Agatha christie - e no final a morte
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ENOFINALAMORTE
MargemoestedorioNilo,emTebas,Egito.Aépoca:cercade
2000a.C.
Com esses inusitados elementos, Agatha Christie cria mais
uma aventura onde as características marcantes de seu estilo
sobressaem:uma trama extremamentebemurdida e enredante,
que só se conseguedecifrarno seu fecho:personagens tãobem
delineados que se tornam quase reais: uma ação inteligente e
dinâmica,emqueosuspensevainumcrescendoatéodesfecho,
sempre surpreendente. E no final amorte émais uma obra de
AgathaChristiequevemprovarquecadalivroseuésempreum
sucesso.
AOPROFESSORS.R.K.GLANVILLE
QueridoStephen:
Foivocêquemprimeirosugeriu-meaidéiadeumahistóriade
mistériopassadanoAntigoEgitoe,nãofossepeloseuincentivoe
colaboração,estelivronãoteriajamaissidoescrito.
Gostariadedizeraquioquantoapreciei todaa interessante
literatura que me emprestou, e mais uma vez agradecer pela
paciência com a qual respondeu às minhas perguntas e pelo
tempoetrabalhoquelhecustei.Oprazereinteressequeescrever
estelivrometrouxe,vocêjáconhece.
Suaafetuosaeagradecidaamiga,
AgathaChristie
NotadoAutor
A ação deste livro tem lugar na margem oeste do Nilo, em
Tebas,noEgito,porvoltadoano2000a.C.Tantoolugarquanto
aépocasãoincidentaisparaahistória.Qualqueroutrotempoou
lugarteriamservidodamesmamaneira;todavia,ainspiraçãode
ambos, personagens e trama, derivou-se de duas ou três cartas
egípcias da XI Dinastia, encontradas há vinte anos pela
ExpediçãoEgípciadoMuseuMetropolitanodeArtedeNovaYork,
numtúmulodepedraopostoaLuxor,etraduzidaspeloprofessor
(entãoSr.)BattiscombeGunn,noBoletimdoMuseu.
Podeserdeinteressedoleitorobservarqueumadoaçãopara
o serviço de Ka — uma característica do cotidiano da antiga
civilização egípcia — era, em princípio, muito parecida com as
doações medievais para a entoação de cânticos fúnebres. A
propriedadeeradoadaaosacerdotedeKaque,porsuavez,devia
conservarotúmulodotestanteeprovidenciaroferendasnosdias
defesta,durantetodooano,paraorepousodaalmadofalecido.
Os termos “Irmão” e “Irmã”, que nos textos egípcios
normalmente querem dizer “Amante” e são freqüentemente
trocados por “Marido” e “Mulher”, foram oportunamente
empregadosdamesmamaneiranestelivro.
OcalendárioagrícoladoAntigoEgito,queconsistiaemtrês
estaçõesdequatromesesde trintadias, formavaabasedavida
camponesae,comaadiçãodecincodiasintercaladosnofinaldo
ano,erausadocomoocalendáriooficialde365dias.Este“Ano”
começavaoriginariamentecomachegadadaenchentedoNiloao
Egito,naterceirasemanadejulhosegundonossoscálculos;mas
a ausência de um ano bissexto causou um atraso através dos
séculos, tanto assim que, na época da nossa história, o dia de
Ano Novo oficial caía mais ou menos seis meses antes,do
princípio do ano agrícola, isto é, em janeiro ao invés de julho.
Parapouparoleitordecontínuasconcessõesaestesseismeses,
as datas aqui usadas como títulos dos Capítulos foram
estabelecidas nos termos do ano agrícola da época, isto é,
inundação—finaldejulhoafinaldenovembro;inverno—final
denovembroafinaldemarço;everão—finaldemarçoafinalde
julho.
CAPÍTULOI
SegundoMêsdaInundação
VigésimoDia
RenisenbficouolhandoparaoNilo.
Nadistância,podiaouvir indistintamenteasvozesexaltadas
deseusirmãos,YahmoseeSobek,discutindoseosdiquesdeviam
ounãoserreforçados.AvozdeSobekeraaltaeconfiantecomo
sempre.Ele tinhaohábitodeafirmarseuspontosdevistacom
absoluta certeza. A voz de Yahmose era baixa e tinha um tom
queixoso,expressavadúvidaeansiedade.Yahmoseestavasempre
num estado de ansiedade diante de uma coisa ou outra. Era o
filho mais velho e, durante a ausência do pai nos estados do
norte,agerênciadasterrasestavamaisoumenosemsuasmãos.
Yahmoseera lento,prudenteepropensoaprocurardificuldades
ondeelasnãoexistiam.Eradeconstituiçãopesada,movimentos
lentosenadatinhadaalegriaeconfiançadeSobek.
Desde a infância, Renisenb podia se lembrar desses seus
irmãosmaisvelhosdiscutindodaquelamesmamaneira.Issodeu-
lhe de repente um sentimento de segurança... Ela estava
novamenteemcasa.Sim,elatinhavoltadoparacasa...
Porém, quando mais uma vez olhou para o rio, pálido e
resplandecente, sua rebeldia e dor assomaram-lhe novamente.
Khay, seu jovem marido, estava morto... Khay com sua face
risonhaeseusombrosfortes.KhayestavacomOsírisnoreinoda
morte—eela,Renisenb,suaqueridaeamadaesposa,arrasada.
Oito anos eles viveram juntos — ela fora para ele quando era
aindapoucomaisqueumacriança—eagoravoltavaviúva,com
afilhadeKhay,Teti,paraacasadeseupai.
Nessemomento,sentiu-secomosenuncahouvessepartido.
Talidéialheagradou.
Esqueceriaaquelesoitoanos—tãocheiosdeumafelicidade
inconseqüente,tãodilaceradaedesfeitapelaperdaeador.
Sim, esquecê-los, tirá-los de sua cabeça. Voltar a ser
Renisenb,a filhade Imhotep,osacerdotedeKa,aquelamenina
tola e insensível. Esse amor por ummarido e irmão tinha sido
umacoisacruel,enganando-acomsuadoçura.Elase lembrava
dos fortes ombros de bronze, da boca risonha — agora Khay
estavaembalsamado,mumificado,protegidoporamuletosnasua
viagemparaooutromundo.Khaynãoestavamaisnestemundo
paranavegarnoNilo,pescareriraosol,enquantoela;estendida
nobarco,comTetinocolo,riatambémparaele.
Renisenbrefletia:
“Nãovoumaispensarnisso.Acabou-se!Aqui,estouemcasa.
Tudoestácomoeraantes.Eeutambémlogovoltareiasercomo
era.Tetijáesqueceu.Elabrincaericomasoutrascrianças.”
Renisenb voltou-se, subitamente, e encaminhou-se em
direção à casa, passando por alguns jumentos carregados que
iamsendolevadosparaasmargensdorio.Passoupelosceleiros
detrigo,pelascasasepeloportão,echegouatéopátio.Opátio
eramuitoagradável.Haviaolagoartificial,cercadoporoleandros
e jasmins em flor, sombreado pelas figueiras. Teti e as outras
crianças estavam ali brincando agora, e suas vozes elevavam-se
claraseestridentes.Corriamdeumladoparaoutro,entrandoe
saindo da pequena tenda ao lado do lago. Renisenb notou que
Teti estava brincando com um pequeno leão de madeira, cuja
boca abria e fechava ao se puxaruma cordinha, umbrinquedo
queelamesmaadorara,quandocriança.Emaisumavezpensou,
agradecida: “Voltei para casa...” Aqui nada haviamudado, tudo
estava como sempre fora. Aqui a vida era segura, constante,
imutável; eraTeti,agora,acriança,eelaumadasmuitasmães
enclausuradas pelas paredes da casa — mas a estrutura, a
essênciadascoisas,estavaintacta.
Abola,comaqualumadascriançasestavabrincando,rolou
atéosseuspés;pegou-ae,rindo,atirou-adevolta.
Renisenb foi andando até a varanda, com suas colunas
alegremente coloridas, e entrou na casa, passando pela grande
sala central, com seus frisos coloridos e decorados com lótus e
papoulas,chegandoassimaosfundos,ondeficavamosaposentos
dasmulheres.
Vozesexaltadaschegaram-lheaosouvidoseelanovamentese
deteve,saboreandocomprazerosvelhosecosfamiliares.Satipye
Kait—discutindocomosempre!Ojábemconhecidotomdevoz
deSatipy,alto,dominanteeinsolente!Satipyeraaesposadeseu
irmão Yahmose, umamulher alta, enérgica e exaltada, bela na
sua maneira dura e dominadora. Eternamente ditando a lei,
intimidando os criados, achando falhas em tudo, conseguindo
que coisas impossíveis fossem feitas, puramente pela força da
vituperação e da personalidade. Todos temiam sua língua e
corriam para obedecer suas ordens. O próprio Yahmose tinha
umagrandeadmiraçãoporsuaresolutaegeniosaesposa,porém
se deixava intimidar por ela de tal maneira que normalmente
deixavaRenisenbfuriosa.
Nos intervalos, quando Satipy dava uma pausa em suas
frasesdetomaltíssimo,podia-seouviraquietaeobstinadavozde
Kait.Kait,mulhercorpulentaederostosimples,eraaesposado
belo e engraçado Sobek. Completamente devotada aos filhos,
raramentepensavaoufalavaarespeitodeoutracoisa.Nasbrigas
diárias com sua cunhada, defendia seu ponto de vista de uma
maneiramuitosimples;oquequerquetivesseditoanteriormente,
ela o repetia, com uma quieta e irremovível obstinação. Não
manifestava nem cólera nem paixão e jamais considerava outra
formade encararaquestãoquenão fossea suaprópria.Sobek
era extremamente agarrado à sua esposa e conversava com ela
abertamentearespeitodetodososseusproblemas,certodeque
elaaparentariaestarouvindoequeemitiriasons reconfortantes
de assentimento ou discordância, não se lembrando de nada
inconveniente, uma vez que sua mente estava, com certeza,
remoendootempotodoalgumproblemaligadoàscrianças.
—Éumultraje,istosim—gritouSatipy.—Nemquetenhao
gênio de um rato, Yahmose não vai aturar isso nem por um
momento!Quemestáno comandoaqui, enquanto Imhotep está
ausente? Yahmose! E como esposa de Yahmose, eu é quem
deveria ter sido a primeira a escolher as esteiras e almofadas.
Aquelehipopótamodaqueleescravonegrodeveriaser...
AvozfirmeeprofundadeKaitinterveio:
— Não, não, meu queridinho, não coma o cabelo da sua
boneca.Olhe,aquiestáalgomelhor...umdoce...oh,quebom...
—Quantoavocê,Kait,nãotemfineza,nemaomenosouveo
queestoudizendo—nãoresponda—;suasmaneirassãoatrozes.
—A almofada azul sempre foiminha...Oh, veja a pequena
Ankh:elaestátentandoandar...
— Você é tão estúpida quanto seus filhos, Kait, e isso já é
dizerobastante!Masvocênãovaisairdessa,assim.Eutereios
meusdireitos,guardeoqueestoudizendo.
Renisenbjáiasairquandoumligeiroruídodepassosfez-se
ouvir atrás dela. Voltou-se num sobressalto, com a sensação
familiardeaversãoaoveratrásdesiamulherHenet.
AfacemagradeHenetcontorceu-senoseuhabitualsorriso,
quetinhasempreumquêdeadulador.
— Você deve estar pensando que as coisas não mudaram
muito,Renisenb—disse ela.—Como todosnós suportamos a
língua de Satipy, eu não sei! É claro que Kait pode responder.
Algunsdenósnãotêmtantasorte!Seireconheceromeulugar,
espero,esougrataaoseupaipormedarcasa,comidaeoque
vestir.Ah,eleéumhomembom,oseupai.Eeusempre tentei
fazer tudo o que posso.Estou sempre trabalhando, dandouma
mãoaquieali,enãoesperoreconhecimentoougratidão.Sesua
queridamãeestivesseviva,tudoseriadiferente.Elaeracapazde
meapreciar.Éramoscomoirmãs!Umamulherbonita,éoqueela
era.Bem,eucumpriminhaobrigaçãoemantiveapromessaque
lhe fiz. “Cuide das crianças, Henet”, disse-me quando estava
morrendo. E eu me mantive fiel à minha palavra. Escrava de
todosvocêseufui,enuncadesejeiagradecimentos.Nãoosexigie
nemos tive! “É apenas a velhaHenet”, é o quedizem, “elanão
conta.” Ninguém pensa em mim. E por que deveriam? Apenas
tentoserútil,eissoétudo.
Ela escorregou comouma enguia pelo braço deRenisenb e
entrounoquarto.
— A respeito dessas almofadas, você me desculpe, Satipy,
masacontecequeeuouviSobekdizer...
Renisenbretirou-se.SuaantigaaversãoporHenetressurgiu.
Engraçado como Henet desagradava a todos! Era a sua voz
chorosa,suainterminávelautocomiseraçãoeseuocasionalprazer
maliciosoematiçarofogodeumadiscussão.
“Muito bem”, pensou Renisenb, “por que não?” Era esta a
maneira,supunha,queHenettinhadesedivertir.Avidadeveser
terrívelparaela—eeraverdadequetinhatrabalhadocomoum
cãoequeninguémjamaislhefoigrato.Eraimpossívelsergratoa
Henet;elachamavaaatençãoparaseusprópriosméritosdemodo
tão persistente que congelava qualquer reação generosa que se
pudessehaversentido.
Henet, pensou Renisenb, era uma dessas pessoas cujo
destino é ser devotado aos outros, e nunca ter alguém que lhe
seja devotado. Ela era desagradável à vista e também estúpida.
Mas sempre sabia o que estava acontecendo. Sua maneira
imperceptível de andar, suas orelhas aguçadas e seus olhos
sempreespreitando,deixavamclaroqueparaelanadapodiaser
mantido em segredo por muito tempo. Às vezes guardava as
coisas para si — outras vezes ia de uma pessoa a outra,
sussurrando,edepoisficavaportrásdeliciando-seemobservaros
resultadosdesuasintrigas.
Numaounoutraocasião, todosnacasa jáhaviampedidoa
ImhotepparaseverlivredeHenet.MasImhotepjamaisatenderia
atalcoisa.EleeratalvezaúnicapessoaquegostavadeHenet;e
elacorrespondiaaesseamparocomumacompletadevoção,queo
restodafamíliaachavaaténauseante.
Renisenbpermaneceu indecisaporummomento,ouvindoa
acelerada gritaria de suas cunhadas, atiçadas pela chama da
interferência de Henet; então, devagar, ela foi até o pequeno
quartoondesuaavó,Esa,estavasentadasozinha,atendidapor
duas escravas negras. Neste momento ela estava ocupada,
inspecionando certas peças de roupas de linho que as escravas
lheexibiam,aomesmotempoqueasrepreendiadeumamaneira
amigável.
Sim, estava tudo na mesma. Renisenb parou, sem que a
percebessem,escutando.AvelhaEsatinhaencolhidoumpouco,
era tudo. Mas tanto sua voz quanto as coisas que ela estava
dizendo eram as mesmas, palavra por palavra quase, tanto
quanto Renisenb podia lembrar-se delas, antes de deixar o lar,
oitoanosantes...
Renisenb escapuliu de novo. Nem a senhora nem as duas
pequenas escravas negras haviam notado sua presença. Por
alguns instantes Renisenb deixou-se ficar diante da porta da
cozinha.Umcheirodepatosassando,umamisturadeconversas,
risoseralhos,tudoaomesmotempo;umamontanhadelegumes
esperandoparaserempreparados.
Renisenbficouassim,bemquieta,osolhosmeiofechados.De
ondeestava,podiaouvirtudooqueestavaacontecendo.Osricos
evariadossonsdacozinha,osomagudoepenetrantedavozda
velhaEsa,ossonsestridentesdeSatipy,e,maisfraco,oprofundo
epersistentecontraltodeKait.Umababeldevozesfemininas—
tagarelando,rindo,reclamando,ralhando,exclamando...
EntãoRenisenbsentiu-sesubitamenteabafada,envolvidapor
aquela persistente e ruidosa feminilidade. Mulheres —
barulhentas,vociferantesmulheres!Umacasacheiademulheres
—jamaisquietasou tranqüilas—sempre falando, exclamando,
dizendocoisas,nuncafazendo!
EKhay—Khay silencioso e atentono seubarco, toda sua
mentevoltadaparaopeixequeiaapanhar...
Nada havia desse bater de línguas, dessa atividade, nada
desseincessanterebuliço.
Renisenbdeixourapidamenteacasa,rumoàquenteeclara
tranqüilidade. Viu Sobek voltando dos campos e, a distância,
Yahmose subindo em direção ao túmulo. Virou-se e tomou o
caminho que levava aos penhascos calcários onde estava o
túmulo.EraotúmulodograndeNobreMeriptah,eseupaierao
sacerdotemortuárioresponsávelpelasuamanutenção.Todosos
benseasterrasfaziampartedodotedotúmulo.
Quandoseupaiestavafora,asobrigaçõesdosacerdotedeKa
recaíam sobre seu irmão Yahmose. Quando Renisenb, que foi
andandodevagarpelocaminhoíngreme,chegou,Yahmoseestava
deliberando com Hori, o homem que cuidava dos negócios e
assuntosdeseupai,numpequenoaposentodepedra,contíguo
aoquartodeoferendasaotúmulo.
Horitinhaumafolhadepapiroestendidasobreosjoelhose
Yahmoseeeleestavaminclinadossobreela.
YahmoseeHorisorriramparaRenisenbquandoelachegoue
sentou-sepertodelesnumamanchadesombra.Elasemprehavia
sentido uma grande ternura por seu irmão Yahmose. Ele era
sempregentileafetuosoparacomela,etinhaumtemperamento
meigo e suave. Hori, também, tinha sido sempre solenemente
gentilparacomapequenaRenisenbealgumasvezesconsertara
seus brinquedos. Era um jovem grave e silencioso, com dedos
hábeis e sensíveis, quando ela se foi. Renisenb pensou que,
apesar de parecer mais velho, ele não havia mudado nada. A
maneiragravecomolhesorriueraamesmadaqualselembrava.
