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8/13/2019 AGOSTINHO, Sto_LivreArbítrio http://slidepdf.com/reader/full/agostinho-stolivrearbitrio 1/154 Santo Agostinho . DIALOGO . SOBRE O LIVRE ARBÍTRIO Tradução e introdução de Paula Oliveira e Silva Revisão da tradução de Paulo Farmhouse Alberto Edição bilingue CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA LISBOA 2001

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Santo Agostinho

.DIALOGO

.

SOBRE O LIVRE ARBÍTRIO

Tradução e introdução de Paula Oliveira e Silva Revisão da tradução de Paulo Farmhouse Alberto

Edição bilingue

CENTRO DE FILOSOFIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

LISBOA

2001

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LIVRO I

I, 1. Evódio (E) — Diz-me, por favor, não é Deus o autor domal?Agostinho (A) — Dir-te-ei, se me disseres claramente acer-

ca de que mal indagas. Com efeito, costumamos designar omal de duas maneiras: quando dizemos que alguém agiu mal,e quando alguém sofreu algum mal.

E — Desejo saber acerca de ambos.

A— Mas se tu sabes, ou acreditas, que Deus é bom — e nãoé lícito pensar de outra maneira —, Ele não faz o mal. Por ou-tro lado, se declaramos que Deus é justo — com efeito, negá-loé um sacrilégio —, assim como premeia os bons, da mesma for-ma também castiga os maus; e tais castigos são, certamentemales para quem os padece. Por conseguinte, se ninguém so-fre castigos injustamente — o que é necessário acreditar, na

medida em que acreditamos que a providência divina rege esteuniverso —, de modo algum Deus é o autor daquele primeirogénero de males, mas sim do segundo.

E — Existe, portanto, um , outro autor daquele tipo de ma-les de que se descobriu que Deus não é autor?

A — Assim é. Com efeito, o mal não se pode fazer sem quehaja algum autor. Mas se indagares quem ele é, não podemosdizer. Na verdade, não existe um autor determinado, mas cadaum é autor das suas más acções. E se duvidas disto, presta

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atenção ao que se disse anteriormente: as más acções são cas-tigadas pela justiça de Deus. De facto, elas não seriam justa-mente castigadas, a não ser que fossem praticadas voluntaria-mente.

2. E — Ignoro se alguém, que não tenha aprendido, peca.Se isto é verdade, pergunto quem é que nos ensina a pecar.

A— Consideras que a aprendizagem é algo de bom?E — Quem ousaria dizer que a aprendizagem é um mal?A — E se não for nem um bem nem um mal?E — A mim parece-me ser um bem.A — Muito bem. Efectivamente, o saber é transmitido, ou

despertado, através da aprendizagem, e ninguém aprende algoa não ser por meio dele. Será que pensas de outro modo?

E — Quanto a mim, julgo que, através do ensino, só se po-dem aprender bens.

A — Portanto, tem cuidado, não vá acontecer que os malestambém se ensinem, pois «disciplina» deriva, efectivamente, de«discendo».

E — Se os males não são ensinados, de onde vem, portanto,que eles sejam praticados pelo ser humano?

A — Talvez seja por este se afastar ou desinteressar doensino, isto é, da aprendizagem. Mas, seja por isto ou por qual-quer outra coisa, pelo menos é evidente que de nenhum modo

os males podem ser ensinados, dado que a aprendizagem é umbem, e que disciplina se diz a partir de discendo. Na verdade, sefossem ensinados, estariam contidos na aprendizagem. Assim,o ensino não seria um bem. Mas, como tu próprio admites, oensino é um bem. Portanto, os males não se ensinam, e é emvão que procuras aquele por quem aprendemos a fazer o mal.Ou, se os males se aprendem, é para se evitarem, não para se

fazerem. Daí que fazer o mal não seja outra coisa do queafastar-se da aprendizagem.

3. E — Em suma, julgo que há dois tipos de aprendizagem:uma, pela qual aprendemos a fazer o bem, outra, pela qualaprendemos a fazer o mal. Mas como tu perguntaste se o en-sino era um bem, esse mesmo amor do bem prendeu a minha

atenção, de tal modo que me fixei na aprendizagem de fazer obem e, por isso, respondi que é um bem. Mas agora reparo que

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existe uma outra aprendizagem, cujo autor procuro e, semdúvida alguma, confirmo que ela é um mal.

A — Ao menos, julgas que a inteligência não pode senãoser um bem?

E — Certamente. De tal maneira a considero um bem quenão vejo que possa existir outro maior no ser humano. E denenhum modo diria que alguma inteligência pudesse ser má.

A — Mas quando se ensina alguém, se ele não entender,poderá parecer-te que aprendeu?

E — De modo algum.A — Portanto, se toda a inteligência é boa, e se quem não

entende não aprende, quem aprende pratica o bem. Com efei-to, quem aprende entende, e quem entende faz o bem. Logo,quem procura o autor por quem aprendemos algo, procura se-guramente o autor por quem fazemos o bem. Desiste, portan-to, de querer perscrutar não sei que mau mestre. De facto, seé mau, não é mestre; e se é mestre, não é mau.

II, 4. E — Pois bem, visto que muito me forças a confessarque não aprendemos a fazer o mal, diz-me de onde provém omal que praticamos.

A — Colocas exactamente a questão que me atormentoumuito quando eu era jovem, e que, cansado, me impeliu paraos hereges e neles me fez cair. Atormentei-me com esta queda,

e a tal ponto fui esmagado por tamanho acervo de fábulas vãs,que, se aquele meu amor de encontrar a verdade não tivessereclamado o favor divino, não poderia ter emergido de 1á, reco-brando alento precisamente na primeira das liberdades, a deinvestigar. E dado que se procedeu comigo com empenho parame libertar deste problema, vou proceder contigo pela mesmaordem que segui para me escapar dele. Deus acompanhar-nos-á

e fará que entendamos aquilo em que acreditamos. Com efeito,estamos bem conscientes de nos atermos ao caminho prescritopelo profeta, que diz: «Se não acreditardes, não compreendereis» 1

.

Ora, nós acreditamos que tudo o que existe provém do DeusUno, e que, todavia, Deus não é o autor dos pecados. Porém,há algo que perturba o espírito: se os pecados derivam daque-

Isaías 7:9 (versão LXX).

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las almas que Deus criou e, no entanto, essas almas vêm deDeus, de que modo não se há-de remeter para Deus, quaseimediatamente, a origem dos pecados?

5. E — Agora expuseste com clareza aquilo que me atormen-ta profundamente, quando penso nisso, e que me força e meimpele a esta investigação.

A — Tem coragem, e não deixes de acreditar naquilo em queacreditas. Com efeito, nada de melhor se há-de acreditar, mes-mo quando se oculta a razão pela qual assim seja. De facto,ter acerca de Deus a melhor das opiniões é o mais verdadeirocomeço da piedade. E não tem Dele uma noção óptima quemnão acredita que Ele é omnipotente, que não tem qualquerpartícula de mutabilidade, e, também, que Ele é o Criador detodos os bens, aos quais Ele próprio se sobrepõe; que é o jus-tíssimo governador de todos os bens que criou e que não pre-cisou da ajuda de nenhuma natureza para criar, como se não

se bastasse a si próprio. Daí se segue que criou todas as coi-sas do nada, e que, a partir de si, não criou, mas gerou Aque-le que é semelhante a si, a quem chamamos Filho Único deDeus. A Este, quando nos esforçamos por O dar a conhecermais claramente, chamamos-Lhe Virtude de Deus e Sabedoriade Deus, pela qual Deus fez tudo aquilo que foi feito do nada.

Posto isto, esforcemo-nos, com a ajuda de Deus, por com-

preender aquilo que procuras, do modo que se segue.

III, 6. Procuras, certamente, a origem do mal que fazemos.Por conseguinte, antes de mais devemos examinar o que é fa-zer o mal. Expõe-me o que te parece acerca deste assunto. Senão o puderes explicar de modo simultaneamente breve e com-pleto, podes enunciar detalhadamente as próprias más acções,

pelo menos para que eu conheça a tua posição.E — Os adultérios, homicídios e sacrilégios, omitindo o res-to, para cuja enumeração faltam o tempo ou a memória, quemé que os não considera más acções?

A — Diz, portanto, antes de mais, por que razão pensas queo adultério é uma má acção. Será porque a lei proíbe que sepratique?

E — É claro que não é um mal porque a lei o proíbe, mas alei proíbe-o porque é um mal.

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A — Então, se vier ter connosco alguém a exaltar os praze-res do adultério e nos perguntar por que razão o julgamos ummal digno de condenação, porventura és. de opinião que hão-derecorrer à autoridade da lei os homens que, agora, não dese-

jam apenas acreditar, mas compreender? Tal como tu, efectiva-mente, também eu acredito, creio inabalavelmente e proclamoa todos os povos e nações que se deve acreditar que o adulté-rio é um mal. Mas agora esforçamo-nos por saber e sustentarcom toda a firmeza, também pelo entendimento, aquilo querecebemos pela fé. Considera, por isso, a questão, e expõe-me,tanto quanto te for possível, a razão que te dá a conhecer queo adultério é um mal.

E — Sei que é um mal porque eu próprio não o queria su-portar na minha mulher. Ora, quem faz a outro aquilo que nãoqueria que lhe fizessem a si, certamente pratica o mal.

A — Então, se a paixão de alguém fosse de tal ordem queentregasse a sua mulher a outro, e suportasse de bom grado

que ela fosse seduzida por ele, desejando ter licença para fazero mesmo com a mulher dele, parecer-te-ia que não praticanenhum mal?

E — Pelo contrário, faria um grande mal.A— Mas este não peca contra a regra que tu enunciaste,

pois, de facto, ele não faz o que não quereria sofrer. Por con-seguinte, tens de procurar outro argumento para me conven-

ceres de onde provém o mal do adultério.

7. E — Parece-me que é um mal porque, com frequência, vique se condenavam homens por esse crime.

A — Então, os homens não foram tantas vezes condenadospor agirem com rectidão? Já para não te remeter para outroslivros, consulta a história, precisamente aquela que é sublime

por ser de autoridade divina. Já verás como temos de pensarmal dos Apóstolos e de todos os mártires, se aceitarmos que acondenação é o critério acertado para julgar as más acções,visto que todos eles foram julgados dignos de condenação, porterem professado a fé. Por conseguinte, se tudo o que é conde-nado é mau, naquele tempo era mau acreditar em Cristo econfessar a própria fé. Porém, se nem tudo o que é condenadoé

mau, procura outra coisa para ensinares de onde provém omal do adultério.

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E — Não encontro nada para te responder.

8. A — Talvez seja a paixão, portanto, o mal no adultério.Mas visto que tu procuras o mal no exterior, na própria acção,que já se pode comprovar, encontras-te em. dificuldade. Naverdade, para compreenderes que a paixão é o mal no adulté-rio, se não for dada a alguém a possibilidade de se deitar coma mulher de outro, e, no entanto, se fosse evidente, por algumoutro modo, que o desejava fazer — e, se tivesse tido oportuni-dade, tê-lo-ia feito —, não será, por isso, menos réu, do que sefosse surpreendido em tal acto.

E — Não há nada mais evidente. E já vejo que não é neces-sário um longo discurso para me convencer de que o mesmo sepode dizer acerca do homicídio e do sacrilégio e, em suma, detodos os pecados. De facto, já é claro que, em todo o género demás acções, nenhuma outra coisa domina senão a paixão.

IV, 9. A — Sabes também que, a esta paixão, se lhe dá outronome? O de desejo desenfreado?

E — Sei.A — E entre esta e o medo? Julgas que não há qualquer

diferença, ou será que em algo diferem?E — Bem pelo contrário, julgo que elas distam muito uma

da outra.

A — Creio que pensas assim porque o desejo desenfreadoatrai, e o medo repele.E — É como dizes.A— E se alguém matasse um homem, não pelo desejo de-

senfreado de obter alguma coisa, mas temendo que algum mallhe viesse a acontecer? Porventura não seria homicida?

E — Seguramente o será, mas não é por isso que tal acção

deixa de estar dominada pelo desejo desenfreado. Na verdade,quem mata um homem por temor, certamente deseja viver semmedo.

A — E parece-te que viver sem medo é um bem pequeno?E — E um grande bem. Mas este bem de modo algum pode

suceder àquele homicida através do seu crime.A— Não indago sobre o que lhe pode suceder, mas sobre o

que ele próprio deseja. Com efeito, aquele que deseja uma vidaisenta de medo, certamente deseja o bem e, por isso, esse de-

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sejo desenfreado não é culpável. De outro modo culparíamostodos os que amam o bem. Por conseguinte, somos forçados areconhecer que há homicídios onde não se poderá encontrar odomínio daquele mau desejo desenfreado. Assim, será falso queo que faz que todos os pecados sejam maus é o domínio dapaixão. Ou então haverá algum homicídio que poderá não serpecado.

E — Se o homicídio é matar um homem, pode aconteceralguma vez sem pecado. Na verdade, quando matam um ho-mem, não me parece que pecam nem o soldado contra o inimi-go, nem o juiz ou o seu executor contra o malfeitor, nem aquelea quem escapa a arma da mão, impelido pelo acaso ou pelaimprudência.

A — Concordo, mas a estes não se lhes costuma chamarhomicidas. Responde, portanto, se pensas que aquele que matao seu senhor, de quem temia graves tormentos, deve ser con-tado entre o número dos que matam um homem de tal modo

que não merecem ser chamados homicidas.E — Vejo que este difere muito dos outros. De facto, aque-

les fazem-no segundo as leis, ou não contra as leis. Mas o cri-me deste não está aprovado por nenhuma lei.

10. A — Remetes-me de novo para a autoridade. Mas é ne-cessário recordares de que agora determinámos entender aquilo

em que acreditamos. Ora, nós acreditamos nas leis. E é issomesmo que devemos procurar compreender, tanto quanto pos-sível, isto é, se a lei que pune este facto não o pune sem razão.

E — De nenhum modo o pune sem razão, uma vez que puneaquele que, sabendo e querendo, mata o seu senhor, algo quenão faz nenhum dos outros.

A — Como? Recordas-te que há pouco disseste que em toda

a má acção domina a paixão, e que, por isso mesmo, ela é ummal?E — Recordo-me perfeitamente.A — E então? Não foste tu que concedeste que não é mau o

desejo desenfreado de quem deseja viver sem medo?E — Também recordo isso.A— Portanto, quando o senhor é morto por um escravo le-

vado por este desejo desenfreado, não é morto por aquele dese- jo desenfreado culpável. Por isso mesmo, ainda não descobri-

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mos por que razão este crime é mau. De facto, estamos deacordo em que todas as más acções não o são por outra razão,a não ser porque se fazem por paixão, ou seja, por um perver-so desejo desenfreado.

E — Agora já me parece uma injustiça que este escravo sejacondenado, o que certamente não ousaria afirmar se tivesseoutra coisa para dizer.

A — Achas que é mesmo assim? Talvez te tenhas persuadi-do depressa de mais de que tamanho crime se deva deixar im-pune, antes de considerares se aquele escravo não ambicionaviver sem medo para saciar as suas paixões. Na verdade, de-sejar viver sem medo é comum a todos, bons e maus. Mas háuma diferença: os bons desejam-no afastando o amor daquelascoisas que não se podem ter sem perigo de se perderem; osmaus, porém, desejam-no para desfrutar destas coisas comsegurança, esforçando-se por remover o que os impeça, e, porcausa disso, levam uma vida facínora e criminosa, a que mais

vale chamar morte.E — Já caí em mim. E alegro-me de ter percebido tão cla-

ramente o que é esse desejo desenfreado culpável, a que se cha-ma paixão. Já se vê que é o amor daquelas coisas que alguémpode perder contra a sua vontade.

V, 11. Vamos lá averiguar agora, se estiveres de acordo, se

também nos sacrilégios, que vemos que se cometem muitasvezes por superstição, é a paixão que domina.A — Vê lá se não é precipitado. Com efeito, parece-me que

se deve discutir primeiro se, para salvar a vida, a liberdadeou o pudor, se pode matar sem qualquer paixão, quando nosataca um inimigo ou um salteador assassino.

E — Como posso eu pensar que carecem de paixão os que

combatem por essas coisas que podem perder contra a vonta-de? Ou, se as não podem perder, que necessidade há de, porelas, chegar à morte de um homem?

A — Portanto, não é justa a lei que confere ao viajante opoder de matar o ladrão, a fim de não ser morto por ele? Ouaquela que confere a alguém, homem ou mulher, o poder dematar, se tal lhes for possível antes de cometida a violação,

quem se lhes lance para os violar pela força? De facto, a leitambém manda que o soldado mate o inimigo. E se ele se ten-

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tasse abster dessa carnificina, sofreria os castigos impostos pelochefe. Porventura ousaríamos dizer que estas leis são injustas,ou diríamos antes que não têm valor? Na verdade, se uma leinão for justa, a mim não me parece que seja lei.

12. E — A meu ver, a lei que, em relação ao povo que rege,lhe dá licença de cometer males menores, para que não se co-metam outros maiores, está suficientemente munida contra umatal acusação. Com efeito, é muito mais aceitável matar aqueleque atenta contra a vida alheia, do que aquele que defende asua. E é muito mais horrível um homem suportar um estuprocontra a sua vontade, do que ele próprio matar aquele que oforçou a suportar esta violência. De igual modo, quando o sol-dado mata na guerra, presta um serviço à lei e, por isso, éfácil ver que cumpriu a sua tarefa sem qualquer paixão. Maisainda, a própria lei, que foi estabelecida para defesa do povo,não pode ser acusada de nenhuma paixão, se é verdade que

aquele que a estabeleceu, se o fez por ordem de Deus — isto é,segundo aquilo que prescreve a justiça eterna —, pôde agir abso-lutamente à margem da paixão. Mas se ele a instituiu comalguma paixão, daí não decorre necessariamente que se obe-deça a essa lei com paixão, porque uma lei boa pode ser esta-belecida por quem não é bom. Por exemplo, se algum tiranorecebe uma quantia de dinheiro, da parte de alguém a quem

isso for conveniente, para determinar que de nenhum modo élícito raptar a mulher ao marido, de facto não será por essemotivo que tal lei é má, por ter sido um homem injusto e cor-rupto a instituí-la. Pode, portanto, obedecer-se sem paixão a umalei que, para defesa dos cidadãos, ordena que se utilize outra forçapara repelir uma força inimiga. E o mesmo se pode dizer de todosos que estão sujeitos, por direito e por hierarquia, ao serviço de

qualquer poder.Porém, uma vez retirada a culpa à lei, não vejo de que modoesses homens podem não ser culpados. De facto, a lei não osobriga a matar mas apenas lhes outorga esse poder. Assim,deixa-os livres para não matar ninguém por causa daquelascoisas que se podem perder contra a vontade, e que, por issomesmo, não devem ser amadas. Efectivamente, no que diz res-peito à vida, talvez alguém possa duvidar se, em caso algum,ela não é tirada à alma quando se mata este corpo. Mas se lhe

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poder ser tirada, ela será desprezível; se não poder, nada há atemer. Quanto ao pudor, realmente, quem duvidará que se fun-damenta na própria alma, uma vez que se trata de uma vir-tude? Por isso, também ele não pode ser arrebatado por ne-nhum violador. Portanto, tudo quanto nos vinha arrebataraquele que é morto não está em nosso poder. É por isso quenão entendo de que modo se possa dizer que isso nos pertence.Por conseguinte, certamente não condeno a lei que permitematar tais indivíduos, mas não encontro maneira de defenderaqueles que os matam.

13. A — Muito menos eu — que te pergunto por que razãoprocuras defesa para homens que nenhuma lei condena comoréus — a posso encontrar.

E — Talvez nenhuma daquelas leis que são manifestas elidas pelos homens. Na verdade, ignoro se eles não são tidospor réus por alguma lei mais forte e oculta, se nada há que a

providência divina não governe. Com efeito, de que modo es-tarão, diante dela, livres de pecado, os que se sujaram comsangue humano por aquelas coisas que se devem desprezar?Portanto, parece-me que esta lei — escrita para governar opovo —, por um lado, permite com justiça tais acções e, por outro,admite que a providência divina as puna. De facto, ela en-carrega-se do castigo quanto baste para conciliar a paz entre ho-

mens ignorantes e na medida em que eles podem ser governa-dos pelo ser humano. Mas aquelas culpas têm outros castigosapropriados, dos quais me parece que só a sabedoria pode li-bertar.

A — Louvo e aprovo esta tua distinção. Não obstante elaestar apenas esboçada e algo imperfeita, contudo, merece con-fiança e aponta para realidades sublimes. Com efeito, parece-

-te — e com razão — que esta lei, que é feita para o governodos cidadãos, é muito permissiva e deixa muitas coisas porpunir, as quais, no entanto, serão castigadas pela divina pro-vidência. E, na verdade, não é por a lei não fazer todas ascoisas que se deve reprovar o que ela faz.

VI, 14. Mas examinemos atentamente, se te parece bem,

até que ponto se hão-de castigar as más acções por meio dalei que, nesta vida, reprime os povos; em seguida, vejamos o

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que fica para ser punido, de modo mais inevitável e oculto, pelaprovidência divina.

E — Gostaria muito, se fosse possível alcançar o termo detamanha questão. Na verdade, considero-a infindável.

A — Pelo contrário, cobra ânimo e deixa-te penetrar noscaminhos da razão, conduzido pela piedade, pois não há nadaque seja tão difícil e árduo de compreender que, com a ajudade Deus, não se torne perfeitamente claro e expedito. Assim,com a atenção posta Nele e suplicando o Seu auxílio, indague-mos aquilo que nos propusemos. E em primeiro lugar respon-de-me se esta lei, que foi promulgada por escrito, auxilia oshomens que vivem esta vida.

E — É evidente que sim. De facto, seguramente são esteshomens que constituem os povos e cidades.

A — Então os próprios homens e povos pertencem a essegénero de realidades que não podem perecer nem alterar-se esão absolutamente eternas? Ou eles estão, efectivamente, su-

jeitos à mudança e à condição temporal?E — É evidente que estas realidades são mutáveis e estão

sujeitas ao tempo. Quem o porá em dúvida?A — Portanto, se um povo é bem equilibrado e sério, e se

guarda com toda a diligência o que é de interesse comum; se,nesse povo, cada um preza menos o bem privado do que opúblico: não é justo que se estabeleça uma lei pela qual é lí-

cito que este mesmo povo crie os seus magistrados, por meiodos quais administre os seus assuntos, isto é, os públicos?

E — Claro que é justo.A — Todavia, se, pouco a pouco, o mesmo povo se depravar

e preferir as coisas privadas às públicas, e se o seu voto for ven-dido e corrompido por aqueles que amam os cargos; e se essepovo confiar o próprio governo aos que têm uma conduta de-

sonesta e criminosa: não será igualmente justo que, se entãosobressair um homem de bem que tenha um poder muitomaior, ele arrebate a este povo o poder de exercer cargos po-líticos e devolva a escolha a uns poucos de entre os bons, oumesmo a um só?

E — Isso também é justo.A — Portanto, como estas duas leis são contrárias entre si

— porque uma delas dá ao povo o poder de exercer cargos polí-ticos e a outra lho retira — e como a segunda é dada de tal

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modo que ambas não podem conviver ao mesmo tempo numacidade, porventura diremos que alguma delas é injusta, e nãodevia, de todo, ter sido estabelecida?

E — De modo algum.A — Portanto, se te parece bem, chamaremos lei temporal

a esta lei que, embora justa, também com justiça se pode alte-rar com o tempo.

E — Podemos chamar-lhe assim.

15. A — E então aquela lei, a que chamamos razão supre-ma, à qual se deve obedecer sempre, pela qual os maus mere-cem ser infelizes e os bons ter uma vida feliz, e pela qual, emsuma, a outra lei, que dissemos que se devia chamar temporal,se estabelece com justiça e, também com justiça, se altera:poderá parecer, a alguém capaz de reflectir, que não é imutá-vel e eterna? Ou poderá alguma vez ser injusto que os maussejam infelizes e os bons felizes, ou que um povo, equilibradoe sério, crie os seus próprios magistrados, e que um outro, dis-soluto e mau, não tenha legitimidade para o fazer?

E — Vejo que essa lei é eterna e imutável.A — De igual modo também julgo que vês que, na lei tempo-

ral, não há nada justo e legítimo que os homens não tenhamfeito derivar desta lei eterna. Na verdade, se, durante algumtempo, um povo gozou com justiça do direito de exercer car-

gos políticos, e outras vezes, pelo contrário, com justiça nãogozou deste direito, esta vicissitude temporal, para ser justa,foi tomada daquela eternidade pela qual é sempre justo confe-rir, a um povo sério, o direito de exercer cargos políticos, enão o conferir a um povo leviano. Ou será que tu vês as coi-sas de outro modo?

E — Não, estou de acordo.

A — Portanto, para explicitar brevemente por palavras, tan-to quanto me é possível, a noção de lei eterna, que está im-pressa em nós, direi que é aquela pela qual é justo que todasas coisas estejam absolutamente ordenadas. Mas se tu pensasde outro modo, avança.

E — Nada tenho a opor às verdades que dizes.A — Portanto, sendo uma única a lei a partir da qual to-

das as leis temporais variam para governo dos homens, pode-rá ela própria modificar-se de algum modo?

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E — Compreendo que ela não pode de todo modificar-se. E, defacto, em nenhum caso força alguma, infortúnio algum ou qual-quer catástrofe poderão alguma vez fazer que não seja justoque tudo esteja absolutamente ordenado.

VII, 16. A —.Vejamos, então, agora, de que modo o próprioser humano está em si mesmo absolutamente ordenado. Na ver-dade, um povo é constituído a partir de seres humanos associa-dos por meio de uma só lei, e essa lei, como foi dito, é tempo-ral. Diz-me, então, se para ti é absolutamente certo que vives.

E — Que poderei responder-te com maior certeza?A — Podes, então, discernir que uma coisa é viver e outra

saber que se vive?E — Sei que certamente ninguém sabe que vive a não ser

que viva, mas não sei se todo aquele que vive sabe que vive.A— Bem queria eu que, assim como o crês, também sou-

besses que os animais carecem de razão. A nossa discussão

sobre este assunto seria rapidamente ultrapassada. Mas comodizes que o ignoras, obrigas a uma exposição muito longa. Comefeito, se omitirmos esta questão, não nos será permitido avan-çar, em direcção àquilo que nos propusemos, com toda aquelaconexão lógica que vejo ser necessária.

Diz-me, então — dado que muitas vezes vimos animais do-minados pelos homens, isto é, não tanto pelo corpo, mas por

terem a alma de tal maneira subjugada ao homem que obede-cem à vontade dele por um certo instinto e habituação —, sete parece que poderia suceder alguma vez que um animal qual-quer, medonho pela ferocidade, ou pelo corpo, ou por qualqueroutro sentido, por mais penetrante que seja, se esforçasse porsubjugar a si o ser humano com igual força, ainda que muitosfossem capazes de desfazer o corpo humano quer pela força,

quer pela surpresa.E — De nenhum modo admito que isto possa acontecer.A — Muito bem. Mas diz-me ainda: sendo evidente que, pela

força e outras capacidades do corpo, muitos animais superamfacilmente o ser humano, qual te parece ser a realidade pelaqual o homem se lhes sobrepõe, de tal modo que nenhum dosanimais o possa dominar, podendo ele próprio, no entanto,

dominar muitos deles? Será talvez esta realidade aquilo a quese costuma chamar razão ou inteligência?

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E — Não encontro outra coisa, visto que é na alma que estáaquilo pelo qual somos superiores aos animais. Se eles nãotivessem alma,. diria que estávamos acima deles porque temosalma. Mas como, de facto, também eles são seres dotados dealma, àquela realidade que não reside na alma deles, de tal modoque se nos submetem, e que reside, no entanto, nas nossas,de tal modo que somos melhores do que eles — e cada qual vêque isso não é nem nada, nem pouca coisa —, que outro nomemais conveniente lhe hei-de dar do que razão?

A — Vê como se torna fácil, com a ajuda de Deus, aquiloque os homens julgam dificílimo! Na verdade, devo confessar-teque pensei que esta questão — que, como comprovo, está con-cluída — nos ia demorar talvez tanto tempo como tudo quantofoi tratado desde que começámos este nosso debate. Então es-cuta agora o modo como em seguida a razão se há-de articular.Com efeito, creio que não ignoras que aquilo a que chamamos

saber não é outra coisa do que perceber pela razão.

E — Assim é.A — Portanto, quem sabe que vive não carece de razão.E — É lógico.A — Mas os animais também vivem e, como já se tornou

manifesto, são desprovidos de razão.E — É evidente.A — Eis, portanto, que já conheces o que me tinhas dito que

ignoravas, isto é, que nem todo aquele que vive sabe que vive, nãoobstante ser necessário que viva todo aquele que sabe que vive.

17. E — Já não tenho nenhuma dúvida. Prossegue para ondete tinhas proposto. Já aprendi suficientemente que uma coisaé viver e outra saber que se vive.

A — Qual destas duas realidades, portanto, te parece su-

perior?E — Qual pensas tu que é, a não ser a consciência da vida?A — Então parece-te melhor a consciência da vida do que a pró-

pria vida? Ou talvez entendas que a consciência é um certo tipo devida superior e mais pura, visto que só aquele que entende a podeconhecer? E o que é entender, a não ser um modo de vida maisperfeito e mais esclarecido pela própria luz da mente? Porque,

se não me engano, não foi qualquer coisa que antepuseste à vida;afinal, antepuseste, a uma certa vida, uma outra vida melhor.

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E — Compreendeste de maneira excelente e conseguisteexplicar perfeitamente a minha afirmação, se é verdade que aconsciência não pode nunca ser má.

A — Julgo que de nenhum modo o pode ser, a não ser que,transformando a palavra, digamos «consciência» no lugar de«experiência». Com efeito, experimentar nem sempre é bom,como acontece quando se passa pela experiência de suplícios.Realmente, como poderá ser um mal aquilo a que se chamapura e propriamente consciência, dado que se alcança com arazão ou a inteligência?

E — Também admito essa diferença. Podes prosseguir.

VIII, 18. A — O que eu quero dizer é o seguinte: seja lá oque for isso pelo qual o ser humano se sobrepõe aos animais,quer se lhe chame mente ou espírito, ou, de modo mais ade-quado, ambas as coisas — de facto, encontramos uma e outranos livros divinos —, se dominar e imperar sobre as demaisrealidades de que o ser humano se compõe, então ele estaráperfeitamente ordenado.

Efectivamente, vemos que temos muitas coisas em comum,não só com os animais, mas também com as árvores e os ve-getais. Tomar o alimento do corpo, crescer, reproduzir-se efortificar-se, vemos que, na verdade, também se atribui às ár-vores, que possuem uma forma ínfima de vida.

Reconhecemos e confessamos que muitos animais podem ver,ouvir e sentir os corpos através do tacto, do gosto ou do olfacto,de modo muito mais apurado do que nós. Acrescenta as forças ea energia, a firmeza dos membros e a velocidade e agilidade domovimento do corpo. Em todos estes aspectos somos superioresa alguns animais, a outros igualamo-los e, por alguns, até somosvencidos. Este género de realidades seguramente é comum a nós

e aos animais. Mas a procura dos prazeres do corpo e a fugados incómodos constitui toda a actividade da vida dos animais. Também há certas acções, como rir e gracejar, que, embora

já não pareçam fazer parte da vida dos animais, todavia nãosão, no próprio ser humano, as mais elevadas. Certamente sãocaracterísticas do homem, mas quem julga a natureza huma-na com toda a rectidão, considera que são propriedades ínfi-

mas. Além disso, há a considerar o amor pelo louvor e pelaglória, e o afã de dominar. Se é verdade que estas característi-

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cas não são específicas dos animais, contudo também não é pelapaixão por essas realidades que se deve julgar que somos me-lhores do que os animais. Na verdade, se este apetite não esti-ver submetido à razão, torna os homens infelizes. Ora, ninguémpensaria dever antepor-se a outrem por ser infeliz. Em suma,dir-se-á que o ser humano está ordenado, quando a razão do-mina sobre estes movimentos da alma. De facto, não se há-defalar de uma recta ordem ou, sequer, de ordem, onde as realida-des superiores estão subjugadas às inferiores. Não te parece?

E — É evidente.A — Portanto, quando esta razão — mente ou espírito — go-

verna os movimentos irracionais da alma, então domina, no serhumano, aquilo que nele deve dominar, de acordo com aquelalei que descobrimos ser eterna.

E — Compreendo e estou a seguir o teu raciocínio.

IX, 19. A — Por conseguinte, quando o ser humano estiver

assim constituído e ordenado, não te parece que é sábio?E — Não sei que outro homem me poderia parecer sábio,

se este não parecesse.A — Creio que também sabes que muitos seres humanos

são estultos.E — Também é coisa bastante assente.A— Mas se o estulto é o contrário do sábio, uma vez que

já descobrimos quem é o sábio, sem dúvida também já com-preendes quem é o estulto.E — Quem não vê claramente que é aquele no qual a men-

te não exerce o poder supremo?A— Então, que se há-de dizer quando um ser humano se

nos apresenta desse modo? Diremos que lhe falta a mente, ouque, embora ela lá esteja, lhe falta o domínio dela?

E — Diremos antes o que referiste em último lugar.A — Desejaria vivamente ouvir-te explicar que provas tensde que a mente, que não exerce o comando daquilo que é seu,reside no ser humano.

E — Oxalá queiras tu assumir esta tarefa, pois não me éfácil sustentar essa tua investida.

A— Pelo menos, para ti é fácil recordar aquilo que dissemos

há pouco, acerca do modo como os animais domesticados estão aoserviço dos homens, quando são amansados por eles. E, como a

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razão demonstrou, os homens teriam de suportar ser vencidospor eles, a não ser que em algo lhes fossem superiores. Masnão encontrávamos isso no corpo. Então, como isso se manifes-tava na alma, não descobrimos outro nome para lhe dar doque «razão», a qual depois recordámos que se chamava tam-bém mente ou espírito. Mas se uma coisa é a razão e outra amente, pelo menos é certo que só a mente se pode servir darazão. De onde se conclui que quem possui razão não pode ca-recer de mente.

E — Lembro-me bem destas coisas e assumo-as.A — E então? Julgas que alguém pode dominar os animais,

a não ser que seja sábio? De facto, chamo sábios àqueles que aVerdade manda chamar, isto é, aos que estão pacificados, umavez subjugadas todas as paixões ao reino da mente.

E — É ridículo pensar que se hão-de chamar sábios aquelesque vulgarmente se ocupam de domesticar os animais — ospastores, os guardadores de bois ou os aurigas, esses que ve-mos que têm todo o tipo de gado submetido a si e cujo traba-lho é fazer que se lhe submeta o que ainda não o está.

A — Aqui tens, portanto, uma prova absolutamente certa decomo se torna evidente que a mente pode residir no ser huma-no sem o ter dominado. É certo que ela reside em tais homens,porque realizam essas actividades, que não poderiam fazer sema mente. Contudo, ela não reina neles, pois são estultos, e é bem

sabido que o reino da mente não se atribuiu a não ser ao sábio.E — É espantoso como já antes tínhamos concluído isto e

que não me tenha podido vir à mente nada que te respondesse.

X, 20. Mas introduzamos outros elementos. Com efeito, jáse descobriu, por um lado, que o reino da mente humana é asabedoria humana e, por outro, que a mente também pode não

reinar no ser humano.A — Pensas que a paixão é mais poderosa do que a mente,à qual reconhecemos ter sido confiado, por lei eterna, o domí-nio sobre as paixões? Eu, de facto, de modo algum penso queassim seja. E não seria absolutamente ordenado que as reali-dades mais fracas dominassem as mais fortes. Por isso, julgoque é necessário que a mente seja mais poderosa do que o

desejo desenfreado, precisamente porque é recto e justo que elao domine.a

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E — Também penso da mesma maneira.A— E então? Porventura duvidaremos que toda a virtude se

deve antepor a todo o vício, de tal modo que, quanto melhor e maissublime for a virtude, tanto mais firme e invencível ela se torna?

E — Quem poderá duvidar?A — Nenhum espírito vicioso supera, portanto, um espírito

armado de virtude.E — É absolutamente verdadeiro.A — Julgo que já não haverás de negar que qualquer espí-

rito é melhor e mais potente do que qualquer corpo.E — Não o nega ninguém que veja — o que é fácil — que

uma substância viva deve preferir-se a outra não viva, ou queaquela que dá a vida deve preferir-se àquela que a recebe.

A — Portanto, muito menos um corpo, seja ele qual for,vence um espírito dotado de virtude.

E — É absolutamente evidente.A — Então o espírito justo e a mente, guardando o seu rei-

no e o seu direito próprio, porventura podem lançar por terrae subjugar, pela paixão, uma outra mente, onde igualmente rei-ne a virtude e a equidade?

E — De nenhum modo, não só porque ambas gozam damesma perfeição, mas também porque a primeira que se es-forçasse por arrastar a outra se afastaria da justiça, tornando--se viciosa, e, por isso mesmo, seria mais fraca.

21. A — Compreendeste bem. Por isso, resta que respondas,se for possível, se te parece que há alguma realidade superiorà mente racional e sábia.

E — Julgo que nenhuma, excepto Deus.A — Essa é também a minha opinião. Mas isso é uma ques-

tão árdua e agora não é oportuno investigá-la de forma que

seja compreendida, embora a sustentemos com fé absolutamentefirme. Deixemos para mais tarde o estudo completo, cauto ediligente, desta questão.

XI [21]. Por agora, de facto, podemos saber que, seja qualfor essa natureza — que é superior a uma mente dotada devirtude —, ela não pode, de modo algum, ser injusta. Por isso,

ainda que tenha o poder de o fazer, também ela não forçará amente a ser escrava da paixão.

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E — Sem dúvida que não há quem o não reconheça semqualquer hesitação.

