pp. 308·309.

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dante, geradora de tensoes insuportaveis, mae dos infi-nitos desejos e dos sonhos sem limites, e que explica essaestranha florescencia de tedios e agonias que devastou asensibilidade romantica. '

subjacente a consciencia de que cada triunfo e apenas 0

preludio de um novo combate, numa cadeia infindavel degestos e actos incessantemente recomeyados. Destino deSfsifo, tentayao do absurdo... '

11- Profundamente desgostado da realidade cir-·cunstante - ehcarnayao do efemero, do rinito e do imper-feito -, em conflito latente ou declarado com a sociedade,lacerado pelos seus dem6nios fntimos, 0 romantico pro-cura ansiosamente a evasao: evasao no sonho e no fan-cistico, na orgia e na dissipayao, ou evasao no espayo eno tempo (33).

10 - A ironia representa outro importante elementodo romantismo que nao se pode desvincular da acima des-crita concepyao do eu. «A ironia», afirma Friedrich Schle-gel, 0 grande responsave! pela introduyao do conceito deironia na estetica romantica,' «e a clara consciencia daeterna agilidade da plenitude infinita do Caos», isto e, aironia nasce da consciencia do caracter antin6mico da rea-lidade e constitui uma atitude de superayao, por partedo eu, das contradiyoes incessantes da realidade, do con-£lito perpetuo entre 0 absoluto e 0 relativo (32).

A arte, segundo Friedrich Schlegel, exige do criadoruma atitude de ironia, isto e, de distanciamento, desuperioridade em relayao a obra criada, tal como Goetheque parece <<sorrir-seda sua obra-prima» - <> WilhelmMeister - «das alturas do seu espmto». Outros roman-ticos, como Tieck, Brentano e Hoffmann, levaram 0 con-ceito de ironia ate as Ultimas consequencias, int~rpretando-ocomo a exigencia de romper a ilusao da objectividadeda obra literaria, mediant(" a intervenyao do autor noromance, a apariyao do dramaturgo na pr6pria cena, etc.

A ironia romantica, por conseguinte, que exprime asuperayao diaIectica dos limites que se opoem ao espmtohumano, vela-se tambem de perturbantes sombras: e-lhe

11.1 - A evasao no espayo conduz ao exotismo,aogosto pelos costumes e paisagens de parses novos e estra-nhos, e, por vezeSjao gosto pelo barbaro e primitivo.

o exotismo reve1ara-se ja na literatura pre-roman-tica, mas desenvolveu-se grandemente com os romanticos,satisfazendo .ao mesmo tempo os seus anseios de evasao ea exigencia da verdade na pintura do homem e dos seuscostumes. Por isso mesmo, a cor local, ou seja, a repro-dUyao ficl e pitoresca dos aspectos caracterfsticos de umpars, uma regiao, uma epoca, etc., constitui urn dos recur-sos mais vulgarizados na arte romantica.

Entre os paises europeus, a Icilia e a Espanha, parsesde paisagens e costumes tao caracterfsticos, de cohtrastesviolentos e de paixoes exaltadas, representaram as gran-des Fonteseuropeias do exotismo romantico; fora da Europa,o Oriente, com 0 seu misterio, 0 fascfnio das suas tra-diyoes, das suas cores e dos seus perfumes, transformou-seno mito central do exotismo dos romanticos.

(32) - Sobre 0 conceito de ironia em Friedrich Schlegel, cf. ReneWellek, Historia de fa crltica moderna(1750-1950). E/ romanticismo, Madrid,Gredos, 1962, p. 22 88., e Raymond Immerwahr, «The subjectivity or objec-tivity of Friedrich Schlegel's poetic irony», in Germanic review, XXVI (1951).