YahmoseeHorimurmuravam:
—SetentaetrêsmedidasdecevadacomIpy,omaisjovem...
—Ototalentãoéduzentasetrintadetrigoecentoevintede
cevada.
__Sim,mashátambémopreçodamadeiraeacolheitaque
foipagaemóleoemPerhaa...
E a conversa continuou. Renisenb sentou-se,
sonolentamente,satisfeitacomomurmúriodevozesmasculinas
ao fundo. Nesse momento Yahmose levantou-se e foi embora,
devolvendoorolodepapiroaHori.
Renisenb permaneceu sentada numa silenciosa
camaradagem.
Então,tocandoorolodepapiro,perguntou:—Édomeupai?
Horiacenouafirmativamente.
—Quedizele?—perguntoucuriosa.
Eladesenrolou-oefitouaquelasmarcassemsentidoaosseus
olhosignorantes.
Comum ligeiro sorriso,Hori inclinou-se sobre seuombro e
acompanhoucomodedoenquantolia.Acartahaviasidoescrita
noestiloornamentadodoescribaprofissionaldeHeracleópolis.
—OServodoEstado,oservidordeKa,Imhotep,diz:Possaa
suacondiçãoseraqueladosquevivemummilhãodevezes.Queo
DeusHerishaf,SenhordeHeracleópoliseTodososDeusesquehá
possamajudá-lo.Que oDeus Ptah possa alegrar o seu coração
comoaquelequevivepormuitotempo.Ofilhofalaàsuamãe,o
servo de Ka à sua mãe Esa. Como vai a sua vida, segura e
saudável? A todos da casa, como vão vocês? Ao meu filho
Yahmose,comoestáasuavida,seguraesaudável?Façaomelhor
da minha terra. Empenhe-se ao máximo, dê tudo de si no
trabalho.SevocêforindustriosoeulouvareiaDeusporvocê...
Renisenbriu.
— Pobre Yahmose! Estou certa de que ele já se esforça o
bastante.
Asexortaçõesdeseupai trouxeram-novividamentedevolta
aos seus olhos— suamaneira pomposa e ligeiramente afetada,
suaseternasexortaçõeseinstruções.
Horicontinuou:
—TomemuitocuidadocommeufilhoIpy.Ouvidizerqueele
estádescontente.FaçacomqueSatipytrateHenetbem.Lembre-
sedisto.Nãoseesqueçadeescreversobreolinhoeoóleo.Cuide
daproduçãodomeucereal—cuidede tudooque émeu,pois
vocêcontinuarácomoresponsável.Seminhaterrainundar,aide
vocêedeSobek.
—Meupaiéaindaomesmo—disseRenisenbalegremente.
—Semprepensandoquenadapodeserfeitosemasuapresença.
Deixouorolodepapirocaireacrescentousuavemente:
—Tudoéexatamenteigual...
Horinãorespondeu;pegouumafolhadepapiroecomeçoua
escrever.Renisenbolhou-o,preguiçosamente, por algum tempo.
Sentia-semuitosatisfeitaparafalar.
Depois,sonhadora,disse:
—Seriainteressantesabercomoescrevernopapiro.Porque
todosnãoaprendem?
—Nãoénecessário.
—Necessário,talveznão,masseriaagradável.
— Você acha, Renisenb? Que diferença poderia fazer para
você?
Renisenbpensouporalgunsinstantes.Entãodissedevagar:
—Vocêmeperguntandoassim,realmentenãosei,Hori.
Horidisse:—Nopresente,apenasalgunsescribasétudode
quantoumgrandeEstadoprecisa;masviráodia,imaginoeu,em
quehaverábatalhõesdeescribasportodooEgito.
—Issovaiserbom—disseRenisenb.
Horiretrucoulentamente:—Nãoestoucerto.
—Mascomovocênãoestácerto?
—Porque,Renisenb,émuitofáciledámuitopoucotrabalho
escreverdezmedidasdecevada,oucemcabeçasdegado,oudez
camposde trigo; eoqueestáescritovai separecercomacoisa
real,eassimoescritorvaicomeçaradesprezarohomemqueara
oscamposeceifaacevadaecriaogado.Masdequalquerforma
oscamposeogadosãoreais,nãosãoapenasmarcasdetintano
papiro. E quando todas as notas e todos os rolos de papiro
estiverem destruídos e os escribas dissipados, os homens que
trabalhameceifamcontinuarãoexistindoeoEgitoaindaestará
vivo.
Renisenb olhava para ele atentamente. Disse-lhe então
pausadamente:—Sim,entendooquevocêquerdizer.Somente
as coisas que você pode ver, tocar e comer são reais... Escrever
“Tenhoduzentas e quarentamedidasde cevada”nãoquerdizer
nada, a menos que você tenha a cevada. Uma pessoa pode
escrevermentiras.
Horisorriucomseurostosério.Renisenbdisseentão:
— Você consertou meu leão para mim, há muito tempo,
lembra-se?
—Sim,eumelembro,Renisenb.
—Tetiestábrincandocomeleagora...Éomesmoleão.
Paroueentãodissesimplesmente:
—QuandoKhay foi paraOsíris eu fiqueimuito triste.Mas
agoravolteiparacasaeficareifeliznovamenteeesquecerei,pois
tudoaquiestánomesmo.Nadamudou.
—Vocêrealmentepensaassim?
Renisenbolhoudiretamenteparaele.
—Quevocêestáquerendodizer,Hori?
—Eudigoqueascoisassempremudam.Oitoanossãooito
anos.
—Aquinadamudou—disseRenisenbconfiante.
—Poistalvezdevessetermudado.
Renisenbdisseabruptamente:
—Não,não;querotudoexatamentecomoeraantes!
—MasvocêpróprianãoéamesmaRenisenbquesefoicom
Khay.
—Sim,eusou!Esenãosou,entãobreveoserei.
Horibalançouacabeça.
— Não se pode voltar, Renisenb. É como eu, aqui, com
minhas medidas. Tiro metade e somo um quarto, depois um
décimoeentãoumavigésimaquartaparte;enofinal,comovocê
vê,háumaquantidadecompletamentediferente.
—MaseusouamesmaRenisenb.
—MasRenisenb temsempremaisalgumacoisa,quesevai
acrescentando a ela, o tempo todo, e assim ela passa a ser,
sempre,umanovaRenisenb!
—Não,não;vocêéomesmoHori.
—Vocêpodepensarassim,masnãoéassim.
—Esim,eYahmoseéomesmo,tãopreocupadoeansioso,e
Satipy o irrita da mesma forma, e ela e Kait estavam tendo a
costumeiradiscussãosobreesteirasoumiçangas,elogoquando
euvoltarelasestarãorindojuntas,asmelhoresamigas;eHenet
aindasearrasta,ouveasconversasechoramingaasuadevoção,
eminhaavóestavaàsvoltascomaempregadinha,discutindoo
linho!Eratudoigual,ebrevemeupaiestarádevoltaehaveráum
grande rebuliço, e ele dirá “por que vocês não fizeram isso?” e
“você devia ter feito aquilo”, e Yahmose vai ficar preocupado e
Sobekvairireserinsolente,eentãomeupaivaiimportunarIpy,
quetemdezesseisanos,damesmamaneiraquecostumavafazer
quando ele tinha oito, enada serádiferente!—Elaparou, sem
fôlego.
Horisuspirouedisse,gentilmente:
—Vocênão entende,Renisenb.Existeummal que vemde
fora, que ataca de modo que todos podem ver, mas existe um
outro tipo de podridão que brota de dentro; que não mostra
nenhum sinal aparente, que cresce devagar, dia a dia, até que,
finalmente,todoofrutoestápodre,carcomidopeladoença.
Renisenbficouolhandoparaele.Horitinhafaladoquaseque
inadvertidamente, como se não estivesse falando com ela, mas
comoumhomemquecismaconsigomesmo.
Elagritou,impulsiva:
—Quevocêestádizendo,Hori?Vocêmemetemedo.
—Eupróprioestoucommedo.
—Mas o que você quer dizer? Quemal é este de que você
fala?
Entãoeleaolhouederepentesorriu.
—Esqueçaoqueeudisse,Renisenb.Euestavasópensando
nasdoençasquedãonasplantações.
Renisenbrespiroualiviada.
—Ficocontente.Eupensei...nemseioquepensei.
CAPÍTULOII
TerceiroMêsdaInundação
QuartoDia
I
SatipyestavaconversandocomYahmose.Suavoztinhauma
notaestridentequeraramentevariavadetom.
—Vocêtemdeseafirmar.Éoqueeudigo!Vocênuncaserá
valorizado,amenosqueseafirme.Seupaidizqueissoouaquilo
tem de ser feito e que você ainda não fez aquilo outro. E você
escuta humildemente e responde sim, sim, e se desculpa pelas
coisas que ele lhe disse que deviam ter sido feitas, as quais os
deuses sabem, eram de modo geral absolutamente impossível.
Seu pai o trata como a uma criança, como a um menino
irresponsável!ComosevocêtivesseaidadedeIpy.
Yahmosedissecalmamente:
—MeupainãometratademodoalgumcomoaoIpy.
—Nãomesmo.—Satipyatirou-sesobreonovoassuntocom
fúria renovada. — Ele parece um bobo com aquele fedelho
mimado!DiaadiaIpysetornamaisimpossível.Elesepavoneiae
nãofaznadaparaajudar,sobopretextodequetudooqueselhe
peça é trabalho pesado demais para ele! Uma desgraça. E tudo
porque ele sabe que seu pai vai sempre tomar seu partido e
perdoá-lo. Você e Sobek deviam tomar uma atitude a esse
respeito.
Yahmosesacudiuosombros.
—Dequeadiantaria?
—Vocêmedeixa louca, Yahmose, isso é tão típico de você!
Você não tem fibra. É dócil como uma mulher! Concorda
imediatamentecomtudooqueseupaidiz!
—Eutenhoumagrandeafeiçãopelomeupai.
— Sim, e ele se aproveita disso! Você continua aceitando a
culpahumildementeesedesculpandocomoseafalhafossesua!
Vocêdeviagritare responderassimcomo fazSobek.Sobeknão
temmedodeninguém!
—Sim,mas lembre-se, Satipy, que é emmimquemeupai
confia e não em Sobek. Meu pai não deposita confiança em
Sobek.Asdecisõescabemsempreamim,nãoaele.
—Éporissoquevocêdeviaserdefinitivamentereconhecido
comosóciodetodososbens!Vocêrepresentaseupaiquandoele
estáfora,assumeaposiçãodesacerdotedeKanasuaausência,
tudo é deixado em suas mãos; e no entanto não tem sua
autoridade reconhecida. Deveria haver um acordo apropriado.
Vocêjáéumhomempróximoàmeia-idade.Nãoédireitoqueseja
tratadoaindacomoumacriança.
Yahmosedisseduvidoso:
—Meupaigostademanterascoisassobsuasrédeas.
— Exatamente. Agrada-lhe saber que todos nesta casa
dependemdiretamentedeleedeseuscaprichosdomomento.Isto
vaimuitomalevai ficarpior.Destavez,quandoelevoltarpara
casa, você tem de ser taxativo: tem que lhe dizer que exige um
acordoescrito,queinsisteemtersuasituaçãoregularizada.
—Elenemvaiouvir.
—Entãovocêtemdefazê-loouvir.Ah,seeufossehomem!Se
estivesse no seu lugar agora, eu saberia o que fazer! Às vezes
pensoquemecaseicomumalesma.
Yahmoseenrubesceu.
—Vereioquepossofazer;sim,talvezeupossafalarcommeu
pai,pedir-lheque...
— Pedir não; você tem de exigir! Afinal você é o seu braço
direito.Nãohámaisninguémaquiparaquemelepossadeixaro
cargo,sóvocê.Sobekémuitoimpetuoso,seupainãoconfianele,
eIpyémuitopequeno.
—HátambémHori.
—Horinãoéummembrodafamília.Seupaiconfianoseu
julgamento,maselenãolegaráautoridadeamenosquesejanas
mãosdasuaprópriaestirpe.Maseujápercebo;vocêétãodócil,
tãohumilde,éleitequecorrenassuasveias,aoinvésdesangue!
Vocênãoselembrademim,nemdosseusfilhos.Enquantoseu
paiviver,nósjamaisteremosanossaprópriaposição.
Yahmosedisseentãopausadamente:
—Vocêmedespreza,nãoé,Satipy?
—Vocêmedeixacomraiva.
—Escute, eu lhe digo que falarei commeu pai quando ele
chegar.Éumapromessa.
Satipymurmuroubaixinho:
—Sim,mascomovocêvaifalar?Comoumhomemoucomo
umrato?
II
Kait estava brincando com sua filhamaismoça, a pequena
Ankh.ObebêestavasócomeçandoaandareKait encorajava-o
compalavrasengraçadas,ajoelhadaemfrenteaeleeesperando
debraçosabertosquea criança,nos seusprecários tropeções e
cambaleandonosseuspezinhos incertoschegasseatéosbraços
damãe.
Kait estavamostrandoestas realizaçõesparaSobek,masde
repente deu-se conta de que ele não estava prestando amenor
atenção,sentadoalicomsuabelafrontefranzidanumaruga.
—Oh,Sobek,vocênãoestavaolhando.Vocênãoviu.Minha
pequena,digaaoseupaiqueeleémuitomal-educadoequenão
viuvocê.
Sobekdisseirritado:
— Tenho outras coisas em que pensar... e com que me
preocupar.
Kaitagachou-se,penteandoseucabeloparatrás,retirando-o
desobreasescurassobrancelhas,ondeosdedosdeAnkhhaviam
seagarrado.
—Porquê?Háalgoerrado?
Kaitfalousemdarmuitaatençãoaoqueestavafalando.Era
umaperguntamaisoumenosautomática.
Sobekreplicoufurioso:
—Oproblemaéquenãoconfiamemmim.Meupaiestávelho
etemidéiascompletamenteforademoda,einsisteemditartoda
e qualquer ação por aqui; ele jamais vai deixar as coisas por
minhaconta.
Kaitbalançouacabeçaemurmurou:
—Sim,issoémuitoruim.
—SepelomenosYahmosetivesseumpoucomaisdefibrae
meapoiasse, talvezhouvessealgumaesperançadechamarmeu
paiàrazão.MasYahmoseétãotímido!Eleacataaopéda letra
todaequalquerordemquemeupailhedê.
Kaitatiroualgumascontasàcriançaemurmurou:
—Issoéverdade.
—Nessecasodamadeiraeutereidedizerameupaiquando
elechegarquedecidiporminhaprópriaconta.Eramuitomelhor
receberemlinhodoqueemóleo.
—Éclaroquevocêtinharazão.
— Mas meu pai é tão obstinado em fazer as coisas à sua
maneira! Ele fará uma algazarra, vai gritar: “Eu lhe disse para
fazeratransaçãoemóleo.Tudoéfeitodamaneiraerradaquando
nãoestouaqui.Vocêéummeninoimbecilquenãosabedenada!”
Quantos anos ele pensa que tenho? Não percebe que sou um
homem na plenitude e que ele já ultrapassou a dele. Suas
instruçõesesuarecusaemsancionarqualquertransaçãoquenão
seja a habitual só fazem com que nós não façamos tão bons
negóciosquantoosquepoderíamosfazer.Nemdelonge.Parase
alcançar os lucros é necessário que se corra alguns riscos. Eu
tenho visão e coragem. Meu pai não tem nem uma coisa nem
outra.
Comosolhosnacriança,Kaitmurmuroucommeiguice:
—Vocêétãoaudaciosoetãoesperto,Sobek!
—Maselehádeouviralgumasverdadesdestavez,seousar
encontraralguma falhaegritarcomigo!Amenosqueelemedê
cartabranca,eupartirei.Euvou-meembora.
Kait, com a mão estendida para a filha, voltou a cabeça
repentinamente,ogestointerrompido.
—Irembora?Paraondevocêiria?
— Para algum lugar! É insuportável ser intimidado e
importunadoporumvelhoimpacienteepresunçosoquenãome
dáamenorliberdadedeaçãoparamostrardequantosoucapaz.
— Não — disse Kait abruptamente. — Eu digo que não,
Sobek.
Elefitou-aadmirado.Lembrara-sedasuapresençaporcausa
dotomqueelahaviausado.Estavatãoacostumadoaofatodeela
serapenasumacompanhiadeacordoparasuasconversas,que
normalmenteseesqueciadasuaexistênciacomoumservivente,
pensante,umamulherhumana.
—Oquevocêquerdizer,Kait?
—Querodizerquenãovoudeixarvocêsefazerdetolo.Todos
osbenspertencemaoseupai:asterras,asplantações,ogado,a
madeira,oscamposdelinho,tudo!Quandoseupaimorrer,isto
vaisernosso—seu,deYahmoseedenossos filhos.Sevocêse
desentender com seu pai e for embora, então ele poderá dividir
entreYahmoseeIpy;elejáamamuitoaIpy.EIpysabedisso,ese
aproveita. Você não pode cair nas mãos de Ipy. Para ele não
haverianadamelhordoquevervocêbrigadocomImhotepeindo
embora.Enóstemosdepensarnosnossosfilhos.
Sobekfitou-a.Entãodeuumrisocurtoesurpreso.
— Umamulher é sempre imprevisível. Nunca imaginei que
vocêpudesseserassim,Kait,tãoferoz.
Kaitfalouséria:
—Nãodiscutacomseupai.Nãolheresponda.Sejasensato,
pormaisalgumtempo.
—Talvezvocêtenharazão,masissopodecontinuardurante
anos. O que meu pai devia fazer era juntar-nos a ele numa
sociedade.
Kaitbalançouacabeça.
—Elejamaisfaráisso.Eleadoradizer-nosqueestamostodos
comendodoseupão,quetodosnósdependemosdele,quesenão
fosseporele,todosnósestaríamossemsaberparaondeir.
Sobekolhouparaelacuriosamente.
—Vocênãogostamuitodomeupai,nãoé,Kait?
MasKaithaviasevoltadoparaocambaleantebebê.
—Venha,querida;olhe,aquiestáasuaboneca.Venhaaqui,
venha.