A — Dado que, para a mente que reina e está na posse dasvirtudes, tudo o que é igual ou superior a não torna escravada paixão, por causa da justiça; e dado que o que é inferiornão o pode fazer, por causa da sua debilidade — tal como nosensina o que estabelecemos entre nós —, resta, portanto, quenenhuma outra realidade torna a mente companheira do dese-

jo desenfreado senão a própria vontade e o livre arbítrio.E — Nenhuma conclusão se torna mais necessária.

22. A — Donde se segue que agora te parece justo que amente sofra castigos por tão grande pecado.

E — Não o posso negar.A — Então? Porventura se há-de considerar pequeno este

mesmo castigo — que a mente seja dominada pela paixão — eque, depois de a ter despojado das riquezas da virtude, esta a

arraste, pobre e miserável, em direcções opostas? Ora assumeo falso por verdadeiro, ora se lança na defesa da Verdade econdena aquilo que antes tinha aprovado, precipitando-se paraoutras realidades não menos falsas; ora suspende as suas as-serções, temendo, muitas vezes, os raciocínios diáfanos, ora de-sespera de toda a descoberta da Verdade, mergulhando pro-fundamente nas trevas da estultícia; ora se esforça por entender

a luz, ora cai novamente, pela fadiga. Entretanto, como aquelereino do desejo desenfreado usa tiranicamente a crueldade, eperturba todo o espírito e a vida do ser humano por meio detempestades diversas e contrárias — de um lado, o temor, deoutro, o desejo; de um lado, a ansiedade, de outro, as alegriasfalsas e vãs; de um lado, o tormento das coisas perdidas queele amava, de outro, o ardor de possuir aquelas que não tinha;

de um lado, aceitando as dores da injúria recebida, de outro, oflagelo da vingança — para onde quer que ele se vire, a avare-za força-o, a luxúria dissipa-o, a ambição domina-o, a soberbaincha-o, a inveja trucida-o, a desídia sepulta-o, a obstinaçãoagita-o, a humilhação aflige-o, bem como tantas realidades inu-meráveis que povoam e atormentam o reino daquela paixão.Em suma, poderemos nós considerar nulos estes castigos que,como vês, são necessariamente suportados por todos aquelesque não aderem à sabedoria?

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23. E — Julgo que, para alguém já colocado no lugar subli-

me da sabedoria, certamente este é um grande castigo e abso-lutamente justo, se decidir descer de lá e colocar-se ao serviçoda paixão. Mas não há certeza de que possa haver alguém queo queira ou tenha querido fazer. De facto, embora acreditemosque o ser humano foi criado por Deus de modo tão perfeitoque tenha sido estabelecido numa vida feliz, a ponto de tercaído nas misérias da vida mortal por vontade própria, contu-do admito tudo isto com uma fé firmíssima, porque ainda nãoo alcancei com a inteligência. E se pensas que agora se deve

adiar a investigação diligente deste assunto, fá-lo-ás contra aminha vontade.

XII, 24. Mas eis o que mais me perturba: por que razãonós, que seguramente somos estultos e nunca fomos sábios,havemos de padecer tão acerbos castigos, de tal modo que comrazão se diga que sofremos por ter abandonado a soberania da

virtude e escolhido a servidão da paixão. E se, através de ar-gumentos, fores capaz de me explicar este assunto, de modoalgum te hei-de conceder que ele se adie.

A — Dizes isso como se tivesses descoberto claramente quenunca fomos sábios. De facto, só consideras o tempo a partirdo qual estamos nesta vida. Mas, uma vez que a sabedoriareside no espírito, é uma grande questão, uma realidade mui-

to oculta e que deve ser considerada no seu lugar próprio, sa-ber se o espírito terá vivido alguma outra vida antes de terconvivido com este corpo, e se alguma vez terá vivido sabia-mente. E, no entanto, nada nos impede de tratar do que agoratemos em mão, esclarecendo-o tanto quanto possível.

25. Assim, quero que me digas: existe em nós uma vontade?

E — Ignoro.

A — E queres saber? E — Também o ignoro. A — Então não me interrogues acerca de mais nada.

E — Porquê? A — Porque eu não te devo responder, a não ser que quei -

ras saber aquilo que perguntas. Além disso, se não quisereschegar à sabedoria, a minha conversa contigo acerca destesassuntos não deve ter lugar. Por último, porque não poderás

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ser meu amigo a não ser que queiras para mim o bem. Maisainda, no que te diz respeito, tu próprio verás se tens ou nãovontade de que a tua vida seja feliz.

E — Confesso que não se pode negar que temos uma vonta-de. Prossegue, e já veremos o que queres concluir daqui.

A — Assim farei. Mas diz-me também, primeiro, se achasque tens uma vontade boa.

E — O que é uma boa vontade?A — É a vontade pela qual desejamos viver recta e hones-

tamente e alcançar a sabedoria suprema. Assim, vê lá se nãodesejas uma vida recta e honesta, ou se não queres com vee-mência ser sábio. Ou, pelo menos, vê se ousas negar que, quan-do o queremos, temos uma boa vontade.

E — Não nego nenhuma dessas coisas. Por esta razão, re-conheço, desde já, não só que tenho uma vontade, mas que tam-bém tenho uma boa vontade.

A — Diz-me, então, por favor: que valor atribuis a esta von-

tade? Julgas porventura que ela de algum modo se deve com-parar às riquezas, honras e prazeres do corpo ou a todo essegénero de realidades?

E — Deus afaste tão abominável demência.A — Então, o facto de termos no espírito isto mesmo a que

chamo boa vontade, será pouco motivo para nos alegrarmos?Em comparação com ela, é desprezível tudo quanto enunciá-

mos e, para a possuir, vemos um grande número de homensnão poupar qualquer esforço, nem recusar qualquer trabalho.E — Na realidade, devemos alegrar-nos, e muito.A — E então? Para os que não desfrutam desta alegria,

parece-te pouco o dano que sofrem, ao perder tão grande bem?E — Pelo contrário, parece-me um imenso dano.

26. A — Já vês, portanto, segundo julgo, o que é constituti-vo da nossa vontade: que desfrutemos ou careçamos de tãogrande e verdadeiro bem. De facto, o que é que reside mais navontade do que a própria vontade? Quem possui esta boa von-tade, certamente possui algo que, de longe, se deve preferir atodos os reinos da terra e a todos os prazeres do corpo. Masquem não a possui, carece, sem dúvida, daquilo que ultrapassa

todos os bens que não estão em nosso poder; bastava a vonta-de para, por si só, lhe dar essa realidade. Deste modo, consi-

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derando-se o ser humano absolutamente infeliz se lhe for tira-do o brilho da boa reputação, as riquezas, ou qualquer tipo debens corporais, não julgarás tu que ele. é absolutamente infe-liz, se nele residir aquilo que, com toda a facilidade, se lhe podetirar, e que não tem quando quer, ainda que abunde em todasaquelas outras coisas, carecendo, no entanto, da boa vontade,que não tem comparação com esses bens, e que, sendo um bemtão grande, basta tão-somente que se queira para se possuir?

E — É absolutamente verdadeiro.A— Portanto, é com razão e justiça que os homens estultos

sofrem tal infelicidade, embora nunca tenham sido sábios — oque não é certo e é uma questão muitíssimo obscura.

E — Concordo.

XIII, 27. A — Examina agora se te parece que a prudência éo conhecimento das realidades que se devem desejar e evitar.

E — Parece-me que sim.

A — E então? A fortaleza não é aquele estado da alma peloqual desprezamos todos os incómodos e a perda de realidadesque não está em nosso poder determinar?

E — Também julgo que assim é.A— A temperança, por seu turno, é a disposição que coage

e reprime o desejo das realidades que se apetecem de modoindecoroso. Ou será que pensas de outro modo?

E — Pelo contrário, julgo que é como dizes.A — E que diremos agora acerca da justiça, a não ser que éa virtude pela qual se dá a cada um aquilo que lhe é devido?

E — Para mim não é outra a noção de justiça.A— Portanto, quem tiver uma boa vontade, de cuja exce-

lência já falámos longamente, há-de abraçar esta única virtu-de com um amor que, entretanto, nada considera de melhor.

Nela se há-de recriar, nela, enfim, há-de rejubilar e desfrutar,considerando-a e apreciando o seu valor, e a impossibilidadeque há de ela lhe ser subtraída e arrebatada contra a suavontade. Poderemos porventura duvidar que esse homem sejainimigo de tudo quanto se opõe a este bem único?

E — É de todo necessário que o seja.A — E pensaremos que não será dotado de nenhuma pru-

dência aquele que vê que este bem deve ser desejado, e que sedevem evitar as realidades que se lhe opõem?

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E — De nenhum modo me parece que alguém o possa fazersem prudência.

A — Muito bem. Mas por que razão não lhe havemos deatribuir também a fortaleza? De facto, ele não pode amar nemdar muito valor a todas estas realidades que não estão em nossopoder, pois seriam amadas com uma vontade má. Por isso, énecessário que lhes resista como a realidades inimigas de umbem muito caro ao homem sábio. Mas se as não ama, não tempena de ser privado delas, e despreza-as em absoluto. Comodissemos e admitimos, isto é próprio da fortaleza.

E — Podemos atribuir-lhe, certamente, a fortaleza. Com efei-to, não entendo que outro homem se possa chamar forte commais verdade, a não ser aquele que suporta, com igualdade etranquilidade de espírito, a privação daquelas realidades cujaaquisição e conquista não depende de nós. Tornou-se claro quetal homem pratica necessariamente a fortaleza.

A — Então, vê lá agora se lhe podemos retirar a temperan-ça, sendo esta a virtude que coíbe as paixões. Ora, que há demais oposto à boa vontade do que a paixão? Por isso, compreen-des perfeitamente que o homem que ama a sua boa vontadese opõe e resiste em absoluto às paixões. Portanto, dir-se-á com

justiça que ele pratica a temperança.E — Podes prosseguir, estou de acordo.A — Resta a justiça que seguramente não vejo de que modo

pode estar ausente deste homem. Com efeito, aquele que pos-sui e ama a boa vontade, e que, como se disse, se opõe às coi-sas que são inimigas dela, não pode querer mal a ninguém.Segue-se, portanto, que a ninguém faz injúria, o que de modoalgum pode acontecer, a não ser que dê a cada um aquilo quelhe é devido. E quando eu disse que isto pertencia à justiça,tu aprovaste, como julgo que recordas.

E — Na realidade, recordo-me de o ter feito e confesso que,neste homem, que ama a sua boa vontade e lhe dá um tãogrande valor, se manifestam as quatro virtudes que há poucodescreveste, e a que prestei o meu assentimento.

28. A — Portanto, que nos impede de considerar que estemodo de vida é digno de louvor?

E — Absolutamente nada. Bem pelo contrário, tudo nos in-cita e até nos obriga a isso.

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A— Podes, então, de algum modo não considerar que sedeve evitar a vida infeliz?

E — Certamente que não, e considero que nenhuma outracoisa se deve fazer.

A — E seguramente não pensas que se deve evitar uma vidadigna de louvor.

E — Julgo até que deve ser desejada com todo o empenho.A — Portanto, uma vida digna de louvor não é uma vida

infeliz.E — Certamente que também isso se segue.A — Tanto quanto me parece, já não te será difícil prestar

assentimento ao que falta, ou seja, que a vida feliz é aquelaque não é infeliz.

E — É absolutamente evidente.A — Admitimos, portanto, que é feliz o homem que ama a

sua boa vontade e despreza, por causa dela, tudo aquilo quedizemos serem bens e cuja perda pode acontecer mesmo que

permaneça a vontade de os conservar.E — De que modo poderíamos não admitir aquilo que de-

corre necessariamente do que antes concedemos?A — Compreendeste bem. Mas diz-me, por favor: amar a sua

boa vontade e atribuir-lhe todo o valor que lhe demos, não éisso também a própria boa vontade?

E — Dizes a verdade.

A — E se, com razão, consideramos que é feliz quem a pos-sui, não é também justo dizer que é infeliz quem possui umavontade contrária a esta?

E — É absolutamente justo.A— Portanto, mesmo se nunca antes tivéssemos sido sábios,

por que motivo havemos de duvidar que é pela vontade quemerecemos e levamos uma vida louvável e feliz, e que é igual-

mente pela vontade que a nossa vida é torpe e infeliz?E — Reconheço que chegámos a estas conclusões por meiode argumentos exactos e que de nenhum modo se podem negar.

29. A — Repara ainda noutra coisa. Na verdade, creio quete recordas do que dissemos ser a boa vontade. Julgo, com efei-to, que ela foi definida como aquela vontade pela qual deseja-

mos viver recta e honestamente.E — Sim, recordo-me.

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A — Portanto, se amarmos e abraçarmos esta vontade coma mesma boa vontade, e a antepusermos a tudo aquilo que nãopodemos reter quando queremos, logicamente habitarão nonosso espírito, como a razão nos ensinou, aquelas virtudes cujaposse é a própria vida recta e honesta. Daí se segue que quemqueira viver recta e honestamente, se preferir este seu quererao dos bens fugazes, obterá este imenso bem com tanta facili-dade que, para ele, o próprio querer não será outra coisa doque possuir aquilo que quer.

E — Em verdade te digo que com dificuldade contenho a

minha exclamação de alegria por ver que, de repente, se metornou acessível um tão grande bem e de tão fácil aquisição.

A — E essa mesma alegria que se gera pela aquisição des-se bem, na medida em que eleva o espírito com tranquilidade,serenidade e constância, chama-se vida feliz. A não ser que tupenses que a vida feliz é diferente da alegria que decorre daposse dos bens verdadeiros e seguros.

E — Também penso assim.

XIV, 30. A — Muito bem. Mas julgas que, entre os homens,há alguém que de modo algum não queira ou prefira a vida feliz?

E — Quem duvida que todo o ser humano a quer?A — Então, por que razão nem todos a alcançam? Com efei-

to, dissemos, e chegámos entre nós a acordo, que é por aquela

vontade que os homens a merecem, e que também é pela von-tade que são infelizes e, assim, recebem o que merecem. Masagora, na realidade, há aqui qualquer coisa que repugna e, senão a analisamos diligentemente, corremos o risco de pertur-bar o que anteriormente se disse com tão firme e atenta ra-zão. De facto, como pode alguém suportar voluntariamente umavida infeliz, se absolutamente ninguém quer ter uma vida in-

feliz? Ou, então, como poderemos afirmar que é voluntariamenteque o ser humano atinge a vida feliz, uma vez que há tantoshomens infelizes e que todos querem ser felizes? Ou será queisso acontece porque uma coisa é querer o bem ou o mal, eoutra merecer alguma coisa por meio da boa ou da má vonta-de? Na verdade, os que são felizes, e que, necessariamente, tam-bém são bons, não é pelo facto de terem querido a vida felizque são felizes — com efeito, isto também querem os maus —,.

mas por quererem viver rectamente, coisa que os maus não

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querem. E por isso não é de admirar que os homens infelizesnão obtenham aquilo que querem, ou seja, a vida feliz. Efecti-vamente, eles não querem igualmente aquilo que a acompa-nha, e sem o qual ninguém é digno dela e ninguém a obtém,ou seja, a rectidão de vida. Aquela lei eterna, a cuja análise jáé tempo de regressar, estabeleceu isto mesmo com uma firmezaimutável, de tal modo que o mérito está na vontade, mas o pré-mio e o castigo estão na felicidade ou na infelicidade. Assim,quando dizemos que os homens são infelizes voluntariamente,não dizemos, por isso, que tenham querido ser infelizes, masque o são voluntariamente, uma vez que a sua vontade é talque também se segue necessariamente que sejam infelizes con-tra a sua vontade. Daí que isto não vá contra as razões antesapresentadas, visto que todos querem ser felizes, mas não po-dem. Com efeito, nem todos querem viver rectamente, e é só aesta vontade que se deve a vida feliz. A não ser que tenhasalguma coisa a opor...

E — Não, de facto não tenho nada.

XV, 31. Mas vejamos agora de que modo estas coisas se refe-rem àquela questão que antes levantamos, acerca das duas leis.

A — Seja. Contudo, antes de mais, diz-me se aquele que amaviver com rectidão — e nisso se deleita de tal modo que nãoencontra aí apenas a rectidão, mas também a doçura e a ale-

gria — ama também, com toda a estima, essa lei, pela qual vêque se deve dar aos bons a vida feliz e aos maus a infelicidade.E — Ama-a em absoluto e com veemência. Na verdade, vi-

vendo assim, é essa mesma lei que ele segue.A — E quando a ama, ama algo mutável e temporal, ou

estável e sempiterno?E — Certamente ama algo eterno e imutável.

A — Então? Aqueles que perseveram na má vontade e nãodesejam de modo nenhum ser felizes, podem amar esta lei, pelaqual se atribui com razão a tais homens a infelicidade?

E — De nenhum modo, julgo eu.A — E eles não amam nenhuma outra realidade?E — Pelo contrário, amam muitas. Por exemplo, aquelas que

a sua má vontade persiste em possuir e alcançar.

A — Julgo que te referes às riquezas, honras, prazeres oubeleza do corpo e as demais realidades que se podem não al-

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cançar, mesmo querendo, e que, igualmente, se podem perdercontra a própria vontade.

E — São essas mesmo.A — Porventura consideras essas realidades eternas, quan-

do vês que se submetem à volubilidade do tempo?E — Quem o haverá de pensar, mesmo se for completamen-

te insensato?A— Por isso, sendo já evidente que há seres humanos que

amam as realidades eternas, e há outros que amam as tempo-rais; e tendo ficado estabelecido que há duas leis, uma eternae outra temporal, se tens algum sentido de equidade, diz-mequais de entre estes homens pensas que se devem submeter àlei eterna, e quais à lei temporal?

E — Penso que a resposta ao que procuras é evidente. Naverdade, julgo que são felizes aqueles que, por causa do amordestes bens eternos, actuam sob o domínio da lei eterna; quantoaos infelizes, impõe-se que estejam sujeitos à lei temporal.

A — Julgas bem, desde que sustentes aquela afirmação in-concussa, que a razão já demonstrou com toda a clareza: osque servem a lei temporal não podem estar livres da lei eter-na, da qual dissemos que deriva tudo o que é justo e tudo oque varia com justiça. E aqueles que aderem à lei eterna pelaboa vontade não necessitam da lei temporal, como já se vê quecompreendeste bem.

E — Admito o que dizes.

32. A— A lei eterna, portanto, ordena que se tenha aver-são ao amor das realidades temporais, e que, purificado este,se converta às realidades eternas.

E — De facto, assim o ordena.A — E que julgas tu que ordena a lei temporal, a não ser

que, quando os homens desejarem possuir estas realidades, quetemporariamente se podem chamar nossas, as possuam de talmodo que seja preservada a paz e a relação entre os sereshumanos, tanto quanto ela pode ser preservada neste âmbitode realidades? Entre elas encontra-se, antes de mais, este cor-po e aquilo que, nele, se diz ser bom, como a conservação dasaúde, a acuidade dos sentidos, a energia, a beleza e as de-

mais realidades deste género, umas, necessárias às artes no-bres e, portanto, de maior estima, outras, de menor valor; em

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seguida, a liberdade, que certamente só é verdadeira para osque são felizes e aderem A. lei eterna. Mas agora refiro-meàquela liberdade pela qual se julgam livres os que não têmoutros homens como seus senhores, a liberdade que desejamos que querem livrar-se do domínio dos homens. Depois, os pais,irmãos, a esposa, os filhos, os parentes, os vizinhos, os amigose todos aqueles que estão unidos a nós por algum laço fami-

liar. E ainda a própria cidade, que costuma ter-se por lugar denascença, e também as honras, os louvores e aquilo a que sechama a glória do povo. Por último, o dinheiro, pelo qual, numsó nome, se reúne tudo aquilo de que somos senhores por di-reito, e que temos o poder de vender ou de dar. O modo queaquela lei tem de distribuir, de entre todas estas realidades, acada o que lhe é devido, é muito difícil e moroso de explicar e,para aquilo que nos propusemos, é evidente que não é neces-sário fazê-lo. De facto, basta ver que o poder judicativo da leitemporal não se estende para além de proibir ou retirar istoou aquilo àqueles que ela pune. Portanto, é pelo medo que alei temporal obriga a fazer aquilo que ela quer, e torce e retor-ce os espíritos dos infelizes, a cujo governo ela se destina. Naverdade, enquanto eles temem que estas realidades lhes pos-sam ser arrebatadas, conservam, no uso que delas fazem, umarelação com a cidade de certo modo conveniente, tal como elapode ser constituída entre este género de homens. Porém, não

é o facto de se amarem estas realidades que se pune comopecado, mas sim o facto de elas serem perversamente tiradasaos outros. Por conseguinte, vê lá se já se alcançou aquilo que

julgavas infindo. Com efeito, tínhamos decidido investigar atéque ponto aquela lei, pela qual os povos e as cidades terrenassão governados, tem o direito de punir.

E — Vejo que já o alcançámos.

33. A — Também vês, portanto, que não haveria castigo,quer por agravo, quer por uma tal vindicta que se impõe aoshomens, se eles não amassem aquelas realidades que podemser arrebatadas contra a vontade?

E — Também vejo isso.A — Portanto, uma vez que, fazendo uso das mesmas reali-

dades, uns empregam-nas bem, outros, mal; e que, quem asusa mal, enreda-se e apega-se a elas pelo amor, submetendo-se,

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assim, àquelas realidades que lhe deveriam estar submetidas,e tornando-se um bem para essas realidades, das quais deve-ria ele ser, antes, o bem, ordenando-as e fazendo bom uso de-las — ora, quem faz delas um uso recto mostra, certamente,que elas são boas, mas não para si. De facto, não são elas queo tornam bom ou melhor, mas são antes elas que se tornammelhores, por meio de quem as usa. Por isso, a capacidade deamar que o ser humano tem não deve concentrar-se em taiscoisas, nem fazer como se elas fossem membros do seu espíri-to, o que acontece quando se ama, para que não se desfigure,pelo sofrimento e pela lepra, quando elas se começarem a de-gradar; antes se lhes sobreponha inteiramente, possuindo-as egovernando-as quando seja necessário, estando preparado paraque lhe sejam arrebatadas e ainda mais preparado para as nãoter; sendo assim, porventura pensas que a prata e o ouro de-vem ser acusados por causa dos avaros, ou os alimentos porcausa dos vorazes, ou o vinho por causa dos ébrios, ou a bele-za feminina por causa dos libertinos e dos adúlteros, e as de-mais coisas deste género, sobretudo quando vês que o médicopode fazer bom uso do fogo e que o pão pode ser usado crimi-nosamente pelo envenenador?

E — É absolutamente verdade que não se devem culpar aspróprias coisas, mas os homens que as usam mal.

XVI, 34. A — Correcto. Mas dado que, segundo julgo, tínha-mos começado a ver qual o valor da lei eterna, e que se desco-briu até onde chega o poder vindicativo da lei temporal; quedistinguimos também com suficiente clareza dois géneros derealidades, as eternas e as temporais, e, por outro lado, doisgéneros de homens: os que perseguem e amam as realidadeseternas e os que seguem as temporais; que se estabeleceu, tam-

bém, aquilo que cada um escolhe pôr na vontade, quando ade-re a essas realidades e as abraça; e que a mente não pode serdeposta das alturas onde domina, e da recta ordem, por ne-nhuma outra realidade, a não ser pela vontade; e que tambémé evidente que, quando cada um se serve mal dela, nada hánas coisas que se deva inculpar, mas é o próprio mau uso quedeve ser acusado, regressemos agora, se for do teu agrado,

àquela questão que formulámos no início deste diálogo, paraver se ela ficou resolvida.

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Na verdade, tínhamos decidido investigar o que é fazer o male por esse motivo se disse tudo o que ficou dito. Sobre esseassunto, importa agora verificar e considerar se fazer o mal éoutra coisa do que negligenciar as realidades eternas — dasquais a própria mente frui por si própria, e por si própriapercebe quais são aquelas realidades que, quando as ama, nãolhe podem ser arrebatadas — e aderir às temporais, como sefossem grandes e admiráveis, a essas que são percepcionadaspelo corpo, que é uma parte muito insignificante do ser huma-no, e que nunca podem estar seguras. Na verdade, este únicogénero parece-me que inclui todas as más acções, isto é, ospecados. Mas espero vir a saber o que te parece.

35. E — É assim como dizes. Estou de acordo que todos ospecados estão contidos neste único género, isto é, acontecemquando alguém se separa das realidades divinas e verdadeira-mente permanentes, e se converte às realidades mutáveis e in-certas. Ainda que estas tenham sido colocadas rectamente nasua ordem e realizem a sua beleza própria, contudo, subme-ter-se-lhes, seguindo-as, é próprio de um espírito perverso e de-sordenado que, por ordem e direito divino, foi colocado, antesde mais, num lugar superior, para as conduzir, a um sinal seu.E assim também me parece que já se vê de modo perfeito eevidente que, depois desta questão, acerca do que é fazer o mal,

se siga a investigação daquilo que estabelecemos, isto é, de ondevem que façamos o mal. Com efeito, se não estou em erro, asrazões apresentadas mostraram que fazemos o mal a partir dolivre arbítrio da vontade.

Mas quero saber se era necessário que o próprio livre arbí-trio, pelo qual já nos convencemos que temos a faculdade depecar, nos fosse dado por Aquele que nos criou. Com efeito,

vemos que não haveria pecadores se carecêssemos dele, e devetemer-se que, deste modo, não se possa deixar de pensar queDeus seja também autor das nossas más acções.

A — De nenhum modo te deixes invadir por tal temor. Mas,para indagar acerca deste assunto com mais diligência, deve-mos retomá-lo noutro momento. Na verdade, esta nossa con-versa já está a pedir uma medida e um fim. Por este diálogo,

queria que acreditasses que fomos levados a investigar gran-des e recônditas questões apenas como que batendo-lhes A.

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porta. Quando, conduzidos por Deus, começarmos a penetrarnos seus santuários, verificarás seguramente a distância entreesta discussão e aquelas que se seguirão, e como estas últimasa ultrapassam, não apenas pela sagacidade da investigação,mas também pela grandeza dos assuntos e pela luz absoluta-mente clara da Verdade. Assista-nos apenas a piedade, paraque a providência divina nos permita prosseguir e terminar ocaminho que empreendemos.

E — Rendo-me à tua vontade e de bom grado me uno a ela,com o pensamento e o coração.

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Lrvx,o II

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LIVRO II

I, 1. E — Se for possível, explica-me agora por que razãoDeus deu ao ser humano o livre arbítrio da vontade, pois se-guramente se o não tivesse recebido não poderia pecar.

A — Para ti, de facto, é já certo e sabido que Deus tenhadado ao ser humano aquilo que tu achas que não lhe deveriater sido dado?

E — Tanto quanto pude entender do livro anterior, por um

lado, nós temos o livre arbítrio da vontade e, por outro, é pormeio dele que pecamos.A— Também me lembro de já termos visto isso claramen-

te. Mas agora perguntava-te se sabes que foi Deus que nos deuaquilo que possuímos e por meio do qual é evidente que pe-camos.

E — Não penso de outro modo. De facto, é Dele próprio que

vem o nosso ser e, quer pequemos, quer actuemos com recti-dão, é Dele que recebemos os castigos ou as recompensas.A — Também desejo saber se conheces isso com clareza, ou se

de bom grado o crês, movido pela autoridade, embora o ignores.E — De facto, confirmo que, sobre este assunto, em primei-

ro lugar acreditei na autoridade. Mas que haverá de mais ver-dadeiro do que afirmar que todo o bem procede de Deus; quetudo o que é justo é bom, e que é justo castigar os pecadorese recompensar aqueles que actuam com rectidão? Donde seio

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conclui que procede de Deus tanto a infelicidade dos pecadorescomo a felicidade dos que actuam com rectidão.

2. A — Nada tenho a opor. Mas agora quero colocar-te ou-tra questão: de que modo conheces que o nosso ser procedede Deus? Com efeito, não foi isto que agora me explicaste,mas sim que é Dele que recebemos quer o castigo, quer o pré-mio.

E — Também não vejo que isto seja evidente, a não serporque já se admitiu que Deus castiga os pecados, visto que éDele que procede toda a justiça. De facto, assim como é pró-prio da bondade fazer bem aos estrangeiros, também não épróprio da justiça vingar-se nos estrangeiros. Portanto, é evi-dente que nós lhe pertencemos, porque não só Ele é absolu-tamente benévolo nos dons que outorga, como também é per-feitamente justo nos castigos que inflige. Além disso, a partirdo que eu propus e que foi aceite por ti — que todo o bem pro-cede de Deus —, também se pode compreender que o ser hu-mano procede de Deus. Efectivamente, o próprio ser humano,enquanto tal, é um certo bem, porque pode viver com rectidão,quando quer.

3. A — Obviamente, se as coisas são assim, está resolvida aquestão que colocaste. Se, de facto, o ser humano é um certo

bem, e se não pode agir com rectidão a não ser quando o querfazer, então deve ter uma vontade livre, sem a qual não podeactuar com rectidão. Mas não é pelo facto de ser por meio delaque também pecamos que se deve acreditar que Deus no-latenha dado para isso. Para compreender por que razão a von-tade livre nos deveria ter sido dada basta, portanto, este moti-vo: o facto de, sem ela, o ser humano não poder viver com recti-

dão. Mas também se pode compreender que ela nos foi dada paraviver com rectidão porque, se alguém fizer uso de tal vontadepara pecar, o castigo divino cairá sobre ele. Ora, isto seriainjusto se a vontade livre tivesse sido dada não só para vivercom rectidão, mas também para pecar. Efectivamente, de quemodo o castigo cairia com justiça sobre aqueles . que fizessemuso da vontade em conformidade com o fim para o qual ela

nos tivesse sido dada? Na realidade, quando Deus pune aqueleque peca, que te parece que quer dizer, a não ser isto: «Por

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que razão não fazes uso da livre vontade em ordem àquilo paraque Eu ta dei, ou seja, para agir com rectidão?»

Além disso, como existiria aquele bem, pelo qual se confiaà própria justiça a condenação. dos que pecam e o louvor dosque actuam com rectidão, se o ser humano carecesse do livrearbítrio da vontade? Com efeito, não existe nem pecado nemacção recta que não se faça voluntariamente. Por isso, se o serhumano não tivesse uma vontade livre, seriam injustas tantoa pena como a recompensa. Ora, deve haver justiça tanto nocastigo como na recompensa, porque a justiça é um dos bensque procedem de Deus. Deus deve, portanto, ter dado ao ho-mem a vontade livre.

II, 4. E — Agora já admito que Deus no-la tenha dado. Maspergunto-te: se ela foi dada para agir com rectidão, não teparece que não deveria poder voltar-se para pecar, assim comoacontece com a própria justiça, que foi dada ao homem paraque ele viva bem? Com efeito, pode alguém viver mal por meioda sua justiça? De igual modo, se a vontade tivesse sido dadapara fazer o bem, ninguém poderia pecar por meio da sua von-tade.

A — Deus há-de conceder-me, como espero, a capacidade dete responder, ou melhor, que tu respondas a ti próprio, instruídointeriormente pela Verdade, que é mestre soberana de todos

nós. Mas, antes de mais, quero que me digas se tens por certoe sabido aquilo que te tinha perguntado: se, pelo facto de Deusnos ter dado a livre vontade, é necessário dizer que Ele nãonos devia ter dado aquilo que confessamos que nos deu.

Com efeito, se é incerto que Deus no-la tenha dado, temosrazão para investigar se ela nos foi bem dada, de tal modo que,se descobrimos que nos foi bem dada, também descubramos que

no-la deu Aquele que deu todos os bens à alma. Mas, se desco-brirmos que a vontade não foi bem dada, compreenderemos quenão nos foi dada por Aquele a quem não é lícito inculpar. Con-tudo, se realmente for certo que o próprio Deus no-la deu, in-dependentemente do modo como ela nos tenha sido dada, te-mos de reconhecer que não devemos dizer que a vontade livrenão devia ter sido dada, ou que devia ter sido dada de modo

diferente. De facto, ela foi dada por Aquele cuja obra de modoalgum pode ser objecto de censura.

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5. E — Não obstante sustentar isso com fé inconcussa, to-davia, como ainda não o defendo pelo conhecimento mais ple-no, continuemos a investigar como se tudo fosse incerto. Comefeito, se pusermos em causa que a vontade livre nos tenhasido dada para agir com rectidão, uma vez que é também porela que podemos pecar, também estará em causa saber se elanos deveria ter sido dada.

De facto, se é incerto que a vontade nos foi dada para agircom rectidão, também é incerto saber se nos deveria ter sidodada. Por isso, também será incerto saber se foi Deus que adeu, porque se é incerto que ela devia ter sido dada, tambémserá incerto se foi dada por Aquele de quem é de todo em todoimpossível acreditar que tivesse dado alguma coisa que nãodevesse.

A — Pelo menos é certo para ti que Deus existe.E — Também defendo de modo inconcusso essa afirmação,

mas pela fé, e não pela contemplação.

A — Portanto, se algum daqueles néscios de quem está es-crito: «Disse o néscio no seu coração: `Deus não existe'»

1, te viesse

dizer isso, e não quisesse acreditar contigo naquilo em que tuacreditas, mas quisesse conhecer se é verdade aquilo em queacreditas, havias de abandonar esse homem? Ou pensarias quede algum modo o deverias persuadir daquilo que sustentas ina-balavelmente, sobretudo se ele não te importunasse obstinada-

mente, mas se o quisesse investigar com empenho?E — Isso que disseste em último lugar bastaria para meadvertir acerca do que lhe deveria responder. De facto, por maisabsurdo que ele fosse, certamente me havia de conceder quenão se pode discorrer acerca de nada — e, de modo especial,acerca de um assunto tão importante — com dolo e obstinação.Admitindo isto, em primeiro lugar, ele havia de se comportar

comigo de forma que eu acreditasse nas boas disposições doseu espírito, ao investigar este assunto, e que não se escondenele qualquer dolo ou obstinação sobre esta matéria.

Então, demonstrar-lhe-ia algo que me parece muito fácilpara qualquer um: que — uma vez que ele quer fazer crer aoutrem, que não o conhece, aquilo que lhe vai no espírito e

Salmo 13:1; 52:1.

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1

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que só a ele próprio é dado conhecer — é muito mais equili-brado que ele acredite que Deus existe com base nos livros dehomens tão ilustres que viveram com o Filho de Deus e quedeixaram esses escritos como testemunho; porque, por um lado,eles escreveram coisas que viram e que de nenhum modo po-deriam ter acontecido se Deus não existisse, e, por outro, seriauma grande insensatez se aquele que quer que eu acredite neleme censurasse por acreditar naquilo em que tais homens acre-ditaram. E realmente aquilo que ele não teria razão para cen-surar, de nenhum modo encontraria motivo para também nãoquerer imitar.

A — Portanto, se, acerca de saber se Deus existe, conside-ras que é suficiente que não pensemos que homens tão ilus-tres acreditaram temerariamente, pergunto eu: por que razão

julgas que, do mesmo modo, não haveremos de acreditar naautoridade desses mesmos homens, quanto ao assunto que de-cidimos investigar como se fosse incerto e completamente desco-nhecido, para assim não termos mais trabalho a investigar estesassuntos?

E — Mas nós desejamos conhecer e compreender aquilo emque acreditamos.

6. A — Recordas bem. Também não podemos negar que es-tabelecemos isso mesmo no princípio da discussão anterior. Com

efeito, em vão o profeta teria dito: «Se não acreditardes, nãocompreendereis» 2

, se «acreditar» não fosse uma coisa e «com-preender», outra, e que não se devesse acreditar, em primeirolugar, nas coisas divinas e imensas que desejamos compreender.

E nosso Senhor também exortou primeiro aqueles que cha-mou à salvação, por palavras e por obras, para que acreditas-sem. Mas depois, quando falava desse mesmo dom que have-

ria de dar aos crentes, não disse: «Esta é a vida eterna, queacreditem»; mas antes: «Esta é a vida eterna: que te conheçama ti, único e verdadeiro Deus, e àquele que enviaste, Jesus Cris- to» Em seguida, àqueles que já acreditavam, disse: «procuraie encontrareis» 4 ; na verdade, não podemos dizer que encontrá-

2 Isaías 7:9 (versão LXX). 3

João

17:3.

4 Mateus 7:7.

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mos aquilo em que acreditamos se não o conhecemos, e nin-guém está preparado para encontrar Deus se não acreditarpreviamente naquilo que depois há-de vir a conhecer.

Portanto, investiguemos com persistência, obedecendo aospreceitos do Senhor. Efectivamente, aquilo que investigamosexortados por Ele próprio, havemos de o encontrar graças aoSeu ensinamento, tanto quanto isso é possível nesta vida, parahomens como nós. Na verdade, devemos acreditar que tal en-tendimento será alcançado pelos homens mais virtuosos, tam-bém enquanto moram neste mundo, e, certamente, depois des-

ta vida, por todos os homens bons e piedosos, de modo maisperfeito e evidente. Também nós devemos igualmente ter espe-rança de que o mesmo aconteça connosco. E, desprezando asrealidades terrenas e humanas, haveremos de amar e desejarem plenitude as realidades divinas.

III, 7. Se te parece bem, investiguemos, então, por esta or-

dem: em primeiro lugar, de que modo é evidente que Deusexiste. Em seguida, se todas as coisas, na medida em que sãoboas, provêm de Deus. Por último, se a vontade livre deve sercontada entre os bens. Depois de ter descoberto estas coisas,tornar-se-á suficientemente claro, como julgo, saber se estavontade foi dada ao homem com justiça.

Por isso, para partirmos de realidades que são absoluta-

mente evidentes, antes de mais quero que me digas se tu pró-prio existes. Ou temes, talvez, responder, não vá ser que teenganes nesta questão, sendo certo que, se não existisses, nãopoderias em absoluto enganar-te?