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11.2 - A evasao no tempo conduziu a reabilitayao eglorificayao da Idade Media, cpoca rust6rica particular-mente denegrida pelo racionalismo iluminista .. A IdadeMedia atra£a a sensibilidade e a imaginayao romanticaspelo pitoresco dos seus usos e costumes, pelo misterio dassuas lendas e tradiyoes, pela beleza nostalgica dos seuscastelos, pelo idealismo dos seus tipos humanos mais rele-vantes - o,cavaleiro, 0 monge, 0 cruzado ... -, mas soli-citava tambem 0 esp£rito dos romanticos por outrasrazoes mais ponderosas.

As primeiras gerayoes romanticas europeias apre-sentam-se impregnadas, em larga medida, de uma ideolo-gia reaccionaria, contraposta aos prindpios revolucio-narios de I789 e ao racionalismo ateu do «seculo dasluzes»(34). Para estes romanticos, cat6licos e anti-revolu-cionirios, a Idade Media representava urna epoca de segu-ranya e de estabilidade politica, social e cultural, que secontrapunham 'a tendencia individualista e desagregadora

do. lib.eralismo europeu, herdeiro da Revoluyao Frahcesa.Fnednch Schlegel, por exemplo, opoe a solidez organica ea saude moral da sociedade medieva, fundamentada nosprindpios cristaos, a anarquia e ao individualismo p<!.gaodos. tempos modemos.

~ Por outro lado, 0 gosto romantico pela Idade Mediaer~afza-se na ftlosofia da hist6ria de Herder, substancial-mente aceit.e pelo romantismo, segundo a qual cada nayaoe urn 0rgamsmo dotado de urn espfrito pr6prio, espfrito quese desenvolve ao longo do tempo, mas que nao se modificanil sua essencia, e que constitui a matriz de todas as mani-festayoes culturais e institucionais de uma nayao. Ora aIctade Media, epoca de gestayao das nacionalidades euro-peias, a~arecia com~ .a primavera do «espirito do POVO»

(~olks.gelst) caractenstlco de cada nayao, como 0 perfodorust6nco em que tal esp£rito se revelara na sua purezaoriginaria, sem ter sido ainda maculado por qualquerinfluencia .alheia (a Renascenya, portadora de va.stasinflu~ncias greco-Iatinas, alheias ao espfrito das nayoesrriedievas, sera dura mente criticada pelos romanticos). Alingua, a literatura, a arte, 0 direito e as instituiyoesmedievais eram considerados como a expressao genuina. enatural do Volksgeist de cada nayao, independentementede regras, de modelos e de deformayoes racionalistas.

Como se depreende, a glorificayao romantica da IdadeMe~i~ tern subjacente uma determinada ideologia politico--religlOsa, prende-se a valores patr16ticos e nacionalistas,ao gosto pelas tradiyoes populares e pelas manifestayoesfolcl6ricas.

o medievalismo romantico influenciou largamente apoesia - baladas, romances, xacaras, etc. -, 0 romancee 0 drama hist6ricos, e exerceu tambem poderoso influxonos estudos hist6ricos e filol6gicos, despertando 0 inte-

(34) - Marsi Paribatra, na sua obra Le romantisme contemporain(paris, Les Editions' Polyglotes, 1954, p. 10), obscrva que nlio e por acasoque von Hardenberg (Novalis), von Kleist, von Arnim, von Chamisso, vonEiehendorff, Lord Byron, Shelley, de Maistre, de Chateaubriand, de Lamar-tine, de Vigny, de Musset, Pushkin, Leopardi, Manzoni eram de origemnobre: «0 movimento de pessimismo e de evasao no irracional eomummentedesignado por romantismo, 'mas ,que·tomarei a Iiberdade de chamar primeiroromantismo, e profundamente urn movimento de rea~ao aristocnitica rela-tivamente a nova ordem social capitalista burguesa. Nlio quero dizer que 0romantismo tenha sido uma maquina de guerra da aristocracia contra a

. burguesia. Nao foi, alias, sentido eomo tal na sua epoca, 0 a inteligentsia,a' alta burguesia adoptaram a moda romantica, sem so darem partieularmenteconta de que se ttatava de uma moda aristocratica. Quando falo aqui de reae-lYlio,e portanto num sentido neutro: em face das novas condi90es de vidaque 0 capitalismo triunfante eria, 0 que subsiste do mundo feudal (nobrese elientela ainda presa A vida feudal) segrega, como reaclYlio,0 pessimismoe a evaslio romantieoS».