Sobekolhouparaasuanegracabeçaabaixada.Então,com
umacaraumpoucoespantada,retirou-se.
III
EsamandouchamarseunetoIpy.
Omenino,umbelomancebodeardesgostoso,estavadepé
na sua frente, enquanto ela o censurava com sua voz aguda,
espreitando-oatravésdeseusolhosopacos,aindaastutosapesar
dejánãoenxergaremquasenada.
—Queéissoqueandeiouvindo?Quevocênãovaifazerisso
enãovaifazeraquilo?Vocêquercuidardosbois,masnãoquer
acompanharYahmoseoutratardasplantações?Aondeéquenós
vamospararseascriançascomovocêcomeçaremadecidiroque
vãoounãofazer?
Ipyretrucoumal-humorado:
—Nãosouumacriança.Agoraestoucrescido;porqueentão
haveriadesertratadocomoumacriança?Postoparaexecutartal
ou qual trabalho sem que possa dizer uma só palavra e sem
qualquerpermissãoespecial.Yahmosedando-meordensotempo
todo.OqueYahmosepensaqueé?
—Eleéseu irmãomaisvelho,aquelequedáasordenspor
aquiquandomeufilhoImhotepestáfora.
—Yahmoseéestúpido;vagarosoeestúpido.Soumuitomais
esperto do que ele.ESobek éumestúpido também,pelo tanto
quesevangloriaefalaarespeitodequantoéesperto!Meupaijá
escreveudizendoqueeusódevofazerotrabalhoqueeumesmo
escolher...
—Oquequerdizerabsolutamentenenhum—interrompeua
velhaEsa.
—Equedevemmedarmaisdecomeredebeber,equeseele
souberqueestoudescontenteequenãofuibemtratado,queele
vaificarmuitozangado.
Eelesorriaenquantofalava,umsorrisofalso,repuxadopara
cima.
—Seufedelhomimado—disseEsaenérgica.—Voucontara
Imhotep.
—Não,minhaavó,nãovaicontar.
Seusorrisotransformou-se,tornando-seafáveleligeiramente
descarado.
—Vocêeeu,vovó,somosocérebrodafamília.
—Quedescaramento,oseu!
—Meupaiconfianoseujulgamento;elesabequeésensata.
— Pode ser. Na verdade é issomesmo,mas não preciso de
vocêparamedizerisso.
Ipyriu-se.
—Vocêestarámelhoraomeulado,vovó.
—Quehistóriaéessadelados?
—Osirmãosmaisvelhosestãomuitodesgostosos,nãosabe?
Claro que sabe. Henet lhe conta tudo. Satipy arenga com
Yahmosediaenoite,semprequepodesegurá-lo.ESobeksefez
debobocomahistóriadavendadamadeiraeestámortodemedo
demeupaificarfuriosoquandodescobrir.Comovê,minhaavó,
emumoudoisanoseuestareiassociadoameupaieele faráo
queeuquiser.
—Você,ocaçuladafamília?
—Quediferençafazaidade?Meupaiéquemdetémopoder;
eeusouaquelequesabecomomanobraromeupai!
—Estaconversaestámuitomalévola—disseEsa.
Ipydisseafável:—Vocênãoéboba,vovó...Sabemuitobem
quemeupai,apesardetodaaquelaaparência,naverdadeéum
homemfraco...
Eleparouabruptamente,aonotarqueEsatinhalevantadoa
cabeçaeestavaolhandoporcimadoseuombro.Virouacabeçae
encontrouHenetatrásdesi.
—QuerdizerentãoqueImhotepéumhomemfraco?—disse
Henet no seu tom suave e choramingante.— Ele não vai ficar
nadacontente,achoeu,aosaberquevocêfalouissodele.
Ipydeuumrisinhorápidoesemjeito.
—Masvocênãovaicontarparaele,Henet...Venhacá,Henet;
prometaquenão...queridaHenet...
HenetdeslizouemdireçãoaEsa.Levantouumpoucoavoz,
queaindamantinhaotomchoroso.
—Éclaro,eudetestocausarproblemas;vocêsabeoquanto...
soudevotadaavocêstodos.Jamaiscontareinada,amenosque
sintaqueéminhaobrigação...
—Euestavaimplicandocomavovó,sóisso—disseIpy.—
Eumesmovoucontaraele; Imhotepsabequeeu jamais falaria
umacoisadessasasério.
EleacenoufirmeerapidamenteparaHenetesaiudoquarto.
HenetolhouparaeleedisseaEsa:
—Umbommenino;delicado,bem-criado.Ecomquebravura
elefala!
Esadissecortante:
—Sua fala éperigosa.Nãogostodas idéiasque ele temna
cabeça.Meufilhoprotege-odemais.
—Equemnãoofaria?Éumrapaztãobelo,tãoatraente!
—Beloéaquelequeobelofaz—retrucouEsa.
Elasilenciouporalgunsinstanteseentãodissedevagar:.
—Henet,euestoupreocupada.
—Preocupada,Esa?Oqueapoderiapreocupar?Dequalquer
maneira,osenhorlogoestarádevoltaetudovoltaráaonormal.
—Será?Tenhoasminhasdúvidas.
Maisumavezsilenciou,eentãoindagou:
—MeunetoYahmoseestáemcasa?
—Euovi,háalgunsinstantes,vindoemdireçãoàvaranda.
—Váedigaaelequequerofalar-lhe.
Henetretirou-se.EncontrouYahmosenavarandafrescacom
suascolunasalegrementecoloridasedeu-lheorecadodeEsa.
Yahmoseatendeuaochamadoimediatamente.
Esafoidireta:
—Yahmose,muitobreveImhotepestaráaqui.
OrostogentildeYahmoseiluminou-se.
—Sim,issovaiserótimo.
—Estátudoemordem?Seusnegóciosprosperaram?
—As instruçõesdemeupai foramseguidas,namedidaem
queasituaçãoopermitiu.
—QuevocêpensadeIpy?
Yahmosesuspirou.
—Meupaiéextremamentetolerantecomtudooqueserefere
àquelerapaz.Issonãofazbemaogaroto.
—VocêtemdedeixarissobemclaroaImhotep.
Yahmosepareciaduvidoso.
Esaacrescentoufirmemente:—Euapoiareivocê.
—Algumasvezes—disseYahmosesuspirando—pareceque
nãohánadaalémdedificuldades.Mastudoestaráacertadocom
avoltademeupai.Elepoderá tomar suasprópriasdecisões.É
muitodifícil,emsuaausência,agircomoelegostaria.Sobretudo
quandonãotenhoqualquerautoridadeeapenasatuocomoseu
representante.
Esadissedevagar:
— Você é um bom filho; leal e afeiçoado. Você tem sido
tambémumbommarido,temobedecidoaoprovérbioquedizque
umhomemdeveamarasuamulherefazerumlarparaela,que
ele deve encher a sua barriga e agasalhá-la com roupas,
providenciarcarosungüentosparaoseutoucadorealegrarseu
coração por quanto tempo ela viver. Mas existe um outro
provérbio que diz o seguinte: Impeça que ela o domine. Se eu
fossevocê,meuneto,levariaestepreceitomuitoasério...
Yahmoseolhou-a,enrubesceuprofundamenteeretirou-se.
CAPÍTULOIII
TerceiroMêsdaInundação
DécimoQuartoDia
I
Por toda parte havia alvoroço e preparativos. Centenas de
pãezinhosforamassadosnacozinha,patosestavamagorasendo
cozinhados; havia um aroma de alho e outros condimentos
variados. As mulheres gritavam e davam ordens, serventes
corriamdeumladoparaoutro.
Portodoladomurmurava-se:
—Oamo,oamoestáchegando...
Renisenb, ajudandoa tecer guirlandasdepapoulas e lótus,
sentiaumaexcitaçãodefelicidadeborbulhandoemseucoração.
Seupai estava vindopara casa!Nasúltimas semanas ela tinha
imperceptivelmente escapulido de volta para sua velha vida..
Aquela primeira sensação de estranheza e falta de intimidade,
causada, segundo acreditava, pelas palavras de Hori, havia
passado.ElaeraamesmaRenisenb—Yahmose,Satipy,Sobeke
Kaiteramtodososmesmos—eagora,comonopassado,havia
todoaquelebarulhoeconfusãoporcausadavoltadeImhotep.Já
havia chegado a notícia de que estaria com eles antes do
anoitecer.Umdosservos foracolocadonasmargensdoriopara
avisar,quandooamoseaproximassee,desúbito,suavozfez-se
ouviraltaeclaradandooavisocombinado.
Renisenbdeixoucairasfloresecorreuparaforajuntocomos
outros. Todos se precipitaram em direção ao ancoradouro às
margensdorio.YahmoseeSobekjáestavamlá,juntamentecom
umapequenamultidãodealdeões,pescadoreselavradores,todos
apontandoegritandoexcitados.
Sim, lá estava o barco com sua grande vela quadrada,
subindooriorapidamente,impelidopeloventonorte.Logoatrás
vinhaobarcodecozinhalotadodehomensemulheres.Embreve
Renisenb pôde divisar seu pai sentado, segurando uma flor de
lótus;comelehaviaalguémqueelapensouserumacantora.
Agritarianamargemaumentou,Imhotepacenoucomamão,
os marinheiros erguiam e puxavam as cordas. Houve gritos de
“Bem-vindo o amo”, aclamações aos deuses e graças pelo seu
retorno; alguns momentos depois, Imhotep já estava em terra,
saudandosuafamíliaerespondendoàssaudaçõesquelheeram
dirigidasaosgritoscomomandavaaetiqueta.
—Graças aSobek, filhodeNeith, que o trouxe são e salvo
atravésdaágua!GraçasaPtah,suldomuromenfitaqueotraza
nós!GraçasaRéqueiluminaasDuasTerras!
Renisenb afastou-seumpouco, intoxicadapelo excitamento
geral.
Imhotep ergueu-se com grande pompa e repentinamente
Renisenb pensou: “Mas ele é um homem pequeno. Eu pensava
queelefossemuitomaior.”
Umsentimentoqueeraquaseumdesmaiopassouporela.
Teria seu pai encolhido? Ou seria um engano da sua
memória? Lembrava-se dele como sendo um ser esplêndido,
tirânico, amiúde barulhento, exortando a todos à direita e à
esquerda, provocando-lhe às vezes uma risada contida, porém
nunca um personagem. Mas esse homem pequeno, robusto e
idoso, parecendo tão cheio de si e ainda assim, de uma certa
maneira,nãoconvencendo—quehaviadeerradocomela?Que
pensamentosdesleaiseramessesquelhevinhamàcabeça?
Imhotep, tendo acabado com as frases sonoras e
cerimoniosas, pôde então fazer saudações mais pessoais. Ele
abraçouseusfilhos.
— Ah, meu bom Yahmose, todo sorrisos, você foi diligente
duranteaminhaausência,estoucerto...ESobek,meubelofilho,
aindaentregueàsalegriasdocoração,comovejo.EaquiestáIpy,
meu filho mais querido. Deixe-me olhar para você, de longe,
assim. Está maior, com cara de homem; comomeu coração se
alegra em poder abraçá-lo novamente! E Renisenb, minha
querida filha,mais uma vez em casa. Satipy, Kait,minhas não
menosqueridasfilhas...EHenet,minhafielHenet...
Henetestavade joelhos,abraçadaàssuaspernas,enquanto
ostensivamenteenxugavadosolhoslágrimasdealegria.
— É tão bom ver você, Henet. Você está bem. Feliz? Tão
devotadacomosempre;issomealegraocoração...
—EmeuexcelenteHori, tãoespertonassuascontasecom
suapena!Tudoprosperou?Estoucertoquesim.
Então, quando as saudações já haviam terminado e o
burburinho já se desvanecia, Imhotep ergueu a mão pedindo
silêncioedisseemvozaltaeclara:
— Meus filhos e filhas, amigos. Tenho algumas novidades
paravocês.Pormuitosanos,comotodosvocêssabem,eufuium
homemsó.Minhamulher(suamãe,YahmoseeSobek)eminha
irmã (sua mãe, Ipy) foram ambas para Osíris há muitos anos.
Para vocês, Satipy e Kait, trago então uma nova irmã para
compartilhar esta casa. Vejam, esta éminha concubina,Nofret,
quevocêsdeverãoamar,emrespeitoamim.Elaveiocomigode
Mênfis, no norte, e habitará aqui com vocês quando eume for
novamente.
Enquantofalava,trouxe-apelamãoumpoucomaisàfrente.
Ela se colocouao seu lado, a cabeça jogadapara trás, os olhos
estreitados,jovem,arroganteebela.
Renisenbpensou,comumchoquedesurpresa:“Maselaétão
nova,provavelmentenãotemnemaminhaidade!”
Nofret permaneceu praticamente imóvel, com um ligeiro
sorriso em seus lábios — havia neles mais desdém do que
qualquervontadedeagradar.
Ela tinha as negras sobrancelhas eretas e uma bela pele
bronzeada,eseuscílioseramtãolongoseespessosquemalselhe
podiamverosolhos.
A família, tomadade surpresa, fitavaperplexanumsilêncio
mudo.Comumligeirotoquedeirritaçãonavoz,Imhotepdisse:
— Venham agora, crianças, dêem as boas-vindas a Nofret.
Entãonão sabemcomo se deve saudar a concubinade seupai
quandoeleatrazparacasa?
Assaudaçõesforamfeitas,demaneiratrôpegaevacilante.
Imhotep, afetando uma emoção que escondia certa
inquietação,exclamoualegremente:
— Assim está melhor! Nofret, Satipy, Kait e Renisenb a
levarãoatéosaposentosdasmulheres.Ondeestãoasarcas?Já
foramtrazidasparaterra?Suasjóiasesuasroupasestãoasalvo.
Váeconfira.
Então,quandoasmulheresseretiraramelevirou-separaos
filhos.
—Earespeitodaterra?Correutudobem?
— Os campos baixos que foram arrendados a Nakht —
começouYahmose,masseupaiointerrompeu.
—Nadadedetalhes agora,meubomYahmose.Elespodem
esperar. Esta noite é de festa. Amanhã, você, eu e Hori nos
dedicaremos aos negócios. Venha Ipy, meu garoto, vamos para
casa.Comovocêestágrande!Suacabeçajáestáacimadaminha.
Fazendocaretas,SobekandavaatrásdeseupaiedeIpy.No
ouvidodeYahmoseelemurmurou:
—Jóiaseroupas,vocêouviu?Éparaonde foramos lucros
dasterrasdonorte.Nossoslucros.
—Quieto—sussurrouYahmose.—Nossopaipodeouvir.
—Poisqueouça.Eunãotenhomedodelecomovocêtem.
Umavez emcasa,Henet foi aosaposentosde Imhoteppara
preparar-lheobanho.Eratodasorrisos.
Imhotepabandonouumpoucosuadefensivaamabilidade.
—Bem,Henet,queachoudaminhaescolha?
Apesar de já ter resolvido levar as coisas sem se preocupar
comoquepudesseacontecer,Imhotepperceberaclaramenteque
achegadadeNofretiriaprovocarumatempestade—pelomenos
na parte feminina da casa. Henet era diferente. Uma criatura
singularmentedevotada.Elanãoodesapontou.
—Ela éumabeleza!Quecabelo, que corpo!Ela estáà sua
altura,quemaispossodizeralémdisso?Suaamadamulherque
está morta ficará feliz com sua escolha da companheira que
alegraráosseusdias.
—Vocêacha,Henet?
—Tenhocerteza, Imhotep.Depoisde ter guardado lutopor
tantosanos,jáétempodeumavezmaisgozaravida.
—Vocêaconheciabem...Tambémeupenseiquejáeratempo
devivercomoumhomemdeveviver.Mas...asmulheresdosmeus
filhoseminhafilha...elasficarãoressentidas,talvez?
— Acho melhor que não — respondeu Henet. — Afinal de
contastodosdependemdevocênestacasa.
—Issoéverdade,issoéverdade—disseImhotep.
— Sua generosidade alimenta e veste a todos eles; a
prosperidadedeleséoresultadodeseusesforços.
—Sim,realmente—Imhotepsuspirou.—Estousempreativo
para o bem deles. Muitas vezes duvido que eles tenham
consciênciadoquantomedevem.
—Vocêdeve lembrar-lhes isso—disseHenet,balançandoa
cabeça.—Eu,suahumildeedevotadaHenet,nuncameesqueço
do quanto lhe devo; mas as crianças são normalmente tolas e
egoístas, pensando talvez que são elas que são importantes,
quandonaverdadeapenasseguemasordensquevocêdá.
— Isso émais que verdade—disse Imhotep.—Eu sempre
dissequevocêeraumacriaturainteligente,Henet.
Henetsuspirou.—Seosoutrosaomenospensassemassim...
—Queéisso?Alguémlhetratoumal?
—Não, não... isto é, eles não fazem pormal. Parece lógico
paraelesqueeudeva trabalhar incessantemente (oqueeu faço
com todoprazer),masumapalavradeafetoouapreço, issoéo
querealmentefazdiferença.
— Isso de mim você sempre terá — disse Imhotep. — E
lembre-se:estaserásempreasuacasa.
—Vocêémuitogentil,amo.—Elaparoueconcluiu:—Os
escravosestãoprontoscomaáguaquentenobanheiro;assimque
você tiver tomado banho e trocado de roupa, suamãe pede-lhe
quevávê-la.
—Ah,minhamãe?Sim,sim,éclaro...
Imhotep pareceu de súbito ligeiramente embaraçado.
Recobrou-sedaconfusãodizendorapidamente:
—Naturalmente.Eujáhaviapensadonisso.DigaaEsaque
irei.
II
Esa, vestida com seu melhor vestido de linho pregueado,
lançou um olhar a seu filho que tinha um quê de sardônico
divertimento.
—Bem-vindo, Imhotep.Entãovocêvoltouparanós... enão
voltousó,segundosoube.
Imhotep,erguendo-se,respondeuligeiramenteembaraçado:
—Oh,entãovocêsoube?
—Naturalmente,acasaestáempolvorosacomanovidade.A
moçaébonita,dizemeles,ebastantejovem.
—Elatemdezenoveanose...bem,nãoparecedoente.