E — Podes avançar antes para outras coisas.A — Portanto, é evidente que existes. E como isso não po-

deria acontecer a não ser porque vives, então também é evi-

dente que vives. Compreendes que estas duas realidades sãoabsolutamente verdadeiras?E — Compreendo perfeitamente.A — Portanto, também esta terceira é evidente, isto é, que

compreendes.E — É evidente.A — Destas três realidades, qual te parece ser a melhor?

E — A inteligência.A — Por que motivo julgas ser assim?

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E — Porque destas três realidades — ser, viver e entender —a pedra existe e o animal vive, mas eu não julgo que a pedraviva ou que o animal entenda. Porém, é absolutamente certoque quem entende também existe e vive. Por isso, não duvidoconsiderar melhor aquele em quem estão presentes as trêsrealidades, do que aquele a quem falte uma delas.

Na verdade, aquele que vive, certamente também existe, masdaí não se segue, igualmente, que entenda. Tal me parece ser avida dos animais. Quanto àquilo que existe, certamente daí nãose segue que viva e entenda. Na verdade, posso afirmar que os

cadáveres existem, mas ninguém dirá que vivem. E, na reali-dade, aquilo que não vive, muito menos entende.

A— Destas três realidades admitimos, portanto, que duasfaltam ao cadáver, uma ao animal e nenhuma ao ser humano.

E — É verdade.A — Admitimos, também, que, destas três realidades, é me-

lhor aquilo que o ser humano possui juntamente com as ou-

tras duas, isto é, o entendimento, e que a posse do entendi-mento implica também a posse do ser e do viver.

E — Admitimos, claro.

8. A— Agora diz-me lá se sabes que possuis aqueles vul-garíssimos sentidos do corpo, isto é, o sentido da vista, da au-dição, do olfacto, da degustação e do tacto?

E — Sei.A — Que julgas que pertence ao sentido da vista? Ou seja,que julgas que sentimos quando vemos?

E — Todas as realidades corpóreas.A— Será que, quando vemos, também sentimos se as coi-

sas são moles ou duras?E — Não.

A — Portanto, o que é que pertence propriamente aos olhose que sentimos através deles? E — A cor. A — E aos ouvidos? E — O som.

A — E ao olfacto?

E — O cheiro.

A — E ao paladar?

E — O sabor.

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A — E ao tacto?E — O mole e o duro, o suave e o áspero, e outras coisas do

género.A — Então, não é verdade que sentimos as formas dos cor-

pos — grandes, pequenas, quadradas, redondas e outras doestilo — quando as tocamos e vemos, e que, por isso, elas nãopodem atribuir-se, propriamente, nem ao tacto, nem à vista,mas a ambos?

E Estou a compreender.A — Compreendes, portanto, que há alguns sentidos que

possuem realidades próprias, acerca das quais dão informa-ção, e que há outros que possuem realidades comuns?E — Também compreendo isso.A — Poderemos nós, portanto, distinguir, por meio de al-

gum destes sentidos, aquilo que pertence a cada um e aquiloque é comum a alguns deles ou a todos?

E — De modo nenhum. Estas coisas distinguem-se por meio

de algum sentido interior. A— Será isso, talvez, a própria razão, da qual carecem osanimais? Na verdade, como julgo, é pela razão que compreen-demos estas coisas e que conhecemos que elas são assim.

E — Parece-me antes que é pela razão que compreendemosque existe esta espécie de sentido interior, ao qual se refere tudoo que é captado por meio destes cinco conhecidíssimos sentidos.De facto, um é o sentido pelo qual o animal vê, e outro aquelepelo qual evita ou deseja aquilo que percepciona através davisão. Com efeito, aquele primeiro está nos olhos, mas esteúltimo está no próprio interior da alma. Por meio dele, não sóas realidades que se vêem, mas também as que se ouvem, bemcomo as outras realidades que se captam com os sentidos docorpo, são desejadas e tomadas pelos animais, porque lhes agra-dam, ou, porque os agridem, são por eles evitadas e rejeitadas.

Porém, este sentido interior não se pode chamar visão, nemaudição, nem cheiro, nem paladar ou tacto. Trata-se não seide que outra realidade que preside a todas estas como algoque lhes é comum. Como disse, é por meio da razão que acompreendemos, mas não lhe posso chamar razão, porque éevidente que ela também está presente nos animais.

9. A — Reconheço que existe tal realidade, seja 1á o que for,e não duvido chamar-lhe sentido interior. Mas, a não ser que

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se ultrapasse este sentido, aquilo que nos é transmitido atra-vés dos sentidos do corpo não pode chegar a transformar-seem conhecimento. Com efeito, o conhecimento, para nós, é aqui-lo que admitimos depois de o ter compreendido pela razão.Mas — para não falar de outras coisas — sabemos que as co-res não podem ser sentidas pelo ouvido, nem as vozes o podemser pela vista. E, ao saber isto, não é pelos olhos ou pelos ou-vidos que o sabemos, nem por aquele sentido interior, que tam-bém não falta aos animais. De facto, não é de crer que elessaibam que não é pelos ouvidos que captam a luz, nem pelosolhos que escutam as vozes, porque estas realidades só se dis-cernem por uma atenção racional e pelo pensamento.

E — Não posso dizer que tenha percebido isso claramente.E se, de facto, os animais também distinguissem que as coresnão são captadas pelos ouvidos, e que as vozes não podem serpercebidas pela vista, por meio daquele sentido interior, quetu também admites que não lhes falta?

A — Porventura pensas também que os animais podem dis-tinguir essas realidades umas das outras? Ou seja, a cor quese sente, o sentido que está no olho, aquele sentido interior,que está na alma, e a razão, que define e enumera cada umadestas realidades?

E — De modo algum.A — E então? Poderá a razão distinguir estas quatro reali-

dades e delimitá-las por definições, se a cor não lhe for trans-mitida através do sentido dos olhos? E se este, por sua vez,não lhe for transmitido através daquele sentido interior que ogoverna, e se o próprio sentido interior não lhe for transmitidopor si mesmo, se, efectivamente, já não existir nenhuma outrarealidade intermediária?

E — Não vejo que as coisas possam ser de outro modo.A—

E então não vês que a cor é sentida pelo sentido dosolhos, mas que o próprio sentido não se sente a si mesmo? Defacto, não é pelo sentido, com o qual vês a cor, que vês tam-bém o próprio acto de ver.

E — Não, de modo algum.A — Esforça-te também por discernir estas coisas. Na verdade,

creio que não negas que uma coisa é a cor, outra, ver a cor, e

ainda outra — .mesmo se a cor não estiver presente — possuiro sentido que é capaz de ver a cor, se ela estiver presente.u

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E — Distingo essas realidades e admito que diferem entre si.A — Destas três realidades, vês alguma outra com os olhos,

a não ser a cor?E — Nenhuma outra.A — Diz-me, portanto, como é que vês as outras duas. De

facto, se não as visses, não as poderias distinguir.E — Ignoro que realidade é essa. Só sei que existe, nada mais.A— Ignoras, portanto, se é já a própria razão ou se é aquela

vida, a que chamamos sentido interior, muito superior aos sen-tidos do corpo, ou, ainda, se é alguma outra coisa?

E — Ignoro.A — Contudo, sabes que essa realidade não pode ser defini-da a não ser pela razão, e que a razão não o faz a não seragindo sobre aquelas coisas que se lhe apresentam para queas examine.

E — Assim é.A— Portanto, seja lá o que for essa realidade pela qual se

pode sentir tudo quanto percebemos, ela está ao serviço da ra-zão, à qual transmite e apresenta aquilo que alcança, de talmodo que tudo quanto se sente se possa distinguir pelos seuscontornos, e, assim, se possa abarcar, não apenas pela sensibi-lidade, mas também pelo saber.

E — É verdade.A — Então e a própria razão, que distingue aqueles que a

servem e aquilo que eles lhe apresentam, e que também co-nhece aquilo que dista entre estes e ela própria — e que afir-ma o seu predomínio sobre eles —, porventura se abarca a simesma por meio de outra realidade que não ela própria, istoé, pela razão? Ou será que é de outro modo que sabes que pos-suis razão, a não ser porque o percebes pela razão?

E — O que dizes é absolutamente verdadeiro.A— Portanto, se, quando sentimos uma cor, não é também

pelo próprio sentido que sentimos o facto de sentir; e quandoouvimos um som, também não ouvimos o nosso próprio ouvido,nem quando cheiramos uma rosa, cheiramos algo e o nosso olfac-to; e quando estamos a degustar alguma coisa, não saboreamosna boca o próprio gosto; e quando tocamos algo, não podemostocar também o próprio sentido do tacto, é evidente que nenhumdestes cinco sentidos se pode sentir a si mesmo, não obstantese sentirem, por meio deles, todas as realidades corpóreas.

E — É evidente.

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IV, 10. A — Também julgo que é evidente que o sentido in-terior não percebe apenas aquelas coisas que recebe dos cincosentidos do corpo, mas percebe também os próprios sentidos.De facto, de outro modo os animais não se poderiam mover,quer para ir no encalço de alguma coisa, quer para a rejeitar,a não ser que percepcionassem o seu próprio sentido, não paraconhecer — pois isto é próprio da razão —, mas apenas parase moverem, o que, certamente, não se percepciona por ne-nhum dos outros cinco sentidos.

Mas se isto ainda for obscuro, esclarecer-se-á se tomares comoexemplo algum sentido, o que é suficiente. Por exemplo, o casoda visão. Na verdade, o animal de nenhum modo poderia abrir oolho e movê-lo, olhando em redor para aquilo que pretende ver,a não ser porque sentiria que lhe falta a visão, se tivesse o olhofechado, ou sem o mover nessa direcção. Mas se ele se apercebede que não vê, quando não vê, é necessário também que se aper-ceba de que vê, quando vê. De facto, uma vez que é pelo mesmo

apetite que ele move o olho, quando vê, e que não o move, quandonão vê, indica que percepciona ambas as coisas.

Mas já não é assim tão claro saber se esta vida — que sepercepciona ao sentir as realidades corpóreas — também se sen-te a si própria. A não ser que alguém, interrogando-se a si mes-mo no seu interior, descubra que toda a realidade que vive fogeda morte. De facto, uma vez que esta última é contrária à vida,

é necessário que também a vida, que repele o seu contrário, sepercepcione a si própria.

Mas se isto ainda não é claro, deixemo-lo, a fim de não nosesforçarmos por chegar àquilo que queremos a não ser por meiode provas certas e evidentes. Com efeito, as afirmações eviden-tes são estas: as realidades corpóreas por meio do sentido docorpo sentem-se; mas este mesmo sentido não se pode sentir a

si próprio; porém, através do sentido interior, percepcionam-setanto as realidades corpóreas, por meio do sentido do corpo, comoo próprio sentido do corpo; e, de facto, pela razão tornam-seconhecidas tanto aquelas realidades no seu conjunto como elaprópria. E é na razão que está contido o saber. Não te parece?

E — Certamente que sim.A — Avança agora e responde-me qual a origem da questão

que faz que, no desejo de lhe encontrar solução, nos consuma-mos há já tanto tempo neste caminho.

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V, 11. E — Tanto quanto recordo, das três questões quepouco antes estabelecemos para concatenar a ordem desta dis-cussão, agora estamos a tratar da primeira, isto é, de sabercomo se pode tornar evidente que Deus existe, não obstante sedever acreditar nessa afirmação com toda a firmeza e tenaci-dade.

A— Exactamente, é isso. Mas também quero que assumasdiligentemente isto: quando te perguntei se sabias que exis-tias, tornaram-se evidente para nós, para além disso, tambémmais duas coisas.

E — Também concordo com isso.A — Portanto, considera agora a qual destas três realida-

des entendes que pertence tudo quanto os sentidos do corpoalcançam, isto é, em que categoria te parece que se devemcolocar as realidades que se alcançam quer com os olhos, quercom qualquer outro instrumento do nosso corpo: naquela queapenas existe, na que também vive, ou, ainda, na que tambémentende.

E — Na que apenas existe.A — Então e o próprio sentido? Em qual destas três catego-

rias julgas que está?E — Na que vive.A — Portanto, qual dos dois julgas que é melhor? O próprio

sentido ou aquilo que o sentido alcança?

E — O sentido, naturalmente.A— Porquê?E — Porque é melhor aquilo que também vive do que aqui-

lo que apenas existe.

12. A — E então aquele sentido interior — que antes desco-brimos que certamente é inferior à razão, sendo-nos ainda co-

mum com os animais —, duvidarás que se há-de preferir aosentido pelo qual alcançamos as realidades corpóreas e que jádisseste que se devia preferir aos próprios corpos?

E — De modo algum duvidarei disso.A — Também quero ouvir-te dizer por que motivo não duvi-

das disso. De facto, não poderás dizer que, de entre aquelastrês categorias, este sentido interior já se deve colocar na das

realidades que também entendem, mas ainda naquela que é evive, mesmo carecendo de inteligência. Na verdade, este senti-

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do está presente nos animais, onde não está presente a inteli-gência. Sendo assim, pergunto-te por que motivo antepões osentido interior ao sentido pelo qual se sentem as realidadescorpóreas, uma vez que ambos pertencem ao género daquiloque vive.

Mas foi por isto que antepuseste, aos corpos, este sentidoque alcança as realidades corpóreas: porque aqueles pertencemà categoria das realidades que apenas existem, e este, efectiva-mente, pertence à das que também vivem. Mas como se desco-briu que o sentido interior também pertence a esta última, diz--me por que motivo pensas que ele é melhor. Na verdade, sedisseres que é porque ele sente estas realidades, não creio quetenhas encontrado uma regra em que possamos confiar, segundoa qual tudo o que sente é melhor do que aquilo que é sentido,para não sermos talvez também forçados a dizer que tudo oque entende é melhor do que aquilo que é entendido. Isto, defacto, é falso, porque o ser humano entende a sabedoria e não

é melhor do que a própria sabedoria. Por conseguinte, vê lápor que motivo te pareceu que se deve preferir o sentido inte-rior àquele pelo qual sentimos os corpos.

E — Porque reconheço, no sentido interior, uma certa acti-vidade governadora e um juiz daquele outro. Na verdade, sealgo falha ao primeiro no exercício da sua função, este recla-ma-lho como se fosse uma falta do seu servo, como há pouco

se discutiu. Com efeito, o sentido do olho não vê o seu próprioacto de ver ou não ver; e porque não o vê, não pode julgaracerca do que lhe falta ou basta. Isso compete àquele sentidointerior, que adverte a alma do animal, quer para que ela abrao olho que estava fechado, quer para que realize aquilo quesente que lhe falta. Ora, ninguém duvida que aquele que julgaé melhor do que aquilo acerca do qual julga.

A — Consideras, portanto, que também o sentido do corpode certo modo julga acerca dos corpos. De facto, pertence-lhe oprazer e a dor, quando entra em contacto com um corpo macioou áspero. Na verdade, tal como aquele sentido interior julgao que falta ou basta, no que se refere ao sentido dos olhos,assim também o próprio sentido dos olhos julga o que falta oubasta às cores. De igual modo, tal como o sentido interior jul-

ga acerca do nosso ouvido, para saber se a sua atenção é ounão suficiente, assim o próprio ouvido julga acerca das vozes,

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distinguindo as que o afectam com suavidade das que ressoamcom alarido.

Não é necessário prosseguir dando exemplos acerca dosdemais sentidos do corpo. Creio que já te deste conta do quequis dizer: seguramente é assim que aquele sentido interior

julga acerca dos sentidos do corpo, quando aprova a integrida-de deles e censura as suas falhas, tal como os próprios senti-dos do corpo também julgam acerca dos corpos, quando acei-tam receber aquilo que produz um contacto suave, e o rejeitam,se é contrário.

E — Distingo claramente e admito que é absolutamenteverdade.

VI, 13. A — Considera agora se a razão também julga acer-ca deste sentido interior. Com efeito, já não te pergunto se du-vidas que ela é melhor do que este, porque não duvido que

julgas que assim é. Do mesmo modo, também penso que já nãoé preciso investigar se a razão julga acerca deste sentido. Naverdade, no que se refere àquelas realidades que lhe são infe-riores — isto é, os corpos, os sentidos corpóreos e este sentidointerior —, quem, a não ser a própria razão, nos informa de quemodo umas são melhores do que as outras e como a própriarazão as ultrapassa? Seguramente isto não poderia acontecer anão ser que ela própria julgasse acerca dessas realidades.

E — É evidente.A — Portanto, uma vez que aquela natureza que apenas

existe, e não vive nem entende, como é o caso do corpo exâni-me, é superada por aquela natureza que não apenas existe mastambém vive, embora não entenda, como é o caso da alma dosanimais; e que esta, por seu turno, é superada por aquela queconjuga ao mesmo tempo o existir, o viver e o entender, como

é o caso da mente racional no ser humano: porventura julga-rás que em nós — isto é, naquelas realidades que integram anossa natureza e que fazem de nós seres humanos — se podeencontrar algo mais excelente do que aquela realidade quecolocámos em terceiro lugar?

Com efeito, é evidente que possuímos corpo e também umacerta vida que o anima e vivifica. Também reconhecemos estas

duas realidades nos animais. E há uma terceira realidade, queé como que a cabeça da nossa alma ou o seu olho — ou qual-

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quer outra expressão que se possa encontrar, mais apropriadapara indicar a nossa razão e inteligência —, a qual não estápresente na natureza dos animais. Vê, então, por favor, seconsegues encontrar, na natureza do ser humano, alguma coi-sa mais sublime do que a razão.

E — Não encontro nada melhor.

14. A — Que acontecerá, então, se pudermos descobrir algocuja existência não só seja indubitável, mas que seja tambémmais excelente do que a nossa própria razão? Duvidarás cha-mar Deus a isso, seja lá o que for?

E — Se puder descobrir algo que seja melhor do que aquiloque, na minha natureza, é mais excelente, não diria de modoimediato que é Deus. Com efeito, não me agrada chamar Deusàquilo a que a minha razão é inferior, mas àquilo a que ne-nhuma realidade é superior.

A — É exactamente isso. Na verdade, Ele próprio deu à tua

razão um modo de sentir tão piedoso e verdadeiro a respeitoDele. Mas pergunto-te: se não encontrares nada acima da nos-sa razão a não ser aquilo que é eterno e imutável, duvidarásdizer que essa realidade é Deus? Na verdade, sabes que oscorpos são mutáveis, e é evidente que a própria vida, que ani-ma o corpo, não carece de mudança, uma vez que é afectadade muitos modos. E a própria razão dá prova segura de que é

mutável, visto que umas vezes se esforça por alcançar o que éverdadeiro, outras não, e que umas vezes o alcança, outras não.E assim, se a razão, sem a ajuda de nenhum instrumento docorpo — nem do tacto, nem do gosto, nem do olfacto, nem dosouvidos, nem dos olhos, nem de nenhum outro sentido inferiora ela, mas por si própria —, discerne algo eterno e imutável, énecessário que ela confesse, a um tempo, que ela própria lhe é

inferior e que essa realidade é o seu Deus.E — Reconhecerei, com certeza, que Deus é o ser em rela-ção ao qual se estabeleça que nada é superior.

A — Estamos entendidos. Na verdade, bastar-me-á mostrarque existe uma realidade com tais características, que tu re-conhecerás que ela é Deus. Ou então, se existir uma realida-de que lhe seja superior, será essa que admitirás que é Deus.

Portanto, quer haja alguma realidade superior, quer não haja,será patente que Deus existe, quando, com a ajuda do próprio

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Deus, eu tiver mostrado, como prometi, que Ele está acima darazão.

E — Demonstra lá então o que tinhas prometido.

VII, 15. A — Assim farei. Mas antes de mais pergunto-te seo meu sentido corpóreo é o mesmo que o teu, ou se o meu nãoé senão só meu e o teu apenas teu. Se não for assim, não po-derei ver com os meus olhos algo que tu não vês.

E Admito perfeitamente que, não obstante serem reali-dades do mesmo género, contudo cada um de nós tem o seupróprio sentido da visão ou da audição, ou qualquer outro. Comefeito, um homem pode não apenas ver, mas também ouvircoisas que outro não ouve, e alguém pode sentir uma coisa comalgum outro sentido que outro não sinta. Portanto, é evidenteque o teu sentido é apenas teu e que o meu não pode ser se-não meu.

A — Dirias a mesma coisa acerca daquele sentido interior

de que falámos, ou achas que é diferente?E — Sem dúvida, não diria outra coisa. Na verdade, o meu

sentido certamente percebe as coisas que eu sinto e o teu asque tu sentes. Por isso, muitas vezes, quando alguém está aver alguma coisa, pergunta-me se eu também estou a ver omesmo, porque sou eu que percebo se vejo ou não vejo, e nãoaquele que me interroga.

A — E que te parece? No que se refere à própria razão, nãoé verdade que cada um de nós tem a sua própria, visto quepode acontecer que eu entenda algo que tu não entendes, e quetu nem sequer possas saber se eu o entendi, enquanto eu seique entendo?

E — Também é evidente que cada um de nós tem a suaprópria mente racional.

16. A — Em relação ao sol que vemos, porventura tambémpoderás dizer que cada um de nós tem o seu sol — ou a sualua, ou a sua estrela matutina, ou as demais coisas deste gé-nero, não obstante cada um as ver com o seu próprio sentido?

E — De modo algum diria tal coisa.A — Podemos, portanto, muitos de nós ver uma só coisa ao

mesmo tempo, sendo os nossos sentidos — com os quais todossentimos a mesma coisa ao mesmo tempo — próprios só de cada

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um de nós. Assim, embora uma coisa seja o meu sentido e outrao teu, pode, no entanto, acontecer que algo esteja ao mesmotempo disponível a cada um de nós e que seja visto ao mesmo

tempo por ambos.E — É absolutamente evidente.A — Podemos também ouvir uma determinada voz ao mesmo

tempo. E, embora uma coisa seja o meu ouvido e outra o teu, noentanto, quando ouvimos em conjunto uma mesma voz, não setrata de vozes diferentes — a que eu ouço e a que tu ouves —ou que uma parte dessa voz seja captada pelo meu ouvido e

outra pelo teu. De facto, pode acontecer que o som emitido sejaescutado simultaneamente por ambos, na sua unidade e tota-lidade, dado que está presente a ambos ao mesmo tempo.

E — Também isto é absolutamente evidente.

17. A — Acerca dos demais sentidos do corpo, embora ob-serves aquilo que dissemos, agora também verás que nem to-

dos se comportam inteiramente da mesma maneira a este res-peito — como aqueles dois de que falávamos, a vista e oouvido — nem de modo totalmente diferente.

Na verdade, tu e eu podemos encher os pulmões com omesmo ar e sentir o seu odor, ao ser afectados por ele. Igual-mente, a partir do mesmo mel ou de qualquer outro alimentoou bebida, ambos podemos saborear e sentir o seu paladar, ao

ser afectados por ele, não obstante ele ser um só e os nossossentidos serem de cada um de nós: o teu pertence-te a ti e o meua mim. Assim, quando ambos sentimos um odor ou um sabor,não se dá o caso de tu sentires com o meu sentido, nem eu como teu, nem com qualquer outro órgão que pudesse ser comum ati e a mim. Mas o meu sentido pertence-me inteiramente a mime o teu a ti, mesmo que um mesmo odor ou sabor seja sentidopor ambos. Portanto, neste aspecto, descobrimos que estes sen-tidos possuem algo que se processa do mesmo modo, como na-queles dois de que falávamos há pouco: a visão e a audição.

Mas, quanto àquilo de que agora estamos a tratar, eles di-ferem, pois embora ambos respiremos pelo nariz um mesmo arou tomemos um mesmo alimento, saboreando-o, contudo eu nãoinspiro a mesma parte de ar que tu, nem ingiro a mesma par-te de alimento que tu: eu recebo uma parte e tu outra. Assim,quando eu inspiro, recebo a parte que me basta da totalidade

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do ar, e também tu procedes assim, quando inspiras, da tota-lidade do ar, a parte que te é suficiente.

E no que se refere ao alimento, não obstante ser único etotal aquele que é absorvido por ambos, não se pode dizer queseja todo absorvido por mim e por ti, tal como eu ouço umapalavra na sua totalidade e tu também a ouves na totalidade.E no que se refere a qualquer forma que eu veja, tanto a pos-so ver eu como tu. Mas quanto ao alimento ou à bebida, énecessário que uma parte se transfira para mim e outra parati. Isto não é para ti suficientemente claro?

E — Bem pelo contrário, são realidades perfeitamente cla-ras e admito que absolutamente certas.

18. A — Pensas porventura que o sentido do tacto se devecomparar ao sentido da visão ou ao da audição, quanto àqueleaspecto que agora estamos a considerar? Efectivamente, nãosó ambos podemos sentir um mesmo corpo, quando o tocamos,mas tu também poderás tocar na mesma parte que eu tivertocado, de modo que não seja só o mesmo corpo, mas até amesma parte do corpo que ambos poderemos sentir pelo tacto.

De facto, o mesmo não acontece com o alimento apresenta-do por alguém, pois não podemos, tu e eu, tomar a mesmaporção, quando ambos comemos dele, como sucedia com o tac-to. Neste caso, acontece que tu também podes tocar a mesma

realidade e a mesma porção em que eu toquei, de tal modoque ambos toquemos o mesmo, não tocando apenas cada umnuma parte: cada um de nós pode tocar o todo.

E — Confesso que, no que se refere a este aspecto, o sentidodo tacto é semelhante àqueles dois sentidos de que falámosatrás. Mas vejo que eles diferem nisto: quando vemos um objec-to na sua totalidade, podemos vê-lo ambos simultaneamente, isto

é, ao mesmo tempo, e o mesmo acontece com o que ouvimos.Porém, não podemos certamente tocar ambos ao mesmo tempono mesmo objecto na sua totalidade. Temos de tocar cada umnuma parte e, mesmo em cada parte, não podemos tocar senãocada um por sua vez. De facto, nenhuma parte que tu alcancescom o tacto posso eu alcançar com o meu, sem tu retirares o teu.

19. A — Respondeste com todo o cuidado. Mas é necessárioque repares ainda numa coisa. De todas as realidades que

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percepcionamos, há umas que ambos sentimos e outras que sósente cada um de nós. Mas quanto aos nossos próprios sen-tidos, cada um de nós sente os seus, de tal modo que nem eusinto o teu, nem tu o meu. Então, que acontecerá com as re-alidades que são sentidas por nós através dos sentidos docorpo? Isto é, que se passa com as realidades corpóreas quenão podemos sentir ambos, mas que só sente cada um? Não éverdade que elas passam a fazer parte de nós, a tal ponto queas podemos transformar e converter em parcelas de nós pró-prios? É isto que acontece com a comida e com a bebida, poisnenhuma das partes que eu absorvo poderá ser absorvida tam-bém por ti. De facto, se é verdade que as amas mastigamos alimentos antes de os darem às crianças, contudo aquiloque o paladar delas assimilou e transformou na sua própriacarne não poderá, de modo algum, ser devolvido, para servirde alimento a qualquer criança. Com efeito, quando a bocadegusta alguma coisa com agrado, fica irrevogavelmente comuma parte para si, mesmo que seja mínima. E isto aconteceobrigatoriamente porque assim convém à natureza do corpo.Se assim não fosse, não permaneceria nenhum sabor na boca,depois desses alimentos terem sido mastigados e dados aoutros.

Também se pode dizer o mesmo acerca das parcelas de arque o nosso nariz respira. Na verdade, embora possas também

respirar alguma parte do ar que eu tiver expirado, contudo nãopoderás também respirar o ar que eu retive como alimento,porque isso não pode ser devolvido. Realmente, os médicosensinam-nos que também tomamos alimento pelas narinas. Estealimento, só o posso sentir inspirando, e não o posso restituirpela expiração, para que ele também possa ser sentido por ti erecebido pelas tuas narinas.

Quanto às outras realidades sensíveis que, não obstanteserem sentidas por nós, no entanto não transformamos no nossocorpo corruptível, quando as sentimos, podem ser percepcio-nadas por ambos, quer ao mesmo tempo, quer cada um porsua vez. De maneira que, quer o todo, quer a própria parteque eu sinto, podem também ser sentidos por ti. A este génerode realidades pertencem a luz, o som, ou os corpos que toca-

mos sem que, por isso, eles sofram alteração.E — Compreendo.

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A — É evidente, portanto, que aquelas realidades que nãotransformamos e que, contudo, percebemos pelos sentidos docorpo, por um lado, não pertencem à natureza dos nossos sen-tidos, e, por outro, é por isso mesmo que se tornam para nósmais comuns, porque não se transformam nem se convertemem algo que nos é próprio e como que privado.

E — Estou inteiramente de acordo.A — Portanto, deve entender-se por próprio e como que pri-

vado aquilo que cada um de nós toma para si mesmo e que sóele sente por si: aquilo que pertence propriamente à sua natu-reza. Por sua vez, é comum e como que público aquilo que podeser sentido por todos sem sofrer em si nenhuma transforma-ção ou alteração.

E — Assim é.

VIII, 20. A — Presta agora atenção e diz-me se vislumbrasalguma realidade que vejam em comum todos os que racioci-nam, cada um com a sua própria razão e mente: algo que sejavisível e que esteja disponível para todos, e que, quando é uti-lizado por aqueles para quem está disponível, não se transfor-ma, como acontece com a comida ou a bebida, mas permaneceincorrupto e íntegro, quer eles o vejam, quer não. Acaso pen-sas que nada existe que possua tais características?

E — Pelo contrário, vejo que há muitas coisas assim, dasquais basta enunciar uma: a razão e a verdade do número estádisponível para todos aqueles que raciocinam, de tal modo quetodos os que se dedicam ao cálculo se esforçam por a apreen-der com a sua própria razão e inteligência. Uns podem fazê-locom mais facilidade, outros com menos, outros não a conseguementender de modo algum. Contudo, ela própria se apresentaigualmente a todos os que são capazes de a entender; e quando

alguém a entende, ela não muda, como se fosse um alimentoque se converte e se transforma naquele que a percebe. E mes-mo quando alguém se engana acerca dela, ela própria não dimi-nui mas, permanecendo sempre verdadeira e íntegra, será esseque permanece tanto mais no erro quanto menos a veja.

21. A — É bem verdade. Já vejo que, como pessoa não pouco

instruída nestas coisas, rapidamente descobriste uma resposta.Contudo, se alguém te dissesse que estes números estão im-

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pressos no nosso espírito, não por algo que faça parte da natu-reza deles, mas a partir das realidades que captamos com ossentidos do corpo, como se fossem certas imagens daquelasrealidades visíveis, que resposta darias? Será que também pen-sas assim?

E — De modo algum. Com efeito, se percebesse os númeroscom os sentidos do corpo, não poderia perceber também, atra-vés dos sentidos do corpo, a razão da própria divisão ou adiçãodos números. E, de facto, é com a luz da mente que corrijoaquele que chega a um falso resultado, quando faz contas desomar ou diminuir. E tudo aquilo que alcanço com os sentidosdo corpo, como por exemplo o céu e a terra e todos os outroscorpos que nela capto, não sei quanto tempo ainda há-de du-rar. Mas que sete e três são dez, isso comprova-se não só ago-ra mas para sempre, e nunca alguma vez sete e três não foramdez, ou deixarão de o ser. Portanto, é esta verdade incorruptí-vel do número que eu disse que é comum a mim e a todo aquele

que raciocina.

22. A — Nada tenho a objectar, uma vez que respondes demodo tão acertado e verdadeiro. Mas verás facilmente que ospróprios números não se conquistam por meio dos sentidoscorpóreos, se pensares que cada número recebe o seu nome dasvezes que contém a unidade. Por exemplo, se tiver duas vezes

o número um, então chama-se dois; se tiver três, chama-se três,e se tiver dez vezes o número um, então chama-se dez. Istoacontece absolutamente com todos os números: quantas vezescada número contiver o número um, daí retira o seu nome eassim se chama tal quantidade.

Ora, quem reflecte com toda a verdade acerca do uno, des-cobre seguramente que ele não pode ser percebido pelos senti-

dos do corpo. De facto, tudo o que se alcança com aqueles sen-tidos logo se comprova que não é uno, mas múltiplo. Trata-se,efectivamente, de um corpo, e, por isso, possui inumeráveis par-tes. Mas — já para não falar dos corpos muito pequenos e quetêm as suas partes menos divisíveis — qualquer corpúsculo, pormais pequeno que seja, tem certamente uma parte direita eoutra esquerda, uma parte inferior e outra superior, ou uma

parte da frente e outra de trás, ou as partes das extremida-des e a do meio.

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Com efeito, é necessário reconhecer que estas realidadesestão presentes em qualquer corpo, por mais exíguo que seja.É por isso que não podemos atribuir, com pureza e verdade, ouno a nenhum corpo. E, no entanto, não se poderiam contarnesse corpo tantos aspectos, se tal corpo não fosse conhecidocomo uma unidade discreta. De facto, quando eu procuro o unonum corpo e não duvido que ele não se encontra aí, conheçocertamente aquilo que aí procuro e que aí não encontro, e seique não pode aí encontrar-se, ou melhor, sei em absoluto quenão pode estar aí.

Portanto, onde é que conheço que o corpo não é uno? Defacto, se eu não conhecesse o uno, não poderia enumerar omúltiplo nos corpos. Mas seja lá onde for que eu conheça ouno, não é certamente pelos sentidos do corpo que eu o conheço,porque por meio dos sentidos do corpo só conheço corpos, osquais provámos que não são o uno verdadeiro e puro. Por ou-tro lado, se não percebemos o uno por meio dos sentidos docorpo, então não percebemos por meio deles nenhum número,pelo menos daqueles números que percebemos com a inteli-gência.

Com efeito, não há nenhum deles que não se chame assimpelas vezes que contém o uno, cuja percepção não é possívelaos sentidos do corpo. De facto, em qualquer corpúsculo, nãoobstante o todo constar de duas partes, cada metade tem, ela

própria, ainda a sua metade. Portanto, aquelas duas partesestão no corpo de tal modo que elas próprias também não po-dem ser consideradas isoladamente como duas. Mas, no querespeita àquele número que se chama dois — visto que temduas vezes aquilo que isoladamente é uno —, a sua metade,quer dizer, isso mesmo que isoladamente é uno, não pode, porseu turno, ter uma metade, ou uma terça parte, ou qualquer

outra fracção que seja, porque é simples e verdadeiramente uno.

23. Além disso, quando consideramos a ordem dos númerose vemos que depois do um vem o dois, descobre-se que estenúmero, comparado com o um, é o dobro dele. Mas o dobro dedois não vem logo a seguir; interpondo-se o número três, se-gue-se o quatro, que é o dobro de dois.

E esta razão estende-se a todos os outros números, comolei absolutamente certa e imutável. Assim, depois do um, isto

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é, depois do primeiro de todos os números, sem contar com elepróprio, segue-se, efectivamente, o dois, que é o seu dobro.Depois do segundo, isto é, depois do dois — e sem contar comele —, é o segundo aquele que tem o dobro dele. De facto, de-pois do dois vem, primeiro, o número três, e só em segundolugar surge o quatro, que é o dobro do segundo. Depois do ter-ceiro número, isto é, do três — e sem contar com ele — é oterceiro aquele que tem o dobro dele. De facto, depois do ter-ceiro, isto é, depois do três, em primeiro lugar vem o quatro,em segundo lugar, o cinco, e, em terceiro, o seis, aquele que éo dobro de três.

De igual modo, depois do quatro — e sem contar com ele —o quarto número tem o dobro deste. De facto, depois do qua-tro, em primeiro lugar vem o cinco, em segundo, o seis, emterceiro, o sete, e, em quarto, o oito, aquele que é o dobro dequatro. E assim verificarás, para todos os outros números, aqui-lo que se descobriu para o primeiro par — isto é, para o um e

o dois: que quantas vezes um número se distancia do seu prin-cípio, tantas vezes o seu dobro se afasta dele.

Ora bem, isto que constatamos como imutável, firme e in-corruptível através de todos os números, onde é que o consta-tamos? De facto, não será com algum daqueles sentidos do corpoque se alcançam todos os números, porque eles são incontáveis.Onde conhecemos, portanto, que isto se verifica em todos eles?

Por meio de que imagem, ou através de que ficção imaginária,se nos manifesta uma verdade tão certa do número, que severifica numa série infinita de modo tão constante, a não serna luz interior que os sentidos do corpo ignoram?

24. Estas e muitas outras provas semelhantes obrigam aque-les a quem Deus deu talento para discutir, e que a pertinácia

nas trevas não lançou na obstinação, a reconhecer, por um lado,que a razão e a verdade dos números não pertence aos senti-dos do corpo, e, por outro, que ela permanece invariável e pura,e que é comum à contemplação de todos os que raciocinam. Porconseguinte, ainda que possam ocorrer, àqueles que raciocinam,muitas outras realidades que estão disponíveis de modo comume como que público — sendo vistas por eles com a mente e a

razão de cada um dos que as discerne, permanecendo tais rea-lidades invioláveis e imutáveis —, contudo, eu não aceitaria de

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mau grado que te tenha ocorrido principalmente esta razão everdade do número, quando respondeste à pergunta que te fiz.Com efeito, não é em vão que, nos Livros Sagrados, a sabedo-ria aparece unida ao número, quando se diz: «Examinei o meucoração para conhecer, ponderar e investigar a sabedoria e onúmero» 5

.

IX, 25. No entanto, diz-me, por favor, o que julgas que sedeve pensar acerca da sabedoria. Acaso julgas que haverá paracada ser humano uma sabedoria particular? Ou, na verdade,

julgas que a sabedoria é antes uma só e apresenta-se em co-mum a todos, e, quanto mais cada um deles participar dela,tanto mais será sábio?