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resse pela hist6ria e peIa literatura medievais, pda on-gem das modernas Hnguas europeias, etc.

o romantismo sente-se atraIdo peIo passado, em geral,e peIa ldade Media, em particular, mas constitui, sob mui-tos aspectos, uma· rtJ.ani:festa~aode franca modernidade,pretendendo criarurpa arte nova capaz de exprimir astempos novos, consumando a reac~ao contra a magisterioregulista e dogmatico exercido peIa antiguidade greco--latina, acreditando no progresso do homem e da hist6ria.

o romantismo valorizou as for~as instintivas e arra-cionais,glorificou 0 homem natural, 0 seu primitivismo ea sua espontaneidade, mas apresenta muitas vezes atitu-des subtilmente inteIectualistas - pense-se na ironiaromantica -, e exalta os valores culturais. A arte roman-tica manifesta com frequencia 0 gosto pela fancistico epelo grotesco, por tudo 0 que e excessivo au anormal,deforma as propor~oes e as rela~oes verificaveis na reali-dade; mas revela-se tambem, com frequencia, como umaarte atenta ao real subjectivo e objectivo, procura pintaro homem e 0 mundo com autenticidade, demonstra muitasvezes uma forte capacidade descritiva da natureza fisica.Quer dizer,· e uma arte visioniria, mas e tambem umaarte realista.·

.. Se meditarmos nesta riqueza polimorfa do roman-tismo,nas for~s desencontradas que nele,estuam, na mul-tiplicidade de orienta~oes e sol~~oes que ele virtuaIn:enteoferece, compreendemos as razoes por que a romantlsmotern dinamizado e fecuridado todos os grandes movimen-tos artisticos que se tern sucedido ao longo dos seculosXIX e xx, desde 0 realismo ate ao simbolismo, ao deca-dentismo, ao sun:ealismo e ao existencialismo.

12 - 0 romantismo nao se apreende numa defini~aoau numa formula. A sua natureza e intrmsecamente con-tradit6ria, aparece constitufda par atitudes e movimentosantitcucos, dificilmente se cristaliza num principio ounuma solu~1iounicos e incontroversos Os pr6prios roman-ticos tiveram consciencia do seu protefsmo radical, do seuanseio de scr e de nao ser, qa sua necessidade de assumir,num dado momento, uma··posi~ao, e de, no momentoseguinte, assumir a posi~ao contraria. Para des, a ver-dade e dialectica, pois que, tal como a bd~za, ~esulta ~asfntese de elementos heterogeneos. e anon6nucos, ah-menta-se 4e polaridades e tensoes contfnuas.

Analisemos breve mente algumas das mais impor-tantes ccintradi~oes .do romantismo. Acabamos de ver,nos paragrafosanteriores, que a literatura romantica foifrequentemente uma literatura de evasao, .mas tambem everdade que foi; nao raras vezes, uma literatura de com-bate, bem enraizada na hist6ria e procurandoagir sobrea hist6ria. Com efeito, se muitos romanticos foram reac-cionarios e passadistas, muitos outrosromanticos, peranteo mundo em crise em que estavam situados, procuraramardentemente contribuir para 0 advento de uma sociedadenova, maisjusta; mais livre e mais esc1arecida do que 0

ancien regime que se esboroava por toda a Europa. Her-deiro do reformismo iluminista, muitas vezes impulsio-nado ideologicamente por urn socialismo ut6pico e saint--simoniano, este. romantismo liberal e..progressista ganhouvigor sobretuclo depois da ·revolu~aofrancesa de 1830,que liquidou a Restaura~ao e que insWlou. novas espe-ran~as no liberalismo europeu.