Esariu;umarisadamalévoladevelha.
—Ah,bem—disseela—,nãoexistebobopiorqueumbobo
velho.
—Minhaqueridamãe;eurealmentenãopossocompreender
oquevocêestádizendo.
Esarespondeucalmamente:
—Vocêsemprefoiumbobo,Imhotep.
Imhoteplevantou-seeexplodiuderaiva.Apesardesesentira
maiorpartedotempoconfortavelmenteconscientedesuaprópria
importância, sua mãe sempre conseguia ferir o âmago de seu
egotismo.Emsuapresença ele se sentiadesvanecer.Um ligeiro
brilhosarcásticonosseusolhosquasecegosnuncadeixavamde
desconcertá-lo. Sua mãe, não havia dúvidas, jamais tivera
opiniões exageradas a respeito de sua capacidade. E apesar de
saber que a estimativa que ele fazia de si mesmo é que era a
verdadeira,equeadesuamãeeraumameraidiossincrasiasem
qualquerimportância—mesmoassimsuaatitudenuncadeixava
deafetaroagradávelconceitoquetinhadesipróprio.
—Seráqueétãoforadocomumumhomemtrazerparacasa
asuaconcubina?
—Demaneira nenhuma é fora do comum.Oshomens são
normalmentetolos.
—Nãoconsigoperceberondeéqueatoliceentranestecaso.
— Por acaso você imagina que a presença dessa moça vai
trazeraharmoniaaestacasa?SatipyeKaitficarãoladoaladoe
instigarãoseusmaridos.
—O que elas têm a ver com isso? Que direito têm elas de
fazerobjeções?
—Nenhum.
Imhotep,furioso,começouaandardeumladoparaooutro.
— Será que não posso fazer o que bem entendo dentro da
minha própria casa? Acaso não sustento meus filhos e suas
esposas?Nãomedevemelesoprópriopãoquecomem?Seráque
nãolhesrepitoissoobastante?
—Vocêfalaatédemais,Imhotep.
—Maséaverdade.Todoselesdependemdemim.Todoseles!
—Evocêtemcertezaqueissoestácerto?
— Você está querendo dizer que não está certo que um
homemmantenhaasuafamília?
Esasuspirou.
—Lembre-sequeelestrabalhamparavocê.
—Vocêquerqueeulhesencorajea indolência?Éclaroque
elestrabalham.
—Elesjáestãocrescidos...pelomenosYahmoseeSobek;eu
diriamaisquecrescidos.
— Sobek não tem juízo. Faz tudo errado. Além disso é
impertinente, o que eu não suporto. Yahmose é um menino
obedienteebom...
—Bemmaisqueummenino!
—Masmesmoassimeutenhoàsvezesquerepetiramesma
coisa duas ou três vezes até que ele compreenda. Tenho que
pensar em tudo... estar em todos os lugares! Sempre que estou
foratenhoqueficarditandoaosescribas...escrevendoinstruções
completasparaquemeusfilhosascumpram...maldescanso,mal
durmo!Eagoraquevoltoparacasa,tendoconseguidoumpouco
de paz, tinha que aparecermais confusão!Mesmo você,minha
própriamãe,nega-meodireitodeterumaconcubinacomotodos
osoutros.Vocêsficamzangados...
Esaointerrompeu.
— Não estou zangada. Estou divertida. Vai ser muito
engraçadoficarolhandoparaveroquevaiacontecerdentrodesta
casa;masassimmesmodevodizerqueomelhorquevocêtema
fazerélevá-laconsigoquandoforparaonortenovamente.
—O lugardelaéaqui,naminhacasa!Eaidequemousar
maltratá-la!
—Nãosetratadisso.Maslembre-se;émuitofácilatearfogo
empalhaseca.Já foiditoacercadasmulheresque “o lugarem
queelasestãonãoébom...”
Esaparouedepoisdissedevagar:
—Nofretébela.Maslembre-sedisso:Oshomenssãofeitosde
tolospelasbelasformasdeumamulher;então,deummomento
paraoutro,elassetransformamempálidascornalinas...
Suavozsetornoumaisprofundaquandocompletou:
—Umaninharia,umpouquinho,aaparênciadeumsonho,e
nofinalamorte...
CAPÍTULOIV
TerceiroMêsdaInundação
DécimoQuintoDia
I
Imhotep escutou a explicação de Sobek sobre a venda da
madeiranumsilêncioagourento.Seurostoficoutremendamente
vermelhoesuapulsaçãopodiaservistanastêmporas.
OardeindiferençadeSobekhaviaesmaecido.Suaintenção
era passar por tudo com a cabeça erguida, mas em vista das
rugas que se iam formando na face do pai, ele se sentiu
balbucianteehesitando.
Imhotepinterrompeu-oimpacientemente.
— Sim, sim, sim; você pensou que sabiamais do que eu...
vocêseafastoudasminhasinstruções;ésempreamesmacoisa...
amenos que eu esteja aqui para tomar conta de tudo...—Ele
suspirou.—Nãoqueronempensarnoqueaconteceriacomvocês,
meninos,senãofossepormim!
Sobekprosseguiucomteimosia:
—Haviaumachancedeseterumlucromuitomaior;eucorri
orisco.Nãosepodesersempremesquinhoecauteloso!
—Nãohánadadecautelosoemvocê,Sobek!Vocêéatrevido
eaudacioso,eseujulgamentoestásempreerrado.
— Por acaso tive alguma vez a chance de exercitar o meu
poderdejulgamento?
Imhotepretrucousecamente:
— Assim você fez dessa vez; e contra as minhas ordens
expressas...
—Ordens? Será que eu sempre terei que obedecer ordens?
Eujásouumhomem.
Perdendoocontrole,Imhotepgritou:
—Queméquelhevesteealimenta?Quempensanofuturo?
Quem pensa no seu bem-estar... no bem-estar de todos vocês?
Quandoorioestavaquasesecoenosvimosameaçadospelafome,
por acasonãoarranjei comidaparamandarpara vocêsno sul?
Vocês têmmuita sorte de ter um pai como eu... que pensa em
tudo!Eoquepeçoeuemtroca?Apenasquevocêstrabalhemcom
afincoeobedeçamàsinstruçõesquelhesmando...
—Sim—gritouSobek.—Nóstemosquetrabalharparavocê
comosefôssemosescravos...paraqueassimvocêpossacomprar
ouroejóiasparasuaconcubina!
Imhotepavançoucontraeleretesadodecólera.
— Menino insolente... falar assim com seu pai! Tenha
cuidadooueulhedireiqueestanãoémaisasuacasa,evocênão
teráparaondeir!
— E se você não tomar cuidado eu irei mesmo! Eu tenho
idéias,estoulhedizendo;boasidéiasquetrariamboafortunase
eu não estivesse atado por uma cautela mesquinha e nunca
podendoagircomoquero.
—Jáacabou?
O tom de Imhotep era imperioso. Sobek, um pouco
diminuído,balbucioufurioso:
—Sim,sim.Nãotenhomaisnadaadizer...agora.
—Poisentãovácuidardogado.Nãoéhoraparaindolência.
Sobekvirou-seefoiemborafurioso.Nofretencontrava-senão
muitolongedalie,quandoelepassouporela,olhou-odeladoe
riu. À sua risada, o sangue subiu à cabeça de Sobek, que
ameaçou avançar sobre ela. Nofret permaneceu imóvel, olhando
paraelecomseusolhosmeiofechadosdecontentamento.
Sobek resmungou alguma coisa e retomou seu caminho.
Nofretriunovamenteeentãoencaminhou-sedevagarparaonde
estavaImhotep,agoracomsuaatençãovoltadaparaYahmose.
— O que o levou a deixar Sobek agir daquela maneira
estúpida?—perguntava irritado.—Vocêdevia ter-se prevenido
contraumacoisadessas!Jáeratempodevocêsaberqueelenão
temcritérioparacomprarouvender.Elepensaqueascoisasvão
acontecer exatamente da maneira que ele quer que elas
aconteçam.
Yahmosetentavasedesculpar:
—Vocênãopodeimaginaras-minhasdificuldades,pai.Você
medisseparadeixaronegóciodamadeiraporcontadeSobek,
Pareceu-me,então,quedeveriaficaraseucritérioadecisão.
— Critério? Critério? Ele não tem critério! Ele deve fazer
exatamente aquilo que eumandar... e está a seu cargo verificar
queelefaçaexatamenteisto.
Yahmoseenrubesceu.
—Eu?Masqueautoridadetenhoeu?
—Queautoridade?Aautoridadequeeulhedou.
— Mas eu não tenho uma posição real. Se eu estivesse
legalmenteassociadoavocê...
Yahmose calou-se com a entrada de Noiret. Ela estava
bocejandoebrincavacomumapapoulavermelhanasmãos.
— Você não quer vir para o caramanchão perto do lago,
Imhotep? Está fresco lá, algumas frutas esperando por você e
cervejaKeda.Vocêprovavelmentejáterminoudedarsuasordens.
—Numminuto,Nofret...numminuto.
Nofretdissenumavozmaciaeprofunda:
—Venhaagora.Queroquevocêvenhaagora...
Imhoteppareciasatisfeito,talvezcomoumaovelha.Yahmose
falourapidamente,antesqueseupaipudesseresponder.
—Masantesvamosfalarsobreisso.Éimportante.Euqueria
lhepedir...
Nofret faloudiretamentea Imhotep, virando-sede ladopara
Yahmose:
—Será que vocênãopode fazer o que querna suaprópria
casa?
ImhotepdisserispidamenteparaYahmose:
—Outrahora,filho.Outrahora.
EleacompanhouNofret,eYahmosepermaneceunavaranda
fitando-os.
Satipyveiodedentrodacasaejuntou-seaele.
—Bem—inquiriuelaavidamente—,vocêfaloucomele?O
queeledisse?
Yahmosesuspirou.
—Nãosejaimpaciente,Satipy.Aocasiãonãoera...propícia.
Satipyteveumaexclamaçãofuriosa.
—Oh,sim...issoéexatamenteoquevocêdiria!Issoéoque
vocêdirásempre.Averdadeéquevocêestácommedodoseupai.
Vocêétãotímidoquantoumaovelha...vocêbaleparaele.Nunca
vaisecolocardiantedelecomoumhomem!Entãonãoselembra
maisdas coisasquemeprometeu?Euestou lhedizendo, entre
nósdois eusoumaishomemdoquevocê!Vocêpromete... você
diz: “voupedirameupai; logo;noprimeirodia.”Eentãooque
acontece?
Satipyparouparatomarfôlegoenãoporquetivesseacabado.
MasYahmoseinterrompeu-atimidamente:
—Vocêestáerrada,Satipy.Eucomeceiafalarcommeupai...
masfomosinterrompidos.
—Interrompidos?Porquem?
—PorNofret.
—Nofret!Aquelamulher!Seupainãodeviadeixarquesua
concubinaointerrompessequandoestáfalandodenegócioscom
seu filhomais velho.Asmulheresnãosedevem intrometernos
negócios.
Yahmose provavelmente desejou que Satipy seguisse um
pouco mais à risca a máxima que ela agora enunciava tão
fluentemente,masnãolhefoidadaoportunidadeparafalar.Sua
mulherprosseguiu:
—Seupaideviaterdeixadoistobemclarodeumavez.
—Meupai—disseYahmosesecamente—nãodemonstrou
nenhumsinaldedescontentamento.
— É uma desgraça — declarou Satipy. — Seu pai foi
completamenteenfeitiçadoporela.Eleadeixa falareagircomo
bementende.
Yahmosedissepensativamente:
—Elaémuitobonita...
Satipybufou.
—Oh, elapareceumacoisa.Masnão temmodos!Não tem
berço!Elanemsepreocupacomomalqueestáfazendoatodos
nós.
—Provavelmentevocêérudecomela.
— Eu tenho sido a própria imagem da polidez. Kait e eu
tratamo-lacomtodacortesia.Oh,elanuncateránadadequese
queixarparaoseupai.Nóspodemosesperarpelahoracerta,Kait
eeu.
Yahmoselançou-lheumolharinquisitivo.
—Quevocêquerdizercom...esperarahora?
Satipyriusignificativamenteenquantoseretirava.
— O que quero dizer é uma coisa que só as mulheres
entendem; você jamais entenderia. Temos nossos meios... e
nossas armas! Nofret fará bem se moderar a sua insolência.
Afinal,noqueseresumeavidadeumamulher?Passamosavida
naaladasmulheres,atrásdacasa,juntoaoutrasmulheres.
HaviaumsignificadopeculiarnotomusadoporSatipy.Ela
concluiu:
—Seupainãoestarásempreaqui...Eleiránovamentepara
asterrasdonorte.Eentão...veremos.
—Satipy...
Satipy riu— um riso alto e forte, e voltou para dentro da
casa.
II
As crianças corriam e brincavam junto ao lago. Os dois
garotos de Yahmose eram crianças delicadas e bonitas, que se
pareciammaiscomSatipydoquecomopai.Aliestavamtambém
os três de Sobek— omenor deles apenas engatinhava. E Teti,
umacriançadequatroanos,sériaelinda.
Elasriamegritavam,jogavambola—porvezesbrigavameos
gritosderaivaeramaltosepenetrantes.
Sentado, degustando sua cerveja com Nofret a seu lado,
Imhotep murmurou: — Como as crianças gostam de brincar
junto à água. Lembro-me de ter sido sempre assim. Mas, por
Hathor,comosãobarulhentas!
Nofretrespondeurapidamente:
—Sim...eistopoderiasertãocalmo...Porquevocênãolhes
pede que saiam enquanto está aqui? Afinal, quando o dono da
casa quer descansar, um certo respeito deve ser demonstrado.
Vocênãoconcorda?
—Eu... bem— Imhotephesitou. A idéia era-lhenova,mas
agradável.—Elasrealmentenãomeincomodam—afirmousem
muitaconvicção.
Eacrescentoudebilmente:
— Elas estão acostumadas a brincar aqui sempre que lhes
apraz.
—Quandovocêestáfora,sim—apressou-seNofretemdizer.
—Mascreio,Imhotep,levandoemconsideraçãotudooquevocê
fazporsuafamília,queelesdeveriammostrarmaisrespeitopela
suadignidade,pela sua importância.Você édemasiadogentil e
complacente.
Imhotepobservouplacidamente:
—Estatemsidosempreaminhafalha.Nuncafaçoquestão
deformalidades.
—Portantoessasmulheres,asesposasdeseusfilhos,tiram
vantagem de sua bondade. É preciso que fique bem claro que,
quando você vem aqui para repousar, deve haver silêncio e
tranqüilidade.VoudizeraKaitque leveseusfilhosdaqui...eas
outrascriançastambém.Assim,vocêterápazealegria.
—Você éumamoçaatenciosa,Nofret; sim,umaboamoça.
Vocêestásemprepensandonomeuconforto.
Nofretmurmurou:—Seuprazerétambémomeu.
Levantou-see foi tercomKait,queestavaajoelhada juntoà
água,brincandocomumbarquinhoqueseusegundo filho,um
meninodearesmimados,estavatentandofazerflutuar.
Nofretdissesimplesmente:
—Quertirarascriançasdaqui,Kait?
Kaitolhou-asemcompreender.
— Tirá-las daqui? Como assim? Este é o lugar onde elas
semprebrincam.
—Nãohoje. Imhotepquer tranqüilidade.Suas crianças são
barulhentas.
OsanguesubiuàfacedeKait:
—Vocêdeveriatomarcuidadocomoquediz,Nofret!Imhotep
gostadeverosfilhosdeseusfilhosbrincaraqui.Eleodisse.
—Nãohoje—retrucouNofret.—Imhotepmandoudizer-lhe
quelevedaquitodaessaninhadabarulhentaparaqueelepossa
ficarempaz...comigo.
—Comvocê...—Kait interrompeubruscamentea fraseque
quase lhe escapava dos lábios. Levantou-se e dirigiu-se para o
lugarondeImhotepestavareclinado.Nofretaseguiu.
Kaitfalousemrodeios:
—Suaconcubinadissequedevolevarascriançasdaqui.Por
quê?Queestãofazendoelasdeerrado?Porquerazãodevemser
retiradas?
— Pensei que a vontade do senhor da casa fosse razão
suficiente—disseNofretsuavemente.
— Exato, exato — confirmou Imhotep irritado. — Por que
deveriaeudarrazões?Dequeméestacasa?
—Imaginoserelaquemdesejaascriançasforadaqui—Kait
voltou-se,eolhouNofretdecimaabaixo.
—Nofretpensanomeuconforto,nomeuprazer—retrucou
Imhotep.—Ninguémmaisnestacasalevaissoemconsideração...
exceto,talvez,apobreHenet.
—Entãoascriançasnuncamaisdeverãobrincaraqui?
—Nãoquandoeuaquivierparadescansar.
AraivadeKaitexplodiuderepente:
— Por que você permite que esta mulher o faça voltar-se
contra seupróprio sangue? Por que deve ela chegar e interferir
noshábitosdacasa,naquiloquesemprefoifeito?
Imhotepcomeçouagritar.Sentiunecessidadedesedefender.
—Soueuquedigooquedeveserfeitoaqui,nãovocê!Vocês
formam uma aliança para fazer exatamente o que querem, de
maneiraquetudolhesconvenha.Equandoeu,odonodacasa,
aqui me encontro, nenhuma consideração é dada aos meus
desejos. Mas eu sou senhor aqui, saiba disto. Estou
constantementeplanejandoetrabalhandoparaoseubem-estar,
mas acaso recebo gratidão, sãomeus desejos respeitados? Não.
Primeiro é Sobek, insolente e desrespeitoso, e agora você, Kait,
comsuaarrogância.Euosamparoparaquê?Cuidado,oudeixo
de sustentá-los.Sobek fala empartir; pois que vá,mas levando
vocêeascriançascomele.
Por um momento Kait ficou imóvel. Não havia expressão
alguma no seu rosto. Então, numa voz desprovida de qualquer
emoção,disse:
—Voulevarascriançasparadentrodecasa...
Deuumoudoispassos,parandopertodeNofret.Disseentão
emvozbaixa:
— Isso é coisa sua, Nofret. Não esquecerei. Não, não
esquecerei.