E — Ainda não sei o que queres dizer quando falas de sa-bedoria. De facto, vejo que, entre os homens, varia muito o queeles consideram que se faz ou se diz sabiamente. Na verdade,os que estão no exército acham que a sabedoria é aquilo que

eles fazem; os que, desprezando o exército, dedicam o seu cui-dado e todo o seu trabalho ao cultivo do campo, louvam depreferência este trabalho e atribuem-lhe a sabedoria; os quetêm habilidade para conseguir dinheiro, julgam-se sábios; osque desprezam tudo isto e abdicam de todo este género de rea-lidades temporais, empregando todo o seu esforço na investiga-ção da Verdade, para se conhecerem a si próprios e a Deus, jul-

gam que essa é a tarefa suprema da sabedoria. E os que não sequerem entregar a este ócio da procura e da contemplação daVerdade, mas preferem antes os trabalhos muitíssimo árduosdas tarefas e cargos que se levam a cabo para cuidar dos ho-mens, dedicando-se a gerir e governar com justiça os assuntoshumanos, também se julgam sábios. E os que se dedicam aambas as coisas e vivem, em parte, da contemplação da Ver-

dade e, em parte, se dedicam aos cargos que consideram quedevem realizar em função da sociedade, pensam que obtêm parasi a palma da sabedoria. Passo em silêncio um conjunto inume-rável de seitas que querem antepor aos demais os seus própriosmembros, pois só os querem admitir a eles como sábios. Por isso,

já que agora, entre nós, não se trata de responder acerca da-

s Eclesiastes 7:26.

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quilo em que acreditamos, mas daquilo que mostramos que éclaro para a nossa inteligência, de modo algum posso responderàquilo que me perguntaste, a não ser que conheça o que é aprópria sabedoria, contemplando e discernindo, também pelarazão, aquilo que sustento pela fé.

26. A — Porventura julgas que a Sabedoria é outra coisa, anão ser a Verdade, na qual se contempla e se possui o Supre-mo Bem? Efectivamente, todos aqueles que mencionaste, e queseguem caminhos diversos, desejam o bem e evitam o mal. Mas

seguem caminhos diferentes, porque a cada um o bem lhe pa-rece ser uma realidade diferente. Portanto, quem deseja aqui-lo que não se devia desejar, embora o não desejasse se issonão lhe parecesse um bem, contudo erra. Mas não pode erraraquele que nada deseja, nem aquele que deseja aquilo que devedesejar. Portanto, na medida em que todos os homens desejama vida feliz, não erram. Mas na medida em que cada um não

segue o caminho da vida que conduz à felicidade, uma vez queconfessa e reconhece não querer senão chegar à felicidade, entãoerra. Efectivamente, o erro dá-se quando se segue algo que nãoconduz onde queremos chegar. E quanto mais alguém erranesta vida, tanto menos sábio é, pois tanto mais longe está daVerdade, na qual se contempla e possui o Supremo Bem. Masé a consecução e a adesão ao Supremo Bem que torna cada

um de nós feliz, e é irrecusável que todos o queremos ser. Por-tanto, como é certo que todos queremos ser felizes, também écerto que queremos ser sábios, porque ninguém é feliz sem aSabedoria. Com efeito, ninguém é feliz a não ser pelo SupremoBem, que se contempla e se possuiu naquela Verdade a quechamamos Sabedoria. E tal como antes de sermos felizes estáimpressa nas nossas mentes a noção de felicidade — pela qual,

de facto, sabemos com toda a confiança e afirmamos sem qual-quer hesitação que queremos ser felizes — assim também an-tes de sermos sábios temos impressa na mente a noção deSabedoria, pela qual, se cada um de nós for interrogado sobrese quer ser sábio, sem sombra de dúvida responderá que quer.

27. É por isso que, se já está estabelecido entre nós o queé a Sabedoria — que talvez não conseguisses explicar com pa-lavras, pois, de facto, se de nenhum modo a discernisses no

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espírito também não saberias que queres ser sábio e que o de-ves querer, o que julgo que não irás negar —, quero que medigas, agora, se julgas que também a Sabedoria, tal como arazão e a verdade do número, se apresenta como realidadecomum a todos os que raciocinam; ou se, havendo tantas men-tes humanas quantos seres humanos — razão pela qual eu nãoposso discernir nada do que vai na tua mente, nem tu o quevai na minha —, também pensas que há tantas sabedoriasquantos sábios pode haver.

E — Se o Supremo Bem é para todos um só, é necessárioque também a Verdade, na qual ele se contempla e possui, istoé, a Sabedoria, seja uma só e comum a todos.

A — Então duvidas que o Supremo Bem, seja lá o que for,é um só para todos os homens?

E — Claro que duvido, pois vejo que diferentes homens sealegram com coisas diferentes, como se elas fossem, para eles,o Supremo Bem.

A — Quereria, certamente, que, tal como ninguém duvida queexiste o Bem Supremo, também ninguém duvidasse que, sejaele qual for, o ser humano não pode ser feliz a não ser aderin-do a ele. Mas dado que isto é um grande problema e que tal-vez exija um longo discurso, vamos pensar em absoluto queexistem tantos Bens Supremos quantas as diferentes realida-des que diferentes homens desejam como Supremo Bem. Por-

ventura daí se segue que a própria Sabedoria não seja tam-bém única e comum a todos, pelo facto de serem muitos ediversificados aqueles bens que nela se contemplam e que oshomens escolhem? De facto, se pensas assim, podes tambémduvidar que a luz do sol seja apenas uma, porque são muitase diversas as realidades que vemos por meio dela. Entre essadiversidade, cada um escolhe, à sua vontade, aquilo de que des-

frutará através do sentido da visão. Assim, um contemplará,de bom grado, uma montanha qualquer e rejubilar-se-á comtal espectáculo, outro, a extensão de uma planície, outro, asencostas de um vale, outro, a verdura dos bosques, outro, acalma ondulação dos mares, outro, vendo todas estas coisas eoutras mais, compara-as com a própria alegria de ver.

Portanto, tal como são muitas e diversas as realidades que

os homens vêem com a luz do sol e que escolhem para delasdesfrutar — e, no entanto, a luz é apenas uma e, nela, o olhar

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de cada um vê e possui aquilo de que desfruta —, assim tam-bém são muitos e diferentes os bens de entre os quais cadaum escolhe o que quer; e assim, vendo-o e possuindo-o, estabe-lece, com verdade e justiça, que ele é para si o Supremo Bemde que há-de desfrutar. E no entanto, é possível que a pró-pria luz da Sabedoria, na qual estes bens se podem ver epossuir, seja única e comum a todos os sábios.

E — Reconheço que isso é possível e que nada impede quehaja uma única Sabedoria, comum a todos, mesmo sendo mui-tos e diversos os bens supremos. Mas queria saber se assim é.De facto, por admitirmos que isso possa ser assim, não se se-gue de imediato que assim seja.

A — Entretanto, já temos por certo que existe a Sabedoria.Mas se ela é única e comum a todos, ou se cada um tem a suaprópria, tal como cada um possui a sua alma ou mente, isso éo que ainda não sabemos.

E — Assim é.

X, 28. A — Mas aquilo que já temos por certo — que existea Sabedoria, ou que todos os homens querem ser sábios e feli-zes — onde é que o vemos? Na verdade, que tu o vês e queisso é verdadeiro, certamente de modo algum o ponho em dú-vida. Portanto, vês esta verdade como se fosse um pensamentoteu, que eu ignoro inteiramente, se mo não deres a conhecer?Ou entendes esta verdade como algo que pode ser visto pormim, mesmo se tu não me disseres nada?

E — Pelo contrário, ela é de tal ordem que não duvidareique pode ser vista também por ti, mesmo que eu não queira.

A — Portanto, essa Verdade única que ambos vemos, cada umcom a sua mente, não será o Bem que é comum a cada um de nós?

E — É absolutamente evidente.

A — De igual modo, creio que não negarás que a Sabedoriase deve desejar e admitirás que isso é verdadeiro.

E — Não duvido em absoluto.A — Então, poderemos, porventura, negar que esta Verdade

é única e que ela é comum à visão de todos os que a conhe-cem, embora cada um a observe com a sua própria mente enão com a minha, nem com a tua, nem com a de um terceiro,

uma vez que aquilo que se observa está à disposição de modocomum a todos os que o observam?

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E — De modo algum.A — E não reconhecerás, igualmente, que se deve viver com

justiça; que as realidades piores se devem submeter às melho-res, que as semelhantes devem ser comparadas entre si, e quese deve dar a cada um aquilo que lhe é próprio; e que tudoisto é absolutamente verdadeiro, e está tanto à minha disposi-ção como à tua, e à disposição de todos, na medida em que écomum?

E — Concordo.A — E poderás negar que o incorruptível é melhor do que o

corruptível, que o eterno é melhor do que o temporal, e que oinalterável é melhor do que aquilo que se pode alterar?

E — Quem o poderá negar?A — Portanto, poderá cada um dizer que esta Verdade é

propriedade sua, quando ela está presente de modo imutávelem todos os que são capazes de a contemplar?

E — Ninguém dirá que esta Verdade é propriedade sua, poisela é verdadeira na medida em que é única e comum a todos.

A — Do mesmo modo, quem negará que se deve afastar oespírito da corrupção e convertê-lo àquilo que é incorruptível,isto é, que se deve amar, não a corrupção, mas o que é incor-ruptível? Ou, uma vez que se reconheceu que existe o verda-deiro, quem não há-de compreender também que ele é imutá-vel, e não há-de ver que ele está disponível para todas asmentes que forem capazes de o contemplar?

E — É absolutamente verdade.A — Então haverá alguém que duvide que é melhor uma

vida que nenhuma adversidade poderá demover de ter tomadouma decisão certa e honesta, do que aquela que facilmente éabalada e se afunda ante as contrariedades passageiras?

E — Quem duvidará?

29. A — Já não procurarei mais exemplos deste estilo. Defacto, basta que vejas comigo e que admitas como absolutamen-te seguro, por um lado, que esta espécie de regras e de luzesdas virtudes são verdadeiras e imutáveis e, por outro, que cadauma em particular ou todas em conjunto estão presentes paraserem contempladas por quem seja capaz de o fazer, e que cada

um as observa com a sua própria mente. Mas insisto em per-guntar se estas verdades te parecem pertencer à Sabedoria. Na

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verdade, creio que julgas que é sábio quem alcançou a Sa-bedoria.

E — É absolutamente isso que eu penso.A — Mas aquele que vive com justiça poderia viver assim,

se não visse quais as realidades inferiores a que deve subme-ter as superiores, quais as que há-de juntar porque são seme-lhantes, e quais as próprias, que se hão-de distribuir a cadaum?

E — De facto, não poderia.A — Portanto, negas, porventura, que quem vê tais realida-

des as vê com sabedoria?E — Não nego.A — Então, e aquele que vive de modo previdente? Não é

verdade que escolhe o que é incorruptível e decide que isso sedeve preferir ao que é corruptível?

E — É clarividente.A — Portanto, quando alguém, para converter o espírito,

escolhe aquilo que ninguém duvida que se deve escolher, po-der-se-á negar que escolhe com sabedoria?

E — De modo algum o haveria de negar.A — Portanto, quando alguém converte o espírito àquilo que

escolheu com sabedoria, é certo que o converte sabiamente.E — Absolutamente certo.A — E aquele que nenhum terror ou sofrimento é capaz de

dissuadir do que escolheu com sabedoria e a que se converteucom sabedoria, sem dúvida o faz com sabedoria.

E — É absolutamente indubitável.A — É absolutamente evidente, portanto, que pertencem à

Sabedoria aquelas regras e luzes das virtudes de que falámos,visto que quanto mais uma pessoa faz uso delas para as apli-car à sua vida e orienta a sua vida de acordo com elas, tanto

mais vive e actua com sabedoria. Mas tudo aquilo que se fazcom sabedoria não se pode dizer com justiça que esteja à mar-gem da Sabedoria.

E — É absolutamente assim.A — Portanto, as regras dos números — cuja razão e verda-

de disseste que está, de modo imutável e comum, disponívelao discernimento de todos — são tão verdadeiras e imutáveis

quanto as regras da Sabedoria. Quando agora te pergunteiacerca de umas quantas em particular, respondeste que são

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verdadeiras e evidentes para todos os que são capazes de asdescobrir. E reconheces que elas estão presentes como realida-des comuns para serem contempladas por todos os que sãocapazes de as descobrir.

XI, 30. E — Não posso duvidar. Mas ainda gostaria muitode saber se há alguma categoria única que contenha aquelasduas realidades, isto é, a Sabedoria e o número, porque elastambém aparecem unidas nas sagradas Escrituras, como turecordaste. Será que existem uma pela outra, ou que uma as-senta na outra? Por exemplo, será que o número existe pelaSabedoria, ou assenta na Sabedoria? Na verdade, não ousariadizer que a Sabedoria existe pelo número ou que ela assentano número. De facto, não sei como é isto, mas conheço muitoshomens que se dedicam aos números, ou ao cálculo, ou seja láque nome se lhes deva dar, que contam de modo sublime eadmirável e, no entanto, conheço muito poucos, ou talvez aténenhum, que seja sábio. E assim a Sabedoria apresenta-se-mebem mais venerável do que o número.

A — Falas de um assunto que também me costuma causarmuita admiração. Na verdade, quando considero comigo pró-prio a Verdade imutável dos números e o santuário dela, ou asua morada, ou qualquer outro nome que se descubra que éconveniente dar a essa espécie de habitáculo ou sede dos nú-

meros, afasto-me para bem longe do corpo. E encontrando tal-vez algo em que possa pensar, mas não encontrando algo quepossa exprimir com palavras, regresso como que fatigado paraaquelas realidades que estão entre nós, a fim de poder falar, efalo daquelas coisas que estão diante dos nossos olhos do modocomo é costume falar delas. Também me acontece o mesmoquando penso acerca da Sabedoria, tanto quanto me é possí-

vel, com toda a atenção e intensidade. E por isso muito meespanto, uma vez que estas duas realidades estão na mais certae secreta Verdade, sendo possível chegar a elas também pelotestemunho das Escrituras, que as coloca em conjunto, comorecordei. E ainda mais me espanto porque, como disse, para amultidão dos homens, o número é desprezível, sendo-lhe caraa Sabedoria. Mas isto é assim seguramente porque cada uma

dessas noções é uma e a mesma coisa. No entanto, porque nosLivros divinos nada menos se diz acerca da Sabedoria — que

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ela se estende de uma extremidade à outra e tudo dispõe com fortaleza e suavidade 6 — talvez se chame número àquele po-der pelo qual se estende com fortaleza de um extremo ao ou-tro, e se chame, propriamente, Sabedoria àquele pelo qual dis-põe tudo com suavidade, não obstante ambos pertencerem auma mesma e única Sabedoria.

31. Mas ela deu números a todas as coisas, mesmo às maispequenas e colocadas no extremo da hierarquia dos seres. Defacto, todos os corpos, embora ocupem o último lugar entre ascoisas, têm os seus números. Porém, o saber não o deu aoscorpos, nem a todas as almas, mas só às racionais, colocando--se nelas como na sua sede, a partir da qual dispõe todas ascoisas, também as mais ínfimas, às quais deu números. Assim,porque julgamos facilmente os corpos como realidades que es-tão colocadas numa ordem que nos é inferior, e neles descobri-mos que estão impressos os números, pensamos, também, que

os números estão abaixo de nós e, por isso, os consideramoscomo realidades desprezíveis. Mas quando começamos a per-correr o caminho até ao cume, descobrimos que eles tambémtranscendem as nossas mentes e, sendo imutáveis, permane-cem na própria Verdade. E porque são poucos os que se po-dem dar à Sabedoria e, contudo, também aos estultos é dada acapacidade de contar, os homens admiram a Sabedoria e des-

prezam os números. Porém, os doutos e estudiosos, quanto maisse afastam das misérias terrenas, tanto mais contemplam, naprópria Verdade, quer os números quer a Sabedoria, e terãoapreço por ambos. E em comparação com essa Verdade, nãoserão apenas o ouro, a prata e as demais realidades, pelas quaisos homens se batem, que lhes são desprezíveis, mas eles pró-prios o serão para si mesmos.

32. E não te admires por os números serem desprezadospelos homens, e lhes ser cara a Sabedoria, pois lhes é maisfácil contar que ser sábios. Na verdade, também vês que têmmaior apreço pelo ouro do que pela luz de uma lâmpada, emcomparação com a qual o ouro é ridículo. Mas dá-se maior honra

Sabedoria 8:1.

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a uma coisa bem mais inferior porque a lanterna também aacende o mendigo, e o ouro poucos o têm. No que se refere àSabedoria, longe de nós considerá-la inferior, em comparaçãocom o número, sendo a mesma coisa. Mas ela exige um olharque possa perceber isto. Para dar um exemplo, tal como numsó fogo são consubstanciais o brilho e o calor, e não se podemseparar um do outro — e, no entanto, o calor chega àquelascoisas que lhe estão próximas, enquanto o brilho se difundemais ao longe e ao largo —, assim também, graças à força dediscernimento que reside na Sabedoria, se incendeiam os seres

que estão mais próximos, como é o caso das almas racionais; equanto às realidades mais afastadas, como é o caso dos corpos,elas não são atingidas pelo calor do saber, mas são banhadaspela luz dos números. Talvez isto para ti seja obscuro. Efecti-vamente, nenhuma comparação visível se pode adaptar complena conveniência a uma realidade invisível. Presta atençãosó a isto, que, por um lado, é suficiente para a questão que

nos propusemos e, por outro, se torna evidente para as mentesmais chãs, como são as nossas: embora não possamos sabercom clareza se o número está na Sabedoria ou deriva da Sabe-doria, ou se é a própria Sabedoria que deriva do número ouestá no número, nem se possa mostrar que ambos são o nomede uma só coisa, pelo menos é evidente que ambos são verda-deiros e imutavelmente verdadeiros.

XII, 33. Por conseguinte, de modo algum hás-de negar queexiste a Verdade imutável que contém em si tudo o que éimutavelmente verdadeiro. E não poderás dizer que ela é tua,ou minha, ou de qualquer ser humano, mas que ela se apre-senta de modo comum a todos os que discernem as verdadesimutáveis, tal como uma luz que se apresenta, a um tempo, demodo público e maravilhosamente secreto. Ora, quem dirá queessa realidade, que está presente a todos os que raciocinam eque fazem uso da inteligência, pertence propriamente à natu-reza de cada um? Com efeito, recordar-te-ás, segundo creio,daquilo que há pouco dizíamos, quando tratámos dos sentidoscorpóreos. Aquelas realidades que abarcamos de modo comum,através dos sentidos da visão ou da audição, como as cores eos sons, que tu e eu vemos ou ouvimos ao mesmo tempo, nãopertencem à natureza dos nossos olhos e ouvidos, mas são co-

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muns a ambos, precisamente para que as possamos sentir. Domesmo modo, portanto, também não hás-de dizer que pertenceà natureza da mente de algum de nós aquilo que tu e eu con-templamos em comum, cada um com a sua própria mente. Defacto, aquilo que os olhos de duas pessoas vêem ao mesmotempo, não se pode dizer que seja deste ou daquele olho. Dir--se-á, antes, que existe uma terceira realidade, sobre a qualrecai o olhar de ambos.

E — É absolutamente claro e verdadeiro.

34. A — Portanto, julgas que esta Verdade — da qual já es-tamos a falar há muito tempo e em cuja unidade contempla-mos tantas coisas — é mais excelente do que a nossa mente,que é igual à nossa mente ou, ainda, que lhe é inferior? Po-rém, se ela fosse inferior, não julgaríamos de acordo com ela,mas sim acerca dela, tal como julgamos acerca dos corpos por-que eles são inferiores; e muitas vezes dizemos não apenas quesão deste modo ou de outro, mas também que deveriam, ounão, ser assim. E o mesmo acontece com as nossas almas, poisconhecemos não só como o nosso espírito é, mas, muitas vezes,também sabemos como ele deve ser. E é também deste modoque julgamos acerca dos corpos, quando dizemos: «é menosbranco do que devia ser» ou «é menos quadrado», e muitasoutras coisas semelhantes; acerca do espírito, na realidade,

dizemos: «é menos capaz do que devia ser», ou «é menos bran-do» ou «menos forte», conforme a razão avalia as nossas ma-neiras de ser. E julgamos estas realidades de acordo com aque-las regras interiores da Verdade que contemplamos em comum.Mas acerca delas, na realidade, não há quem julgue. Com efei-to, quando alguém diz que as realidades eternas são melhoresdo que as temporais, ou que sete e três são dez, ninguém diz

que isto devia ser assim, mas tão-somente reconhece que as-sim é, não como um examinador que corrige, mas alegrando-secom a descoberta.

Contudo, se esta Verdade fosse igual à nossa mente, seriamutável, como ela o é. De facto, as nossas mentes, às vezes,vêem-na com mais claridade, outras com menos, e, por isso,temos de reconhecer que a mente é mutável. Mas aquela Ver-

dade permanece sempre em si mesma, e de nada lhe aproveitao facto de ser vista por nós com mais clareza, nem perde algu-

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ma coisa pelo facto de a vermos com menos lucidez. Íntegra eincorrupta, alegra com a sua luz os que a ela se convertem e

pune com a cegueira os que dela se afastam. E que havemosde dizer, uma vez que é também de acordo com ela que julga-mos as nossas próprias mentes e que, a ela, não a podemos demodo algum julgar? Dizemos, efectivamente: «entende menosdo que devia» ou: «entende como deve entender». Ora a mentedeve entender precisamente na medida em que lhe pertencemover-se e poder unir-se à Verdade imutável. Por isso, se aVerdade não é nem inferior nem igual à mente, resta apenasque lhe seja superior e mais excelente.

XIII, 35. Tinha-te prometido, se te recordas, que te haveriade demonstrar que existe uma realidade que é mais sublimedo que a nossa mente e razão. Aqui a tens: é a própria Verdade.Abraça-a, se puderes, e desfruta dela. Deleita-te no Senhor eEle te dará o que te pede o coração ~. Com efeito, que outracoisa pedes com mais intensidade do que ser feliz? E quem émais feliz do que aquele que frui da inconcussa, imutável eabsolutamente excelsa Verdade? Realmente, os homens procla-mam-se felizes quando, com desejo ardente de cobiça, abraçamos corpos belos das suas esposas ou mesmos de meretrizes.E havemos nós de duvidar que somos felizes quando abra-çamos a Verdade? Os homens proclamam-se felizes quando, aboca ressequida pelo calor, se aproximam de uma fonte abun-dante e pura, ou quando, famintos, encontram um repastocopioso e requintado. E havemos nós de negar que somos feli-zes quando a Verdade nos irriga e apascenta? Costumamosouvir vozes dos que clamam ser felizes quando se deitam emleitos de rosas e outras flores, e também quando se perfumamcom óleos de magníficos odores. Mas haverá maior fragrância e

inspiração mais amável do que a da Verdade? E havemos nósde duvidar chamar-nos felizes quando somos inspirados porela? Muitos colocam a felicidade da sua vida no canto das vo-zes, das cítaras e das flautas. Assim, quando estas coisas lhesfaltam, sentem-se infelizes e, quando as possuem, exultam dealegria. E quando, sem qualquer estrépito, penetra nas nossas

7 Salmo 36:4.

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mentes o silêncio, por assim dizer canoro e eloquente da Ver-dade, haveremos de procurar outra vida feliz e não desfrutardesta tão segura que temos presente? Os homens, deliciadoscom a claridade e o gozo com que brilham o ouro e a prata,as pérolas e as demais cores, ou com o brilho da própria luzque pertence aos olhos ou que encontram quer nos clarões daterra, quer nas estrelas, na lua ou no sol; tais homens conside-ram-se felizes quando esta alegria não é perturbada por ne-nhum incómodo, e querem viver para sempre, por causa des-tas coisas. E haveremos nós de temer colocar a felicidade naluz da Verdade?

36. Bem pelo contrário, dado que é na Verdade que se co-nhece e se possui o soberano Bem, e que esta Verdade é aSabedoria, contemplemos nela o supremo Bem, possuamo-lo edesfrutemos dele. Efectivamente, é feliz aquele que desfruta dosupremo Bem.

Esta Verdade mostra-nos, de facto, todos os bens que sãoverdadeiros, entre os quais cada um dos seres humanos esco-lhe um, ou vários, para deles desfrutar, conforme a sua capa-cidade de entender. Mas tal como aqueles que escolhem, naluz do sol, aquilo que lhes agrada contemplar, e se alegram aocontemplá-lo — e, entre estes, talvez haja alguns dotados de umolhar mais forte, vigoroso e são, e nada mais lhes agrada con-

templar do que o próprio sol, que também ilumina as outrasrealidades que deleitam os que têm um olhar mais débil —,assim também o gume, forte e vigoroso, da mente, embora vejamuitas coisas verdadeiras e imutáveis com uma razão certa,dirige-se para a própria Verdade, pela qual toda a realidadese manifesta, aderindo a ela como se se esquecesse das demais,e nela desfrutando simultaneamente de todas. Com efeito, aqui-

lo que é motivo de deleite nas outras verdades, certamente o épela própria Verdade.

37. Esta é a nossa liberdade: submeter-nos a esta Verdade.E este mesmo é o nosso Deus que nos liberta da morte, isto é,da condição de pecado. De facto, a Verdade, tendo-se tambémela própria feito homem, conversando com os homens, disse aos

que Nela crêem: «Se permanecerdes na minha palavra, sereisverdadeiramente meus discípulos; conhecereis a Verdade e a

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Verdade vos fará livres» 8 . Com efeito, de nenhuma coisa des-

fruta a nossa alma com liberdade, a não ser que dela desfrutecom segurança.

XIV [37]. Mas ninguém está seguro daqueles bens que podeperder contra a sua vontade. Porém, ninguém perde a Verda-de e a Sabedoria contra a sua vontade. Com efeito, ninguémpode ser separado dela pelo lugar. Isso a que se chama sepa-ração da Verdade e da Sabedoria é a vontade perversa, pelaqual se amam as realidades inferiores. Ora, ninguém quer al-guma coisa não a querendo.

Temos, portanto, uma Verdade da qual desfrutamos todosigualmente e em comum. Não há nela qualquer aperto, nelanão há qualquer falha. Ela acolhe todos os que a amam, semsuscitar invejas e, sendo comum a todos, é casta para cada um.Nenhum deles diz: «sai daí, para que eu também possa ver;tira daí as mãos, para que eu também a possa abraçar». Todos

nela residem, todos tocam o mesmo. O alimento dela não sedissipa em nenhuma parte; não bebes dela nada que eu nãopossa beber também. De facto, quando entras em comunhãocom ela, não transformas nada dela num bem privado, masaquilo que dela podes captar permanece, intacto, à minha dis-posição. Não fico à espera que lhe devolvas o que ela te inspi-ra para que eu possa também usufruir da mesma inspiração.

Com efeito, jamais alguma parte dela se torna propriedade dealgum ou de muitos, mas ela é, simultaneamente, na sua tota-lidade, comum a todos.

38. Esta Verdade tem, portanto, menos semelhança com asrealidades que tocamos, saboreamos ou cheiramos; tem maissemelhança com as realidades que ouvimos ou vemos, porque

toda a palavra que alguém escuta pode ser ouvida na íntegrapor todos e pode ser ouvida, também na íntegra, ao mesmotempo por cada um; e toda a forma que recai sob o olhar évista, em igual medida e ao mesmo tempo, tanto por um comopor outro. Mas estas realidades só muito longinquamente sãosemelhantes à Verdade. Efectivamente, nenhuma voz ressoa,

8João 8:31-32.

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toda inteira, ao mesmo tempo, dado que ela se estende e serealiza ao longo do tempo, e que, primeiro, ressoa uma partedela e, depois, a outra; e toda a forma visível como que ganhaespessura através do espaço e não está na íntegra em nenhumlugar. E seguramente todas estas realidades nos são arrebata-das contra a vontade, pois basta qualquer pequena dificuldadepara sermos impedidos de desfrutar delas. Na verdade, sepudesse existir um certo canto suave e eterno, e se os que lhesão afeiçoados o conseguissem ouvir, haveriam de se empurraruns aos outros. E quantos mais eles fossem, mais teriam delutar por conseguir um lugar para cada um estar mais próxi-mo do cantor. E ao ouvi-lo, nada haviam de reter que perma-necesse com eles, pois todos esses sons de vozes que os afec-tam são passageiros. Igualmente, se eu quiser contemplar o sol,e se o pudesse fazer com persistência, ele escapar-me-ia, querquando chegasse ao poente, quer quando as nuvens o ocultas-sem; e o prazer de o ver ser-me-ia arrebatado contra a minha

vontade por muitos outros obstáculos. Por último, mesmo seestivesse sempre presente a suavidade da luz, para que a vis-se, e a da voz, para que a ouvisse, que proveito me adviria,dado que isso me é comum com os animais?

Mas aquela beleza da Verdade e da Sabedoria está semprepresente naquela vontade que persevera em fruir dela. E amultidão dos ouvintes que se aglomera em torno dela não a

isola dos que hão-de vir, nem a Verdade transcorre através dostempos, nem se desloca de um lugar para o outro, nem se deixainterceptar pela noite, nem se esconde nas sombras, nem estásujeita aos sentidos do corpo. Ela está perto de todos os que,no mundo inteiro, convertendo-se-lhe, a amam. Ela é, paratodos, eterna, sem estar em nenhum lugar e sem estar ausen-te de nenhum sítio. De fora, admoesta. De dentro, ensina.

Transforma para melhor todos os que a contemplam e ninguéma transforma para pior. Ninguém julga acerca dela e ninguém,sem ela, julga bem. Por tudo isto, é evidente que ela é superi-or às nossas mentes, sem sombra de dúvida. Cada uma lhedeve a sua própria sabedoria e o poder de julgar, não acercadela, mas de, por ela, julgar tudo o mais.

XV, 39. Ora tinhas concedido que, se te mostrasse que existealguma coisa superior às nossas mentes, haverias de confessar

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que essa realidade é Deus, se nada mais houvesse que lhe fossesuperior. Pela minha parte, aceitando aquilo que concedeste,tinha dito que me bastaria fazer essa demonstração. De facto,se existe alguma realidade mais excelente, será ela que é Deus.Mas, se não existe, a própria Verdade é Deus. Num caso ounoutro, não poderias negar que existe Deus. Era esta a ques-tão que nos tínhamos proposto discutir e analisar.

Na verdade, se te perturba o que recebemos por meio da fé noensino sagrado de Cristo — que existe um Pai da Sabedoria —,recorda que também nos foi transmitido pela fé que a Sabedo-

ria é igual ao Pai eterno e foi gerada por Ele. Sobre este as-sunto, agora nada se deve investigar, mas devemos aceitá-locom fé inconcussa.

Deus existe. Verdadeira e soberanamente, Ele é. Agora jánão o afirmamos como indubitável só porque o aceitamos pelafé, mas também porque o alcançamos através de uma formade conhecimento certo, ainda que muitíssimo ténue. Isto basta,

no que diz respeito à questão que nos propusemos, a fim de sepoderem explicar os outros aspectos que pertencem a este as-sunto. A não ser que tenhas alguma objecção a fazer...

E — Inundado de uma alegria absolutamente incrível e quenão te posso explicar por palavras, realmente aceito esta tuaconclusão, e afirmo que ela é certíssima. E clamo com voz in-terior, mediante a qual desejo ser ouvido pela própria Verdade

e unir-me a ela, pois concedo que aí está não só o bem, mas osupremo Bem, fonte de felicidade.

40. A — Magnífico. Também eu me alegro imensamente. Masagora pergunto: porventura já somos felizes e sábios? Ou seráque ainda nos esforçamos por alcançar esse estado?

E — Julgo antes que nos esforçamos por o alcançar.

A — Onde apreendes, então, estas coisas que proclamasalegrar-te de ver como certas e verdadeiras, e que admitespertencerem à Sabedoria? Será que um néscio pode conhecera Sabedoria?

E — Enquanto for néscio, não pode.A — Portanto, já és sábio ou ainda não conheces a Sa-

bedoria?E — Certamente ainda não sou sábio, mas também não di-

ria que sou néscio, na medida em que conheço a Sabedoria.

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Com efeito, não posso negar que as realidades que conheço sãocertas e que pertencem à Sabedoria.

A — Diz-me, por favor: não confessarás que quem não é justoé injusto, que quem não é prudente é imprudente e que quemnão vive a temperança é imoderado? Ou será que pode haveralguma dúvida sobre estas coisas?

E — Confesso que um homem, quando não é justo, é injus-to. E responderei o mesmo acerca do homem prudente e do quevive a temperança.

A — Então, por que motivo não diremos que, quando umhomem não é sábio, é néscio?

E — Também confesso que quando um homem não é sábio,é néscio.

A— Portanto, tu agora qual das duas coisas és?E — Seja como for que me chames, ainda não ouso dizer

que sou sábio e, de acordo com aquilo que concedi, segue-seque não poderei duvidar dizer-me néscio.

A — Portanto, quem é néscio conhece a Sabedoria. Com efei-to, como já se disse, não seria certo que alguém quisesse sersábio e o devesse ser, a não ser que a noção de Sabedoria re-sidisse na mente dele, bem como as demais realidades quepertencem à Sabedoria, sobre as quais respondeste quando teinterroguei acerca de cada uma delas e de cujo conhecimentote alegraste.

E — É assim como dizes.

XVI, 41. A — Portanto, que outra coisa fazemos, quando nosempenhamos em ser sábios, a não ser unir, com toda a alegriade que somos capazes, toda a nossa alma àquilo que alcança-mos pela mente — colocando-nos e pondo-nos de algum modoaí, fixando-nos firmemente —, a fim de que ela não se alegre

já com o seu bem privado, que a enredaria nas coisas passa-geiras, mas que, uma vez despojada de todas as afecções deespaço e de tempo, apreenda aquilo que é sempre uno e idên-tico? De facto, assim como toda a vida do corpo é a alma, tam-bém a vida feliz da alma é Deus. Quando agimos assim, esta-mos a caminho, até o termos completado. E se nos é concedidoalegrar-nos com estes bens verdadeiros e certos — não obstan-

te o seu brilho estar ainda imerso neste caminho tenebroso —repara se não é isto que está escrito acerca da Sabedoria e do

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que ela faz com os que a amam, quando eles a procuram evêm ao seu encontro. Com efeito, está dito: «Manifestar-se-lhes- -á, sorrindo, no caminho e virá ao encontro deles com toda asua providência» 9

. Efectivamente, para onde quer que te vol-tes, ela fala-te através dos vestígios que imprimiu nas suasobras; e, quando eles te fizerem cair nas realidades exteriores,ela volta a chamar-te para dentro, a partir da própria belezadas realidades exteriores, para veres que aquilo que te deleitanos corpos, e que, através dos corpos, te seduz os sentidos,possui números, e para investigares a sua origem, voltando-tepara ti mesmo. Compreenderás, então, que não podes aprovar oudesaprovar aquilo que alcanças pelos sentidos corpóreos, a nãoser porque possuis em ti certas leis da beleza, às quais podesreferir todas as coisas belas que captas no mundo exterior.

42. Repara no céu, na terra, no mar e em tudo quanto bri-lha lá no alto, ou rasteja no solo, no que voa nos ares ou nadanas águas. Tudo tem formas porque tem números. Retira-lhase nada serão. De onde retiram, portanto, a existência, a nãoser Daquele a quem devem o número? E assim é, dado que,para eles, ser é o mesmo que possuir número.

Certamente, os homens que se dedicam a alguma arte pos-suem, em relação a ela, os números de todas as formas corpó-reas, aos quais adequam as suas obras. Ao fabricá-las, movemas suas mãos e os instrumentos, até que a realidade, que seforma externamente, transmita, tanto quanto possível, aquelaque está por dentro e que se vê na luz dos números, para que,alcançando a sua completude, tal realidade agrade, por meioda interpretação dos sentidos, ao juízo interno, que contemplaos números sempiternos. Procura, seguidamente, o que moveos membros do próprio artista: encontrarás os números, pois

também aqueles se movem de modo harmónico. E se retiraresdas mãos a obra, e do espírito a intenção de fabricar, e seaquele movimento dos membros se referir ao deleite, entãochamar-se-á dança. Procura, portanto, qual a realidade queproduz deleite, na dança. Responder-te-á o número: «Eis-meaqui!» Examina agora a beleza da forma de um corpo: encon-

9 Sabedoria 6:17.

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trarás os números estendendo-se no espaço. Examina a belezado movimento no corpo: encontrarás os números espalhando--se pelo tempo. Penetra na arte de onde eles procedem e pro-cura, nela, onde está o tempo e o lugar. Não encontrarás ne-nhum tempo ou lugar. Todavia, o número vive nela, mas aregião dele não é a do espaço, nem a sua duração a dos dias.Contudo, uma vez que as artes se devem ensinar, quando osque se querem tornar artistas se acomodam a elas, movem oseu corpo por lugares e tempos; mas o espírito, só no tempo:é precisamente com o passar do tempo que se tornam mais

competentes.Ultrapassa, portanto, também o espírito do artista, a fim

de veres o número sempiterno. É já a Sabedoria que brilhapara ti, a partir da sua própria sede interior e do próprio san-tuário da Verdade. Se a tua atenção, ainda débil, retroceder,volta a conduzir o olhar da mente para aquele caminho onde aSabedoria se te manifestava sorridente. Recorda, apenas, que

diferiste a visão, para a retomares, mais forte e prudente.