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13 - A valoriza~ao do inconsciente, da intui~ao e dasfaculdades mfsticas constituiu, como temos· referido, umaspecto importante do romantismo. A revivescencia doideal religioso, ap6s a parcial eclipse das cren~as religio-

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.sas gerado pdo raci.ona1ismo iluminista, integra-se nestavaga de Inistici.smo e de arraci.onalismo romanticos.

Visceralmente individualista e egotista, 0 romanticodiflcilmente aceita uma ortodoxia baseada num corpo dedogmas e garantida pda autoridade de uma hierarquia.A sua religiosidade e preponderantemente de natureza sen-timental e intuitiva; 0 seu diaIogo com a divindade tendea dispensar a media~o do sacerdote e 0 formalismo dosritos, desenrolando-se na intimidade da consci.encia. N asenda da «Profession de foi du vicaire savoyard» de Jean--Jacques Rousseau, os romanticos descobriram e cu1tua-ram Deus nos astros e nas aguas do mar, nas montanhase nos prados, no vento, nas arvores e nos animais, em tudoo que existe nas interminas plagas do universo. 0 pan-teismo repr~enta, com efeito, a forma de religiosidademais frequente entre os romantic03.

A teosofia .e as doutrinas ocultistas constituem outrodemento de primeira importfulcia da religiosidade roman-tica. Nas doutrinas teos6ficas de Swedenbord e de Saint--Martin, buscaram os romanticos alimento para a suaansia de misterio e para a sua esperans;a numa redens;aototal da humanidade, combinando muitas vezes estas for-mas iniciaticas de religiao ~')m teorias poI1ticas·de carac-ter teocratico ou com projectos de socialismo mistico (35).

14 - Como ja tivemos ensejo de expor (36), (j roman-tismo libertou a crias;ao literaria das coacs;oes advindasdas regras, condenou a teoria neocIassica dos generos lite-rarios, reagiti violentamente contra a conceps;ao dos escri-

tores gregos e latinos como autores paradigmaticos,£ontee medida de todos os valores artfsticos.

. Muitas formas literarias caracterlsticas do neoc1as-sicismo, tais como a tragedia, as odes pindaricas e saficas,a egloga, etc., entraram em tocil decadencia no perlodoromantico, ao passo que se desenvolveram· singularmenteformas literarias novas como 0 drama, 0 romance hist6-rico, 0 romance psico16gico e de costumes, a poesia inti-mlsta e a poesia filos6fica, 0 poema em prosa, etc.

. A I1ngua e 0 estilo transformaram-se Fofundamente,enriquecendo-se em particular no domfnio do adjectivoe da mecifora. A linguagem litedria abandonou os artificiosexpressivos de origem mitol6gica, verdadeiros t6picos datradis;ao literaria dos seculos anteriores, ja surrados edesprovidos de qualquer capacidade poetica, ao mesmotempo que se aproximava da realidade e da vida: «Semrenunciar a sintaxe e a disciplina poetica, 0 romanticoreagiu, em geral, contra a tirania da gramatica e comba-teu 0 estilo nobre e pomposo, que considerava incompa-tfve1 com 0 natural e 0 real, e defendeu 0 uso de uma lin-gua libertada,· simples, sem enfase, coloquial, mais riCall(3:).Igual tendencia para a liberdade se verificou no domfnioda versificas;ao.

(3,) - Cf. Auguste Viatte, us sources occultes du romantlsme. muml-nlsme- TMosophle (1770-1820), Paris, Champion, 1965, 2 vols.

(36) - cr. cap. m, § 5.3 e cap. IV, § 5.(37) - Afrllnio Coutinho, 1ntrodu~i!oa lIteratura no Brasil, 2.· ed.,

Rio de Janeiro, Livraria Silo Jose, 1964, p. 151.

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