CAPÍTULOV
QuartoMêsdaInundação
QuintoDia
I
Imhotep respirou satisfeito ao terminar suas obrigações
cerimoniais como Sacerdote Mortuário. O ritual fora observado
nos mínimos detalhes — pois que Imhotep era, em todos os
sentidos, um homem extremamente consciente. Efetuou a
libação,queimouincensoefezasoferendascomunsdecomidae
bebida.
Agora, na aconchegante sombra da câmara do rochedo
adjacente, onde Hori esperava por ele, Imhotep voltava a ser o
proprietário de terras e o homem de negócios. Juntos, os dois
homens discutiam negócios, preços predominantes e os lucros
provenientesdacolheita,dogadoedamadeira.
Durante meia hora Imhotep balançou a cabeça com
satisfação.
— Você tem uma excelente cabeça para negócios, Hori —
disse.
Ooutrosorriu.
—Devoter,Imhotep,poistenhosidoseuhomemdenegócios
pormuitosanos.
—Emuitofiel.Agora,tenhoalgoadiscutircomvocê.Trata-
sedeIpy.Elesequeixadeestaremposiçãosecundária.
—Eleaindaémuitojovem.
— Mas demonstra grande habilidade. Ipy sente que seus
irmãos nem sempre são justos para com ele. Sobek, ao que
parece,é rudeearrogante;eacontínuaprecauçãoe timidezde
Yahmose o aborrecem. Ipy é um espírito altivo. Não gosta de
receberordens.Aindamaisporqueacreditaquesomenteeu,seu
pai,temodireitodecomandar.
—Issoéverdade—disseHori.—Emesurpreendequeseja
esseopontofracodapropriedade.Possofalarlivremente?
—Claro,meu caroHori, suaspalavras são sempre gentis e
ponderadas.
— Pois bem. Quando você está fora, Imhotep, deveria ficar
alguémaquicomautoridadereal.
—ConfiomeusnegóciosavocêeaYahmose.
—Seiqueatuamosporvocêemsuaausência,masissonão
basta. Por que não designar um de seus filhos como sócio...
associá-loavocêatravésdeumacordolegal?
Imhotepfranziuatestaenquantopasseavadeumladopara
outro.
— Qual de meus filhos você sugere? Sobek tem modos
autoritários,maséinsubordinado;nãopoderiaconfiarnele.Seu
temperamentonãoébom.
—EstavapensandoemYahmose.Éseufilhomaisvelho.Seu
temperamentoéafetuosoegentil.Édevotadoavocê.
— Sim, ele tem bom temperamento, mas é muito tímido,
muitosubmisso.Elesedáatodos.Agora,seIpyfosseapenasum
poucomaisvelho...
Horidisseprontamente:
—Émuitoperigosodarpoderesaalguémtãojovem.
— Claro, claro... bem, Hori, vou pensar no que me disse.
Yahmose,semdúvida,éumbomfilho...obediente...
AoqueHoriretrucoucalmamasanimadoramente:
—Suadecisão,creio,serásábia.
Imhotepfitou-ocuriosamente.
—Queestápassandopelasuacabeça,Hori?
Horidisselentamente:
—Acabeidedizerqueéperigosodarpoderesaumhomem
quando ele émuito jovem.Mas tambéméperigosodá-los tarde
demais.
— Você quer dizer que ele está demasiado acostumado a
obedecer ordens ao invés de dá-las Bem, isso deve ser
considerado.
Imhotepsuspirou:
— É tarefa difícil governar uma família. As mulheres, em
particular,sãodifíceisdeselidar.Satipytemumtemperamento
indisciplinável,Kaitestásempremal-humorada.Masdeixeibem
claro que Nofret tem de ser tratada de forma adequada. Creio
que...
Calou-se. Um escravo subia com dificuldade a estreita
passagem.
—Oquehá?
—Senhor,chegouumabarca.UmescribadenomeKameni
trazumamensagemdeMênfis.
Imhoteplevantou-seagitado.
—Maisproblemas!—exclamou.—TãocertoquantoRáestá
nocéu,vêmaímaisproblemas!Anãoserqueeuestejaporperto
paracuidardascoisas,tudovaimal.
ImhotepdesceuocaminhocompassosfirmeseHorisentou-
sequieto,observando-o.
Haviasinaisdeperturbaçãoemsuaface.
II
Renisenb vagava sem rumo ao longo da margem do Nilo,
quandoouviugritoseagitaçãoeviupessoascorrendoemdireção
aoatracadouro.
Correuejuntou-seaelas.Nobarcoqueseaproximavahavia
um jovem e, porum instante, quando o viu delineado contra a
forteclaridade,seucoraçãoparou.
Umpensamentoloucoefantásticopassou-lhepelamente.
“ÉKhay”,pensou.“KhayvoltoudoMundodosMortos.”
Renisenb riu dessa idéia supersticiosa. Porquanto em sua
própriaimaginação,elasempreviraKhaynavegandopeloNiloe
esteera,realmente,umhomemdamesmacompleiçãodeKhay—
fora apenas uma fantasia. Ele eramais jovemdo queKhay, de
uma elegância sóbria e simples, possuidor de uma expressão
alegreerisonha.
Vinha, explicou-lhes, das propriedades de Imhotep situadas
aonorte.Eraumescribaechamava-seKameni.
Umescravofoiavisaropai,enquantoKamenieraconduzido
atéacasa,ondelheserviramcomidaebebida.EmbreveImhotep
chegoueiniciaram-seosdiálogoseasconsultas.
O essencial da conversa foi levado aos aposentos das
mulheres porHenet, como sempre, a fornecedora de novidades.
RenisenbàsvezesseperguntavacomoHenetconseguiasaberde
tudo.
Kameni, ao que parece, era um jovem escriba a serviço de
Imhotep — filho de um dos primos deste. Kameni havia
descoberto certas disposições fraudulentas — uma falsificação
nos cálculos — e, já que o assunto se ramificava e envolvia o
administradordapropriedade,acharaporbemvirpessoalmente
aosulparaorelato.
Renisenbnãoestavamuitointeressada.Kameniforahábilem
terdescobertotudo,pensou.Seupaificariasatisfeitocomele.
OresultadoimediatodoassuntofoiqueImhotepultimouos
preparativosparasuapartida.Elenãotinhaintençõesdesairpor
uns doismeses; agora, porém, quantomais rápido estivesse no
local,melhor.
Todas as pessoas da casa foram reunidas e ouviram
inumeráveisrecomendaçõeseexortações.Deveriamcumpriresta
ou aquela ordem. Yahmose não deveria, sob hipótese alguma,
fazer istoouaquilo.Sobekdeveriaseromaisprudentepossível
comrelaçãoadeterminadacoisa.Eratudomuitofamiliar,pensou
Renisenb; Yahmose prestava atenção, Sobek estava mal-
humorado.Hori,comosempre,calmoeeficiente.Assolicitaçõese
impertinências de Ipy foram deixadas de lado de forma mais
bruscadoqueousual.
— Você é jovem demais para ter uma mesada separada.
Obedeça a Yahmose. Ele sabe de meus desejos e ordens. —
Imhotep colocou a mão no ombro de seu filho mais velho. —
Confio em você, Yahmose. Quando voltar, falaremos novamente
sobreumasociedade.
Yahmosecoroudeprazereempertigou-semaisumpouco.
Imhotepcontinuou:
—Cuideparaquetudocorrabemduranteaminhaausência.
Cuide para que minha concubina seja bem tratada... com a
devidahonraerespeito.Elaficarásobseuscuidados.Vocêdeve
controlaracondutadasmulheresdacasa.CuideparaqueSatipy
refreiesua língua.Cuide, também,paraqueSobek instruaKait
devidamente. Renisenb, também, deve agir cortesmente com
relaçãoaNofret.Enenhumagrosseriadeveser feitaparanossa
boa Henet. Bem sei que as mulheres a julgam, por vezes,
cansativa.Elaestáconoscohámuitotempoeseachanodireito
dedizermuitascoisas,nemsemprebem-vindas.Elanãopossui,
eusei,nembelezanemsaber,maséfiel,lembrem-se,esemprefoi
devotada aos meus interesses. Não a quero desprezada ou
maltratada.
— Tudo será feito segundo a sua vontade, pai — disse
Yahmose.—MasHenet,porvezes,criaproblemasporcausade
sualíngua.
—Ora,bobagem!Todasasmulheressãoassim.EHenetnão
é pior do que as outras. Agora, com relação a Kameni, ele
permaneceráaqui.Nósconseguiremosoutroescribaeelepoderá
ajudarHori,comrelaçãoàterraquealugamosaYaii...
Imhotepprosseguiucommeticulososdetalhes.
Quando, finalmente, tudo estava pronto para a partida,
Imhotep sentiuum súbito temor. Afastou-se comNofret e disse
cominsegurança:
— Nofret, você está contente em ficar? Não seria, talvez,
preferívelqueviessecomigo?
Nofretbalançouacabeçaesorriu.
—Vocênãoficaráausentepormuitotempo—disse.
—Trêsmeses,talvezquatro.Quemsabe?
—Comovê,nãoserámuito.Euestareibemaqui.
Imhotepfalouagitado:
—OrdeneiaYahmose,bemcomoatodososmeusfilhos,que
vocêdeverecebertodaconsideração.Aidelessevocêtiveralgode
queselamentar!
—Eles farão o que você diz, estou certa, Imhotep—Nofret
calou-se. E então disse: — Existe aqui alguém de inteira
confiança? Alguém verdadeiramente devotado aos seus
interesses?Alguémquenãosejadafamília?
— Hori... meu bom Hori. Ele é, de certo modo, meu braço
direitoetambémumhomemdebomsensoediscernimento.
Nofretdissecalmamente:
—EleeYahmosesãocomoirmãos.Talvez...
—HáKameni.Eletambéméumescriba.Ordenareiaeleque
se ponha a seu serviço. Se você tiver do que se queixar, ele
escreverásuaspalavraseasenviaráamim.
Nofretassentiucomprazer.
— Bem pensado. Kameni vem do Norte. Conhecemeu pai.
Nãosedeixaráinfluenciarporconsideraçõesfamiliares.
—EHenet—acrescentouImhotep.—HáHenet.
—Sim—disseNofretpensativa.—HáHenet.Eque tal se
vocêfalarcomelaagora,naminhafrente?
—Excelenteidéia.
Henet foi chamada e veio com sua costumeira ansiedade
bajuladora.Nãoparavadese lamentarpelapartidade Imhotep.
Eleainterrompeuabruptamente.
—Sim,sim,minhaboaHenet,masdeveserassim.Souum
homem que raramente pode contar com um pouco de paz e
descanso. Devo trabalhar incessantemente pela minha família,
emboraelespoucoapreciemisso.Masagoradesejofalarcomvocê
muitoseriamente.Seiquevocêmeamafieledevotadamente,e
querolhedeixarnumpostodeconfiança.CuidedeNofret;elame
émuitocara.
—Oquequerquelhesejacaro,meuamo,tambémmeécaro
—replicouHenetfervorosamente.
— Muito bem. Você então irá se dedicar aos interesses de
Nofret?
HenetsevoltouparaNofretqueaolhavadeolhosbaixos.
—Nofretémuitobonita—disse.—Esteéoproblema.Épor
issoqueasoutrasestãocomciúme;masvou tomarcontadela.
Tratarei de preveni-la de tudo quanto elas disserem ou fizerem.
Podecontarcomigo.
Houveumapausaenquantoosolhosdasduasmulheresse
encontraram.
—Podecontarcomigo,Nofret—repetiuHenet.
UmligeirosorrisoaflorounoslábiosdeNofret—umcurioso
sorriso.
—Sim, eu compreendo,Henet—disse.—Creio que posso
confiaremvocê.
Imhoteppigarreoualto.
—Creio, então,estar tudoarranjado;sim, tudosatisfatório.
Organização:essetemsidosempremeupontoforte.
Ouviu-seumarisadaseca, Imhotepvoltou-sebruscamentee
deucomsuamãeparadanaentradadoaposento.Elaseapoiava
numbastãoepareciamaisáridaemalevolentedoquenunca.
—Quefilhomaravilhosoeutenho—observou.
—Nãodevomeatrasar;tenhoquedaralgumasinstruçõesa
Hori... — E murmurando consigo mesmo, Imhotep deixou
rapidamenteorecinto.Conseguiuevitarosolhosdesuamãe.
EsadirigiuumimperiosoacenodecabeçaaHenet—eHenet
deslizouobedientementeparafora.
Nofrethaviaselevantado.ElaeEsaseolhavam.Esadisse:—
Entãomeufilhoestá lhedeixando?Seriamelhorquevocê fosse
comele,Nofret.
—Elequerqueeufique.
A voz de Nofret era suave e submissa. Esa soltou uma
gargalhadapenetrante.—Depouco adiantaria se você quisesse
ir. E por que você não quer ir?Eunão compreendo.O que há
para você aqui? Você é uma moça que viveu em cidades, que
viajou, talvez. Por que escolher estamonotonia do dia após dia
entreaquelesque,paraserfranca,nãogostamdevocê...sim,que
lhetêmaversão?
—Entãovocêtemaversãoamim?
Esabalançouacabeça.
—Não,eunãotenhoaversãoavocê.Eusouvelhae,mesmo
quenãoenxerguetãobem,possoverabelezaegostardela.Você
ébonita,Nofret,esuavisãoagradaameusvelhosolhos.Pelasua
belezadesejo-lheobem.Estoulheprevenindo.Vácommeufilho
páraonorte.
Nofrettornouadizer:—Elequerqueeufique.
O tom submisso era, agora, totalmente impregnado de
zombaria.Esadisserispidamente:
—Vocêtemalgumpropósitoempermaneceraqui.Qualserá?
Gostariadesaber.Muitobem,fiquecomele.Massejacuidadosa.
Ajadiscretamente.Enãoconfieemninguém.
Virou-se rapidamente e saiu. Nofret ficou imóvel. Muito
lentamenteseuslábiossecurvaramparacima,numlargosorriso
felino.
CAPÍTULOVI
PrimeiroMêsdeInverno
QuartoDia
I
Renisenb havia se habituado a subir para o Túmulo quase
todos os dias. Às vezes Yahmose eHori lá estavam, às vezes só
Horieàsvezesnãohavianinguém;masRenisenbestavasempre
cônsciadeumcuriososentimentodealívioepaz,umsentimento
que era quase de libertação. Ela preferia quandoHori estava lá
sozinho.Haviaalgoemsuagravidade,nomodocomoaceitavaa
sua vinda sem nada perguntar, que lhe dava uma estranha
sensaçãodecontentamento.Elasesentavanasombradaentrada
dacâmaradepedra,comasmãosemtornodo joelho,eolhava
parao cinturãoverdedasplantações, ondeoNilomostravaum
pálidoreflexoazuladoe,maisalém,paraumaextensãodepálidos
e difusos tons castanhos, cremes e rosas que se misturavam
difusamente.
Viera até ali, pela primeira vez, já fazia algunsmeses, num
momentâneo desejo de escapar a um mundo de intensa
feminilidade. Desejava calma e companheirismo — e ali os
encontrava. A ânsia de escapar ainda a possuía, mas não era
maisumamerareaçãoàagitaçãoepressãodadomesticidade.Era
algomaisdefinido,maisalarmante.
CertodiadisseaHori:—Estoucommedo...
— Por que você tem medo, Renisenb? — Ele a estudava
gravemente.
Renisenb levou umminuto ou dois pensando. Disse então
devagar:
—Vocêselembradeter-meditoumavezquehaviadoistipos
demal,umquevinhadeforaeoutroquevinhadedentro?
—Sim,lembro-me.
— Você estava falando, como disse depois, sobre as pragas
queatacamasfrutaseasplantações,maseuestivepensando;éa
mesmacoisacomaspessoas.
Horiassentiudevagarcomacabeça.
—Entãovocêodescobriu...Sim,vocêestácerta,Renisenb.
Renisenbdisseabruptamente:
— Está acontecendo agora... lá embaixo, na casa. O mal
veio...defora...defora.Eeuseiquemotrouxe.ÉNofret.
Horidisselentamente:
—Vocêpensaassim?
Renisenbacenouvigorosamente.
—Sim,sim,seioqueestoufalando.Escute,Hori,quandoeu
subi aqui uma vez e lhe disse que tudo estava igual, mesmo
quanto às brigas de Satipy e Kait... aquilo era verdade. Mas
aquelasbrigas,Hori,nãoerambrigasdeverdade.Querodizerque
Satipy e Kait gostam delas... são como passatempos; nenhuma
das mulheres sentia verdadeiramente raiva uma da outra. Mas
agora é diferente. Agora elas não apenas dizem coisas que são
rudes e desagradáveis; elas dizem coisas que elas querem que
machuquem.Equandovêemqueumacoisamachuca,entãoelas
se alegram!Éhorrível,Hori, horrível!OntemSatipy estava com
tanta raiva que espetou um longo alfinete de ouro no braço de
Kait.EhádoisoutrêsdiasKaitdeixoucairumapesadapanela
decobrecheiadegordurafervendonopédeSatipy.Eéamesma
coisaportodaparte:Satipy insultaYahmoseaté tardedanoite,
todos nós podemos ouvi-la. Yahmose parece doente, exausto e
acossado. E Sobek vai para a aldeia e fica lá commulheres, e
depois voltaparacasabêbedoe grita e se gabadoquanto ele é
esperto!
— Algumas dessas coisas são verdade, eu sei— disse Hori
lentamente.—MasporquehaveriavocêdeculparNofret?
— Porque é culpa dela! São sempre as coisas que ela diz,
pequenascoisas,quecomeçamtudo.Elaécomoavaracomque
seaguilhoaostouros.Elaéesperta,também,sabeexatamenteo
quedizer.ÀsvezesachoqueéHenetquecontaparaela...
—Sim—disseHoripensativamente.—Podeser.
Renisenbestremeceu.
— Eu não gosto de Henet. Detesto a maneira como ela se
arrasta.Elaétãodevotadaanóstodos,emesmoassimninguém
quersuadevoção.Comopôdeminhamãetê-latrazidoparacáe
tergostadotantodela?
— Quanto a isso temos somente a palavra de Henet —
retrucouHorisecamente.