43. Infelizes os que deixam de se guiar por ti e vagueiampor entre as tuas pegadas! Amam os teus acenos, em vez de teamarem a ti, e esquecem-se daquilo que significas, ó Sabedo-ria, luz suavíssima da mente purificada! De facto, tu não ces-sas de nos fazer sinal, manifestando o que és e quanto vales,

e os teus sinais são todo o adorno das criaturas. Com efeito, oartista também faz, de algum modo, sinal a quem observa asua obra, precisamente pela própria beleza da obra, para quenão se prenda, em absoluto, a ela, mas percorra com o olhar aforma desse corpo fabricado, a fim de dirigir o afecto àqueleque o fabricou. Contudo, os homens que, em vez de te ama-rem, amam aquilo que fazes, são semelhantes àqueles que,

quando ouvem algum sábio eloquente, enquanto escutam avi-damente a sua voz, muito suave, e a concatenação das sílabasdispostas habilmente, abandonam as proposições, que são omais importante e das quais aquelas palavras ressoam comosinais. Infelizes os que se afastam da tua luz e aderem doce-mente à sua própria obscuridade! De facto, como quem te vol-ta as costas, fixam-se nas obras carnais como na sua própriasombra e, contudo, mesmo o que aí os deleita, ainda o rece-bem da irradiação da tua luz. Mas enquanto se ama a sombra,

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o olhar do espírito torna-se mais fraco e mais incapaz de su-portar a tua presença. É por isso que o ser humano se tornacada vez mais tenebroso, enquanto segue, de bom grado, o quelhe é mais tolerável e conserva o que é mais fraco. Como con-sequência, começa a não poder ver o que é em grau supremo ea julgar que é mau tudo aquilo que o engana, na medida emque o ser humano é imprevidente, ou aquilo que o seduz, namedida em que ele é indigente, ou aquilo que o tortura, por-que o tem cativo, quando isso mais não é do que o sofrimentodevido, por se ter afastado. E aquilo que é justo não pode ser mau.

44. Portanto, seja qual for a realidade mutável que obser-vares, se não a podes captar nem com os sentidos do corpo,nem com a aplicação do espírito, a não ser que ela tenha algu-ma forma dos números, a qual, se lhe for retirada, fará quetal realidade mergulhe no nada, não há dúvida: para que es-tas realidades mutáveis não se detenham mas — com os seusmovimentos dimensionados e a variedade distinta das suas for-mas — prossigam como que o curso dos tempos, existe algumaforma eterna e imutável, que não se estende nem como que sedifunde por lugares, nem se espalha ou se altera com os tem-pos. Por meio dela, todas estas são capazes de se formar e, deacordo com o seu género, de completar e realizar os númerosdos espaços e dos tempos.

XVII, 45. Com efeito, toda a realidade mutável é tambémnecessariamente formável. E tal como dizemos que é mutávelaquilo que pode mudar, também chamarei formável àquilo quepode ser formado. Mas nenhuma realidade se pode formar a siprópria, porque não pode dar a si própria aquilo que não tem,e seguramente é para que tenha forma que algo é formado.

Por conseguinte, se uma realidade tem forma, não lhe é neces-sário receber aquilo que tem. Mas, se não tem forma, não podereceber de si mesma o que não tem. Portanto, como dissemos,nenhuma realidade se pode formar a si própria. Que maishavemos de dizer acerca da mutabilidade do corpo e do espíri-to? De facto, já antes se disse o suficiente. Segue-se, portanto,que o corpo e o espírito se formam a partir de alguma forma

imutável e que sempre permanece, da qual está dito: «Trans- formarás a realidade e ela será transformada; tu, porém, per-

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maneces idêntica, e os teus anos não se esgotam» 10. Em lin-

guagem profética, estes anos que não se esgotam querem de-signar a eternidade. Acerca desta mesma forma está dito que,«permanecendo em si mesma, renova todas as coisas» 11

Assim também se compreende que tudo é governado pelaprovidência. Com efeito, se tudo o que existe nada seria se lhefosse completamente retirada a forma, a própria forma imutá-vel, pela qual todas as demais subsistem, a fim de que se com-pletem e realizem os números das suas formas, é, para elas, aprovidência. De facto, estas formas não teriam ser, se não exis-tisse a forma imutável.

Portanto, quem faça caminho em direcção à Sabedoria, ob-servando e considerando o conjunto das criaturas, apercebe-sede que a Sabedoria se lhe manifesta, sorrindo, no caminho, ede que, em tudo, a providência lhe sai ao encontro. E tantomais se inflama em percorrer este caminho com alegria quan-to a própria beleza do caminho se deve à Sabedoria que an-seia alcançar.

46. Tu, porém, se encontrares algum outro género de cria-turas para além daquilo que é e não vive, do que é e vive, masnão entende, e do que é, vive e entende, então ousa dizer queexiste algum bem que não procede de Deus. De facto, estastrês realidades também se podem enunciar com dois nomes, se

lhes chamarmos corpo e vida. Na verdade, com toda a justiçaa «vida» se diz das realidades que só vivem e não entendem,como os animais, e das que também entendem, como os ho-mens. Estas duas realidades, o corpo e a vida, pelo menosenquanto se consideram da criatura — de facto, vida diz-se dopróprio Criador e essa é a Suprema Vida; portanto, tal comoensinaram as verdades expostas anteriormente, estas duas cria-

turas, corpo e vida, na medida em que são formáveis, recai-riam no nada se lhes fosse retirada toda a forma. Assim, ma-nifestam suficientemente que subsistem por aquela forma cujomodo de ser é ser sempre.

Por conseguinte, qualquer espécie de bens — tão grandequanto se queira, ou ínfimo —, não pode existir a não ser a

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Salmo 101:27. 11 Sabedoria 7:17.

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partir de Deus. Com efeito, que realidade pode ser maior nascriaturas do que a vida inteligente? E que haverá nelas de maisínfimo do que o corpo? Mas por maior que seja o seu desvane-cimento e, desse modo, a sua tendência para o nada, para exis-tirem de algum modo, reside nelas algo de forma. Essa formaínfima, que reside numa realidade que desfalece, depende da-quela forma que não conhece desvanecimento e que não per-mite que os movimentos das realidades que desvanecem ouprogridem ultrapasse as leis dos seus números. Portanto, sejao que for que se encontre de louvável na natureza das coisas,quer o julguemos digno de exíguo louvor, quer de amplo, devereferir-se ao mais excelso e inefável louvor do Criador. A nãoser que tenhas alguma coisa a opor a isto...

XVIII, 47. E — Confesso que já estou suficientemente con-vencido quer acerca do modo como se torna evidente que Deusexiste — na medida em que isso é possível nesta vida e parahomens como nós —, quer quanto ao facto de Dele derivaremtodos os bens, sejam eles quais forem: os que entendem e vi-vem e são, os que apenas vivem e são, é os que somente são. Todos derivam de Deus.

Vejamos agora se a terceira questão já pode ser resolvida,a saber, se a vontade livre deve ser contada entre os bens.Quando já a tivermos demonstrado, hei-de conceder, sem hesi-

tação, que Deus nos deu a livre vontade, e que era necessárioque no-la tivesse dado.

A — Recordaste bem aquilo que nos tínhamos proposto eobservaste atentamente que a segunda questão já está resolvi-da. Mas devias ter visto que também esta terceira já está so-lucionada, pois é consequência daquilo que tinhas dito: que teparecia que não nos devia ter sido dado o livre arbítrio da

vontade, porque é por causa dele que cada um de nós peca.Como eu contrapus a esta tua afirmação o facto de que nadase poderia fazer com rectidão a não ser por esse mesmo livrearbítrio da vontade, e afirmei que, antes de mais, foi para issoque Deus no-lo deu, tu respondeste que a livre vontade nosdeveria ter sido dada como nos foi dada a justiça, pois destaúltima ninguém pode usar a não ser com rectidão. Foi esta tua

resposta que nos obrigou a dar tantas voltas nesta discussão,para te provarmos que os bens, maiores ou mais pequenos, não

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podem existir a não ser a partir de Deus. Isto não se poderiater mostrado de modo tão claro — contra as opiniões de umaímpia estultícia, segundo a qual

diz o néscio no seu coração:Deus não existe 12 — sem primeiro estabelecer um plano que nosorientasse para algo evidente, em assunto de tanta enverga-dura perante os nossos pequenos meios, auxiliando-nos o pró-prio Deus num caminho tão perigoso.

E assim estas duas afirmações — ou seja, que Deus existee que todos os bens Dele provêm —, embora já antes as sus-tentássemos com fé inconcussa, também ficaram tratadas, demodo que este terceiro problema — se a livre vontade deve sercontada entre os bens — já se torna absolutamente evidente.

48. Com efeito, já na discussão anterior ficou esclarecido eaceite entre nós que a natureza do corpo é de um grau infe-rior à natureza do espírito, e que, por isso, o espírito é umbem maior do que o corpo. Portanto, se entre os bens do corpoencontramos alguns de que o ser humano pode não usar comrectidão, nem por isso dizemos que eles não lhe deviam ter sidodados, pois reconhecemos que são bens: por que razão nos haviade admirar o facto de existirem igualmente no espírito algunsbens de que também podemos não usar com rectidão mas,porque são bens, não nos poderiam ter sido dados a não serpor Aquele de quem derivam todos os bens?

De facto, quando um corpo não tem mãos, vês que lhe faltaum bem muito importante. Contudo, faz um mau uso das mãosquem as emprega em acções violentas ou vergonhosas. Se vi-res alguém sem pés, reconhecerás que falta à integridade docorpo um bem muito grande. Todavia, não negarás que faz ummau uso dos pés quem os usa para fazer mal a outrem ou pararealizar acções indignas de si mesmo. Através dos olhos, ve-

mos esta luz e chegamos a conhecer as formas dos corpos.Assim, os olhos são, por um lado, um elemento de grande be-leza no nosso corpo, e é para honrar esta dignidade que elesocupam, no corpo, um lugar privilegiado; e, por outro lado, ouso dos olhos diz respeito à salvaguarda da nossa saúde e amuitos outros benefícios da vida. Contudo, são tantos e tantas

12 Salmo 13:1; 52:1.

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E — Peço-te, por favor, que me perdoes, pois envergonho-- me da minha cegueira. De facto, quem hesitará dizer que éincontestavelmente mais excelente aquilo sem o qual a vidarecta não existe?

A — Portanto, ainda negarás que um homem cego pode vi-ver com rectidão?

E — Longe de mim tão abominável demência!A — Portanto, se admites que, no corpo, o olho é algum bem

cuja perda não impede, contudo, que se viva com rectidão,parecer-te-á que a vontade livre, sem a qual ninguém vive comrectidão, não é bem algum?

50. Contemplas, efectivamente, a justiça, da qual ninguémpode fazer mau uso. Ela é contada entre os bens supremos queestão no próprio ser humano, tal como as demais virtudes doespírito, que constituem a própria vida recta e honesta. Naverdade, ninguém pode fazer mau uso da prudência, nem dafortaleza ou da temperança. E, de facto, tal como na própria

justiça, que tu evocaste, também em todas elas reina a rectarazão, sem a qual as virtudes não podem existir. Mas ninguémpode fazer mau uso da recta razão.

XIX [50]. Estas realidades são, portanto, grandes bens. Con-tudo, é necessário que recordes que quer os grandes bens, quer

os mais pequenos, só podem existir porque provêm Daquele dequem derivam todos os bens, quer dizer, de Deus. Foi distoque nos convenceu a discussão anterior, à qual tanta vez pres-taste assentimento com alegria. Portanto, as virtudes, pelasquais se vive com rectidão, são grandes bens. E todo o tipo debeleza corporal, sem a qual se pode viver com rectidão, é umbem ínfimo. As faculdades do espírito, sem as quais não se pode

viver com rectidão, são, efectivamente, bens médios. Das vir-tudes, ninguém pode fazer mau uso. Dos demais bens, isto é,dos médios e dos ínfimos, cada um pode fazer não só bom uso,mas também mau. E da virtude ninguém pode fazer mau usoporque a obra da virtude é o bom uso das realidades que tam-bém podemos não usar bem. Ora, ninguém que usa bem fazmau uso. Por isso é que a abundância e grandeza da bondade

de Deus pôs à nossa disposição não só bens grandes, mas tam-.bém bens médios e ínfimos. A sua bondade deve louvar-se mais

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nos grandes bens do que nos médios, e mais nos médios doque nos ínfimos. Mas mais deve ser louvada por todos eles doque se os não tivesse dado todos.

51. E — Admito. Mas há algo que me perturba. Visto quese trata da livre vontade, e que vemos que ela própria podeusar bem ou mal as demais realidades, como havemos de con-tar a própria livre vontade entre os bens de que fazemos uso?

A — Do mesmo modo que é através da razão que conhece-mos todas as coisas que dizem respeito à ciência e, contudo,também a própria razão se deve contar entre as realidades queconhecemos pela razão. Ou ter-te-ás esquecido de que, quandoinvestigámos acerca das realidades que se conhecem por meioda razão, reconheceste que também é pela razão que conhece-mos a própria razão? Portanto, se é através da vontade livreque fazemos uso de tudo o mais, não te deves admirar quetambém seja pela própria vontade livre que dela possamos fa-

zer uso. De algum modo, é a vontade que, quando faz uso detudo o mais, faz uso também de si mesma, tal como a razão,que conhece tudo o mais, também se conhece a si mesma. Naverdade, também a memória não só abarca todas as outrascoisas que recordamos, mas também se contém ela própria decerto modo em nós, pois não nos esquecemos de que temos me-mória; ou melhor, é pela memória que nos recordamos quer

das demais coisas, quer da própria memória.

52. Portanto, o ser humano possui a vida feliz quando avontade, que é um bem médio, adere ao bem imutável e co-mum, que não é próprio, como é aquela Verdade da qual mui-to falámos sem nada dizer que dela seja digno. E a própriavida feliz, isto é, a qualidade que reside num espírito unido ao

bem imutável, é o bem próprio e principal do ser humano. Nestebem estão também todas as virtudes, das quais ninguém podefazer mau uso. Na verdade, não obstante as virtudes seremgrandes e principais bens do ser humano, compreende-se fa-cilmente que são próprias de cada ser humano, e não comuns.De facto, é pela Verdade e Sabedoria, comuns a todos, que todosse tornam sábios e felizes; quando se lhes unem. Mas não épor meio da felicidade de um homem que outro se torna feliz,pois mesmo se alguém imitar aquele para ser feliz, o que ele

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deseja é ser feliz como vê que esse outro se tornou, a saber,por meio daquela Verdade imutável e comum. E não é pelaprudência de alguém que outrem se torna prudente, nem fortepela fortaleza de outrem, nem sóbrio pela temperança alheia,nem é pela justiça de um homem que outro se torna justo; masé conformando o espírito àquelas regras imutáveis e luzes dasvirtudes que vivem incorruptivelmente na própria Verdade eSabedoria comuns, às quais aquele que está dotado destas vir-tudes configurou o seu espírito e nas quais se fixou, e que outrose propôs imitar.

53. Portanto, a vontade, aderindo ao bem comum e imutá-vel, alcança os principais e maiores bens do ser humano, sen-do ela própria de certo modo um bem médio. Mas a vontadeque se afasta do bem imutável e comum, e que se converte aobem próprio, exterior ou inferior, peca. Converte-se ao bempróprio quando quer ser o seu próprio poder. Converte-se aobem exterior quando se esforça por conhecer os bens própriosdos outros ou aqueles que lhe não pertencem, como se fossempróprios. Converte-se ao bem inferior quando ama o prazer docorpo. Assim, o ser humano — soberbo, curioso ou lascivo — éabsorvido por uma outra vida que, em comparação com a vidasuperior, é morte. No entanto, também ela é governada pelaprovidência divina que, através de lugares apropriados, orde-

na todas as coisas e distribui a cada um aquilo que lhe é pró-prio, de acordo com os seus méritos. E é assim que nem osbens que os pecadores desejam são de modo algum um mal,nem o é a própria vontade livre, que concluímos dever contar--se entre os bens médios. Mas o mal é a aversão da vontadelivre ao bem imutável, e a sua conversão aos bens mutáveis.E dado que este movimento de aversão e conversão não é for-

çado, mas voluntário, é digna e justa a infelicidade que se lhesegue como castigo.

XX, 54. Porém, talvez tu ainda perguntes qual a origem des-te movimento, visto que a vontade se move quando se afasta dobem imutável para o bem mutável. Com toda a certeza, estemovimento é mau, mesmo que a vontade livre se deva contar

entre os bens, pois sem ela não se pode viver com rectidão. Comefeito, se este movimento — isto é, a aversão da vontade ao

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Mas se ainda pensas que há mais alguma coisa que se devainvestigar com mais diligência sobre a origem do pecado — real-mente, pela minha parte já não julgo de todo que isso seja ne-cessário —, se, no entanto, o consideras necessário, dever-se-áremeter essa análise para outra discussão.

E — Acompanho-te, sem dúvida, na vontade de deixar paraoutra altura o que, neste assunto, é causa de perturbação. Naverdade, não te poderei conceder que julgues suficiente o quese investigou até agora.

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LivRo III

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LIVRO III

I, 1. E — Visto que já é para mim suficientemente claro quea vontade livre se deve contar entre os bens, e certamente nãoentre os ínfimos, razão pela qual também somos obrigados areconhecer que ela nos foi dada por Deus, e que era necessárioque Ele no-la desse, agora, se já consideras oportuno, desejoque me expliques de onde provém aquele movimento pelo quala própria vontade se afasta do bem comum e imutável, e se

converte aos bens próprios, aos alheios ou aos ínfimos, todoseles mutáveis.A — De facto, que necessidade há de saber isso?E — É porque se a vontade livre nos foi dada de tal modo

que possui este movimento por natureza, então ela converte-sea esses bens necessariamente. E onde dominam a natureza ea necessidade, não se pode identificar nenhuma culpa.

A — Este movimento agrada-te ou desagrada-te?E — Desagrada-me.A — Portanto, condena-lo.E — Certamente que o condeno.A — Condenas, por conseguinte, um movimento inculpável

do espírito.E — Não condeno um movimento inculpável do espírito, mas

ignoro se não existe alguma culpa em abandonar o bem imu-tável e em converter-se ao mutável.

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A — Condenas, portanto, aquilo que ignoras.E — Não me pressiones com palavras. Quando eu disse: «ig-

noro se existe alguma culpa», quis dar a entender que, semdúvida alguma, existe culpa. Na verdade, com a palavra queempreguei — «ignoro» — fica suficientemente claro que consi-dero ridículo duvidar de uma coisa evidente.

A— Vê 1á que verdade tão certa é essa que te obriga a esque-cer tão depressa aquilo que há pouco disseste. De facto, se estemovimento existe por natureza ou por necessidade, de modoalgum pode ser culpável. Mas tu sustentas com toda a firmeza

que ele é culpável, a tal ponto que até consideras ridículoduvidar de uma realidade tão certa. Por que motivo, portanto,te pareceu que se deve afirmar — ou, pelo menos, formular sobforma de dúvida — aquilo que tu próprio demonstras com ab-soluta nitidez que é falso? De facto, disseste: «se a vontade livrenos foi dada de tal modo que este movimento lhe é natural,então ela volta-se para estas realidades de modo necessário; e

não se pode afirmar que exista culpa alguma onde dominam anatureza e a necessidade». Mas de maneira nenhuma deveriasduvidar que ela não nos tenha sido dada do modo como afir-mas, já que não duvidas que esse movimento é culpável.

E — Eu disse que esse movimento é culpável e que, por isso,me desagrada, e não posso duvidar de que deve ser condena-do. Mas nego que se deva culpar a alma que, por este movi-

mento, é arrastada do bem imutável para os bens mutáveis,se a natureza dela é tal que se move assim necessariamente.

2. A — De quem é esse movimento quo admites com toda acerteza que se deve culpabilizar?

E — Vejo que esse movimento está no espírito, mas ignorode quem ele é.

A — Porventura negas que o espírito se move, com essemovimento?E — Não nego.A — Negas, portanto, que o movimento pelo qual a pedra

se move é um movimento da pedra? Não estou a falar, efecti-vamente, daquele movimento pelo qual nós a fazemos mover--se, ou daquele que alguma outra força nela provoca, como acon-tece quando a pedra é lançada ao ar, mas daquele pelo qual,pelo seu próprio peso, ela resvala e cai na terra.

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E — Evidentemente que não nego que é da pedra esse mo-vimento pelo qual, tal como dizes, ela tem tendência a resva-lar, atingindo o solo. Mas esse é um movimento natural. Orase a alma também tiver esse tipo de movimento, sem dúvidaque ele próprio também será natural. E não se pode exprobrara alma com justiça pelo facto de ela se mover de modo natu-ral. Porque, nesse caso, mesmo se ela se mover em direcção àsua perdição, será impelida por uma necessidade da natureza.E dado que nós não duvidamos que este movimento é culpá-vel, deve negar-se em absoluto que ele seja natural. Por conse-guinte, esse movimento não é semelhante àquele pelo qual aspedras se movem naturalmente.

A — Ganhámos alguma coisa com as duas discussões pre-cedentes?

E — Claro que ganhámos.A — Creio que recordas, portanto, que na primeira discussão

ficou suficientemente patente que nenhuma realidade torna amente serva da paixão, a não ser a própria vontade. Na ver-dade, a mente não pode ser forçada a essa desonra nem poruma realidade superior, nem por uma igual a ela, porque issoseria injusto. Também não pode ser forçada por uma realidadeinferior, porque esta não tem poder para o fazer. Resta, por-tanto, que seja próprio dela este movimento pelo qual a menteconverte a vontade da fruição do Criador para a fruição das

criaturas. Se afirmamos que este movimento é culpável — epareceu-te ridículo que alguém duvidasse disso — não será, cer-tamente, natural, mas voluntário. Este movimento é semelhanteàquele pelo qual a pedra é lançada de cima para baixo, porquetal como este é próprio da pedra, aquele é-o do espírito. Mas éverdade que este movimento difere daquele porque não estáno poder da pedra travar o movimento que a lança mais para

baixo. Mas o espírito, enquanto não o queira, não será movidode tal modo que, abandonando as realidades superiores, ameas inferiores. Por isso, na pedra, o movimento é natural; mas,no espírito, é voluntário. Assim, se alguém dissesse que umapedra peca porque, pelo seu peso, tende para baixo, não direique se havia de pensar que ele próprio era mais tonto do quea pedra: com toda a certeza dir-se-ia que está louco. Na reali-

dade, acusamos o espírito de pecado quando mostramos a suaculpabilidade, ao preferir desfrutar das realidades inferiores,

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abandonando as superiores. Por conseguinte, que necessidadehá de investigar a origem deste movimento pelo qual a vonta-de se afasta do bem imutável para aderir ao bem mutável,quando reconhecemos que esse movimento apenas provém doespírito, que é um movimento voluntário, e que, por esse facto,é culpável? E todo o ensinamento útil acerca deste assunto há--de levar a que a nossa vontade — reprimindo e desaprovandoaquele movimento — se converta da queda nos bens temporaispara a fruição do Bem sempiterno.

3. E — Vejo a verdade do que dizes e, de certo modo, elaaté se torna palpável e tangível. Com efeito, não há nada deque me aperceba tão íntima e firmemente do que do facto deter uma vontade e de ela me mover a desfrutar de algo. Efec-tivamente, não encontro nada que possa dizer que é meu se avontade, pela qual quero ou não quero, não é minha. Por con-seguinte, a quem se deve atribuir o mal que faço através dela,a não ser a mim próprio? De facto, uma vez que foi um Deusbom que me criou, e que eu não poderia praticar nenhum bema não ser através da vontade, torna-se suficientemente claroque ela me foi dada pela bondade de Deus, antes de mais, parafazer o bem. Mas o ser humano não haveria de ser louvadoquando se volta para as coisas superiores, nem culpado quan-do se vira para as inferiores, como que nessa espécie de gonzo

da vontade, se esse movimento, pelo qual a vontade se conver-te para aqui ou para acolá, não fosse voluntário e se não ti-vesse sido colocado em nosso poder. E de nada valeria exortá--lo a aderir às realidades eternas, desprezando as inferiores, ea querer viver bem e a não querer viver mal. E quem penseque se não deve exortar o ser humano a viver desta maneira,deve deixar de ser contado entre os homens.

II, 4. Sendo as coisas deste modo, não pode deixar de mepreocupar, inefavelmente, como pode acontecer que, por umlado, Deus conheça de antemão todas as realidades futuras, eque, por outro, não seja forçoso que nós pequemos. Com efeito,quem disser que alguma coisa pode acontecer de modo dife-rente daquele que Deus conhece de antemão, empenha-se, por

meio de uma impiedade absolutamente tresloucada, em destruira presciência de Deus. Portanto, se Deus conheceu de antemão

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que o ser humano, sendo bom, havia de pecar — o que neces-sariamente me há-de conceder todo aquele que professe comi-go que Deus conhece de antemão todos os futuros; se, portan-to, isto é assim, não digo que Deus não o devesse criar — defacto, criou-o bom, e o pecado do ser humano não poderia atin-gir Deus, que criou bom o próprio homem. Até, pelo contrário,criou-o para que ele manifestasse a bondade do Criador naquiloque fizesse, a qual se manifesta também pela sua justiça, quecastiga, e pela sua misericórdia, que liberta. Portanto, isso nãodigo, que não criasse o ser humano; mas direi que, dado queconhecia de antemão que ele haveria de pecar, era necessárioque, tal como Deus tinha previsto, isso viesse a acontecer. Porconseguinte, de que modo se pode dizer que a vontade humanaé livre, quando se evidencia uma tão irrecusável necessidade?

5. A — Bateste com força à porta da misericórdia de Deus.Assim ela se apresente e a venha abrir àqueles que batem. No

entanto, julgo que a maior parte dos homens se atormenta comesta questão porque não investiga com piedade, mais se apres-sando em desculpar os seus pecados do que em acusar-se de-les. Com efeito, tais homens opinam, de bom grado, que nenhu-ma providência divina preside às realidades humanas, enquantoconfiam aos caprichos do acaso os seus espíritos e corpos, e seentregam às investidas e golpes das paixões. Assim, negam que

existem os juízos de Deus e ludibriam os juízos dos homens,ao pensar que podem esquivar o juízo daqueles que os acusampor se entregarem ao patrocínio da fortuna, a qual, no entan-to, se habituaram a pintar ou esculpir cega. Deste modo, oupensam ser melhores do que aquela que os governa, ou hão-dereconhecer que captam estas realidades e que falam delas comidêntica cegueira.

De facto, não seria absurdo admitir que tais homens fazemtudo ao acaso, quando o seu modo de agir é uma contínuaqueda. Mas contra esta opinião, repleta de erros absolutamen-te absurdos e dementes, julgo que já se discutiu bastante nonosso segundo debate. Outros, na realidade, embora não ou-sem negar que a providência de Deus preside à vida humana,contudo preferem acreditar, por um erro nefasto, que ela éimpotente, injusta ou má, em vez de confessarem os seus pe-cados, implorando piedade.

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Se todos estes homens reflectissem sobre si próprios e se,quando pensam acerca do que é óptimo, absolutamente justo eomnipotente, se deixassem convencer que devem acreditar quea bondade, justiça e potência de Deus ultrapassa de longe e émuito superior àquilo que eles possam conceber quando pen-sam, compreenderiam que se deve dar graças a Deus, mesmose Ele quisesse que eles fossem inferiores àquilo que são. E assimclamariam do mais fundo das suas consciências: «Eu disse:Senhor, tem compaixão de mim, cura a minha alma, porque

pequei contra ti» 1. A misericórdia divina conduzi-los-ia, assim,

por caminhos seguros, até à Sabedoria, de tal modo que — semse tornarem orgulhosos pelas coisas que descobrem e sem seperturbarem por aquelas que não descobrem —, pelo que co-nhecem, tornar-se-iam mais preparados para ver, e, pelo queignoram, seriam mais dóceis para investigar. Mas tu — que nãoduvido que já estás persuadido destas coisas — verás com quefacilidade responderei a um problema tão complexo, quando me

responderes primeiro a algumas perguntas.

III, 6. Com efeito, o que te preocupa — e o que, certamente,constitui para ti motivo de espanto — é perceber de que modonão seja contrário e incompatível o facto de Deus conhecer deantemão todos os futuros e de não ser forçoso nós pecarmos,mas que o façamos voluntariamente. De facto, se Deus conhe-

ceu de antemão que o homem haveria de pecar — dizes tu —,então é necessário que ele peque; mas se é forçoso que o serhumano peque, então não existe livre arbítrio da vontade noacto de pecar. Neste modo de raciocinar; temes que se negueimpiamente que Deus é presciente em relação a todos os acon-tecimentos futuros ou — se isto não se poder negar —, que re-conheçamos que não se peca voluntariamente, mas inevitavel-

mente. Ou será que é outra coisa que te perturba?E — Por enquanto, nada mais me preocupa.A - Julgas, portanto, que todas as coisas de que Deus tem

presciência não são feitas voluntariamente, mas necessaria-mente.

E — É exactamente isso que penso.

Salmo 40:5.

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A — Então vê lá se avivas o espírito. Examina-te um pou-co a ti próprio e diz-me, se fores capaz, qual será a orienta-

ção da tua vontade amanhã: se a de pecar ou a de agir comrectidão.E — Ignoro-o.A — Achas, então, que Deus também o ignora?E — De modo algum penso tal coisa.A — Portanto, se Deus conhece qual será amanhã a orien-

tação da tua vontade e a de todos os homens, tanto dos queexistem como daqueles que virão a existir, e se prevê as von-tades futuras, por maioria de razão prevê o que haverá de fazeraos justos e aos ímpios.

E — Seguramente. Se eu afirmo que Deus conhece de ante-mão as minhas acções, com muito maior certeza hei-de dizerque conhece de antemão os seus próprios actos e prevê, comabsoluta certeza, aquilo que há-de fazer.

A — Não te acautelas, portanto, para não dizeres que tam-bém aquilo que Ele próprio fizer não o fará voluntária masnecessariamente, se tudo o que Deus conhece de antemão sefaz por necessidade, e não voluntariamente?

E — Quando eu dizia que todas as coisas que Deus prevêcomo futuras acontecem necessariamente, só tinha em menteas que se referem às criaturas, e não as que estão Nele. Comefeito, estas não se fazem: são sempiternas.

A — Portanto, Deus não realiza nada nas suas criaturas?E — Já ficou estabelecido, de uma vez por todas, o modo

como se comporta a ordem do universo que Ele criou. De fac-to, não há nada que Ele administre por uma nova decisão davontade.

A — Porventura Ele não faz ninguém feliz?E — Realmente, faz.A — Certamente, Deus fá-lo quando alguém se torna feliz.E — Assim é.A — Portanto, se, daqui a um ano, por exemplo, tu vieres a

ser feliz, será dentro de um ano que Deus te fará feliz.E — Pois é.A — Então Deus já prevê hoje o que há-de fazer daqui a

um ano.

E — Sempre o conheceu de antemão. E admito que, mesmoagora, Ele o conhece, se isso há-de acontecer futuramente.

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7. A — Diz-me, por favor: porventura tu não és uma cria-tura Dele e a tua felicidade não se realiza em ti?

E — É certo que sou uma criatura Dele e que é em mimque se realiza a felicidade que vier a possuir.A — Portanto, não é voluntária, mas necessariamente que,

por acção de Deus, em ti se realiza a tua felicidade.E — A vontade de Deus é para mim uma necessidade.A — Tu serás feliz, portanto, contra a tua vontade.E — Se estivesse em meu poder ser feliz, sem dúvida que

já o seria. Efectivamente, quero ser feliz já neste momento enão o sou, porque não sou eu, mas Deus, quem me faz feliz.

A — O clamor da Verdade brota magnificamente por teuintermédio. De facto, de outra coisa não te podes aperceberque está em nosso poder, a não ser daquilo que fazemosquando queremos. Por conseguinte, nada está tanto em nossopoder quanto a própria vontade. De facto, certamente elaestá à nossa disposição de modo imediato, sempre que que-remos. Por isso, podemos dizer com acerto: «não envelhece-mos voluntariamente, mas necessariamente»; ou: «não ficamosdoentes voluntariamente, mas necessariamente»; ou: «não mor-remos voluntariamente, mas necessariamente»; e o mesmoacerca de outras realidades semelhantes. Mas quem ousarádizer, mesmo se for louco, que «não é pela vontade que que-remos»?

É por isso que, embora Deus conheça de antemão as nossasvontades futuras, daí não decorre que queiramos alguma coisasem ser voluntariamente. Ora, aquilo que disseste acerca da fe-licidade — que não depende de ti ser feliz —, disseste-o, defacto, como se eu o negasse. Mas o que eu digo é que, quandochegares a ser feliz, isso não acontecerá contra a tua vontade,mas querendo-o tu. Portanto, se Deus conhece de antemão atua felicidade futura — nem aquilo que Ele conheceu de ante-mão poderia acontecer de outro modo, pois de contrário nãohaverá presciência —, todavia não é por isso que somos obri-gados a pensar que virás a ser feliz sem o quereres, o que écompletamente absurdo e se afasta em absoluto da verdade.

Mas tal como, quando começares a ser feliz, a vontade defelicidade te não será tirada pela presciência de Deus, que hoje

está certa da tua felicidade futura, assim também a vontadeculpável, se estiver em ti no futuro, não deixará de ser vo-

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luntária pelo facto de Deus ter conhecido de antemão que elaexistiria em ti.

8. Peço-te que consideres, de facto, quanta cegueira encer-ram estas palavras: «se Deus conhece de antemão a minhavontade futura, dado que nada se pode realizar de modo dife-rente daquele que Deus conhece de antemão, é necessário queeu queira aquilo que Ele conhece de antemão. Mas se é neces-sário que eu o queira, então deve reconhecer-se que já não évoluntariamente que o quero, mas necessariamente». Ó singu-lar estultícia! Como é possível, então, que não se possa reali-zar outra coisa a não ser aquilo que Deus conhece de ante-mão, se a vontade, que Deus conhece de antemão, não existir?Deixo de lado aquela aberração semelhante a esta — de quehá pouco falei e que poderia ser defendida pelo mesmo ho-mem — que afirma: «é necessário que eu queira deste modo».Suposta a necessidade, tal homem empenha-se em suprimir avoluntariedade. De facto, se é necessário que queira, de ondeprovém a vontade dele, se não existir a vontade?

Porém, se não foi isto que esse homem quis dizer, mas sim que,uma vez que é necessário que queira, ele não tem poder sobrea própria vontade, objectar-se-á aquilo que tu próprio disseste,quando te perguntei se era contra a tua vontade que virias aser feliz. Respondeste, efectivamente, que, se ser feliz estivesseem teu poder, já o serias, pois de facto o queres; mas dissesteque ainda não podes. Nesse ponto, acrescentei que a Verdade cla-mava por teu intermédio. Efectivamente, não podemos negar quetemos poder, a não ser quando não temos presente aquilo quequeremos. Mas se, quando queremos, nos falta a própria vonta-de, certamente não queremos. Porém, se isto não pode acontecer

— que não queiramos enquanto queremos —, certamente a von-

tade está à disposição daqueles que querem; e nenhuma outracoisa está em seu poder a não ser o que está à disposição daquelesque querem. A nossa vontade, em suma, não seria nossa, a nãoser que estivesse em nosso poder. Mas, precisamente porque estáem nosso poder, ela está livre para nós. De facto, não temos emnosso poder aquilo que não está livre para nós; e o que temos emnosso poder não pode não o estar. Deste modo, por um lado, conse-

guimos não negar a presciência de Deus acerca de todos os acon-tecimentos futuros e, por outro, podemos afirmar que, no en-

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tanto, queremos aquilo que queremos. Como Deus conhece deantemão a nossa vontade, existirá a própria vontade, que Ele

conhece de antemão. A vontade existirá, portanto, porque apresciência de Deus é de uma vontade. Mas não poderia tratar--se de uma vontade se não estivesse em nosso poder. Por con-seguinte, Deus é também presciente deste poder. Assim, não épela presciência de Deus que este poder me será arrebatado.Ele até me pertencerá com mais segurança, na medida em queDeus o conhece de antemão, pois Aquele cuja presciência não seengana conheceu de antemão que este poder me pertenceria.

E — Agora já não nego que é necessário que aconteça tudoquanto Deus conhece de antemão, e que é assim que Ele tempresciência dos nossos pecados, ou seja, de tal modo que a von-tade permaneça livre para nós e depositada em nosso poder.

IV, 9. A — Então o que é que te perturba? Acaso negarás — esquecido do que se obteve na nossa primeira discussão —que é por esta vontade que pecamos, e que não há nenhumaforça que nos obrigue, nem superior, nem inferior, nem igual?

E — Certamente que não ouso negar nenhuma dessas rea-lidades. Mas devo confessar, no entanto, que ainda não vejocom clareza de que modo estas duas realidades não são con-traditórias: a presciência de Deus acerca dos nossos pecados eo nosso livre arbítrio, no pecado. Na verdade, é necessário re-conhecer que Deus é justo e presciente. Mas queria saber comque justiça Ele castiga os pecados que se cometem necessaria-mente; ou de que modo não é necessário que aconteçam aque-las coisas que Ele conheceu de antemão que haviam de acon-tecer; ou, ainda, de que modo não se há-de imputar ao Criadoraquilo que acontece necessariamente na sua criatura.

10. A — De onde te parece provir essa contradição entre apresciência de Deus e o nosso livre arbítrio? É por se tratar depresciência ou por ser presciência de Deus?

E — É mais por ser de Deus.A — Então se tu conhecesses de antemão que alguém viria

a pecar, nesse caso não seria necessário que pecasse?E — Bem pelo contrário, seria necessário que pecasse. De

facto, a minha presciência não existiria, a não ser que conhe-cesse de antemão coisas certas.

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V, 12. Quanto ao terceiro problema que levantaste — de quemodo não se deve imputar ao Criador tudo o que acontecenecessariamente na sua criatura —, ele não perturbará facil-mente aquela regra de piedade, que nos convém recordar: de-vemos dar graças ao nosso Criador. Certamente que a plenagenerosidade da sua bondade deveria louvar-se com toda a

justiça, mesmo que Ele nos tivesse criado em algum grau infe-rior de criaturas. De facto, não obstante a nossa alma estarcorrompida pelos pecados, no entanto ela é mais sublime e bemmelhor do que se se convertesse nesta luz visfvel. E certamente

reparas que, mesmo as almas entregues aos sentidos do corpo,muito louvam a Deus pelo carácter excelente desta luz.