—PorquedeveriaHenetgostar tantodeNofret eatendê-la,
cochichandoebajulando-a?Oh,Hori,estouamedrontada!Odeio
Nofret!Gostariaqueelasefosse.Elaébela,cruelemá!
—Vocêéumacriança,Renisenb.
EHoriacrescentoucalmamente:
—Nofretestávindoparacá.
Renisenb voltou a cabeça. Ambos viram Nofret subindo o
caminho íngreme que levava ao penhasco. Ela sorria consigo
mesmaecantarolavaumapequenacanção.
Quando ela alcançou o lugar onde eles estavam, olhou em
tornoesorriu.Eraumsorrisodedivertidacuriosidade.—Então
éparaaquiquevocêfogetodososdias,Renisenb?
Renisenb não respondeu. Tinha o sentimento de raiva e
derrotadeumacriançacujoesconderijoforadescoberto.
Nofretolhouemtornodesinovamente.
—EntãoéesteofamosoTúmulo?
—Sim,Nofret—respondeuHori.
Nofretencarou-o,suabocafelinaCurvando-senumsorriso.
—Nãotenhodúvidasdequevocêoachalucrativo,Hori.Você
éumbomhomemdenegócios,segundoouvidizer.
Haviaumsinaldemalícianasuavoz,masHoripermaneceu
impassível,sorrindoquietaegravemente.
—Élucrativoparatodosnós.AMorteésemprelucrativa...
Nofretteveumpequenoestremecimentoenquantoolhavaem
torno, seus olhos correndo por sobre as mesas de oferenda, a
entradaparaosantuárioeaportafalsa.
Eladeuumgritoagudo:
—OdeioaMorte!
—Poisnãodevia.—OtomdeHorieracalmo:—AMorteéa
principalfontederiquezaaquinoEgito.AMortetrouxeasjóias
quevocêestáusando,Nofret.AMortealimentaevestevocê.
Nofretoencarou:
—Oquevocêquerdizer?
—QuerodizerqueImhotepéosacerdotedeKa;umsacerdote
mortuário.Todasassuasterras,seugado,suamadeira,olinho,
acevadasãoodotedoTúmulo.
Fezumapausaecontinuoupensativamente:
— Somos um povo estranho, nós, os egípcios. Amamos a
vida...emesmoassimcomeçamosbemcedoaplanejaramorte.
ParaelaéquevaiariquezadoEgito;paraaspirâmides,paraos
túmuloseparaosdotesdostúmulos.
Nofretretrucouviolentamente:
— Você quer parar de falar sobre a morte, Hori? Eu não
gosto!
—Porquevocêéumaverdadeiraegípcia...porquevocêamaa
vida, porque, às vezes, você sente a sombra da morte muito
próxima...
—Pare!
Nofretvoltou-separaeleabruptamente.Depois,sacudindoos
ombros,virou-seecomeçouadescerpelocaminho.
Renisenbdeuumsuspirodealívioesatisfação.
—Estoucontentequeelatenhaido—dissesingelamente.—
Vocêassustou-a,Hori.
—Sim.Assusteivocê,Renisenb?
—Não.—Renisenbpareciaumpoucoincerta.—Oquevocê
disse é verdade, apenas eu nunca havia pensado nisso dessa
maneira.MeuPaiéumsacerdotemortuário.
Horidissecomrepentinaamargura:
—TodooEgitoéobcecadopelamorte!Evocêsabeporque,
Renisenb?Porquetemososolhosnosnossoscorpos,masnãoos
temos nas nossas mentes. Não podemos conceber uma vida
diferentedesta...umavidaapósamorte.Sópodemosvisualizar
uma continuação daquilo que conhecemos. Não temos uma
verdadeiraféemDeus.
Renisenbolhavaparaeleespantada.
— Como você pode dizer isso, Hori? Pois se temos tantos,
tantos Deuses... tantos que não posso enumerá-los a todos.
Ontemmesmo,ànoite,falávamosãrespeitodosDeusesqueeram
os nossos preferidos. Sobek era todo por Sakhmet e Kait reza
sempreparaMeskhant.KamenijuraporThoth,comoénatural,
sendo um escriba. Satipy está com Hórus, com sua cabeça de
falcão, e também comonossoMereseer. Yahmose diz que Ptah
deveseradoradoporqueele faztodasascoisas.Eumesmaamo
Isis.AHenetétodapelonossoDeuslocalAmon.Elaafirmaque
existem profecias entre os sacerdotes que dizem que algum dia
AmonhádeseromaiorDeusemtodooEgito...porissoelalhe
trazoferendasagora,enquantoeleaindaéumpequenoDeus.E
há tambémRê, oDeus-Sol, eOsíris, diante de quemo coração
dosmortosépesado.
Renisenb fez uma pausa, sem fôlego. Hori estava sorrindo
paraela.
— E qual é a diferença, Renisenb, entre um Deus e um
homem?
Elaolhouparaele.
—OsDeusessão...elessãomágicos!
—Issoétudo?
—Nãoentendooquevocêestáquerendodizer,Hori.
—Querodizerque,paravocê,umDeuséapenasumhomem
ou uma mulher que pode fazer certas coisas que homens e
mulheresnãopodemfazer.
—Vocêdizcoisastãoestranhas!Nãoconsigoentendê-lo.
Ela olhava para ele perplexa — então, olhando de relance
parabaixo,emdireçãoaovale,suaatençãoficoupresaemoutra
coisa.
—Veja!—exclamou.—Nofretestá falandocomSobek.Ela
estárindo.Oh!...—eladeuumsuspirorepentino.—Nãoénada.
Pensei que ele fosse atacá-la. Ela está voltando para casa e ele
estávindocáparacima.
Sobekchegouparecendoumanuvemcarregada.
—Queumcrocodilodevoreaquelamulher!—gritouele.—
Meupaifoimaisestúpidodoquedecostume,quandoaescolheu
comoconcubina!
— O que ela disse para você? — perguntou Hori
curiosamente.
—Elameinsultou,comodecostume!Perguntousemeupai
tinha me incumbido de mais alguma venda de madeira. Sua
línguaéviperina.Gostariadematá-la.
Elecontinuoupelaplataformae,pegandoumapedra,atirou-
a em direção ao vale. O som que a mesma fazia batendo no
penhascopareciaagradá-lo.Apanhouumapedramaioresaltou
para trás, quando uma cobra que se enrolara embaixo dela
levantou a cabeça. A cobra empinou-se, sibilando, e Renisenb
pôdeverqueeraumanaja.
Pegando um pesado pedaço de pau, Sobek atacou-a
furiosamente.Umgolpecerteiroquebrou-lheodorso,masSobek
continuou retalhando-a, a cabeça jogada para trás, os olhos
faiscando, e, em voz baixa, resmungou alguma coisa que
Renisenbnãocompreendeu.
Elagritou:—Pare,Sobek,pare...estámorta!
Sobekparou,jogouopedaçodepauforaeriu.
—Menosumacobravenenosanomundo.
Ele riudenovo, seubomhumor restaurado, edesceunum
tropelpelocaminhoabaixo.
Renisenbdisseemvozbaixa:—AchoqueSobek...gostade
matarcoisas!
—Sim.
Não havia surpresa na resposta. Hori estava apenas
reconhecendo um fato que ele evidentemente já conhecia bem.
Renisenbvirou-separaolharparaele.Dissevagarosamente:
— Cobras são perigosas... mas como aquela naja parecia
bela...
Olhouparabaixo,paraoseucorpoquebradoeretorcido.Por
algumarazãodesconhecida,sentiuumapontadanocoração.
Horidissecomoquesonhando:
— Lembro-me de quando éramos todos crianças... e Sobek
atacouYahmose.Yahmoseeraumanomaisvelho,masSobekera
maioremaisforte.Eletinhaumapedraebatiacomelanacabeça
deYahmose.Suamãeveiocorrendoeosseparou.Lembro-mede
como ela permaneceu olhando para Yahmose... e de como ela
gritou: “Você não pode fazer uma coisa dessas, Sobek... é
perigoso! Eu lhe digo, é perigoso!” — Ele calou-se e então
continuou: — Sobek era muito bonito... Eu pensava assim
quandocriança.Vocêécomoele,Renisenb.
— Sou? — Renisenb sentiu-se satisfeita, aconchegada. Ela
entãoperguntou:
—Yahmoseficoumuitomachucado?
—Não,nãoeratãogravequandoparecia.Sobekficoumuito
doentenodiaseguinte.Podetersidoalgumacoisaqueeletenha
comido,massuamãedisseque tinhasidosuaviolênciaeosol
forte;estávamosnomeiodoverão.
— Sobek tem um temperamento terrível — disse Renisenb
pensativamente.
Elaolhounovamenteparaosrestosdanajaevoltou-secom
umarrepio.
II
Quando Renisenb voltou para casa, Kameni encontrava-se
sentadonavarandadafrentecomumrolodepapiro.Eleestava
cantandoeelaparouporummomentoparaouvirsuaspalavras.
—IreiaMênfis—cantouKameni.—IreiaPtah,oSenhorda
Verdade. E direi a Ptah: Dê-me minha irmã esta noite. A
correnteza é vinho, Ptah é o seu vermelho, Sekhmet seu lótus,
Earitseubotão,Nerertumsuaflor.EudireiaPtah:Dê-meminha
irmã estanoite. A aurora surge através de suabeleza.Mênfis é
umpratodemaçãsdoamorcolocadodiantedesuaface...
EleolhousorrindoparaRenisenb.
—Gostademinhacanção,Renisenb?
—Oqueéisso?
—Éumacançãodeamor,deMênfis.
Eleconservouseusolhosnosdela,cantandosuavemente:
—Seusbraçosestãorepletosderamosdelouro,seuscabelos
pesadosdeungüento.ElaécomoaPrincesadoSenhordosdois
Mundos.
UmruborsubiuàsfacesdeRenisenb.Dirigiu-serapidamente
àcasa,quasecolidindocomNofret.
—Porquetantapressa,Renisenb?
AvozdeNofrettinhaalgodeferino.Renisenbtimidamentea
olhou,surpresa.Nofretnãosorria.Seurostoeraseveroetenso,e
Renisenbnotouquesuasmãosestavamcerradas.
—Desculpe,Nofret,eunãoavi.Émuitoescuroaquiquando
sevemdaclaridadedefora.
— Sim, é escuro aqui... — Nofret fez uma pausa. — Seria
mais agradável lá fora, na varanda, ouvindo-se a música de
Kameni.Elecantabem,nãoacha?
—Sim,sim,elecantamuitobem.
— E no entanto, você não ficou escutando. Kameni ficará
desapontado.
Um calor subiu novamente às faces de Renisenb. O olhar
zombeteiroefriodeNofretfê-lasentir-sedesconfortável.
—Nãogostadecançõesdeamor,Renisenb?
—Fazalgumadiferençaparavocê,Nofret,aquilodequegosto
oudeixodegostar?
—Comoque,então,ogatinhotemunhasafiadas.
—Quevocêquerdizercomisso?
Nofret riu.— Você não é tão boba como parece, Renisenb.
QuerodizerquevocêachaKamenibonito.Issoiráagradá-lo,sem
dúvida.
— Você é realmente detestável — retrucou Renisenb
impetuosamente.
Ela passou por Nofret e se dirigiu para os fundos da casa.
Escutou a gargalhada zombeteira da moça. Mas, além do riso,
soando claro em suamente, havia o eco da voz deKameni e a
melodiaquehaviacantadocomosolhospostosemsuaface.
III
Duranteanoite,Renisenbteveumsonho.
Ela estava com Khay, navegando na Barca dos Mortos, no
Outro Mundo. Khay estava em pé na proa do barco; ela via
apenassuacabeça.Então,acaminhodaaurora,Khayvoltou-see
Renisenbviuquenãoeraele,masKameni.Nomesmoinstante,
naproadobarco,umacabeçadeserpente,começouasecontrair.
Era uma serpente viva, uma cobra, e Renisenb pensou: “É a
serpentequesaidostúmulosparacomerasalmasdosmortos.”
Ficouparalisadademedo.Viuentãoqueorostodaserpenteerao
rostodeNofret,eacordougritando:—Nofret,Nofret!....
Elanãohavia,defato,gritado;eratudosonho.Permaneceu
quieta,ocoraçãobatendoforte,dizendoasiprópriaquenadado
que havia ocorrido era real. De repente, pensou: “Era isso que
Sobekdiziaenquantomatavaacobra,ontem.Eledizia:‘Nofret’...”
CAPÍTULOVII
PrimeiroMêsdeInverno
QuintoDia
I
O sonho de Renisenb fê-la perder o sono. Apenas cochilou
um pouco durante a noite e, quando o dia raiou, não dormiu
mais. Estava obcecada por um sentimento obscuro de perigo
iminente.
Levantou-sebemcedoesaiudecasa.Seuspassosalevaram,
comode costume, aoNilo. Lá jáhavia pescadores eumgrande
barco, que através de vigorosas remadas seguia em direção a
Tebas.Havia outros barcos que tinham suas velas desfraldadas
pelasligeiraslufadasdevento.
Alguma coisa se modificou no coração de Renisenb; a
excitaçãodeumdesejoporalgoqueelanãoconseguiaexplicar.
Pensou:“Eusinto...sinto...”Masnãosabiaoquesentia!Melhor
dizendo, ela não conhecia palavras que pudessem se aplicar
àquelasensação.Pensou:“Euquero...masoqueéqueeuquero?”
Era Khay que ela queria? Khay estava morto; não voltaria
mais.Disseparasimesma:“NãopensareimaisemKhay.Deque
serve?Estáacabado,tudoaquilo.”
Notouentãoumaoutra figuradepé,olhandonadireçãodo
barcoque sedirigia aTebas; e algumacoisa a respeitodaquela
figura, alguma emoção que ela expressava pela sua completa
impassividade, comoveu Renisenb, mesmo quando reconheceu
Nofret.
Nofret com os olhos fixos no Nilo. Nofret... só. Nofret
pensandoemquê?
Umtantochocada,Renisenbderepentepercebeuquãopouco
elesconheciamNofret.Haviam-naaceitocomoumainimiga,uma
estranha,semqualquerinteresseoucuriosidadepelasuavidaou
peloambientedeondeelaprovinha.
Deve ser, pensou Renisenb repentinamente, bastante triste
paraNofretestaraquisozinha,semamigos,rodeadaapenaspor
pessoasquenãogostamdela.
Devagar,RenisenbcaminhouatésepostaraoladodeNofret.
Estavoltouacabeçaporummomentoeentãovirou-adevolta,
retomandosuacontemplaçãodoNilo.Seurostonadaexprimia.
Renisenbdissetimidamente:
—Hámuitosbarcosnorio.
—Sim.
Renisenbcontinuou,obedecendoaumimpulsoobscuropara
aconciliação:
—Éassimcomoaqui,ládeondevocêveio?
Nofretriu,umrisocurtoeumtantoamargurado.
— Nem um pouco. Meu pai é um mercador em Mênfis. É
alegreedivertido,láemMênfis.Hámúsica,easpessoascantame
dançam. Meu pai viaja bastante. Estive com ele na Síria, em
Biblos, alémdoFocinhodaGazela.Estive comelenumgrande
navionosmaresimensos.
Elafaloucomorgulhoeanimação.
Renisenb ficouquieta,suamente trabalhandodevagar,mas
cominteresseecompreensãocrescentes.
—Deveserbastanteaborrecidoparavocêestaraqui—disse
lentamente.
Nofretsorriucomimpaciência.
— Tudo é morto por aqui... morto. Não se faz outra coisa
senãoarar,semearecolher,cuidardogado, falardecolheitase
brigarporcausadopreçodafibra.
Renisenbcontinuavaalutarcompensamentosestranhos,ao
mesmotempoqueobservavaNofretdeesguelha.
Desúbito,comosefossealgofísico,umaimensaondadeira,
desesperoeinfelicidadepareceuemanardamoçaaseulado.
Renisenbpensou:“Elaé tão jovemquantoeu...mais jovem,
até. E é a concubina daquele velho, daquele velho ranheta,
bondosoeumtantoridículo:meupai...”
Quesabiaela,Renisenb,arespeitodeNofret?Nada.Quelhe
disseraontemHoriquandoelahaviagritado:“Nofretébela,cruel
emá!”?
—Vocêéumacriança,Renisenb— fora tudoquantohavia
dito. Renisenb sabia o que isso significava. Suas palavras não
haviamsignificadonada;nãoeratão fácilassimignorarumser
humano.Quetristeza,queamargura,quedesesperoficavampor
trás do sorriso cruel de Nofret? Que fizera ela, Renisenb, ou
qualquerumdeles,paratornarNofretbem-vinda?
Renisenbdisse,infantilmente,aostropeços:
— Você nos odeia a todos... e eu sei por quê; não fomos
bondosos... porém agora... agora é tarde demais. Será que nós,
você e eu, não poderíamos ser como irmãs? Você está longe de
todos os que conhece; está sozinha. Será que eu não poderia
ajudar?
Suas palavras morreram em silêncio. Nofret voltou-se
lentamente.
Duranteummomentoseurostopermaneceuinexpressivo—
chegoumesmoarevelar,pensouRenisenb,umabrevesuavidade
em seu olhar. Na quietude daquela manhã, com sua estranha
claridadeepaz,foicomoseNofrettivessehesitado—Comoseas
palavras de Renisenb houvessem tocado no âmago de sua
irresolução.
Foiummomentoestranho,queRenisenbtornariaalembrar
maistarde.
Depois, gradativamente, a expressão de Nofret mudou.
Tornou-se pesadamente malévola, ao passo que seus olhos
faiscavam. Ante a fúria de ódio e maldade, em seu olhar,
Renisenbrecuouumpasso.
Nofret,emtombaixoeríspidodisse:
— Vá embora. Não quero nada de vocês. São talvez uns
estúpidoseidiotas...
Calou-se e, dandomeia volta, encaminhou-se em direção à
casacompassosvigorosos.
Renisenbaseguiucomcalma.Curiosamente,aspalavrasde
Nofret não tinham despertado a sua cólera. Elas haviam
desvendadoumabismonegrodeódioemiséria—algumacoisa
aindadesconhecidadesuaprópriaexperiência,eemsuamente
haviaapenasuma idéiaconfusaedesordenadanoquão terrível
deveriasersentir-seassim.
NomomentoemqueNofretatravessavaoportãoeentravana
varanda,umdosfilhosdeKaitcruzouseucaminhocorrendo,à
procuradeumabola.
Nofretempurrouviolentamenteacriançaeestacaiu,gritando
de dor. Renisenb correu e tomou-a nos braços, dizendo
indignada:
—Vocênãodeveria ter feito isso,Nofret.Vocêamachucou.
Elacortouoqueixo.
Nofretsoltouumagargalhadaestridente.
— Com que então devo ter cuidado para não ferir esses
fedelhosmimados?Porquê?Acasosuasmãessepreocupamcom
osmeussentimentos?
Kait havia saído correndo da casa ao escutar o grito da
criança.Examinouoferimento,eentãovoltou-separaNofret.
—Demônio e serpente!Má! Espere para ver o que faremos
comvocê!
Kait desferiu uma violenta bofetada em Nofret. Renisenb
gritouesegurou-lheobraçoantesquepudesserepetirogolpe.
—Kait,Kait,vocênãodevefazerisso.
— Quem disse? Deixe Nofret enxergar a si própria. Ela é
apenasumaaqui,entremuitas.
Nofret não se mexeu. A marca da mão de Kait estava
estampadaemsuaface,nítidaevermelha.Próximoaocantodos
olhos,ondeumapulseirausadaporKaitcortara-lhea face,um
fiodesangueescorria.
MasfoiaexpressãodeNofretqueintrigouRenisenb—sim,e
a amedrontou. Nofret não demonstrava raiva. Ao invés disso,
haviaemseusolhosumolharexultanteeestranho,emaisuma
vezemsuabocaapareceuaquelesorrisosatisfeitoefelino.
—Obrigada,Kait—eladisse.
Eentão,entrounacasa.
II
Sussurrando baixinho, com as pálpebras baixas, Nofret
chamouHenet.
Henetveiocorrendo,estacouesoltouumaexclamação.Nofret
ainterrompeuprontamente.
—Traga-meKameni.Diga-lhepara trazeracaixadepenas,
tintaepapiro.HáumacartaaserescritaparaImhotep.
OsolhosdeHenetestavamfixosnafacedeNofret.
—ParaImhotep...claro...
Entãoperguntou:—Quemfezisso?
—Kait—Nofretsorriucalmaeremanescente.
Henetbalançouacabeçaeestaloualíngua.
— Tudo isso é muito mal, muito mal... Certamente o meu
amo deve tomar conhecimento disso. — Ela lançou um olhar
furtivoparaNofret.—Sim,semdúvida,Imhotepdevesaber.
Nofret falou suavemente:—Você e eu,Henet, pensamosda
mesmaforma...Acheiquedeveríamosprocederassim.
Elaretirouumajóiadeametistaeourodesuaroupadelinho
ecolocou-anasmãosdamulher.
— Você e eu, Henet, queremos do fundo do coração o
verdadeirobem-estardeImhotep.
— Isto é bom demais para mim. Nofret... Você é muito
generosa...Quebelezadetrabalho!
—Imhotepeeuapreciamosafidelidade.
Nofretaindaestavasorrindo,seusolhosestreitosefelinos.
—TragaKameni—disse.—Evenhacomele.Juntos,vocêe
ele,sãotestemunhasdoocorrido.
Kameniveioumpoucorelutante,asobrancelhafranzida.
Nofretdisseimperativamente:
—EstálembradodasinstruçõesdeImhotepantesdepartir?
—Sim—respondeuKameni.
—Échegadaahora—afirmouNofret.—Sente-se,tomeda
penaeescrevaoquevouditar.—ComoKameniaindahesitasse,
eladissecomimpaciência:—Oquevocêescreverdeveseraquilo
quevocêviucomseusprópriosolhoseouviucomseuspróprios
ouvidos; e Henet deve confirmar tudo o que eu disser. A carta
deveserenviadacomtodosigiloerapidez.
Kamenidisselentamente:—Eunãogosto...
Nofret atalhou prontamente: — Não tenho queixa contra
Renisenb.Renisenb é suave, fraca e idiota,masnão tentoume
machucar.Issolhesatisfaz?
A cor bronzeada da face de Kameni tornou-se ainda mais
forte.
—Nãoestavapensandonisso...
Nofretdissegentilmente:
— Pensei que estivesse... Agora vamos, cumpra as suas
instruções;escreva.
— Sim, escreva — disse Henet. — Sinto-me tão aflita com
tudoisso...tãoterrivelmenteaflita.ÉclaroqueImhotepdeveficar
sabendo.Éjustoqueelesaiba.Pormaisdesagradávelquepossa
serumacoisa,deve-secumprircomasobrigações.Semprepensei
assim.
Nofretsorriucomsuavidade.
—Tenhocertezaquesim,Henet.Vocêdevecumprircomseu
dever.EKamenidevefazeroseutrabalho.Eeu...bem,eudevo
fazeraquiloquemeapraz.
MasKameniaindahesitava.Seurostoestavasombrioequase
bravo.
—Nãogostodisso—retrucou.—Nofret,talvezfossemelhor
vocêpensarumpouco.
—Vocêdizissoamim?
Kamenicoroudiantedotomempregado.Seusolhosevitaram
osdela,masaexpressãosombriapermaneceu.
— Tenha cuidado, Kameni — disse Nofret lentamente. —
TenhograndeinfluênciasobreImhotep.Elemeescuta.Atéagora
temestadosatisfeitocomvocê...—Fezumapausasignificativa.
— Você está me ameaçando, Nofret? — perguntou Kameni
furioso.
—Talvez.
Ele a olhou com raiva por um instante; então baixou a
cabeça.
—Fareioquedisser,Nofret,mascreio...sim,creioquevaise
arrepender.
—Estámeameaçando,Kameni?
—Estouapenasprevenindo-a...
CAPÍTULOVIII
SegundoMêsdeInverno
DécimoDia
I
Os dias passavam e Renisenb, às vezes, sentia como se
estivessevivendoumsonho.
NãohaviamaistentadotímidasaberturascomNofret.Tinha,
agora, medo de Nofret. Havia, em Nofret, algo que ela não
compreendia.
Depois da cena na varanda, naquele dia, Nofret mudara.
Havia nela uma certa complacência, uma exultação insondável
paraRenisenb.Àsvezes,chegavaapensarquesuaopiniãoacerca
de Nofret, como uma pessoa profundamente infeliz, estava
completamente errada.Nofret parecia contente coma vida, com
elaprópriaecomaquiloqueacercava.
E,noentanto,oqueacercavahaviadefinitivamentemudado
parapior.NosdiasqueseseguiramàpartidadeImhotep,pensou
Renisenb, Nofret se esforçou em semear a discórdia entre os
váriosmembrosdafamíliadeImhotep.
Agoraafamíliahaviacerradofileirassólidascontraoinvasor.
NãohaviadiscórdiaentreSatipyeKait—nemcríticasdeSatipy
contraoinfelizYahmose.Sobekestavamaiscalmoevangloriava-
semenos. Ipyeramenos imprudenteedescortêsparacomseus
irmãosmaisvelhos.Pareciahaverumanovaharmonianafamília,
emboraessaharmonianãotrouxessepazàmentedeRenisenb—
pois, junto com a mesma, havia uma curiosa e persistente
correntedeinimizadecomrelaçãoaNofret.
Asduasmulheres—SatipyeKait—nãomaisdiscutiamcom
ela.Evitavam-na.Nuncalhedirigiamapalavraesemprequeela
aparecia,asduasimediatamentereuniamascriançaseiampara
outro lugar. Ao mesmo tempo, acidentes estranhos e
desagradáveis começaram a acontecer. Um vestido de linho de
Nofret ficou estragado por causa de um ferro muito quente —
umatintacorantecaiusobreoutro.Porvezes,surgiamespinhos
pontiagudos em suas roupas— e um escorpião foi encontrado
pertodesuacama.Acomidaquelheserviameraexcessivamente
condimentada — ou absolutamente insossa. Certo dia, foi
encontradoumratomortoemseupão.
Era uma perseguição calma, inexorável, mesquinha — não
manifesta, nada que se pudesse usar como pretexto —, era
essencialmenteumacampanhafeminina.
Então,umdia,EsachamouSatipy,KaiteRenisenb.Henetjá
láestava,aofundo,balançandoacabeçaeesfregandoasmãos.
— Ah! — exclamou Esa, observando-as com sua usual
expressão irônica. — Cá estão minhas inteligentes netas. Que
pensamqueestãofazendo,todasvocês?Queéissodedestruiras
roupasdeNofretetornarsuacomidaintragável?
SatipyeKaitsorriram.Enãoeramsorrisossimpáticos.
Satipyindagou:—Nofretsequeixou?
—Não—respondeuEsa.Elaempurrouaperucaquesempre
usava,mesmoemcasa,umpoucotorta,comumadasmãos.—
Não;Nofretnãosequeixou.Eissoéoquemepreocupa.
—Poisnãomepreocupa—disseSatipy,agitandosualinda
cabeça.
—Porquevocêéumaidiota—vociferouEsa.—Nofrettemo
dobrodainteligênciadevocêstrêsjuntas.
— E o que vamos ver — disse Satipy. Ela parecia feliz e
contenteconsigomesma.
—Oquevocêspensamestarfazendo?—perguntouEsa.
OrostodeSatipyendureceu.
— Você é umamulher velha, Esa. Não vai nisso nenhuma
falta de respeito, mas as coisas já não importam tanto a você
quanto a nós que temosmaridos e filhos pequenos. Decidimos
tomar as rédeas da situação; temos meios de tratar com uma
mulherdequemnãogostamosequenãoiremosaceitar.
— Belas palavras — disse Esa. — Belas palavras. — Ela
gargalhou—Masumbomdiscursopodesertambémencontrado
entreasescravasdomoinho.
—Eisaíumditadosábioeverdadeiro—afirmouHenet.
Esavoltou-separaela.
— Vamos, Henet, o que diz Nofret de tudo o que está
ocorrendo?Vocêdevesaber...estásemprecuidandodela.
—ComomerecomendouImhotep.É-merepugnante,éclaro,
masdevofazeraquiloquemeuamoordenou.Vocêsnãojulgam,
espero...
Esainterrompeuavozlamuriosa:
— Sabemos tudo sobre você, Henet. Sempre devotada... e
raramentereconhecidacomodeveriaser.QuedizNofretdetudo
isso?Essafoiaminhapergunta.
Henetbalançouacabeça.
—Elanãodiznada.Apenas...sorri.
—Exatamente—Esaapanhouumdocedeumabandejano
seucolo,examinou-oecolocou-onaboca.Disseentãocomuma
súbitaemalevolenteaspereza:
—Vocêssãotodasumastolas,todasvocês.Opoderestácom
Nofret,nãocomvocês.Tudoquefazeméapenasumjoguetenas
mãosdela.Euousariaatédizerquetudoquantofazemagradaa
ela.
Satipydisserispidamente:—Nãotemcabimento;Nofretestá
só,nomeiodemuitos.Quepoderpodeterela?
Esacontinuouinflexível:
— O poder de uma jovem e bela mulher casada com um
homemqueestáenvelhecendo.Seiexatamentearespeitodoque
estou falando. — E com um rápido movimento da cabeça,
acrescentou:—Henetsabedoqueestoufalando!
Henet sobressaltou-se. Suspirou e começou a esfregar as
mãos.
—Meuamopensamuitonela,naturalmente.Sim,énatural.
—Váparaacozinha—ordenouEsa.—Traga-mealgumas
tâmarasevinhosírio...sim,etambémmel.
QuandoHenetsefoi,avelhamulherdisse:
—Estão tramando alguma armadilha... posso sentir no ar.
Satipy, você é a líder disso tudo, portanto, tenha cuidado;
enquantovocêsejulgamuitoesperta,Nofretpodeestarusando-a
comoaumboneco.
Elarecostou-seefechouosolhos.
—Jáestãoavisadas...agoravão.
—Nós,nasmãosdeNofret, realmente!—exclamouSatipy,
jogandoa cabeçapara trás enquanto seguiam todas emdireção
aolago.—Esaéumavelhaepõeasidéiasmaisextraordinárias
na cabeça. Somos nós que temos Nofret em nossas mãos! Não
faremos nada a ela que possa ser relatado... mas penso, sim,
pensoquemuitobreveelaestaráarrependidadeterpostoospés
aqui.
—Vocêécruel...cruel!—gritouRenisenb.
Satipypareciadivertida.
—NãofinjaquevocêgostadeNofret,Renisenb!
—Nãoéisso.Masvocêsoatão...tãovingativa!
—Estoupensandonosmeusfilhos...eemYahmose!Nãosou
umamulherhumildenemsoudaquelasquelevamdesaforopara
casa;tenhoambição.Eutorceriaopescoçodaquelamulhercomo
maiorprazer.Mas,infelizmente,nãoétãosimplesassim.Afúria
de Imhotep não deve ser despertada. Mas acho que afinal...
algumaprovidênciadevesertomada.
II
Acartaatingiu-oscomoumraio.
Aturdidos,mudos,Yahmose,SobekeIpyolhavamparaHori
enquantoeleliaemvozaltaaspalavrasdeumrolodepapiro.
“AcasonãoaviseiaYahmosequeseriaeleoculpadosealgum
mal fosse feito à minha concubina? Enquanto vivermos, eu
estareicontravocêevocêcontramim!Nãomaisvivereicomvocê
numamesma casauma vez que não respeitaminha concubina
Nofret!Vocênãoémaisfilhodaminhacarne.TampoucoSobeke
Ipy. Cada um de vocês fez mal à minha concubina. Isso foi
atestado por Kameni e Henet. Eu os porei para fora daminha
casa; todos vocês! Eu os sustentei; agora, não os sustentarei
mais.”
Horifezumapausaecontinuou:
“OservodeKa,Imhotep,dirige-seaHori.Avocêquetemsido
fiel,comovaivocênasuavida,sãoesalvo?Saúdeàminhamãe
Esa por mim e minha filha Renisenb, e saúde a Henet. Tome
contadosmeusnegócioscuidadosamenteatéqueeuoencontree
providencie uma escritura pela qual minha concubina terá a
metade de todas as minhas propriedades comominha mulher.
Nem Yahmose, nem Sobek se associarão comigo, nem eu os
sustentarei,epormeiodestaeuosdenuncio,porteremfeitomal
àminhaconcubina!Mantenha tudoa salvoatéqueeuchegue.
Comoéhorrívelquandoafamíliadeumhomemdámaustratosà
suaconcubina.QuantoaIpy,deixequeelerecebaumaviso;caso
faça algum mal à minha concubina, também deverá deixar a
minhacasa!”
Seguiu-se um silêncio profundo; então Sobek levantou-se
numacessodefúria.
— Como isso aconteceu? O que meu pai andou ouvindo?
Quemcontouessasfalsidadesparaele?Seráquetemosdeaturar
isto?Meupainãopodenosdeserdarassimedar todososseus
bensparasuaconcubina!
Horidissetimidamente:
—Causarácomentáriosdesfavoráveisenãoseráaceitocomo
umaaçãolegítima...maslegalmenteestáemseupoder.Elepode
fazerumaescrituradeterminandooquequerquedeseje.
— Ela o enfeitiçou... aquela serpente negra e sarcástica
lançouumencantosobreele!
Yahmosemurmurouaindaatordoado:
—Éinacreditável...nãopodeserverdade.
—Meupaiestá louco... louco!—gritou Ipy.—Elevirou-se
atémesmocontramim,porcausadestamulher!
Horidissegravemente:
— Imhotep voltará brevemente... segundo diz. Nessa altura
sua fúria já terá amainado; ele pode não estar realmente
planejandofazeroqueestádizendo.
Houve uma risada curta e desagradável. Tinha sido Satipy
quemrira.Elapermaneceuolhandoparaelesdaportaquedava
paraosaposentosdasmulheres.
—Entãoéissoquedevemosfazer,nãoé,meuexcelenteHori?
Espereeverá!
Yahmosedisselentamente:
—Quemaispodemosfazer?
—Quemais?—Satipy exaltou-se.Gritou:—Que têmnas
veiastodosvocês?Leite?Yahmose,eusei,nãoéumhomem!Mas
você, Sobek, não tem um remédio que cure esta doença? Uma
facada no coração e essa menina não nos poderá fazer mais
nenhummal.
—Satipy—replicouYahmose—,meupainãonosperdoaria
nunca!
— É o que você diz. Mas eu lhe digo que uma concubina
mortanãoéamesmacoisaqueumaconcubinaviva!Umavezque
elaestejamorta,seucoraçãosevoltariaparaosfilhoseosnetos.
E, por outro lado, como poderia ele saber como ela morreu?
Poderíamos dizer que um escorpião a mordeu! Estamos juntos
nisso,ounãoestamos?
Yahmosedissevagarosamente:
—Meupaisaberia.Henetdiriaaele.
Satipydeuumarisadahistérica.
—Yahmose é tão prudente!Ô gentil e cauteloso, Yahmose!
Era você quem devia tomar conta das crianças e fazer os
trabalhos de mulher nos fundos da casa. Que Sakhmet possa
ajudar-me! Casada com um homem que não é um homem. E
você,Sobek,comtodaasuabazófia,queespéciedecoragemvocê
tem?Quedeterminação?JuroporRáquesoumaishomemque
qualquerumdevocês.
Eladeumeiavoltaeretirou-se.
Kait,queestavaparadaatrásdela,deuumpassoàfrente.
Dissecomsuavozprofundaeagitada:
—OqueSatipy está dizendo é verdade! Ela é de fatomais
homemquequalquerumdevocês.Yahmose,Sobek, Ipy...vocês
pretendem ficar aqui sentados sem fazer nada? E seus filhos,
Sobek? Lançados à fome? Pois muito bem. Se pretendem não
fazernada,eufarei.Nenhumdevocêséhomem.
Assimqueelasefoi,Sobekpôs-seempédeumsalto.