Por conseguinte, deixa de te perturbar pelo facto de as al-mas pecadoras serem censuradas, ao ponto de dizeres no teucoração que mais valia que elas não existissem. Com efeito, éem comparação com elas próprias que tais almas são dignasde censura, quando se pensa como seriam se não tivessem que-

rido pecar. Porém, Deus, que as criou, deve ser louvado do modomais excelso, na medida da capacidade humana, não só por-que, tendo essas almas pecado, com justiça as colocou na ordem,mas também porque as criou de tal forma que, mesmo mancha-das pelo pecado, de modo algum são superadas em dignidadepela luz corporal, a qual, no entanto, com justiça se louva.

13. E aconselho-te, ainda, a tomares precauções para nãoacontecer, talvez, não que digas que era melhor que essas al-mas não existissem, mas que chegues a afirmar que era me-lhor que tivessem sido feitas de outro modo. Com efeito, tudoaquilo que te possa parecer melhor por meio de uma razãoverdadeira, tem por sabido que Deus o fez, como Criador detodos os bens. Tal afirmação, porém, não é uma razão verda-deira, mas uma cruel debilidade, visto que, ao pensares que sedeveria ter feito alguma coisa melhor, já não quererias que setivesse feito nada inferior. É como se, contemplando o céu, nãoquisesses que a terra tivesse sido feita, o que seria absoluta-mente injusto. De facto, a tua crítica seria justa se, tendo-seomitido o céu, visses que a terra fora criada, pois dirias queela deveria ter sido feita com a mesma perfeição com que te épossível pensar o céu. E assim, quando reparasses que já ti-nha sido feito aquilo a cuja perfeição querias fazer chegar a

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terra — que não se chamava terra, mas céu —, creio que, nãote sentindo defraudado pela existência de uma realidade me-lhor, de modo algum deverias invejar que também tivesse sidocriada uma realidade inferior, que é a terra.

Por sua vez, a terra é tão diversificada nas suas partes que,a quem se puser a reflectir, não pode ocorrer nada que perten-ça à perfeição dela que Deus, Criador de todas as coisas, nãotenha feito, em toda a massa material da terra. Na verdade,partindo dos terrenos mais férteis e amenos, chegamos, por umasérie de graus intermédios, até aos mais áridos e infecundos,de tal modo que não ousarás criticar nenhum deles, a não serque o compares com os melhores. Assim, irás subindo atravésde todos estes graus dignos de louvor, até encontrares aqueleque é o melhor tipo de terra, o qual, no entanto, não queresque esteja só. E, realmente, que imensa distância há entre aterra inteira e o céu! Entre eles medeiam, de facto, as nature-zas húmidas e gasosas; e, a partir destes quatro elementos,surgem todas as outras variedades de formas e perfeições, inu-meráveis para nós, mas numeradas por Deus.

Pode existir, portanto, na natureza, alguma realidade quenão tenhas pensado com a tua razão. Mas aquilo que pensascom uma razão verdadeira não pode não existir. De facto, tunão podes pensar algo de melhor na criação que tivesse esca-pado ao artífice das criaturas.

A alma humana, na realidade, está naturalmente unida àsrazões divinas, das quais depende, quando diz: «é melhor fazeristo do que aquilo»; se o que diz é verdadeiro, e se vê o quediz, então é naquelas razões, às quais está unida, que o vê.Acredite, portanto, a alma, que Deus fez tudo aquilo que elaconhece com uma razão verdadeira que assim devia ter sidofeito por Ele, mesmo se ela não o vir nas coisas criadas. Com

efeito, mesmo se não pudesse ver o céu com os olhos, e se, noentanto, chegasse à conclusão, através de uma razão verdadeira,que se deveria ter criado uma realidade com essas caracterís-ticas, deveria acreditar que ela fora criada, embora a não vissecom os olhos. De facto, não veria com o pensamento que talcoisa deveria ter sido feita, a não ser naquelas razões, nas quaistodas as coisas foram feitas. Mas o que aí não existe, ninguém

o pode ver com um conhecimento veraz, precisamente porquenão é verdadeiro.

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14. A este propósito, muitos homens se enganam, porque,uma vez que viram com a mente realidades melhores, depois

não as procuram com os olhos nos lugares convenientes. É comose alguém, compreendendo através da razão a perfeição do cír-culo, se irritasse por não a encontrar assim realizada numanoz, se nunca tivesse visto mais nenhum corpo redondo, paraalém desse fruto. Na verdade, assim procedem os que vêemcom uma razão absolutamente verdadeira que é melhor a cria-tura que, não obstante possuir a vontade livre, todavia estásempre fixa em Deus e nunca pecou. Estes, ao verem os peca-dos dos homens, lamentam-se, não para deixarem de pecar,mas pelo facto de serem criaturas, e dizem: «Deus devia-noster feito de tal modo que gozássemos sempre da sua Verdadeimutável e nunca quiséssemos pecar.» Que tais homens nãobarafustem, nem se indignem, porque Aquele que os criou elhes deu o poder de pecar, se quisessem, não os obriga a pe-car; e, além disso, há ainda os anjos, que obedecem a essascondições: nunca pecaram, nem hão-de pecar. Por isso, se teagrada aquela criatura, que não peca por uma perseverançaabsoluta da sua vontade, não se deve duvidar que é por umarecta razão que a antepões àquela que peca. Mas tal como tupensaste que a devias preferir, também Deus Criador a prefe-riu, quando ordenou os seres. Acredita que existe uma talcriatura colocada nos lugares superiores e na magnificência doscéus, pois se o Criador dispensou a sua bondade para criaraquela cujos pecados futuros previu, de modo algum não ha-veria de dispensar esta bondade para criar uma outra, queconheceu de antemão que não haveria de pecar.

15. Com efeito, esta criatura sublime possui a sua felicida-de perpétua desfrutando para sempre do seu Criador, o que

lhe é merecido pela sua perpétua vontade de conservar a jus-tiça. Em seguida, a criatura pecadora possui também o seulugar na ordem. Quando pecou, a felicidade abandonou-a, masnão a possibilidade de a recuperar. Tal criatura ultrapassa,indubitavelmente, aquela que conserva a perpétua vontade depecar. Entre esta última e aquela primeira, cuja vontade de

justiça é permanente, a criatura pecadora, que recupera a sua

grandeza pela humildade da penitência, manifesta uma certacondição intermédia. Na verdade, nem sequer em relação àquela

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criatura que Deus conheceu de antemão não só que havia depecar, mas também que haveria de permanecer sempre na von-tade de pecar, Ele conteve a generosidade da sua bondade, aponto de não a criar. E tal como é melhor um cavalo, mesmoque possa fugir, do que uma pedra, que decerto não tem capa-cidade de alterar o seu trajecto, porque carece de movimentopróprio e de sentidos, também é melhor a criatura que pecapor livre vontade do que aquela que não peca por carecer delivre vontade. E tal como hei-de louvar o vinho por ser bom noseu género, também hei-de censurar um homem que se tenhaembriagado com esse vinho. No entanto, hei-de antepor estemesmo homem, que acabo de censurar e que ainda está bêbedo,àquele vinho, que antes louvei e com o qual ele se embebedou.De igual modo, também a criatura corpórea é digna de serlouvada com justiça no grau que ocupa, ainda que se devamcensurar aqueles que, fazendo dela um uso desmedido, se afas-tam da percepção da Verdade. Não obstante, esses seres huma-nos, mesmo já pervertidos e de certo modo ébrios, ainda assimse hão-de preferir — pela dignidade da sua natureza e não emrazão dos seus vícios — àquelas criaturas, louváveis no lugarque ocupam na ordem, e por cuja avidez aqueles se perderam.

16. Em suma, toda a alma é melhor do que qualquer corpo.E toda a alma pecadora, seja qual for a sua queda, por nenhu-

ma mutação se torna corpo, nem de modo algum lhe é tiradoaquilo que faz que ela seja alma. Por isso, de modo algum lheé retirado aquilo que faz que ela seja melhor do que o corpo.Mas, entre os corpos, a luz ocupa o primeiro lugar. Por conse-guinte, a última das almas é superior ao primeiro dos corpos.E pode acontecer que qualquer corpo seja preferível ao corpode alguma alma. Mas de modo algum pode acontecer que um

corpo seja preferível à própria alma. Por que razão, então, nãose há-de louvar Deus — e louvá-lo com clamores inefáveis —que, tendo criado aqueles seres que haveriam de permanecernas leis da justiça, criou também aquelas almas que conheceude antemão que haveriam de pecar ou que haveriam mesmode permanecer no pecado, visto que, ainda assim, estas almassão melhores do que aquelas que, por não terem qualquer ar-

bítrio, racional e livre, da vontade, não podem pecar? No en-tanto, mesmo assim, estas almas são melhores do que o fulgor

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absolutamente esplendoroso dos corpos, que alguns, emboracometendo um grande erro, veneram como se fossem a pró-pria substância de Deus. De facto, se, na ordem das criaturascorpóreas, desde os próprios coros dos astros até ao númerodos nossos cabelos, a beleza das realidades boas está gradual-mente entretecida, a tal ponto que seria manifestação de totalignorância dizer-se: «Que é isto? Por que razão está aqui estaoutra realidade?», porque, efectivamente, todas as coisas foramcriadas na sua ordem; quanto maior prova de ignorância nãohá-de dar quem o disser acerca de qualquer alma, pois, pormaior que seja a imperfeição e fealdade que ela possa alcan-çar, sem qualquer hesitação superará em dignidade todos oscorpos!

17. Com efeito, a razão considera as coisas de uma maneira,e o uso, de outra. A razão pondera a realidade à luz da Verda-de, a fim de submeter as realidades inferiores às superiores,através de um juízo recto. O uso, porém, pende muitas vezespara aquilo que o costume instaurou como mais cómodo, atéchegar a considerar melhor aquilo que a Verdade prova convin-centemente que é inferior. De facto, embora a razão antepo-nha, com uma grande diferença, os corpos celestes aos terres-tres, no entanto, entre os homens carnais, quem não preferiráque faltem muitos astros no céu antes que lhe falte uma árvore

no campo ou uma vaca na manada? Mas tal como as pessoasmais velhas desprezam em absoluto os juízos das crianças ou,pelo menos, esperam com paciência que elas se corrijam — asquais, à excepção de alguns homens cujo afecto as enche dealegria, preferem que morra qualquer homem, antes que o seupassarinho, e mais ainda se esse homem for horrendo e o seupássaro for bonito e cantar bem —, assim também aqueles que

se aproximaram da Sabedoria com maturidade de espírito,quando encontrarem homens ignorantes na avaliação que fa-zem da realidade — louvando a Deus nas criaturas inferiores,às quais aderem por serem mais acomodadas aos seus senti-dos carnais e, no que se refere às coisas superiores e melho-res, uns não O louvam ou louvam-No pouco, outros até O in-sultam e se esforçam por corrigi-Lo, outros não acreditam que

Ele as tenha criado —, quem atingiu a maturidade de espírito,dizia eu, ou há-de desprezar em absoluto as opiniões de tais

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indivíduos, se não os consegue corrigir, ou os há-de tolerar esuportar, esperando com equidade de ânimo que se corrijam.

VI, 18. Assim sendo, a tal ponto se afasta do que é verda-deiro quem pensa que os pecados das criaturas se devem impu-tar ao Criador — não obstante ser necessário que se realizemos acontecimentos futuros, que o próprio Criador conhece deantemão — que, se tu dizes que não encontras maneira de nãoLhe imputar aquilo que acontece necessariamente às suas cria-turas, eu, pelo contrário, não encontro forma (nem ela existe, econfirmo que não se pode, em absoluto, encontrar) de imputarao Criador aquilo que necessariamente se dá na sua criatura,mas de tal modo que se realiza pela vontade dos pecadores.

Com efeito, se alguém disser: «prefiro não existir a ser in-feliz», responderei: «estás a mentir». Na verdade, agora és in-feliz e não há outro motivo para não quereres morrer a nãoser para existires. Assim, embora não queiras ser infeliz, toda-

via queres existir. Portanto, dá graças por aquilo que és que-rendo, para que se afaste de ti o que és contra a tua vontade.De facto, existes querendo, e és infeliz contra tua vontade. Porisso, se és ingrato pelo facto de quereres ser, com justiça serásobrigado a ser o que não queres. Portanto, pelo facto de, ape-sar de seres ingrato, teres aquilo que queres, louvo a bondadedo Criador. Mas, pelo facto de, na medida em que és ingrato,

sofreres aquilo que não queres, louvo a justiça do ordenador.

19. Se alguém disser: «se eu não quero morrer, não é porpreferir ser infeliz a não ser em absoluto, mas para não sermais infeliz depois da morte», responderei: «se isso é injusto, nãoserás infeliz. Mas *se é justo, louvemos Aquele por cujas leisisso acontecerá». E se disser: «Como ousarei pensar que, se isso

for injusto, não me virá a acontecer?», responderei: «A razão éesta: se estiveres em poder de ti próprio, ou não serás infeliz,ou tu próprio, ao conduzires-te injustamente, com justiça serásinfeliz; ou, então, se te queres conduzir com justiça e não éscapaz, isso significa que não estás em poder de ti próprio. Nessecaso, ou não estás em poder de nenhum outro ou estás empoder de outrem. Se não estás em poder de ninguém, isso acon-

tece ou contra a tua vontade ou porque tu queres. Mas tu nadapodes ser contra a tua vontade, a não ser que haja alguma

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força que te domine. De facto, nenhuma força pode dominarquem não está em poder de ninguém. Mas se é por tua vonta-de que não estás em poder de ninguém, então isso quer dizerque estás em poder de ti próprio, e das duas uma: ou te con-duzes injustamente e é justo que sejas infeliz, ou, na medidaem que és aquilo que queres, ainda tens motivo para dar gra-ças pela bondade do teu Criador. Mas se não estás em poderde ti próprio, seguramente te tem em seu poder alguma cria-tura, a qual ou será mais poderosa ou menos poderosa. Tra-tando-se de uma criatura menos poderosa, a culpa é tua, e é

justa a tua infelicidade: de facto, poderias superar uma reali-dade inferior, se quisesses. Mas se é uma criatura mais pode-rosa que te tem em seu poder, sendo-lhe tu inferior, de ne-nhum modo será justo pensares que é injusta uma tão justaordenação.» Com toda a verdade, portanto, se disse: «se isso éinjusto, não serás infeliz; mas se é justo, louvemos Aquele porcujas leis assim o serás».

VII, 20. Se alguém disser: «É por já existir que antes pre-firo ser infeliz do que não ser em absoluto. Mas se, antes deexistir, eu pudesse ter sido consultado, escolheria não ser, antesdo que ser infeliz. Com efeito, se agora, embora seja infeliz,temo deixar de existir, isso pertence à própria infelicidade, pelaqual eu não quero aquilo que deveria querer. De facto, antes

deveria não querer ser do que ser infeliz. Na realidade, confes-so que agora antes prefiro ser infeliz do que nada ser. Maseste meu querer é tanto mais absurdo quanto infeliz. E é tan-to mais infeliz quanto vejo com mais verdade que não o deve-ria querer ser.» Neste caso, responderei: «Acautela-te antes paranão errares, precisamente onde julgas estar a ver o que éverdadeiro. De facto, se fosses feliz, certamente antes preferi-

rias ser do que não ser. E agora, como és infeliz, antes prefe-res ser — ou ser infeliz — do que não existir em absoluto,embora não queiras ser infeliz. Considera, então, quanto pos-sas, o imenso bem que é o próprio ser, que é o que queremtanto os que são felizes como os que são infelizes. Na verdade,se ponderares bem este aspecto, hás-de ver que és infeliz namedida em que não te aproximares Daquele que é o Ser Su-premo.

Ora, é na medida em que não vês Aquele que é emgrau supremo que julgas que é melhor alguém não existir, do

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que ser infeliz. Contudo, tu queres ser porque o teu ser pro-vém Daquele que é o Ser Supremo.

21. Assim, se queres afastar de ti a infelicidade, ama em tiisso mesmo: o facto de quereres ser. Com efeito, se cada vezmais e mais quiseres ser, aproximar-te-ás Daquele que é emgrau supremo. E dá graças, agora, porque és. Não obstanteseres inferior aos que são felizes, no entanto muitos destestambém são louvados pelos infelizes. Todos eles, contudo, pelopróprio facto de serem, com justiça são dignos de louvor, poisé por isso mesmo — porque são — que são bons.

De facto, quanto mais amares ser, tanto mais desejarás avida eterna, e hás-de desejar com veemência ser formado detal modo que as tuas disposições não sejam temporais, impri-mindo em ti o amor das coisas temporais e deixando essamarca. As realidades temporais têm esta característica: antesde começarem a ser, não são; quando são, esvaem-se, e, namedida em que se esvaem, deixam de ser. Assim, quando hão--de vir a ser, ainda não são; quando passadas, já não são. Comohão-de possuir-se, então, de modo permanente, estas realida-des, cujo começar a ser coincide com o caminhar para o nãoser? Mas quem ama ser aprecia estas realidades, na medidaem que elas são, e ama o que sempre é. E se, ao amar as rea-lidades temporais, se sujeitava à mudança, fortalece-se aman-

do o que sempre é; se, ao amar as realidades que passam, sedebilitava, há-de robustecer-se pelo amor das que permanecem.

Tornar-se-á firme e alcançará o próprio ser que queria, quan-do temia não ser e quando não podia estabilizar, por se deixarprender pelo amor das realidades passageiras.

Por isso, não te entristeças — bem pelo contrário, alegra-tesobremaneira — por antes preferires ser, ou ser infeliz, do que

não ser por causa da infelicidade, pois nesse caso nada serias.Com efeito, se, a este início de querer ser, acrescentares sercada vez mais, erguer-te-ás e construirás sobre o que é emgrau supremo. E, deste modo, também te defenderás de todo odeslize que faz passar a não ser aquilo que é em grau ínfimo,arrastando consigo para a ruína as forças daquele que o ama.Assim, quem prefere não ser para não ser infeliz, dado que

não pode não ser, resta-lhe ser infeliz. Mas quem tem maioramor ao ser do que ódio a ser infeliz, ao fazer crescer aquilo

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que ama, expulsa de si aquilo que odeia. Com efeito, logo quecomece a ser em grau perfeito no seu género, não será infeliz.»

VIII, 22. Na verdade, repara como é absurdo e incongruentedizer: «antes prefiro não ser do que ser infeliz». Quem diz:«preferia isto àquilo», escolhe, de facto, alguma coisa. Porém,não ser não é alguma coisa, mas nada. De modo algum podes,portanto, escolher com acerto, quando aquilo que escolhes não é.Embora sejas infeliz, dizes que queres ser, mas que não o de-verias ter querido. Então, que deverias querer? «De preferên-cia», dizes, «queria não ser.» Se o deverias ter querido, entãoisso é melhor. Mas o que não é, não pode ser melhor. Portan-to, não o deverias ter querido, e o sentimento pelo qual o nãoqueres é mais verdadeiro do que a opinião pela qual julgas queo deverias ter querido. Além disso, quem escolhe rectamenteaquilo que se deve almejar, torna-se necessariamente melhor,quando alcança esse objectivo. Mas, quem não existir, não po-derá ser melhor. Por conseguinte, ninguém pode escolher rec-tamente não ser.

E na verdade não convém deixar-nos perturbar pelo raciocí-nio daqueles que, confrontados com uma infelicidade profunda,deram a morte a si mesmos. Com efeito, ou eles pensaramrefugiar-se desse modo num lugar melhor para eles — e issonão contradiz o nosso raciocínio, independentemente do modo

como eles o formularam —, ou então, se acreditaram que viriama transformar-se absolutamente em nada, muito menos nosperturbará a falsa escolha daqueles que nada escolhem. Defacto, como hei-de seguir alguém que, quando lhe pergunto oque escolhe, responde: «nada»? Na verdade, quem escolhe nãoser, sem dúvida mostra que escolhe nada, mesmo se não qui-ser dar esta resposta.

23. No entanto, para dizer o que penso acerca de todo esteproblema, se for capaz, não me parece que haja alguém que,quando dá morte a si próprio ou, de algum modo, deseja mor-rer, tenha o sentimento de que, depois da morte, deixará deexistir, mesmo se partilhou em algum momento essa opinião.Efectivamente, a opinião está no erro ou na verdade de quem

raciocina ou acredita. O sentimento, porém, retira a sua forçado hábito ou da natureza. Ora, pode acontecer que se possua

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uma realidade na opinião, e outra, no sentimento, como é fácilreconhecer, pois muitas vezes acreditamos que se deve fazeruma coisa e apetece-nos fazer outra. E, por vezes, o sentimen-to é mais verdadeiro do que a opinião, se esta provém do erroe aquele da natureza, como acontece com frequência a quemestá doente: apetece-lhe mais a água fria e parece-lhe mais pro-veitosa e, no entanto, acredita que, se a beber, lhe fará mal.Outras vezes, é mais verdadeira a opinião do que o sentimen-to, se o doente acredita na medicina que diz que a água frialhe fará mal — e de facto faria —, embora lhe agradasse bebê--la. Por vezes, ambos, opinião e sentimento, estão na verdade,quando aquilo que é conveniente coincide com aquilo que éagradável. Outras vezes, uma e outro coincidem no erro, quan-do aquilo que é nocivo é tido por conveniente e não deixa deproduzir prazer. Mas a recta opinião costuma corrigir o hábitodepravado, e a opinião depravada costuma corromper umanatureza recta, tão grande é o poder que reside no domínio ena supremacia da razão. Portanto, quando alguém, acreditan-do que, depois da morte, deixará de existir, mas, por não su-portar os sofrimentos, se entrega completamente ao desejo demorrer e, deixando-se tomar por ele, põe termo à vida, possui,na opinião, o erro da sua absoluta destruição, mas, no seusentir, possui o desejo natural de repouso.

Ora, o que está em repouso não é nada. Bem pelo contrá-

rio, é mais do que aquilo que está inquieto. De facto, a inquie-tação faz variar as disposições, a tal ponto que umas aniqui-lam as outras. Mas o repouso possui a constância, na qual secompreende plenamente o que se quer diz, quando se diz: «é».Assim, todo o impulso que está na vontade de morrer, tende,naquele que morre, não para a aniquilação, mas para o des-canso. E embora ele acredite, pelo erro, que deixará de existir,

por natureza, contudo, deseja estar em repouso, isto é, sermais. Por conseguinte, tal como de modo algum pode aconte-cer que alguém se compraza em não ser, também é necessárioque de modo algum possa alguém ser ingrato para com a bon-dade do Criador, pelo facto de ser.

IX, 24. Se alguém dissesse: «para Deus omnipotente, contu-

do, não era difícil, nem complicado, que toda a realidade cria-da fosse ordenada de tal forma que nenhuma criatura chegasse

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a ser infeliz. De facto, se isto não é assim, não é por incapaci-dade da sua omnipotência ou por ter inveja do bem», respon-derei que a ordem das criaturas desfila, desde o grau maisexcelente ao mais ínfimo, por degraus tão ajustados que a re-cusa quem disser: «esta realidade não devia existir»; tambéma recusa quem diz: «esta devia ser de tal modo». De facto, sequiser que ela seja tal como é a superior, esta última já exis-te, e é tão imensa que não é necessário acrescentar-lhe nada,porque ela é perfeita. Portanto, quem diz: «esta também deviaser como aquela», ou quer acrescentar perfeição à criatura su-perior, e será exagerado e injusto, ou quer anular a que é in-ferior, e será mau e invejoso.

Mas quem disser: «esta realidade não devia existir», nãodeixará de ser mau e invejoso, uma vez que não quer que existaaquela realidade que ainda é obrigado a louvar, mesmo sendoinferior. É como se dissesse: «a lua não devia existir», quandotambém a claridade da candeia, sendo-lhe muito inferior, é,contudo, bela no seu género e adequada às trevas da terra, eajusta-se às tarefas nocturnas. E, certamente, em todos estesaspectos, de acordo com a sua pequena medida, ou se há-dereconhecer que também ela é digna de louvor, ou se há-de negaresse facto de modo absolutamente insensato e obstinado. Comoousará, portanto, afirmar com justiça: «a lua não deve existirentre as coisas»?, quem se sentiria ridículo ao dizer: «a can-

deia não deve existir»? E se não disser: «não deve existir a lua»,mas antes que a lua deveria ser como o sol, há-de reparar queisso é o mesmo que dizer: «não devia haver a lua, mas doissóis». E nisto erra a dobrar, porque, ao desejar outro sol, pre-tende acrescentar algo à perfeição das coisas e, ao querer eli-minar a lua, pretende diminuir essa perfeição.

25. Neste ponto, talvez o meu interlocutor diga que não sequeixa a respeito da lua, pois o facto de o seu esplendor sermenor não a torna infeliz, e que o seu lamento é acerca dainfelicidade das almas, não da obscuridade delas. Pondere comafinco, e veja que assim como o esplendor da lua não é infeliz,também o esplendor do sol não é feliz. Com efeito, embora elessejam corpos celestes, são, no entanto, corpos, no que diz res-

peito a esta luz que pode ser apreendida pelos olhos do corpo.Ora, os corpos, no que lhes diz respeito, não podem ser felizes

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ou infelizes, embora possam ser corpos de seres felizes ou infe-lizes. Mas a comparação retirada da luz corpórea ensina-nosque, contemplando as diferenças dos corpos e vendo que há unsmais luminosos do que outros, seria injusto pedires que se eli-minassem os mais obscuros, ou que se igualassem estes aosmais claros; e, referindo todos à perfeição do universo, quantomais diferentes eles forem entre si em claridade, tanto melhordistingues que todos existem. De facto, a perfeição do universonão se te manifesta a não ser se as realidades superiores estive-rem presentes de tal forma que não faltem as inferiores. De igualmodo, se aplicares este raciocínio à diferença entre as almas,descobrirás nelas o mesmo: que a infelicidade que lamentasconcorre, também, para que sejas capaz de reconhecer que, àperfeição do universo, não faltam as almas que deveriam tor-nar-se infelizes, porque quiseram ser -pecadoras. E está tão lon-ge de ser verdade que Deus não as deveria ter criado, que Eleé também digno de louvor por ter criado outras realidades

muito inferiores às almas infelizes.

26. Mas ainda parece que o meu interlocutor tem algumacoisa a opor, por ter compreendido mal aquilo que se disse.Com efeito, diz ele: «se a nossa infelicidade completa a perfei-ção do universo, faltaria alguma coisa a essa perfeição, se sem-pre tivéssemos sido felizes. Por conseguinte, se a alma não

alcança a infelicidade a não ser quando peca, também os nos-sos pecados são necessários para a perfeição do universo queDeus criou. De que modo, portanto, Deus pune com justiçapecados que, a não existirem, tornariam a criação incompletae imperfeita?» Responder-se-ia, então, que não são os própriospecados, ou a própria infelicidade, que são necessários para aperfeição do universo, mas as almas, enquanto são almas. Es-

tas, se quiserem, pecam; e se pecarem, tornam-se infelizes. Defacto, se, uma vez suprimidos os pecados das almas, permane-ce a infelicidade, ou se ela também precede o pecado, dir-se-ácom razão que a ordem e administração do universo está alte-rada. Por sua vez, se existirem os pecados e faltar a infelicida-de, esta iniquidade não degrada menos a ordem. Mas quandoa felicidade está presente nos que não pecam, o universo é

perfeito; e quando a infelicidade está presente nos que pecam,não é menos perfeito o universo. Contudo, dado que não fal-

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tam as próprias almas, que são infelizes quando pecam e sãofelizes quando actuam com rectidão, o universo é sempre plenoe perfeito em todas as naturezas. De facto, o pecado e o casti-go dos pecados não são naturezas determinadas, mas afecçõesdas naturezas que, no caso do pecado, são voluntárias e, nocaso do castigo, são penais. Mas a afecção voluntária que sedá no pecado é disforme. Por conseguinte, acrescentam-se-lheas afecções penais, para que aquela se ordene e se coloque numlugar onde tal modo de ser não seja disforme. Assim, ela é obri-gada a adequar-se à beleza do universo, de modo que a penarectifique a disformidade do pecado.

27. Daí se segue que, quando uma criatura superior peca,ela seja punida por uma criatura inferior, porque esta é de tãoínfima condição que pode ser embelezada até pelas almas dis-formes, entrando, assim, em harmonia com a beleza do uni-verso.

De facto, que há de tão grandioso numa casa quanto umhomem? E que há de tão ínfimo e abjecto quanto a cloaca dacasa? Contudo, um servo apanhado num pecado tal que se tor-ne digno de lavar cloacas, embeleza, assim, até a sua própriatorpeza. E cada uma destas realidades — isto é, a torpeza doservo e a limpeza da cloaca —, a partir de agora unidas e re-conduzidas a uma peculiar unidade, adaptam-se e inserem-se,

assim, na ordenação da casa, de tal modo que se integram noseu conjunto por meio de uma beleza perfeitamente ordenada.Contudo, se o escravo não quisesse pecar, esta beleza não fal-taria à administração da casa, que haveria de prover por ou-tros meios para se limpar o que fosse preciso.

Na verdade, que há de mais ínfimo nas coisas do que qual-quer corpo mortal? Contudo, a alma pecadora ornamenta a tal

ponto esta carne corruptível que até lhe confere a sua formaabsolutamente harmoniosa e o movimento vital. Portanto, pelopecado, uma tal alma não está em conformidade com a mora-da celestial e, no entanto, pelo castigo, entra em conformidadecom a morada terrena, de tal modo que, seja qual for o objectoda sua escolha, o universo é sempre belo, perfeita e harmoni-camente ordenado nas suas partes, das quais Deus é Criador

e administrador. Na verdade, quando almas excelentes habi-tam em criaturas ínfimas, não as embelezam com uma infeli-

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cidade que não possuem, mas com o bom uso que delas fazem.Porém, seria indecoroso que fosse permitido às almas pecado-ras habitar nos lugares mais elevados, porque não são apro-priados para aquelas almas que não podem fazer bom uso de-les, nem lhe conferem qualquer beleza.

28. Por isso, não obstante este mundo terreno estar confia-do às realidades corpóreas, contudo ele preserva, na medidado possível, a imagem das realidades superiores, e não cessade nos mostrar alguns exemplos e indícios delas. Com efeito,se virmos algum homem bom e grandioso, levado pelo dever ea honestidade, ser consumido pelo fogo, no que ao corpo dizrespeito, não dizemos que se trata de um castigo do pecado,mas antes de um testemunho de fortaleza e paciência. E quandoessa horrorosa corrupção reduz a nada os membros do seucorpo, temos por ele um maior amor do que se não tivessesofrido nada semelhante. De facto, maravilhamo-nos porque a

natureza do espírito não se altera com a transformação docorpo. Inversamente, quando vemos os membros de um saltea-dor extremamente sanguinário serem submetidos a um talsuplício, aprovamos a ordem das leis. Ambos, portanto, embe-lezam aqueles tormentos, mas aquele fá-lo com o valor dasvirtudes e este com o preço dos pecados. E se, depois daquelaprovação do fogo, ou mesmo antes dela, víssemos aquele ho-

mem excelente ser transformado em conformidade com asmoradas celestes e transportado para os céus, certamente quenos alegraríamos. Mas quem não ficaria chocado se visse umladrão criminoso, quer antes do suplício, quer depois do casti-go, mantendo a mesma malícia da vontade, ser elevado ao céu,ao trono das honras sempiternas? Assim, sucede que ambosterão podido embelezar as criaturas inferiores, mas somente

um deles as superiores. Por este motivo se nos aconselha, porum lado, a reparar que esta carne mortal foi embelezada querpelo primeiro homem, entrando em conformidade com as pe-nas devidas pelo pecado, quer por nosso Senhor, libertando-nosdo pecado, pela misericórdia. Mas assim como o justo pode pos-suir um corpo mortal permanecendo na própria justiça, o ho-mem iníquo não pode, enquanto iníquo, alcançar a imortalida-de dos santos, a saber, a sublime e angélica — não a daquelesanjos dos quais o Apóstolo diz: «Não sabeis que havemos de

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julgar os anjos?» 2 , mas a daqueles dos quais o Senhor diz:«Serão iguais aos anjos de Deus» 3 . Na verdade, os que, porsua vanglória, desejarem igualar os anjos, de facto não que-rem ser iguais a eles, mas a si próprios. Assim, os que perse-verarem numa tal decisão da vontade, receberão o mesmo su-plício dos anjos prevaricadores, que amam mais o seu poderdo que a omnipotência de Deus. Com efeito, estes são os queserão colocados à esquerda, porque não procuraram Deus pelaporta da humildade que o Senhor Jesus Cristo mostrou em simesmo. E, por terem vivido sem misericórdia e no orgulho, ser--lhes-á dito: «Ide para o fogo eterno que está preparado para odiabo e os seus anjos» 4 .

X, 29. De facto, os pecados têm duas origens: uma, no pen-samento espontâneo, outra, na sugestão de outrem. A elas,segundo julgo, se refere o profeta, quando diz: «Lava-me, Se- nhor, dos pecados que se me ocultam e perdoa ao teu servo os

pecados alheios» 5 . É certo que ambos são voluntários. Na ver-dade, tal como por pensamento próprio não se peca sem que-rer, assim também, na medida em que se consente numa su-gestão para o mal, seguramente não se consente a não ser pelavontade. No entanto, é mais grave pecar não apenas por pen-samento próprio, sem qualquer sugestão alheia, mas tambémpersuadindo alguém a pecar por inveja e por dolo, do que ser

levado a pecar por sugestão de outrem. A justiça do Senhor,que pune, foi, portanto, preservada em relação a ambos ospecados. Na verdade, foi pesado e examinado na balança daequidade o facto de não se negar ao diabo que se apoderassedo homem, que ele submetera a si próprio através de umasugestão malévola. Com efeito, era injusto que ele não tivesseo domínio daquele de quem se apoderara. E de modo algum

pode acontecer que a perfeita justiça do Deus soberano everdadeiro, que se estende por toda a parte, abandone asruínas dos pecadores, que também devem ser reconduzidas àordem. Contudo, uma vez que o ser humano pecou menos do

2 1 Coríntios 6:3. 3 Lucas 20:36; Mateus 22:30. 4

Mateus 25:41.

5 Salmo 18:13-14.

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que o diabo, para recuperar a salvação serviu-lhe o facto deter sido entregue ao príncipe deste mundo — isto é, ao prín-cipe de todos os pecadores e autor da morte — uma parcela darealidade, a saber, a mortal e ínfima, e, até, a mortalidade dacarne. Deste modo, o ser humano, ao tomar consciência da suamortalidade, por um lado, tornou-se medroso, receando serincomodado ou morto pelos animais mais vis e abjectos, ou mes-mo pelos mais pequenos, e temendo enfrentar a incerteza dasrealidades futuras; por outro, acostumou-se a reprimir as ale-grias ilícitas, sobretudo a soberba, por cuja sugestão caiu. Foiesse único vício que o fez rejeitar a medicina da misericórdia.Com efeito, quem mais necessita de misericórdia do que omiserável? E quem é mais indigno dela do que o miserávelsoberbo?

30. Daí que aquele Verbo de Deus, pelo qual foram feitastodas as coisas e do qual toda a felicidade angélica desfruta,haveria de estender a sua clemência até à nossa miséria: oVerbo far-se-ia carne e habitaria em nós. Assim, de facto, oser humano poderia comer o pão dos anjos, sem se ter aindatornado semelhante aos anjos, se o próprio pão dos anjos sedignasse ser semelhante aos homens. E Ele não desce até nós detal modo que abandone os anjos, mas permanece, ao mesmotempo, inteiro para eles e íntegro para nós, nutrindo os anjosintrinsecamente, através daquilo que Deus é, e advertindo oshomens externamente, através daquilo que nós somos. Assim,pela fé, torna-nos capazes de ser alimentados igualmente pelavisão. De facto, a criatura racional alimenta-se daquele Verbocomo de um alimento excelente. Mas a alma humana — que,pelo castigo dos pecados, estava presa nas cadeias da morte,tendo sido reduzida a uma forma tão diminuta que se deveria

esforçar por chegar, através dos simulacros das realidades visí-veis, à compreensão das invisíveis — é racional. Por isso, o ali-mento da criatura racional tornou-se visível, não transformandoa sua natureza, mas revestindo-se da nossa, para voltar a cha-mar para ele, que é invisível, os que iam em busca de realida-des visíveis. Deste modo, Aquele a quem a alma, pela soberba,tinha abandonado no interior de si mesma, viria a ser encon-

trado fora, revestido de humildade, para que essa humildadevisível fosse imitada e restituída à sua invisível dignidade.

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31. E o Verbo de Deus, Filho único de Deus, que sempreteve e terá o diabo sob as suas leis, revestindo-se de humani-dade, subjugou também o diabo ao ser humano, nada lhe arre-batando por um domínio violento, mas superando-o por umalei de justiça. O diabo, uma vez que tinha enganado a mulhere que tinha feito cair o varão por meio de uma mulher, reivin-dicava toda a descendência do primeiro homem como pecado-ra, para a submeter às leis da morte. É certo que o fez por umdesejo malévolo de matar e, no entanto, reivindicava o domí-nio sobre o ser humano com todo o direito. Este seu poderprevaleceria até que desse morte ao Justo, no qual não se podemanifestar nada digno de morte, não só porque foi morto semter cometido qualquer crime, mas também porque nasceu semestar sujeito à paixão, à qual o diabo tinha subjugado aquelesde quem se apoderara, de tal modo que todo o que dela nas-cesse, qual fruto da sua árvore, certamente estaria sujeito aum desejo desregrado; e, no entanto, o diabo não mantinha

este direito de posse de forma iníqua.Assim, também é absolutamente justo que o diabo seja for-

çado a abandonar os que crêem Naquele que ele matou comabsoluta injustiça, de tal modo que, morrendo temporalmente,saldem a sua dívida, e, vivendo para sempre, vivam Naqueleque, por eles, saldou uma dívida que não contraíra. Mas será

justo que o diabo tenha por companheiros de condenação eterna

aqueles que persuadiu a perseverar na infidelidade. E destasituação resultou, por um lado, que o ser humano não haviade ser arrebatado pela força ao diabo, pois também não foi pelasua própria força que ele se deixou apoderar, mas por suges-tão; e, por outro, que aquele que com justiça tinha sido maishumilhado, até se tornar escravo daquele com quem tinhapactuado para o mal, também seria justamente libertado por

Aquele a quem se uniria para praticar o bem, pois o ser hu-mano pecou menos, ao consentir no pecado, do que o diabo,persuadindo-o a fazer o mal.

XI, 32. Deus criou, portanto, todas as naturezas, não só asque haviam de permanecer na virtude e na justiça, mas tam-bém as que haveriam de pecar. Não as fez para que pecassem,

mas para que contribuíssem para tornar belo o universo, querquisessem pecar, quer não. De facto, se, entre os seres, faltas-

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sem as almas que ocupassem o próprio fastígio da ordem, noconjunto das criaturas, de tal modo que, se quisessem pecar,haviam de diminuir e perverter o universo, certamente falta-ria na criação algo de importante. Teria faltado, efectivamen-te, aquilo cuja ausência perturbaria a estabilidade e a conexãoentre os seres. Deste género são as criaturas excelentes, san-tas e sublimes, as potestades celestes ou supracelestes, sobreas quais só Deus impera e às quais o mundo, no seu conjunto,está submetido. Sem as funções que elas realizam, justas eperfeitas, o universo não pode existir.

De igual modo, se faltassem as que, quer pecassem, quernão, em nada diminuiriam a ordem do universo, mesmo assimseria uma grande falta. Com efeito, estas são as almas racio-nais que, certamente, diferem daquelas outras pela sua fun-ção, mas que as igualam quanto à natureza. Depois destas,ainda há muitos graus inferiores de seres que, no entanto, sãodignos de louvor, pois foram estabelecidos pelo Deus supremo.

33. Portanto, é mais sublime, pela sua função, aquela natu-reza que diminuiria a ordem do universo, não só se não exis-tisse, mas também se pecasse. É inferior, quanto à sua fun-ção, esta que apenas empobreceria o universo se não existisse,mas não se pecasse. Àquela primeira foi dado, como funçãoprópria, o poder de manter unidos todos os seres. Esta função

não pode faltar à ordem das coisas. E, de resto, ela não perse-vera na boa vontade por ter recebido este ofício, mas recebeu-oporque Aquele que lhe deu tal função conheceu de antemão queela haveria de perseverar na boa vontade. E não é pela suaprópria soberania que ela mantém unidas todas as coisas, masquando se une à soberania de Deus e obedece, com plena de-voção, ao império Daquele a partir do qual, pelo qual e no qual

todas as coisas foram feitas. Àquela outra natureza, por seuturno, foi-lhe dado — certamente caso não pecasse — a eleva-díssima função de manter unidas todas as coisas, não comoalgo próprio, mas em conjunto com aquela primeira, como na-tureza que Deus conhecia de antemão que havia de pecar. Semdúvida, os seres espirituais têm, entre si, a possibilidade de seunirem, sem que daí resulte acumulação, e de se separarem,

sem que daí resulte diminuição, de tal modo que nem aquelaprimeira visse a sua acção facilitada, quando esta se lhe unisse,

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nem se lhe tornasse mais difícil agir, se esta última, pecando, aban-donasse a sua função. De facto, não é pelo lugar e pela massacorpórea que as criaturas espirituais se podem unir, mas poruma afecção semelhante, que as une, ou dissemelhante, queas separa, não obstante cada uma possuir o seu próprio corpo.

34. Mas depois do pecado, tendo a alma sido ordenada en-tre os corpos inferiores e mortais, ela rege o seu corpo não to-talmente ao seu arbítrio, mas do modo como lhe permitem asleis do universo. E, contudo, esta alma não é, por esse facto,inferior aos corpos celestes, aos quais até os corpos terrestresestão sujeitos. O andrajo do escravo condenado é, certamente,muito inferior à veste do servo digno de louvor e instituído emhonra junto do senhor. Mas o próprio escravo é melhor do quequalquer veste preciosa, porque é um ser humano. Portanto, aalma superior está unida a Deus e, habitando um corpo celes-te, também embeleza e governa, com a sua potestade angélica,um corpo terrestre, como lhe manda Aquele cuja vontade elacontempla de modo inefável. Por seu turno, a alma humana,sobrecarregada pelos membros mortais, a custo administra, apartir de dentro, este mesmo corpo que a oprime, e, no entan-to, embeleza-o, na medida do possível. Quanto aos demais se-res que a rodeiam no exterior, a alma administra-os desde oexterior como pode, com uma actuação muito menos eficaz.

XII, 35. Daqui se conclui que não haveria de faltar, à cria-tura corpórea ínfima, a beleza mais congruente, mesmo se estasegunda não quisesse pecar, pois aquela que pode governar otodo, também pode governar a parte. Mas a que é menos po-derosa não pode, logo de imediato, governar aquilo que é maispotente. Com efeito, o médico competente também cura com

eficácia a sarna. Mas daí não se segue de imediato que aqueleque toma uma medida útil para um sarnento, possa ter remé-dio para todas as doenças humanas. E, certamente, se a razãoverdadeira considera com evidência que era necessário quehouvesse uma criatura que nunca tivesse pecado, nem viessea pecar, essa mesma razão também compreenderá que tal cria-tura renuncia ao pecado e se abstém de pecar por livre vonta-

de, não por coacção, mas agindo espontaneamente. No entan-to, mesmo se pecasse — embora não tenha pecado, tal como

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Deus conheceu de antemão que não haveria de pecar —, mes-mo se ela própria pecasse, bastaria o poder inefável de Deuspara governar este universo, retribuindo, a todos, o que lhesconvém e lhes é devido, e não permitindo que exista nada emtodo o seu império que seja vergonhoso e desagradável à vista.De facto, podem considerar-se duas hipóteses. Ou Deus, pelasua majestade, governaria de modo excelente e absolutamentecongruente todas as coisas, sem nenhumas potestades criadaspara este mesmo efeito, se toda a natureza angélica, pecando,faltasse aos preceitos Dele — e nem assim se há-de ver commaus olhos que exista a criatura espiritual, porque Deus ins-taurou também uma criatura corporal capaz de pecar, muitoinferior mesmo aos anjos pecadores, com tamanha abundânciade bondade que não haverá ninguém que, contemplando ra-zoavelmente o que existe no céu e na terra, e vendo todas ascriaturas visíveis dotadas de medida, forma e ordem no seugénero, acredite que há algum outro artífice de todas as coisas

senão Deus, e que não reconheça que Ele é digno de louvor,na sua inefabilidade. Ou então não poderia existir uma me-lhor ordenação das coisas, a não ser que a potestade angélica,pela excelência da sua natureza e pela bondade da sua vonta-de, ocupasse o lugar mais eminente na disposição do universo.E, mesmo se todos os anjos tivessem pecado, não causariamqualquer incómodo ao Criador dos anjos para governar o seu

império. Com efeito, a bondade Dele não sofreria qualquer es-pécie de fastio, nem a sua omnipotência teria dificuldade emcriar outros, que colocaria no lugar que os primeiros abando-naram, ao pecar, nem a criatura espiritual, qualquer que fosseo seu número, se merecesse a condenação, poderia tornar maisestreita a ordem que, conveniente e graciosamente, acolhe to-dos os condenados.

Portanto, para onde quer que se vire esta nossa reflexão,descobre-se que se deve louvar Deus, de modo inefável, comoCriador excelente e administrador justíssimo de todas as na-turezas.

36. Finalmente, para deixarmos a contemplação da belezadas coisas aos que a podem ver por dom divino, não nos esfor-

cemos por fazer que eles contemplem realidades inefáveis pres-tando atenção às nossas palavras. No entanto, por causa de

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homens loquazes, débeis ou insidiosos, ponhamos termo a tãoimensa questão com uma brevíssima síntese.

XIII [36]. Toda a natureza que se pode tornar menos boa, éboa, e toda a natureza, quando se corrompe, torna-se menosboa. De facto, ou a corrupção não a lesa e não a corrompe ou,se ela se corrompe, então essa corrupção lesa-a. Se a lesa, emalgo diminui a bondade dela e torna-a menos boa. Na verdade,se a privasse completamente de todo o bem, aquilo que resta-ria dela já não se poderia corromper, porque não haveria ne-nhum bem: uma vez suprimido este, nada haveria que a cor-rupção pudesse lesar. Ora, aquilo que a corrupção não podelesar, não se corrompe. Certamente, a natureza que não secorrompe é incorruptível. Existirá, portanto, uma naturezaque, pela corrupção, se torna incorruptível, afirmação queé completamente absurda. Por conseguinte — o que se dizcom toda a verdade —, toda a natureza, enquanto natureza, éboa, porque, se é incorruptível, é melhor do que a corruptível,e, se é corruptível, uma vez que, quando se corrompe, se tor-na menos boa, indubitavelmente é boa. Mas toda a naturezaou é corruptível ou é incorruptível. Portanto, toda a naturezaé boa. Chamo natureza àquilo que também se costuma desig-nar por substância. Por conseguinte, toda a substância ou éDeus ou provém de Deus, porque todo o bem é Deus ou pro-

vém de Deus.

37. Tendo estabelecido estes princípios e assumindo-os comocapitais no nosso raciocínio, presta atenção àquilo que vou di-zer. Toda a natureza racional criada com o livre arbítrio davontade, se permanece na fruição do Bem supremo e imutável,sem dúvida alguma é digna de louvor. E toda a natureza que

tende a permanecer Nele é, também ela, digna de louvor. Po-rém, toda aquela que não permanece Nele e não quer agir demodo a permanecer, na medida em que não está Nele e nãoage de modo a estar, é digna de censura. Se, portanto, louva-mos a natureza racional, que foi criada, ninguém duvida quese deve louvar Aquele que a criou. E se a censuramos, nin-guém duvida que se deve louvar o seu Criador, mesmo na pró-

pria censura. De facto, se a censuramos pelo facto de não que-rer fruir do supremo e imutável Bem, isto é, do seu Criador,

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sem dúvida alguma é o Criador que louvamos. Como é imen-sa, então, a bondade de Deus, Criador de todas as coisas, eaté que ponto, de modo inefável, pela língua de todos ou pelopensamento de todos, Ele deve ser proclamado e honrado! Semo louvarmos, não podemos ser louvados ou censurados! De facto,não podemos ser censurados por não permanecer Nele, a nãoser porque o nosso supremo, imenso e primeiro bem é perma-necer Nele. E por que razão isto é assim, a não ser porque Eleé o Bem inefável? Que se poderá encontrar nos nossos pecadosque permita censurar Deus, quando a censura dos nossos pe-cados não existe sem que Deus seja louvado?

38. E, de facto, nas realidades que censuramos, que se há-deaí censurar a não ser o vício? Porém, só se há-de censurar ovício daquela realidade cuja natureza se louva. Mas o que tu cen-suras ou é conforme à natureza, e nesse caso não é vício — e,mais do que aquilo que censuras sem justiça, és tu que devesser corrigido, para aprenderes a censurar com justiça — ou, seé um vício, para que se possa censurar com justiça é tambémnecessário que seja contrário à natureza. Com efeito, todo ovício, precisamente na medida em que é vício, é contrário ànatureza. De facto, se não lesa a natureza, também não é ví-cio. Mas se é pelo facto de a lesar que ele é vício, então é víciopor ser contrário à natureza. E se alguma natureza se corrom-

per, não por um vício seu, mas por um alheio, então é censu-rada injustamente. Neste caso, deve investigar-se se aquela ou-tra natureza não se corrompeu pelo seu próprio vício, por meiodo qual pode corromper outra natureza. Mas que significa «serviciado», a não ser «ser corrompido pelo vício»? Ora, uma na-tureza que não está viciada carece de vício. Porém, aquela natu-reza, por cujo vício outra natureza se corrompe, certamente

possui vício. Portanto, essa, por cujo vício também outra podeser corrompida, é a primeira a ser viciada e a primeira a sercorrompida pelo seu próprio vício. Daqui se segue que todo ovício é contrário à natureza, também à daquela realidade deque ele é vício. Por isso, uma vez que, em toda a realidade,nada há a censurar a não ser o vício, e que o vício existe pre-cisamente por ser contrário à natureza daquela realidade de

que é vício, não se censura com razão o vício de nenhuma rea-lidade, a não ser o daquela natureza que se louva. De facto,

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com razão outra coisa não te desagrada no vício, a não ser ofacto de que ele vicia aquilo que te agrada na natureza.

XIV, 39. Deve analisar-se também este aspecto, a saber, sese pode dizer com verdade que alguma natureza é corrompidapelo vício de outra natureza, sem se lhe juntar o seu própriovício. De facto, se uma natureza, que avança em direcção aoutra para a corromper com o seu vício, não encontrar nelaalgo corruptível, não a corrompe. Mas se encontra nela algocorruptível, a corrupção desta outra realiza-se juntando-se o ví-cio daquela primeira. Efectivamente, uma natureza mais fortenão pode ser corrompida por outra mais fraca, se o não quiser.Contudo, se o quiser, começa primeiro a corromper-se pelo seupróprio vício, antes de o ser pelo alheio. Uma natureza igualtambém não pode ser corrompida por outra igual, se o nãoquiser. Na verdade, toda a natureza viciada lança-se sobreaquela que está sem vício, para a corromper; e, por isso mes-mo, não se lança em grau de igualdade, mas de inferioridade,porque está viciada. Mas é verdade que, se uma natureza maispotente corrompe outra mais fraca, isso sucede ou por vício deambas, porque o desejo de depravação é de ambas, ou por ví-cio da mais forte, se é tal a excelência dessa natureza que,mesmo viciada, mantém a sua superioridade sobre a naturezainferior que corrompe. De facto, quem há-de censurar com ra-

zão os frutos da terra porque os homens, corrompidos pelo seuvício, não fazem bom uso deles e deles abusam pela luxúria,corrompendo-os? Contudo, seria loucura duvidar que a naturezahumana, mesmo estando viciada, é mais excelente e poderosado que a de qualquer fruto da terra isento de vícios.

40. Também pode acontecer que uma natureza superior

corrompa uma natureza inferior, e que isto suceda sem víciode nenhuma delas, pelo menos se, por vício, queremos indicaraquilo que é digno de censura. Mas quem ousará censurar ohomem frugal, que só procura tirar dos frutos um modo desobrevivência, ou os próprios frutos, que ele corrompe quandose serve deles como alimento? Nestes casos, de facto, nem secostuma falar de corrupção, porque o nome de corrupção cos-

tuma dar-se principalmente ao vício. Na verdade, também sepode observar facilmente, no conjunto dos seres, que muitas

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vezes não é para satisfazer a sua indigência que a naturezado mais forte corrompe o mais fraco, mas para manter a or-dem da justiça, quando castiga uma culpa — em função destaregra se entende o que disse o Apóstolo: «Se alguém corrompero templo de Deus, Deus corrompê-lo-á» 6 —, ou para manter aordem das realidades mutáveis, que sucedem umas às outrassegundo as leis de uma congruência absoluta, dadas para a fir-meza de cada uma das partes do universo. Efectivamente, se ofulgor do sol corromper os olhos de alguém por causa da suanatureza frágil, tornando-os incapazes de suportar a luz, nãose há-de, por isso, pensar que o sol os transforma para com-pletar uma indigência de luz que ele tenha, ou que o faz poralgum vício seu, ou, sequer, se hão-de censurar os próprios olhosporque actuaram à revelia do seu senhor, ao abrirem-se antea luz, nem mesmo se censurará a própria luz, que os corrom-peu. Por conseguinte, de todos os géneros de corrupção, só écensurada com justiça aquela que é viciosa. Quanto às demais,ou não devem sequer chamar-se corrupções, ou seguramentenão podem ser dignas de censura, porque não são viciosas. Naverdade, por isso mesmo se julga que a palavra uituperatioretira daí a sua origem: de facto, só para o vício está prepara-da — isto é, só ao vício ela é devida e adequada.

41. Mas, como eu tinha começado a dizer, o vício só é um

mal por ser contrário à natureza da própria realidade de queé vício. Por isso, é evidente que esta mesma realidade, que écensurada pelo vício, enquanto natureza, é digna de louvor, detal maneira que devemos reconhecer em absoluto que a pró-pria censura dos vícios é um louvor precisamente daquelasnaturezas cujos vícios se censuram. De facto, dado que o víciose opõe à natureza, a malícia dos vícios aumenta na proporção

em que eles fazem diminuir a integridade das naturezas. Por-tanto, quando censuras os vícios, indubitavelmente louvas aqui-lo cuja integridade desejas. Mas que integridade procuras, anão ser a da natureza? Com efeito, a natureza perfeita não sónão merece nenhuma censura, como é digna de louvor no seugénero. Portanto, o que vês claramente que falta à perfeição

1 Coríntios 3:17.

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da natureza é precisamente aquilo a que chamas vício, mani-festando, assim, de modo suficiente, que te agrada essa natu-reza, que queres que seja perfeita, pois é por isso que censu-ras a sua imperfeição.

XV, 42. Portanto, se a censura dos vícios ainda elogia abeleza e a dignidade daquelas naturezas às quais pertencemos vícios, quanto mais Deus, Criador de todas as naturezas,deve ser louvado, também nos vícios delas! Por um lado, é Deleque elas possuem o próprio facto de serem naturezas, e sãoviciosas na medida em que se afastam da arte segundo a qualforam feitas; e, por outro, tais naturezas são censuradas com

justiça na medida em que, quem as censura, vê a arte pelaqual foram feitas, censurando nelas precisamente o que nelasnão vê. E se a própria arte, pela qual todas as coisas foramfeitas — isto é, a suprema e imutável Sabedoria de Deus —,existe verdadeiramente e em grau soberano, como realmente

assim é, repara para onde tende tudo o que se afasta dela.Essa decadência, porém, não seria merecedora de censura, anão ser que fosse voluntária.

Peço-te, então, que consideres se censuras com justiça aqui-lo que é tal como deveria ser. Julgo que não. Mas certamenteo fazes com justiça, quando censuras aquilo que não é comodeveria ser. Ora, ninguém deve aquilo que não recebeu. E quem

contrai uma dívida, a quem fica a dever, a não ser àquele dequem recebeu aquilo que deve? Na verdade, aquilo que se res-titui porque se transmite por herança, restitui-se àquele a quemse deixou por legado. E o que se restitui aos legítimos herdei-ros de credores, certamente restitui-se àqueles que, por estedireito, lhes sucedem. De outro modo, não se deverá falar derestituição, mas de cessão, de perda, ou de qualquer coisa pa-

recida.Por conseguinte, seria absolutamente absurdo dizer que nãodevem extinguir-se todas as realidades temporais, que estãoprecisamente colocadas na ordem das coisas de tal modo queas passadas não podem suceder às futuras a não ser que aque-las desapareçam, a fim de se realizar toda a beleza dos tem-pos, naquilo que a caracteriza. Com efeito, aquilo que recebe-

ram é aquilo que realizam, e é isso mesmo que restituemÀquele a quem devem o que são, na medida em que são. De

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facto, quem tiver pena que essas realidades se extingam, deveprestar atenção ao seu discurso, precisamente a esse pelo qualprofere a sua queixa, para ver se ele é justo e ditado pela pru-dência. No que se refere à emissão do som, quem amar umaparcela desse discurso e não quiser que ela desapareça paradar lugar às demais, por cuja extinção e sucessão todo o dis-curso se entretece, será considerado de uma espantosa de-mência.

43. Portanto, nos seres que se extinguem por não teremrecebido ser por mais tempo, a fim de que todas as coisas serealizem no seu tempo, ninguém censura com justiça a deca-dência, porque ninguém pode dizer: «este ser deveria perma-necer», quando, tendo alcançado os seus limites, não pode pros-seguir mais além. Porém, no que se refere às criaturas racionaisque, quer pecando, quer não pecando, coroam a beleza do uni-verso de modo absolutamente congruente, ou não há nelas ne-

nhum pecado — o que é absolutamente absurdo dizer-se, poispeca ao menos aquele que condena, como se fosse pecado, aquiloque o não é; ou não se hão-de censurar os pecados, o que nãoé menos absurdo dizer-se, pois certamente começar-se-ia tam-bém a não louvar as acções justas, e perturbar-se-ia toda atensão da mente humana, subvertendo a sua vida; ou entãocensurar-se-á uma realidade que foi feita como deveria ter sido,

e dar-se-ia origem a uma execrável insânia ou, para falar deforma mais suave, a um erro absolutamente deplorável; ou, seassim o exigir uma razão absolutamente verdadeira, como efec-tivamente o exige — que, por um lado, se censurem os peca-dos, e, por outro, que aquilo que com justiça é censurado, sejacensurado porque não é tal como devia ser —, investiga, en-tão, qual a dívida da natureza pecadora, e descobrirás que a

sua dívida é o dever de agir com rectidão. Procura aquele aquem ela o deve e descobrirás Deus, de quem, efectivamente,ela recebe o poder de agir com rectidão, se quiser, e também ofacto de ser infeliz, se o não fizer, ou de ser feliz, se o fizer.

44. Na verdade, como ninguém está acima das leis do Cria-dor omnipotente, não se permitiu à alma não restituir o quedeve. Assim, ou o restitui fazendo bom uso daquilo que rece-beu, ou o restitui perdendo aquilo de que não quis fazer bom2!

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uso. Por isso, se não o restitui praticando a justiça, restituí-lo--á padecendo a infelicidade, pois em ambas ressoa aquela pa-lavra — dívida. A mesma coisa se poderia dizer desta manei-ra: se não restitui fazendo o que deve, restitui padecendo oque deve. Porém, nenhum intervalo de tempo divide estes doisaspectos — como se houvesse um tempo em que ela não fazaquilo que deve, e outro em que ela sofre o que deve —, paraque não se desfigure, nem por um instante, a beleza univer-sal, como aconteceria se nela houvesse o desajuste do pecadosem a beleza do castigo. Mas tudo quanto agora se castiga demodo absolutamente latente, reserva-se para a manifestação do

juízo futuro, que conduzirá a um intensíssimo sentimento deinfelicidade. Com efeito, tal como quem não vigia dorme, assimtambém quem não faz o que deve sem nenhum intervalo pade-ce aquilo que deve, porque a felicidade da justiça é tão gran-de que ninguém se pode afastar dela sem cair na infelicidade.

Portanto, face à extinção dos seres, deve considerar-se quetais realidades ou não receberam uma existência mais longa, epor isso se extinguem — e não há aí culpa alguma, do mesmomodo que não a têm quanto àquilo que são, por não teremrecebido mais ser do que aquele que têm —, ou que não que-rem ser aquilo que, se quisessem, haveriam de receber. E por-que isto é um bem, são acusados se o não querem receber.

XVI, 45. Mas Deus não deve nada a ninguém, pois dá tudogratuitamente. E se alguém disser que, por mérito próprio,Deus lhe deve alguma coisa, pelo menos o facto de existir nãolhe será devido, pois aquele a quem a existência seria devidanão existia. E que mérito há em te converteres Àquele que tedeu o ser, a fim de seres ainda melhor, por meio Daquele dequem possuis o ser? Que Lhe acrescentas tu, portanto, para o

reclamares como se te fosse devido, visto que, se não te qui-sesses converter a Ele, nada Lhe faltaria? A ti, porém, faltar--te-ia precisamente isso sem o qual nada és e a partir do qualés alguma coisa, de tal modo que, a não ser que te convertasa Ele para lhe restituíres aquilo que, por Ele, és, seguramentenão serás reduzido a nada, mas serás infeliz. Toda a realidadeLhe é, portanto, devedora. Os seres devem-Lhe, primeiro, aquilo

que são, na medida em que são naturezas. Além disso, devem--Lhe o facto de se poderem tornar melhores, se quiserem; de-

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vem-Lhe tudo aquilo que receberam para quererem e, também,aquilo que é necessário que sejam. Donde se conclui que nin-guém é réu do que não recebeu. Mas, pelo facto de não terfeito aquilo que devia, justamente é tido por réu. É-se devedorquando se recebeu quer a vontade livre, quer uma capacidadeperfeitamente suficiente.

46. Não há, porém, nenhuma culpa do Criador quando al-guém não faz aquilo que deve, de tal modo que, por um lado,Ele é digno de louvor, porque se padece o que se deve, e, poroutro, dado que se é censurado quando não se faz o que sedeve, não se louva a não ser Aquele de quem se é devedor.Com efeito, se és digno de louvor por veres aquilo que devesfazer — sendo um facto que não o vês a não ser Naquele que éa Verdade imutável —, quanto mais não é digno de louvorAquele que ordenou o querer, que deu o poder e que não per-mitiu que ficasse impune o não querer!

Efectivamente, se cada um deve aquilo que recebeu, e se oser humano tivesse sido feito de tal modo que pecasse neces-sariamente, então também seria devedor do próprio facto depecar. Portanto, quando peca, faz aquilo que deve. Mas se éum crime dizer tal coisa, ninguém é obrigado a pecar nem pelasua natureza, nem por qualquer outra. Com efeito, ninguémpeca quando padece aquilo que não quer. Na verdade, se pa-dece justamente, não peca enquanto padece algo que é con-trário à sua vontade, mas pecou na medida em que agiuvoluntariamente, por forma a padecer com justiça aquilo quenão queria. Mas se padece injustamente, como é possível dizerque peca? Com efeito, o pecado não consiste em padecer algoinjustamente, mas em fazer algo injustamente. Porém, seninguém é obrigado a pecar nem pela sua natureza, nem por

uma alheia, resta que é por vontade própria que alguém peca.E se quiseres atribuir o pecado ao Criador, desculparás o pe-cador, pois ele nada realiza que esteja fora das prescrições doseu Criador. Mas se o podemos defender com justiça, entãoele não pecou. Portanto, não há aí nada que possas atribuir aoCriador. Louvemos, portanto, o Criador, se o pecador podeser defendido; louvemo-Lo, também, se o não pode. Com

efeito, se ele pode ser defendido com justiça, não é pecador.Louva, portanto, o Criador. Mas se não poder ser defendido, é

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pecador na medida em que se afasta do Criador. Louva, por-tanto, o Criador.

Em suma, não encontro absolutamente nenhum modo — nemse pode encontrar; mais ainda, insisto em que não existe tal possi-bilidade — de atribuir os nossos pecados a Deus, nosso Criador,quando descubro que Ele é digno de louvor até nos própriospecados, não só porque os castiga, mas também porque eles s6acontecem quando o pecador se afasta da Verdade de Deus.

E — De bom grado te presto em absoluto o meu assentimen-to e aprovo o teu raciocínio. Concordo que é absolutamenteverdadeiro que de modo algum se possam atribuir com justiçaos nossos pecados ao nosso Criador.

XVII, 47. No entanto, ainda queria saber, se fosse possí-vel, por que razão não peca aquela natureza que Deus conhe-ceu de antemão que não havia de pecar, e por que razão pecaesta outra, que Deus previu que havia de pecar.

De facto, agora já não acho que a própria presciência deDeus obrigue aquela a não pecar, ou esta a pecar. Todavia, senão houvesse nenhuma causa, as criaturas não estariam dividi-das de modo que uma nunca pecasse, outra perseverasse nopecado e outra estivesse como que a meio entre ambas, pecandoumas vezes, outras convertendo-se e agindo rectamente. Por quemotivo elas se dividem nestes três grupos? Mas não quero quese me responda: «é por causa da vontade». Com efeito, o queeu procuro é a causa da própria vontade. De facto, não é semalguma causa que uma criatura nunca quer pecar, outra nun-ca quer não pecar, e outra, realmente, umas vezes quer, ou-tras não, tendo em conta que todas elas pertencem ao mesmogénero. Na verdade, a única coisa que me parece evidente éque esta tripartição da vontade da criatura racional não pode

existir sem uma causa, mas ignoro qual seja.

48. A — Uma vez que a vontade é a causa do pecado, e quea tua pergunta incide sobre a causa da própria vontade, se eua puder encontrar, não é verdade que irás perguntar ainda quala causa da causa que se tiver encontrado? E qual será o limiteda investigação, qual o termo das perguntas e respostas, dado

que nada mais deves investigar além da raiz? Livra-te, comefeito, de julgar que se pode dizer algo mais verdadeiro do que

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aquilo que está dito: «a raiz de todos os males é a avareza» 7,

ou seja, querer mais do que aquilo que basta. Ora o que basta

é a medida que cada natureza reclama para si, dentro do seugénero, para se conservar.Com efeito, a avareza — que em grego se diz çú apyvpía —

não retumba só na prata ou nas grandes moedas, de onde re-tira o seu nome. De facto, os antigos faziam as moedas emprata ou, mais frequentemente, em liga de prata. A avarezadeve ser entendida também no que se refere a tudo o que sedeseja sem moderação, e sempre onde quer que alguém queiramais do que aquilo que é suficiente. Esta avareza é o desejodesenfreado, e o desejo desenfreado, enfim, é a vontade per-versa. Por conseguinte, a vontade perversa é a causa de todosos males. Se ela estivesse de acordo com a natureza, certa-mente conservaria, ainda, a natureza, e não lhe seria pernici-osa. Portanto, não seria perversa. Donde se deduz que a raizde todos os males não está de acordo com a natureza. Istobasta para refutar todos os que querem acusar as naturezas.Mas se tu interrogares acerca da causa desta raiz, de que modoserá ela a raiz de todos os males? Com efeito, sê-lo-á aquelaque é causa desta. Ora, quando tu a encontrares, como eu tedisse, ainda irás em busca da causa dela, e a tua investigaçãonão terá nenhum limite.

49. Mas, afinal, qual poderá ser a causa da vontade, ante-rior à própria vontade? Com efeito, ou tal causa é, ela própria,vontade, e não estaremos a retroceder em busca da raiz destavontade, ou ela não é vontade, e não encerra nenhum pecado.Portanto, ou a vontade é a primeira causa do pecado, ou aprimeira causa de que se peque de modo algum é pecado. E opecado não se pode imputar com justiça a ninguém, a não ser

àquele que peca. Portanto, a ninguém se pode imputar o peca-do a não ser àquele que quer. Mas ignoro por que razão teagrada procurar outra causa. Além disso, seja qual for essacausa da vontade, sem dúvida ela é ou justa ou injusta. Se for

justa, quem se submeter a ela não pecará; se for injusta, nãose lhe submeta e não pecará.

7 1 Timóteo 6:10.

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XVIII, 50. Perguntar-se-á, ainda: talvez essa causa seja vio-lenta e obrigue contra a vontade. Havemos de ficar a repetir

sempre a mesma coisa? Recorda-te do que ficou dito mais aci-ma, do muito que se disse acerca do pecado e da vontade livre.Mas se te for muito difícil guardar tudo isso na memória, re-tém esta brevíssima frase. Seja qual for esta causa da vonta-de, se não se lhe pode resistir, cede-se-lhe sem pecado. Porém,se se pode, não se lhe ceda e não se pecará. Mas não será,talvez, que ela engana o incauto? Então, ele que se acautele,para não ser enganado. Mas não será ela tão arteira que éabsolutamente impossível acautelar-se? Se assim é, não have-rá pecados. Na verdade, quem pecará em relação àquilo quede modo algum pode acautelar? Ora, há pecados. Portanto, épossível acautelar-se.

51. E, no entanto, mesmo certas acções feitas por ignorân-cia são reprovadas e consideradas dignas de correcção, comolemos nas autoridades divinas. De facto, diz o Apóstolo: «Obtivemisericórdia porque actuei por ignorância» 8

. Diz também oprofeta: «Não te recordes dos delitos da juventude e dos peca- dos da minha ignorância» 9

. Também há acções reprováveisfeitas por necessidade, quando o homem quer agir bem e nãopode. Na verdade, de onde provêm estas palavras: «Com efeito,não faço o bem que quero, mas o mal que odeio»? 10 E estasoutras: «Querer está ao meu alcance, mas não encontro manei- ra de realizar o bem» 11

. E ainda: «A carne tem desejos contrá- rios aos do espírito, e o espírito desejos contrário à carne; de

facto, uma e outro estão em conflito, de modo que não fazeisaquilo que quereis»? 12 Mas tudo isto pertence aos seres huma-nos em consequência da morte, que lhes sobreveio em con-denação. Na verdade, se a morte não é um castigo do ser hu-

mano, mas lhe pertence por natureza, nenhuma destas coisasé pecado. Com efeito, se o ser humano não se afasta daquelemodo no qual naturalmente foi criado, a tal ponto que não

s 1 Timóteo 1:13. 9 Salmo 24:7. 10 Romanos 7:19.

11 Romanos 7:18. 12 Gklatas 5:17.

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pode ser melhor, então, quando faz estas coisas, faz aquilo quedeve. Se o ser humano fosse bom, seria de outra forma. Masagora, uma vez que ele é assim, não é bom, nem está em seupoder ser bom, quer porque não vê de que modo deve ser, querporque vê como é que deve ser, mas não é capaz de ser comovê que deve. Quem duvidará que isto é um castigo? Ora, todoo castigo, se é justo, é castigo do pecado e chama-se punição;se é injusto, uma vez que ninguém duvida que se trata de umcastigo, então foi imposto ao ser humano por algum ser injus-to, que o domina. Mas tal como é loucura duvidar da justiça eda omnipotência de Deus, assim este castigo é justo e é expi-ação de algum pecado. De facto, não há nenhum injusto domi-nador que possa, como que aproveitando uma distracção deDeus, surripiar-lhe o ser humano ou extorquir-lho contra a suavontade — aterrorizando-o ou entrando em combate com Deus,como se Ele fosse um adversário mais fraco — para atormen-tar o ser humano com um castigo injusto. Resta, portanto, que

esta pena justa decorra da condenação do ser humano.

52. Nem é para admirar que o ser humano, por ignorância,não possua o livre arbítrio da vontade para escolher o modorecto de agir, ou que — pelo costume que a carne tem de resis-tir, o qual de algum modo se enraizou na natureza pela vio-lência da herança de mortalidade — veja o que deve fazer para

agir com rectidão e, querendo fazê-lo, não seja capaz de o le-var a cabo. Com efeito, é um castigo absolutamente justo pelopecado, que lhe seja retirado aquilo de que não quis fazer bomuso, quando o podia ter feito sem nenhuma dificuldade, se qui-sesse. Isto significa que todo aquele que conhece o que é recto enão o põe em prática, perde o conhecimento daquilo que é recto;e que aquele que não quis agir com rectidão embora o pudesse

ter feito, perdeu o poder de o fazer, quando quiser. Na verda-de, em toda a alma que peca há dois castigos irrecusáveis: aignorância e a dificuldade. Pela ignorância, ela degrada-se como erro; pela dificuldade, ela é provada com tormentos. Masquando alguém erra contra vontade, admitindo coisas falsascomo se fossem verdadeiras, ou quando, pela resistência e pelador que lhe inflige o vínculo da carne, não consegue dominar,

pela temperança, os impulsos das paixões, não se manifesta anatureza do ser humano tal como ela foi criada, mas antes um

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quência do movimento deste membro, isto é, à forma e à se-quência das palavras de acordo com a qual se diz que um é omodo de ser da língua latina, e outro, o da grega; assim tam-bém não só dizemos que é pecado o que propriamente se cha-ma pecado — de facto, comete-se por livre vontade e com conhe-cimento —, mas também aquilo que agora é consequêncianecessária daquela punição. De igual modo, também nos referi-mos de uma forma à própria natureza, quando falamos propria-mente da natureza do ser humano, na qual foi criado primeira-mente no seu género, sem culpa, e de outra, quando nosreferimos a esta que — a partir daquela condenação e casti-go — nos faz nascer mortais, ignorantes e sujeitos à carne. É aesta que se refere o Apóstolo, quando diz: «De facto, também nós,como os demais, éramos naturalmente filhos da ira» 13

XX, 55. Tendo em conta que nascemos daquele primeirocasal no estado de ignorância, dificuldade e mortalidade — pois

se eles próprios pecassem seriam lançados no erro, na tribula-ção e na morte -, aprouve ao Deus Supremo, justíssimo go-vernador do mundo, que, logo na origem, quando surgiu o serhumano, se manifestasse a justiça que pune, e que, na maturi-dade, se deixasse ver a misericórdia do libertador. De facto,não obstante lhe ter sido retirada a felicidade, a condenação doprimeiro homem não foi ao ponto de também lhe ter sido arre-

batada a fecundidade. Com efeito, a sua descendência, emboracarnal e mortal, poderia tornar-se algo de belo no seu género eadornar a face da Terra. Além disso, se gerasse outros melho-res do que ele, nesse caso não haveria equidade.

Mas para realizar a conversão a Deus, com a qual cadaum haveria de vencer a punição que, pela aversão, mereceraem função da sua origem, era preciso não só que tal conver-

são não fosse inviabilizada a quem a quisesse realizar, comotambém que fosse auxiliada. De facto, também assim o Cria-dor do Mundo mostra com quanta facilidade o ser humano, sequisesse, teria podido conservar o estado em que foi criado, vistoque a sua descendência pode, inclusivamente, superar o estadoem que nasceu.

13 Efésios 2:3.

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56. Além disso, se foi criada uma única alma a partir daqual seriam tiradas as de todos os homens que nascem, quempoderá dizer que não pecou, quando aquele primeiro homempecou? Mas se é criada uma alma para cada um dos homensque nasce, não se opõe à ordem, bem pelo contrário, revela-semuito conveniente e em conformidade com ela, que a ausênciade mérito do primeiro homem corresponda à natureza do quelhe sucedeu, e que os bons méritos do que lhe segue corres-pondam à natureza do primeiro. Com efeito, que há nisto deindigno, se, também assim, o Criador quis mostrar que a dig-nidade da alma ultrapassa a das criaturas corpóreas, ao pontode a dignidade destas últimas poder ter origem no grau a quefoi conduzida a alma quando esta chegou ao limite de degra-dação? Na -verdade, dado que a alma pecadora chegou ao esta-do de ignorância e dificuldade, com razão se pode falar de cas-tigo, porque ela era melhor antes deste castigo. Portanto, seuma alma começa a existir — não só antes do pecado, mas an-tes de toda a sua vida — no mesmo estado em que se encontrauma outra que foi criada depois de uma vida culpável, não épequeno o bem que possui e do qual há-de dar graças ao seuCriador. De facto, o seu próprio nascimento e o seu ponto departida é melhor do que o de qualquer corpo, seja qual for asua perfeição. Efectivamente, não são bens medíocres não só ofacto de ser uma alma, cuja natureza já a coloca acima da de

qualquer corpo, mas também o facto de possuir a capacidadede, com o auxílio do Criador, se cultivar a si mesma, e de, peloesforço da piedade, poder adquirir e alcançar as virtudes quea libertam quer dos tormentos da dificuldade, quer da ceguei-ra da ignorância. Sendo assim, a ignorância e a dificuldade nãoserão, para as almas que nascem, uma punição do pecado, masuma exortação a que progridam e um começo de perfeição. Com

efeito, não é pouca coisa ter recebido, antes de todo o méritodas boas obras, uma capacidade natural de julgar, pela qual aalma prefere a sabedoria ao erro e o repouso à dificuldade,permitindo-lhe, deste modo, alcançar tais realidades, não à nas-cença, mas pelo esforço. Mas se a alma não quiser agir, com

justiça há-de ser considerada responsável pelo - pecado, comoalma que não fez bom uso da faculdade que recebeu. Efectiva-

mente, embora tenha nascido em estado de ignorância e difi-culdade, contudo nenhuma necessidade a constrange a perma-

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necer na condição em que nasceu. E absolutamente ninguém,a não ser Deus omnipotente, poderia ter criado tais almas,dando-lhes o ser mesmo sem que elas O amassem, e aperfei-çoando aquelas que O amam. É Ele que dá o ser às que nãoexistem e a felicidade às que amam Aquele de quem retiram oseu ser.

57. Se realmente as almas que já existem em algum lugarsecreto de Deus são enviadas para animar e reger os corposde cada ser humano que nasce, certamente também são envia-das para cumprir a tarefa de fazer que esse corpo, que nasceucom a pena do pecado — a saber, com a mortalidade do pri-meiro homem —, seja bem administrado, isto é, que seja corri-gido pelas virtudes e subjugado a uma ordem perfeitíssima e auma legítima servidão, para conquistar, também para ele, naordem e no tempo oportuno, um lugar na morada incorruptí-vel do céu. Estas almas, quando são introduzidas nesta vida esuportam o peso dos membros corpóreos, suportam também,necessariamente, quer o esquecimento da vida anterior, queras canseiras da vida presente. É daí que deriva o estado deignorância e dificuldade que, para o primeiro homem, foi ocastigo da mortalidade, infligido para que ele ponderasse noestado de infelicidade do seu espírito. Contudo, nestas almas,essa infelicidade é uma via de acesso que lhes permite restau-

rar a incorruptibilidade do corpo. Na verdade, não se fala aquiainda de pecado, a não ser porque a carne, procedendo da des-cendência de um pecador, provoca, nas almas que vêm ao seuencontro, este estado de ignorância e dificuldade, cuja culpanão se pode atribuir nem a estas almas, nem ao Criador. Comefeito, Deus deu à alma quer a faculdade de bem agir, ante astarefas laboriosas, quer o caminho da fé, ante a cegueira a que

conduz o esquecimento. Acima de tudo, deu-lhe a capacidadede julgar, pela qual toda a alma reconhece quer o dever deprocurar aquilo que ignora sem necessidade, quer o de se esfor-çar com perseverança nas tarefas que custam esforço, paravencer a dificuldade de actuar com rectidão, quer, ainda, odever de implorar o favor do Criador, para que a ajude nesteesforço. Deus, por meio de uma lei extrínseca e por uma lo-

cução interior do coração, prescreveu que se fizesse este esfor-ço, e prepara a glória de uma Cidade beatíssima para os que

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triunfam sobre aquele que arrastou o primeiro homem para estacondição miserável, tendo-o vencido pela pior das sugestões.Esta infelicidade é a que estas almas aceitaram para vencer odiabo, pela excelência da fé. De facto, não é pequena glória, naluta, vencer o diabo, tendo assumido a mesma punição pelaqual ele se vangloria de ter conduzido o homem à derrota. Masquem desprezar este combate, deixando-se seduzir pelo amordesta vida, de modo algum imputará com justiça o escândaloda sua deserção a uma determinação do seu rei: sob o domíniodo Senhor de todas as coisas, será antes colocado no partidodaquele cujo salário vergonhoso amou até ao ponto de desertardo seu próprio campo de batalha.

58. Porém, se as almas são formadas noutro lugar e nãosão enviadas por Deus, mas vêm antes habitar espontaneamen-te os corpos, também se vê logo que o estado de ignorância edificuldade, que será consequência da própria vontade delas,de modo algum se deve imputar ao Criador. De facto, Ele es-taria absolutamente à margem de culpá, mesmo se Ele pró-prio tivesse enviado essas almas, pois apesar do seu estado deignorância e dificuldade, não lhes retirou a própria vontade depedir, de procurar e de se esforçar. Por isso, não havia de seabster de dar a quem pede, de se manifestar a quem procurae de abrir a quem bate. Efectivamente, às almas que se esfor-çam e que querem o bem, Deus há-de dar a capacidade detriunfar sobre o estado de ignorância e dificuldade, e de alcan-çar a coroa da glória. Porém, às almas negligentes e às quequerem escusar os seus pecados por causa da sua debilidade,Deus não lhes imputará como crime a própria ignorância edificuldade, mas há-de castigá-las com uma justa punição, porterem preferido permanecer nesse estado, em vez de, pela con-

fissão da sua humildade e pela oração, quererem alcançar oestado de verdade e facilidade, esforçando-se por procurar e poraprender.

XXI, 59. Eis, então, quatro posições acerca da origem dasalmas: ou elas se propagam a partir de um único princípio; oué criada uma alma nova para cada novo ser que nasce; ou as

almas existem já em algum lugar e são enviadas por Deus paraos corpos dos seres que nascem; ou elas deslizam espontanea-

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mente para esses corpos. Nenhuma destas posições se há-dedefender com temeridade. Com efeito, ou esta questão aindanão foi esclarecida pelos comentadores dos livros divinos e cató-licos, em razão da obscuridade do assunto e das perplexidadesque o envolvem, ou, se já o foi, ainda não veio. parar às nossasmãos nenhum livro do género. Tenhamos presente apenas afé, para não aderir a nenhuma posição que seja falsa e indignada substância do Criador. Na verdade, é para Ele que tende-mos, pelo caminho da piedade. Portanto, se o conhecimento queDele tivermos não corresponder àquilo que Ele é, a tensão in-

terior do nosso espírito não nos há-de impelir em direcção àfelicidade, mas a uma aparência vã. Na realidade, no que dizrespeito às criaturas, se o nosso conhecimento for diferentedaquilo que elas são, não há qualquer perigo, enquanto não oassumamos como coisa certa e sabida. De facto, para nos tor-narmos felizes não nos foi mandado tender para as criaturas,mas para o próprio Criador, acerca do qual, se alguém nos con-vencer que Ele é de modo diferente do que é devido, e de comoEle é, somos apanhados pela astúcia de um erro perniciosíssimo.Com efeito, ninguém pode alcançar a vida feliz dirigindo-se paraaquilo que ou não é ou, se é, não nos torna felizes.

60. Mas para contemplar a eternidade da Verdade, de talmodo que sejamos capazes de nos enraizar nela e dela desfru-

tarmos, construiu-se um caminho para a nossa debilidade, atra-vés das realidades temporais. Este caminho consiste em queaqueles que caminham para a eternidade acreditem quantobaste nas realidades passadas e futuras. E para que este ensi-namento da fé se imponha pela sua própria autoridade, é go-vernado pela misericórdia divina.

Quanto às realidades presentes, na medida em que se refe-

rem às criaturas, elas são captadas, quer pelo corpo, quer pelaalma, como realidades mutáveis e afectadas pelo movimento, amodo de coisas que passam. Tudo quanto nelas escapa A. nossaexperiência não pode ser admitido como um certo tipo de conhe-cimento. Portanto, todos os relatos de realidades passadas oufuturas que foram narradas acerca das criaturas, e que, porautoridade divina, se apresentam para que neles acreditemos

— não obstante uma parte deles ter acontecido antes de os po-dermos conhecer e outra ainda não tenha decorrido diante dos

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nossos olhos —, no entanto, na medida em que tais relatos sãomuito eficazes para robustecer a nossa esperança e para infla-mar o nosso amor, enquanto nos recordam que Deus não des-cura a nossa libertação, servindo-se do curso absolutamenteordenado dos tempos, sem sombra de dúvida se lhes deve darcrédito.

Mas seja qual for o erro que se mascare de autoridade di-vina, ele refuta-se sobretudo por meio deste argumento: con-vencendo-o a acreditar ou a afirmar quer que há alguma for-ma mutável que não seja criatura de Deus, quer que há algumaforma mutável na substância de Deus, quer que tal erro pre-tende afirmar que a própria substância de Deus é maior oumenor do que a Trindade.

De facto, na compreensão prudente e piedosa desta Trin-dade há-de aplicar-se toda a vigilância cristã, e para ela há-detender todo o seu progresso. Não é aqui o lugar de discutiracerca da unidade e da igualdade de cada uma das pessoasdesta Trindade, e das propriedades de cada uma das pessoas,na sua singularidade. Com efeito, recordar algumas verdadesacerca do Deus e Senhor — autor, formador e ordenador de to-das as coisas — que pertencem à mais pura fé e que servemde sustento útil para alimentar essa tensão interior a muitascrianças de peito, que começam a afastar-se das coisas terre-nas para se prender às celestes, isso é muito fácil de fazer, e

já foi várias vezes realizado por muitos. Mas tratar de modocompleto todas estas realidades e desenvolver o assunto comagudeza racional, de tal modo que, tanto quanto nos é dadonesta vida, fique conquistada toda a inteligência humana, querse trate de o exprimir com palavras, quer mesmo só com o pen-samento, pode parécer tarefa difícil e complicada para um serhumano ou, pelo menos, para nós.

Agora, portanto, para levar a cabo aquilo que nos propuse-mos, na medida em que sejamos ajudados e que tal nos sejaconcedido, diremos que tudo o que nos é relatado e que per-tence às criaturas em relação ao passado ou ao futuro, e quecontribua para pôr em prática a religião na sua integridade,animando-nos a amar Deus e o próximo com plena sincerida-de, sem sombra de dúvida se deve acreditar e defender contra

os incrédulos, quanto baste para vergar a sua infidelidade sobo peso da autoridade, ou para lhes mostrar, tanto quanto pos-

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sível, em primeiro lugar, que não é próprio de ignorantes acre-ditar em tais realidades, e, em seguida, que é próprio de es-tultos não acreditar nelas. Entretanto, importa refutar, tantoquanto possível por meio de argumentos convincentes, as fal-sas doutrinas, não tanto acerca das realidades passadas e fu-turas, quanto acerca das presentes e, principalmente, daque-las que se referem às realidades imutáveis.

61. Sem dúvida que, em relação ao curso dos tempos, sedeve preferir a esperança do futuro a um exame rigoroso so-bre o passado, na medida em que, mesmo nos livros divinos,os acontecimentos que narram o passado se apresentam comoprefiguração, como testemunho, ou como promessa do futuro.E é um facto que, mesmo nos acontecimentos prósperos ouadversos desta vida, ninguém se preocupa muito com aquiloque outrora foi, mas concentra toda a energia das suas preo-cupações no que pode esperar do futuro. Não sei por que ínti-mo sentir natural aquilo que nos aconteceu, uma vez que jápassou, se considera, efectivamente, no que diz respeito à feli-cidade e à infelicidade, como se nunca tivesse acontecido. Quedano me causa, portanto, o facto de ignorar o momento em quecomecei a existir, visto que sei que existo e que não perdi aesperança de existir no futuro? Com efeito, não é para as rea-lidades passadas que eu dirijo a minha atenção, de modo a

temer como erro gravíssimo o facto de ter delas uma ideia di-ferente de como aconteceram; mas antes oriento os meus pas-sos para aquilo que hei-de vir a ser, conduzido pela misericór-dia do meu Criador. Portanto, se eu acreditar ou apreenderoutra coisa diferente da Verdade acerca daquilo que hei-de vira ser e Daquele junto de quem hei-de vir a estar, deve precaver--se com veemência tal erro, não vá ser que não prepare o que

é necessário, ou que não possa alcançar o próprio fim que mepropus, enquanto tomo uma coisa pela outra.

Por conseguinte, tal como, para comprar uma roupa, emnada me prejudica o facto de me ter esquecido do Invernopassado, mas prejudicar-me-á o facto de não acreditar no frioque vai vir aí, também não causa nenhum dano à minha almao facto de ela se ter esquecido daquilo que talvez tenha sofrido,

se agora ela considerar e persistir diligentemente naquilo parao qual, a partir de agora, é advertida de que se prepare. E tal

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como, por exemplo, para um navegante que se dirigisse paraRoma, em nada lhe prejudicaria o espírito o facto de se esque-cer qual foi o porto de que o navio levantou amarras, desdeque, a partir do lugar onde estivesse, não ignorasse para ondedeve dirigir a proa — e, no entanto, de nada lhe serviria ofacto de se recordar do litoral de onde tinha partido se, tendo umafalsa ideia do porto de Roma, viesse a precipitar-se sobre asrochas —, assim também, se eu não compreender o início daminha vida, isso em nada me prejudica, desde que conheça ofim no qual repousarei. E de nada me serve a memória ou asconjecturas acerca do início da minha vida se, tendo acerca deDeus — que é o único fim dos esforços da alma — uma opiniãodiferente daquilo que Ele é, me lançar nos escolhos do erro.

62. E nem este discurso seria capaz de persuadir quempensasse que se proíbe de investigar aqueles que têm capaci-dade, de acordo com as Escrituras divinamente inspiradas, se

a alma se propaga a partir de outra alma, ou se é criada, emcada novo ser, a alma que lhe dá vida, ou se elas são enviadasde algum sítio por alguma ordem divina, para reger e animaro corpo, ou se é por sua própria vontade que elas se introdu-zem nele, quer a razão exija que se considerem e discutam estesassuntos com vista à resolução de alguma questão necessária,quer o ócio proporcionado por se terem resolvido problemas

mais prementes torne possível que estes se discutam e inves-tiguem. Na realidade, disse estas coisas em relação a estesassuntos mais para que não haja quem se lance com temeri-dade sobre aquele que não cede — por uma atitude de dúvidatalvez mais razoável — ante as opiniões desse outro; e tambémpara que, se alguém alcançar sobre este assunto alguma certe-za e evidência, não se venha a pensar que outro tenha perdido

a esperança dos bens futuros, pelo facto de não se recordar dassuas origens passadas.

XXII, 63. Todavia, seja qual for a posição que se tome acer-ca deste problema — quer se abandone em absoluto, quer sedifira por ora, para o considerar noutra ocasião —, no entantoa presente questão não impede que, pelo facto de as almas so-

frerem castigos em punição dos seus pecados, não se manifes-te a substância do Criador em toda a perfeição e justiça, in-

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concussa e imutável na sua majestade. Como já expusemos lon-gamente, os pecados não se devem atribuir a não ser à pró-pria vontade, e não se deve procurar para eles nenhuma causaulterior.

64. Na realidade, se o estado de ignorância e dificuldade énatural, é a partir dele que a alma deve progredir em direcçãoao conhecimento e ao repouso, até que nela se realize plena-mente a vida feliz. E se a alma descurar, por vontade própria,este progresso na erudição e na piedade, cuja capacidade nãolhe foi negada, é justo que seja precipitada num estado de ig-norância e dificuldade mais grave, agora já com carácter pe-nal, e que seja colocada, na ordem, entre as realidades infe-riores, por meio de uma administração perfeitamente harmónicae conveniente. Com efeito, não é o facto de ser ignorante pornatureza e impotente por natureza que se imputa a esta almacomo falta, mas o facto de não se ter esforçado por saber e denão se entregar ao trabalho de adquirir a facilidade de prati-car boas obras.

Efectivamente, o facto de não saber nem poder falar é na-tural, nas crianças, e esta dificuldade e ignorância da lingua-gem não só é inculpável à luz das leis da gramática, comoinclusivamente é suave e grata para o coração dos homens. Defacto, não foi por nenhum vício que se descurou a aquisição

daquela faculdade, nem foi por nenhum vício que ela se per-deu, uma vez conquistada. Assim, se a nossa felicidade consis-tisse na eloquência, e se se considerasse um crime quando sepeca na produção dos sons da língua como quando se peca nosactos da vida, certamente ninguém seria acusado por, na suainfância, ter partido desse estado de ignorância para alcançara eloquência; mas com toda a razão seria condenado se, pela

perversão da sua vontade, tivesse permanecido naquele esta-do, ou se tivesse regressado a ele. De igual modo agora, se aignorância do verdadeiro e a dificuldade de agir com rectidãosão naturais no ser humano, e é daí que ele parte para alcan-çar a sabedoria e o repouso, em que consiste a felicidade, nin-guém tem razão para lhe poder pedir contas deste ponto departida natural. Mas se o ser humano não quiser progredir,

ou se quiser desandar o caminho já conquistado, depois de terprogredido, sofrerá, com toda a justiça, as penas devidas.

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65. Realmente, em qualquer caso, o Criador da alma é dig-no de louvor, por ter disposto na alma, desde a origem, a ca-pacidade de aderir ao Bem Supremo, por a ajudar nesse pro-

gresso, por aperfeiçoar e levar a bom termo aquela que progrideou porque, se ela peca — o que acontece quando recusa, desdeo início, elevar-se a essa perfeição, ou quando cai, depois deter feito algum progresso —, a coloca na ordem de acordo comos seus méritos, por meio de uma justíssima condenação. Comefeito, para quem pondera as coisas com toda a lucidez, não épelo facto de ainda não ser tão perfeita quanto, progredindo,

ela pode vir a ser, que se afirma que a alma foi criada má,visto que todas as perfeições dos corpos são, de longe, inferio-res ao estado inicial da alma e, no entanto, são, no seu géne-ro, dignas de louvor. Portanto, o facto de a alma ignorar aqui-lo que deve fazer, deriva daquilo que ela ainda não recebeu.Mas a alma também há-de receber esse conhecimento, se fizerbom uso daquilo que recebeu. Ora, ela recebeu a capacidade

de procurar com diligência e piedade, se quiser. E se, sabendoo que deve fazer, não o pode cumprir de modo imediato, é por-que ainda não recebeu essa capacidade. Com efeito, há nelauma parte mais elevada, que toma a iniciativa de se aperceberdo bem em que consiste a boa acção, mas há uma certa partecarnal que é mais lenta e não se deixa conduzir segundo aque-le juízo, de tal modo que a alma, advertida por esta mesmadificuldade, deve implorar, para a sua perfeição, o socorro Da-quele que ela sabe que é o Autor do seu começo. Assim, Eledeve tornar-se ainda mais querido para ela, pois não é pelassuas forças, mas pela misericórdia Daquele por cuja bondadeela existe, que ela é elevada ao ponto de ser feliz. E quantomais lhe é querido Aquele que a criou, tanto mais lhe estáassegurado o repouso que ela tem Nele e maior é a alegriacom que ela desfruta da eternidade que Ele possui.

De facto, se não temos nenhuma razão para chamar estérila uma árvore de frutos ainda jovem, não obstante ela passarvárias estações sem dar fruto, até que, no tempo oportuno,manifeste a sua fecundidade, por que razão não se há-de louvaro Autor da alma com a devida piedade, se Ele lhe dá o tempopara se preparar, pelo estudo e pelo progresso, para alcançaros frutos da sabedoria e da justiça, e se Ele lhe outorga a tãosublime dignidade de tender para a felicidade, se ela quiser?

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XXIII, 66. Mas os ignorantes costumam opor a esta argu-mentação uma certa calúnia acerca da morte das crianças edos sofrimentos corporais que, com frequência, vemos que asafligem. Com efeito, dizem eles: «que necessidade havia para onascimento de alguém que, antes de adquirir o mais pequenomérito de vida, fosse levado desta vida? E no juízo futuro, quese há-de imputar àquele que não tem lugar nem entre os jus-tos, porque não fez nenhuma acção recta, nem entre os maus,porque em nada pecou?» A estes responde-se que, para a es-trutura do universo e para a conexão de todas as criaturas,perfeitamente ordenadas através do espaço e do tempo, nãopode ser supérflua a criação de nenhum ser humano, quandonão é supérflua a criação de nenhuma folha de árvore. Massem dúvida é supérfluo investigar acerca dos méritos de quemnada pode merecer. Com efeito, não haveremos de temer quetenha podido existir uma certa vida intermédia entre a acçãorecta e o pecado, e que não tenha podido existir uma sentença

judicial intermédia entre o prémio e a punição.

67. Neste contexto, também costumam os homens investi-gar acerca da vantagem do sacramento do baptismo de Cristopara as crianças, uma vez que, tendo-o recebido, muitos mor-rem antes de poderem exercer qualquer actividade cognitiva.A este respeito, basta que se acredite, com piedade e rectidão,

que aquilo que é proveitoso para a criança é a fé daqueles quea oferecem para ser consagrada. E é isto que a autoridade tãosalutar da Igreja recomenda, para que cada um conheça, as-sim, a utilidade que lhe traz a sua fé, dado que ela até podeser apresentada em beneficio daqueles que ainda a não pos-suem. De facto, de que teria servido a fé ao filho da viúva,uma vez que, estando morto, certamente já não a possuía? No

entanto, a fé da mãe foi-lhe útil para que ressuscitasse14

Portanto, quanto mais não pode a fé de outros servir a umacriança, a quem não se pode imputar a falta de fé?

68. Quanto às punições corporais que atormentam as crian-ças que, pela sua tenra idade, não cometeram nenhum pecado,

14 Cf. Lucas 7:12-15.

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corpos celestes, que são os mais excelentes porque padecemmenos corrupção. De igual modo, exigem, de forma absoluta-mente contrária à ordem, que os corpos dos animais não pade-çam a morte nem qualquer corrupção, como se não fossemmortais, sendo eles da mais baixa condição. Ou então julgamque eles são maus, porque os celestes são melhores. Contudo,a dor que os animais sentem dá conta, também, de uma certaforça dos animais, admirável e digna de louvor no seu género.De facto, por isso mesmo se torna evidente até que ponto elesprocuram a unidade, ao governar e dar vida aos seus corpos.Na verdade, o que é a dor, a não ser o sentimento incapaz desuportar a divisão e a corrupção? Daí que se torne mais clarodo que a luz até que ponto esta alma anseia pela unidade detodo o seu corpo e como a defende com tenacidade, não supor-tando de bom grado, nem com indiferença, mas antes com re-nitência e relutância, que se lhe inflija a paixão do corpo, acei-tando, contrariada, que a unidade e a integridade do seu corposeja minada. Portanto, sem a dor dos animais, não seria evi-dente até que ponto o apetite de unidade existe nas criaturasinferiores dotadas de vida. E se isto não fosse evidente, nãoseríamos tão advertidos quanto é necessário para o facto detodas estas realidades terem sido constituídas pela unidadesublime, suprema e inefável do Criador.

70. Na realidade, se, com piedade e diligência, prestaresatenção, verás como toda a beleza e movimento da criatura,que recai sob a consideração do espírito humano, fala, para nosinstruir. Estes diversos movimentos e afecções são como quediversas línguas que clamam por toda a parte e nos incitamao dever de conhecer o Criador. Na verdade, entre as realida-des que não sentem dor ou prazer, não existe nenhuma que

não alcance alguma beleza, pela unidade própria do seu géne-ro, ou, tão-somente, que não atinja alguma estabilidade da suanatureza. Igualmente, entre as realidades que conhecem osincómodos da dor ou o deleite do prazer, não existe nenhumaque, pelo próprio facto de fugir da dor, não manifeste que ten-de ao prazer, e que, pelo facto de fugir da ruptura, não confes-se que tende à unidade. E, nas próprias almas racionais, todo

o apetite de conhecimento que faz rejubilar tal natureza, porum lado, faz convergir para a unidade tudo quanto ela per-

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cebe e, por outro, não rejeita outra coisa, quando erra, a nãoser a confusão provocada por uma ambiguidade ininteligível.Ora, de onde deriva o mal-estar provocado por toda a ambigui-dade, a não ser do facto de ela não ter assegurada a unidade?Assim, torna-se evidente que todas as coisas — quer quandoprovocam rejeição ou quando são rejeitadas, quer quando provo-cam prazer ou quando o experimentam elas — evocam e pro-clamam a unidade do Criador. Mas se o estado de ignorânciae dificuldade, no qual necessariamente esta vida se inicia, nãoé natural nas almas, resta considerar que seja aceite comotarefa ou que seja infligido como punição. Penso que já se dis-cutiram suficientemente estas hipóteses.

XXIV, 71. Por isso, mais do que o modo como foi propagadaa descendência do primeiro homem, deve investigar-se antes oestado em que o ser humano foi criado. Com efeito, muitospensam que colocam com muita perspicácia a questão, quandodizem: «se o primeiro homem foi criado sábio, por que motivofoi seduzido? Mas, se foi criado estulto, de que modo não seráDeus o autor dos vícios, uma vez que a estultícia é o vício porexcelência?» É como se a natureza humana não admitisse ne-nhum estado intermédio entre a estultícia e a sabedoria, aoqual não se pode chamar nem estultícia, nem sabedoria. Defacto, o ser humano começa a ser estulto, ou sábio, de modo

que se lhe há-de chamar, necessariamente, uma das duas coi-sas, quando já é capaz de possuir a sabedoria, a não ser que adescure, sendo a vontade, então, responsável pelo vício da es-tultícia. Efectivamente, ninguém é insensato ao ponto de cha-mar estulto a um bebé, embora ainda incorra em maior absur-do se lhe quiser chamar sábio. Portanto, tal como não se podedizer que um bebé é estulto ou sábio, embora seja um ser

humano — e assim se torna evidente que a natureza humanaadmite uma situação intermédia, à qual não se chamará comacerto nem estultícia, nem sabedoria —, assim também se al-guém possuir o mesmo estado de alma daqueles que, por ne-gligência, carecem de sabedoria, ninguém lhe chamará comacerto «estulto», se vir que tal acontece, não por vício, mas pornatureza. De facto, a estultícia das coisas que se devem apete-

cer ou rejeitar não é uma ignorância de qualquer tipo, massim uma ignorância viciosa. Daí que também não se diga que

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o animal irracional é «estulto», porque ele não recebeu o poderde ser sábio. No entanto, às vezes designamos alguma coisapor analogia, e não em sentido próprio. E assim a cegueira,sendo por excelência o vício dos olhos, não é um vício nos ca-chorrinhos recém-nascidos, nem nesse caso se pode falar pro-priamente de cegueira.

72. Portanto, se o ser humano foi criado de modo que, semser ainda sábio, podia, no entanto, receber uma ordem à qual,certamente, deveria obedecer, já não é de admirar que pudes-se ser seduzido, e não é injusto que, não tendo obedecido aomandato, tenha sido castigado. E o seu Criador não é autordos vícios, porque o facto de não possuir a sabedoria não era,ainda, um vício do ser humano, se ainda não tinha recebido acapacidade de a possuir. No entanto, tinha um meio de ascen-der àquilo que não possuía, se quisesse fazer bom uso dele.Com efeito, ser racional é uma coisa, e ser sábio é outra. Pormeio da razão, cada um de nós é capaz de compreender umaordem, à qual se deve fidelidade, de modo que se realize aqui-lo que foi ordenado. E tal como a natureza da razão torna capazde compreender a ordem, também a observância da ordem ca-pacita para compreender a Sabedoria. Ora, aquilo que é a na-tureza para compreender a ordem, é a vontade, para a obser-var. E tal como a natureza racional é como que o mérito para

receber a ordem, também a observância da ordem é o méritopara receber a Sabedoria. E a partir do momento em que o serhumano começa a ser capaz de receber uma ordem, começa,por esse mesmo facto, a ser capaz de poder pecar. Mas antesde se tornar sábio, ele peca de dois modos: ou quando não sepredispõe a receber a ordem, ou quando, tendo-a recebido, nãoa cumpre. O sábio, porém, peca se se afastar da Sabedoria. E tal

como a ordem não provém daquele a quem foi dada, mas Da-quele que a deu, assim também a Sabedoria não provém de quemé iluminado, mas Daquele que ilumina.

Portanto, que motivo há para se não louvar o Criador dohomem? De facto, todo o ser humano é bom, e é melhor doque o animal, precisamente porque é capaz de compreenderuma ordem. E ele é melhor quando já compreendeu a ordem,

e ainda é melhor quando se submete à ordem. E é melhor doque tudo isto quando a luz eterna da Sabedoria o torna feliz.

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Mas o pecado é o mal que consiste na negligência em rece-ber a ordem, ou em observá-la, ou em tomar a seu cuidado acontemplação da Sabedoria. Por isso se compreende que, mes-mo se o primeiro ser humano tivesse sido criado sábio, pudes-se, contudo, ser seduzido. E este pecado, como depende do li-vre arbítrio, foi castigado com uma justa pena pela lei divina.

E assim fala também o Apóstolo Paulo: «Dizendo-se sábios,15tornaram-se estultos» . De facto, a soberba afasta da Sabedo-

ria, e a este afastamento segue-se a estultícia. A estultícia,efectivamente, é uma certa cegueira, como também diz o mes-mo Apóstolo: «Obscureceu-se o seu coração insensato» 16 . Ora,qual a origem deste obscurecimento, a não ser a aversão à luzda Sabedoria? E qual a origem desta aversão, a não ser o factode aquele, cujo bem é Deus, querer ser o bem para si próprio,como Deus o é para si mesmo? Com efeito, está escrito: «a mi-

17nha alma conturbou-se diante de mim próprio» ; e: «Provai e18sereis como deuses» .

73. Os que reflectem sobre estes assuntos perturbam-seporque colocam a pergunta nestes termos: «foi pela estultíciaque o primeiro homem se separou de Deus, ou foi ao separar--se de Deus que ele se tornou estulto?» Assim, se responderesque o ser humano se separou da Sabedoria por estultícia, pa-rece que era estulto antes de se separar da Sabedoria, de modo

que tal estultícia seria a causa dessa separação. Igualmente,se responderes que foi ao separar-se de Deus que o ser huma-no se tornou estulto, perguntam logo se esta separação foi umaacção estulta ou sábia. «Efectivamente», dizem eles, «se issofoi feito com sabedoria, então foi uma acção recta e não houvepecado. Se foi feito com estultícia, então a estultícia já existia noser humano e fez que ele se separasse da Sabedoria. De facto,

sem estultícia, ele não poderia fazer nenhuma acção estulta.»Deste modo, torna-se evidente que existe um certo estadointermédio, pelo qual se passa da estultícia para a Sabedoria,

15 Romanos 1:22.16 Romanos 1:21.17

Salmo 41:7.18 Génesis 3:5.

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que não se pode dizer que seja um acto nem de estultícia, nemde sabedoria, e que não é dado entender aos homens colocadosnesta vida a não ser a partir de termos opostos. De facto, talcomo nenhum mortal se torna sábio a não ser quando passada estultícia para a Sabedoria (e se esta mesma passagem éfeita de modo estulto, certamente não é bem feita, afirmaçãoque é perfeitamente desprovida de sentido; mas se ela se fazcom sabedoria, então já existia a sabedoria no ser humano,antes de ele fazer esta passagem para a sabedoria, o que nãoé menos absurdo dizer-se. Por isso se compreende que se pos-

sa dizer que existe uma situação intermédia, que não é nemuma coisa, nem outra), assim também, quando o primeiro ho-mem passou do cume da Sabedoria para a estultícia, essa pas-sagem não foi nem estulta nem sábia. E o mesmo que aconte-ce no sono e na vigília. Nem estar a dormir é a mesma coisado que adormecer, nem o estado de vigília é a mesma coisa doque o acto de acordar: trata-se da passagem de um estado a

outro. Contudo, há aqui uma diferença: muitas vezes esta pas-sagem faz-se sem a intervenção da vontade, mas aquela outranunca acontece a não ser pela vontade. Por isso se lhe seguemsanções absolutamente justas.

XXV, 74. Mas a vontade não é atraída para fazer seja oque for a não ser através de alguma representação. E como

aquilo que consentimos ou rejeitamos está em nosso poder, masnão temos qualquer poder sobre aquilo que nos atinge atravésda representação, deve reconhecer-se que o espírito é afectadopor representações quer de carácter superior, quer inferior, paraque a substância racional assuma, de entre ambas, aquela quequiser. Em função daquilo que assumir, segue-se a infelicida-de ou a felicidade. De igual modo, no paraíso existia, como

representação superior, o mandato de Deus, e como represen-tação inferior, a sugestão da serpente. Na verdade, não estavano poder do ser humano nem aquilo que lhe seria mandadopelo Senhor, nem aquilo que lhe seria sugerido pela serpente.Mas podemos compreender até que ponto o ser humano — cria-do no próprio vigor da sabedoria para não ceder às represen-tações inferiores da sedução — está livre e desimpedido de todoo vínculo da dificuldade, se considerarmos que também os es-tultos superam tais seduções, quando se dispõem a passar para

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a sabedoria, mesmo quando isso lhes custa o esforço de pres-cindir do prazer contaminado de costumes perniciosos.

75. Mas aqui ainda se pode colocar esta questão: se, diantedo ser humano, foram colocadas duas formas de representa-ção, cada uma delas vinda de seu lado, uma por ordem de Deus,outra por sugestão da serpente, resta saber de onde veio aopróprio diabo a sugestão do desejo de impiedade que o fariacair do lugar sublime que ocupava. Com efeito, se nenhumarepresentação o afectava, não teria escolhido fazer o que fez,pois se não lhe tivesse vindo algo à mente, de modo algumconverteria a sua atenção àquilo que é contrário à lei divina.De onde lhe veio, portanto, à mente seja lá o que foi que o fezcongeminar algo capaz de o transformar de anjo bom em diabo?

Com efeito, todo aquele que quer, quer seguramente algu-ma coisa. E se não for advertido de modo extrínseco atravésde um sentido corpóreo, ou se algo lhe não vier à mente por

algum meio secreto, não pode querer. Devem distinguir-se,portanto, dois modos de representação: um, que deriva da von-tade de quem sugere, como é aquele por meio do qual o diaboinduziu o ser humano a pecar; e outro, que provém das coisasque estão sujeitas à tensão interior do espírito ou à dos senti-dos corpóreos. A excepção da imutável Trindade, que não estásujeita a nada, mais ainda, que domina todas as coisas, sub-

jaz, portanto, à tensão interior do espírito, antes de mais, opróprio espírito — e, por isso, também conhecemos que vive-mos e depois o corpo, que o espírito governa. Por isso, o es-pírito faz que cada movimento do corpo se mova, quando énecessário. Quanto aos sentidos corpóreos, todos os demaiscorpos lhes estão sujeitos.

76. Mas se o próprio espírito, que é mutável, ao contemplara Sabedoria suprema — que certamente não se identifica como espírito, pois ela é imutável —, também se contempla a simesmo e, de algum modo, ele próprio se torna presente àmente, isto deve-se apenas ao facto de ele não ser o que Deusé, e, no entanto, de ser algo capaz de agradar à própria men-te, depois de Deus.

Ora ele é melhor quando se esquece de si mesmo em funçãoda caridade imutável de Deus, ou quando, ao comparar-se com

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Deus, se despreza em absoluto a si mesmo. Porém, se — pro-curando-se a si mesmo — se compraz em imitar perversamen-te Deus, para querer desfrutar deste seu poder, torna-se tantomenor quanto maior deseja ser. É isto que significam aquelaspalavras: «O início de todo o pecado é a soberba» 19 ; e aquelasoutras: «O início da soberba é a rejeição de Deus» 20

Mas o diabo acrescentou, à sua soberba, a inveja mais ab-soluta, até introduzir, no ser humano, essa mesma soberba, queele já sabia que tinha sido a causa da sua condenação. Porisso é que a pena que o ser humano recebeu é mais de correc-ção do que de condenação à morte. Assim, àquele a quem odiabo se apresentava para que o imitasse na sua soberba, apre-senta-se-lhe o Senhor para que o imite na sua humildade, pro-metendo-nos, por meio dela, a vida eterna, a fim de que — tendosido derramado por nós o sangue de Cristo depois de traba-lhos e padecimentos inenarráveis — nos apeguemos ao nossoLibertador com imensa caridade e Nele nos enlevemos por umatão imensa claridade que a visão de nenhuma realidade infe-rior nos afaste da contemplação desta superior. De resto, sealguma dessas realidades se apresentasse como sugestão à ten-são interior do nosso espírito, a condenação e o eterno tormen-to do diabo seriam um novo apelo para nos afastarmos do de-sejo das realidades inferiores.

77. Mas é tal a beleza da justiça, a tal ponto é imenso oencanto da luz eterna, ou seja, da imutável Verdade e da Sa-bedoria, que, mesmo se não permanecêssemos nela a não serpelo espaço de um dia, só para o obter desprezaríamos, comtoda a razão e justiça, um conjunto inumerável de anos destavida repletos de delícias e rodeados de bens temporais. Comefeito, não se disse com falsidade ou com pouco fervor que «um

só dia passado nos teus átrios é melhor do que mil»21

, aindaque estas palavras se possam entender noutro sentido, se por«mil dias» entendermos a mutabilidade dos tempos, e se a ex-pressão «um só dia» designar a eternidade imutável.

ls Eclesiastes 10:15.20

Eclesiastes 10:14. 21 Salmo 83:11.

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ante a profusão de estudos sobre Santo Agostinho, os quais se encontramdevidamente compilados nos repertórios bibliográficos de especialidade.

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 7

Siglas e abreviaturas ..................................................................................... 9

INTRODUÇÃO ............................................................................................. 11

I — O Diálogo sobre o Livre Arbítrio: enquadramento historiográfico

e metodologia ........................................................................................ 13