— Pelos Nove Deuses de Enead, Kait está certa! Há um
trabalho de homem a ser feito... e aqui estamos nós sentados
ebalançandoascabeças.
Eleselançouemdireçãoàporta.Horiochamou.
—Sobek.Sobek,ondevocêestáindo?Oquevaifazer?
Sobek,beloedesafiante,gritoudaporta:
—Fareialgumacoisa,porcerto.E,seja láoque for,heide
fazê-locommuitoprazer.
CAPÍTULOIX
SegundoMêsdeInverno
DécimoDia
I
Renisenb dirigiu-se à varanda, cerrando os olhos diante da
súbitaclaridade.
Sentiu-semal,abaladaecheiadeumaapreensãoinominável.
Disse de si para si, repetindo e repetindo mecanicamente as
palavras:
—DevoavisarNofret...DevoavisarNofret...
Atrás de si, na casa, podia ouvir as vozes graves de Hori e
Yahmoseconfundindo-see,acimadasdeles,agudaeclara,avoz
adolescentedeIpy.
— Satipy e Kait estão certas. Não há homem algum nesta
família.Maseu,sim,souumhomem,senãonaidade,aomenos
nocoração.Nofret temzombadoe ridodemim, temme tratado
comoumacriança.Euireimostrar-lhequenãosouumacriança.
Não tenhomedoda irademeupai.Conheçomeupai.Ele está
enfeitiçado... essamulher o encantou. Se ela for destruída, seu
coraçãovoltaráparamim...paramim!Souofilhodequeelemais
gosta. Todos vocêsme tratam como criança... mas vocês verão.
Sim,vocêsverão!
Saindodacasaàscarreiras,colidiucomRenisenbequasea
derrubou.Elaseagarrouàssuasmangas.
—Ipy,Ipy,ondevocêvai?
—ProcurarNofret.Elavaiversepoderirdemim.
—Espereumpouco.Vocêdeveseacalmar.Nãodevemosnos
precipitar.
—Precipitar?— o rapaz riu comdesprezo.—Você é como
Yahmose. Prudência! Cautela! Nada deve ser feito às pressas.
Yahmoseéumavelha.ESobekésópalavraseorgulho.Largue-
me,Renisenb.
Ipypuxouotecidodesuamangadasmãosdela.
—Nofret,ondeestáNofret?
Henet,quevieraapressadadacasa,murmurou:
—Oh,ascoisasvãomal...muitomal.Queserádenós?Que
diráaminhaqueridaama?
—OndeestáNofret,Henet?
Renisenb gritou: — Não lhe diga. — Mas Henet já estava
respondendo:
— Saiu pelos fundos. Desceu em direção aos campos de
linho.
Ipycorreudevolta,passandopelacasa,eRenisenbdissecom
desaprovação:—Vocênãodeveriaterdito,Henet.
— Você não confia na velha Henet. Vocês nunca têm
confiançaemmim.—Olamentodesuavoztornou-seaindamais
pronunciado. — Mas a pobre e velha Henet sabe o que está
fazendo. O rapaz precisa de tempo para se acalmar. Ele não
encontraráNofretnocampodelinho.—Elasorriu.—Nofretestá
aqui,nopavilhão,comKameni.
Elaapontoucomacabeçaparaalémdavaranda.
Eacrescentoucomênfaseumtantoexagerada:
—ComKameni...
MasRenisenbjáhaviacomeçadoacruzaropátio.
Teti, arrastando seu leão demadeira, veio correndo do lago
para junto de sua mãe e Renisenb a tomou nos braços. Ela
soube,quandoseabraçouàcriança,aforçaqueestavamovendo
SatipyeKait.Essasmulheresestavamlutandoporseusfilhos.
Tetisoltouumgritinhoamuado.
—Nãomeaperteassim,mamãe,nãomeaperteassim.Você
estámemachucando.
Renisenbpôsacriançanochão.Cruzoulentamenteopátio.
Numcantoafastadodopavilhão,NofreteKameniestavamjuntos,
empé.Voltaram-sequandoRenisenbseaproximou.
Renisenbfalourápidoedeumsófôlego.
—Nofret,vimparalheavisar.Vocêdevetomarcuidado;deve-
seguardar.
UmardesdenhosodedivertimentopassoupelafacedeNofret.
—Entãooscachorrosestãouivando?
—Todosestãomuitozangadoseacabarãolhefazendoalgum
mal.
Nofretsacudiuacabeça.
— Ninguém pode me fazer mal — disse com confiança
suprema.—Seofizerem,seupaitomaráconhecimentoeexigirá
vingança.Elessaberãodissoquandopararemparapensar.—Ela
riu.—Quãotolosforameles...comsuasperseguiçõeseinsultos
mesquinhos!Fizeramomeujogootempotodo.
Renisenbdisselentamente:
— Então você planejou isso o tempo todo? E eu que senti
penadevocê...chegueiapensarquefomosdesagradáveis!Jánão
tenhomaispena...Euacho,Nofret,quevocêémá.Quandovocê
fornegarosquarentaedoispecadosnahoradojulgamento,não
serácapazdedizer:“Nãofizmalalgum.”Tampoucoserácapazde
dizer:“Nãofuicobiçosa.”Eopratodabalançaqueacolheroseu
coraçãopesarámuitomaisdoqueaquelecomapenadaverdade.
Nofretretrucoumal-humorada:
— Você de repente tornou-semuito devota.Mas eu não fiz
mal a você, Renisenb. Não disse nada contra você. Pergunte a
Kamenisenãoéverdade.
Nofret atravessou o pátio e subiu as escadas da varanda.
Henet seguiu ao seu encontro e ambas mulheres foram juntas
paradentrodecasa.
Renisenbvirou-selentamenteparaKameni.
—Então foi você,Kameni, quemajudouNofret a fazer isso
conosco.?
Kamenidisseansiosamente:
—Vocêestámuitoaborrecidacomigo,Renisenb?Masoque
poderia eu fazer? Antes de partir, Imhotep encarregou-me
solenementedeescreverparaNofretaqualquermomentoqueela
meordenasse.Digaquevocênãomeculpa,Renisenb.Quemais
poderiaeufazer?
— Não posso culpá-lo — disse Renisenb devagar. — Você
tinha,suponho,queobedeceràsordensdemeupai.
—Nãogosteidefazê-lo...eéverdade,Renisenb,nãofoidita
sequerumapalavracontravocê.
—Comoseeumeimportassecomisso!
—Maseumeimporto.OquequerqueNofretpudesseterdito
paramim,eunãoteriaescritoumapalavraquelhepudessefazer
mal.Renisenb...porfavoracredite-me.
Renisenb sacudiu a cabeça, perplexa. Aquilo que Kameni
estava fazendo força para deixar claro, parecia-lhe de pouca
importância.Sentia-seferida,comoseKameni,dealgumaforma,
ativessedecepcionado.Muitoemboraelefosse,afinaldecontas,
umestranhoparaela.Apesardeunidospelosangue,Kameniera
sem dúvida um estranho que seu pai trouxera de uma parte
distante do país. Era um aprendiz de escriba que estava
cumprindoumatarefaquelheforaimpostapeloseuempregador,
equeaexecutaraobedientemente.
—Nãoescrevinadaalémdaverdade—persistiuKameni.—
Nãoescrevinenhumamentira,issoeulhepossojurar.
—Não—observouRenisenb.—Nãopoderiahavermentiras;
Nofretémuitoespertaparaisso.
A velha Esa estava certa no final das contas. Aquela
perseguiçãodaqualSatipyeKaittantosehaviamregozijadofora
exatamenteoque.Nofretqueria.Nãoadmiraquetenhapassado
portudocomaqueleseusorrisofelino.
— Ela é má — disse Renisenb, conduzida por seus
pensamentos.—Sim!
Kameni assentiu. — Sim — disse. — Ela é uma criatura
maldosa.
Renisenbvoltou-seeolhou-ocuriosamente.
— Você a conheceu antes dela haver chegado aqui, não é
verdade?VocêaconheceuemMênfis?
Kamenienrubesceu,parecendopoucoàvontade.
—Eunãoaconheciabem...Apenastinhaouvidofalardela.
Umamoçaorgulhosa,segundodiziam,ambiciosaeinflexível...e
alguémincapazdeperdoar.
Renisenbjogousuacabeçaparatráscomsúbitaimpaciência.
—Nãoacreditonisso—disse.—Meupainãofaráoqueestá
ameaçando.Nomomentoeleestázangado...maselenãopodeser
tãoinjusto.Eleperdoaráquandovoltar.
—Quandoelevier—disseKameni—,Nofretdaráumjeito
para que ele não mude de idéia. Você não conhece Nofret,
Renisenb.Elaémuitoespertaemuitodeterminada;alémdisso,
como você não poderia deixar de se esquecer, Renisenb, ela é
muitobonita.
—Sim—admitiuRenisenb.—Elaébonita.
Renisenblevantou-se.Dealgumaforma,aidéiadabelezade
Nofretferiu-a...
II
Renisenb passou a tarde brincando com as crianças.
Enquantotomavapartenassuasbrincadeiras,adorvagaemseu
coraçãodiminuiu.Somentepoucoantesdopôrdosol,enquanto
penteavaoscabelosearrumavaaspregasdasaiaquesehaviam
desarranjado, foi que ela teve a idéia vaga de que tanto Satipy
quantoKaittinhamseausentadodemodopoucohabitual.
Kamenijáhaviadeixadohámuitoopátio.Renisenbdirigiu-
se vagarosamente para dentro de casa. Não havia ninguém na
saladeestareelacontinuouemdireçãoàpartedosfundos,até
osaposentosdasmulheres.Esaestavacochilandonumcantode
seuquartoeasuapequenaescravanegrafaziapilhasdelençóis
de linho. Uma fornada de pãezinhos triangulares estava sendo
preparadanacozinha.Nãohaviamaisninguémporali.
Uma curiosa sensação de vazio oprimia o espírito de
Renisenb.Ondeestariatodomundo?
Hori provavelmente havia subido para o Túmulo. Yahmose
poderia estar com ele ou então nos campos. Sobek e Ipy
provavelmenteestavamcomogadoouentãocuidandodosgrãos
de milho. Mas onde estavam Satipy e Kait, e onde estava...
Nofret?
O forteperfumedoungüentodeNofretenchiaoseuquarto
vazio. Renisenb permaneceu olhando da porta para o pequeno
travesseirodemadeira,paraacaixadejóias,paraumaporçãode
braceletes de contas e um anel ornado com um escaravelho
esmaltado. Perfumes, ungüentos, roupas, linhos, sandálias —
todos falandodesuadona,deNofret,quevivianomeiodeles e
queeraumaestranhaeumainimiga.
Onde,imaginavaRenisenb,poderiaestarNofret?
Dirigiu-se devagar para a entrada posterior da casa e lá
encontrouHenet,queestavaentrando.
—Onde está todomundo, Henet? A casa está vazia exceto
pelaminhaavó.
—Comopoderiaeusaber?Estivetrabalhando,ajudandona
fiação,verificandomileumacoisas;eunãotenhotempodesair
parapassear.
Aquilo queria dizer, pensou Renisenb, que alguém havia
saídoparadarumavolta.SatipytalveztivesseseguidoYahmose
atéoTúmuloparacontinuarenchendo-lheosouvidos.Masonde
estariaKait?NãoeracostumedeKaitpassar tanto tempo longe
deseusfilhos.
Enovamenteaquelaestranhaeperturbadorapremoniçãolhe
ocorreu:
—OndeestáNofret?
Henet, como se tivesse lido seus pensamentos, deu-lhe a
resposta.
— Quanto a Nofret, saiu há bastante tempo e foi até o
Túmulo. Bem, Hori é capaz de enfrentá-la. — Ela riu
malignamente. — Gostaria que você soubesse, Renisenb, como
todoocasomedeixouinfeliz.Elaveioatémim,naqueledia,com
amarcadosdedosdeKaitnafaceeofiodesanguequeescorria.
EntãochamouKameniparaescreverepediu-meparadizeroque
tinhavisto... e, claro, eunãopoderiadizer quenão tinha visto!
Oh, ela é muito viva. E eu, o tempo todo pensando em sua
queridamãe...
Renisenbpassouporelaesaiuparaaclaridadedouradado
sol da tarde. Sobre os rochedos havia sombras profundas— o
mundotodopareciafantásticonessahoradopôrdosol.
Os passos de Renisenb se apressaram quando entrou no
caminhodoTúmulo.SubiriaatéoTúmulo...paraencontrarHori.
Sim, encontrarHori. Era o que fazia quando, em criança, seus
brinquedos quebravam — quando estava insegura ou
amedrontada.Horieracomoosprópriosrochedos:firme,imóvel,
imutável.
Renisenbpensouconfusamente:“Tudoestarábemquandoeu
chegaratéHori...”
Elaapressouopasso;estavaquasecorrendo.
De súbito, avistou Satipy descendo em sua direção. Satipy,
também,deviaterestadonoTúmulo.
Mas Satipy caminhava de maneira muito estranha,
balançando de um lado para outro, cambaleando, como se não
pudesseenxergar...
QuandoSatipyavistouRenisenb,paroue levouasmãosao
peito.Renisenb,aproximando-se, ficouassustadacomoaspecto
deSatipy.
—Quehouve,Satipy,vocêestádoente?
—Não,não,claroquenão.
—Vocêpareceestardoente.Commedo.Queaconteceu?
—Quepoderiateracontecido?Nada,claro.
—Ondevocêesteve?
—EstivenoTúmulo...àprocuradeYahmose.Elenãoestava
lá.Nãoháninguémlá.
Renisenb ainda a olhava fixamente. Esta era uma nova
Satipy—umaSatipydestituídadetodooespíritoeresolução.
—Volte,Renisenb;volteparacasa.
Satipycolocousuamão levementetrêmulasobreobraçode
Renisenb,querendoapressá-laemdireçãoaocaminhopeloqual
tinhavindoe,aessetoque,Renisenbsentiuumasúbitarevolta.
—Não;euvousubiratéoTúmulo.
—Nãoháninguémlá,estoulhedizendo.
—Gostodeverorioládecima.Gostodemesentarlá.
—Masosolestásepondo...émuitotarde.
Os dedos de Satipy pareciam torniquetes no braço de
Renisenb.Esta,comumpuxão,libertou-se.
—Deixe-meir,Satipy.
—Não.Volte.Voltecomigo.
MasRenisenbjásehaviasoltado,passadoporelaeestavaà
caminhodorochedo.
Havia alguma coisa— seu instinto dizia que havia alguma
coisa...Pôs-seacorrer...
Viuentãoumvolumeescuroquejaziaàsombradorochedo...
Correuatéchegarpertodele.
Não ficou surpresa comoque viu.Era como se já estivesse
esperandoporisso...
Nofret jazia com a face voltada para cima, seu corpo
esmagadoeretorcido.Seusolhosestavamabertosecegos...
Renisenb inclinou-se e tocou a fria e dura face — então
levantou-se novamente, olhando sempre. Mal ouviu Satipy
aproximando-seportrásdela.
— Ela deve ter caído — dizia Satipy. — Ela caiu. Estava
passeandopelocaminhodorochedoecaiu...
“Sim”, pensou Renisenb, “foi isso o que aconteceu. Nofret
havia caído do caminhomais acima; seu corpo deve ter batido
violentamentecontraaspedrasdarocha.”
—Talveztenhavistoumacobra—disseSatipy—eassustou-
se.Hácobrasquedormemaosol,àsvezes,nocaminho.
Cobras. Sim, cobras. Sobek e a cobra. Uma cobra, com o
dorsopartido,morta, ao sol.Sobek, seusolhosbrilhando...Ela
pensou:“Sobek...Nofret...”
EntãoumrepentinoalívioainvadiuaoouviravozdeHori.
—Queaconteceu?
Voltou-se aliviada. Hori e Yahmose haviam subido juntos.
SatipyexplicavaafobadaqueNofretdeveriatercaídodocaminho
acima.
Yahmose disse: — Ela deve ter subido até aqui para nos
procurar,masHorieeusaímosparadarumaolhadanoscanais
deirrigação.Estivemosforapelomenosumahora.Aovoltarmos,
avistamosvocêsaqui.
Renisenbperguntou,esuavozasurpreendeu, tãodiferente
soava:—OndeestáSobek?
ElasentiuHorivirarrapidamenteacabeçaaestapergunta.
Yahmosepareceuumtantoconfusoaoresponder:
—Sobek?Nãoovidurantetodaatarde.NãoDvidesdeque
nosdeixou,emcasa,tãoirritado.
MasHori estavaolhandoRenisenb.Ela levantouosolhos e
deparoucomosdele.Viuqueelesdeixaramseuolhareolharam
pensativamenteparaocorpodeNofreteelasoube,comabsoluta
certeza,exatamentenoqueeleestavapensando.
Eleindagounummurmúrio:
—Sobek?
—Oh, não—Renisenb ouviu-se dizendo—Oh, não... oh,
não...
Satipyvoltouadizercomveemência:—Elacaiudocaminho.
Éestreitoláemcima...eperigoso...
Sobekgostavadematar.“Eoquequerqueseja,heidefazê-lo
commuitoprazer.”
Sobekmatandoacobra...
Sobek encontrando Nofret naquela parte estreita do
caminho...
Ouviu-semurmurandoaospoucos:
—Nósnãosabemos...nósnãosabemos...
Então,numalívioíntimo,comasensaçãodequeumpesolhe
havia sido tirado, elaouviua voz gravedeHoridandoodevido
pesoevaloràafirmaçãodeSatipy.
—Eladevetercaídodocaminho...
SeusolhosencontraramosdeRenisenb.Elapensou:“Elee
eusabemos.Nóshaveremosdesabersempre...”
Alta,elaouviusuavoztrêmuladizendo:
—Elacaiudocaminho...
E,comonumecofinal,avozsuavedeYahmoseconcordou.
—Eladevetercaídodocaminho.
CAPÍTULOX
QuartoMêsdeInverno
SextoDia
I
ImhotepestavasentadoemfrenteaEsa.
—Todoscontamamesmahistória—dissemal-humorado.
—Issoé,aomenos,conveniente—retrucouEsa.
—Conveniente... conveniente?Quepalavras extraordinárias
vocêusa!
Esadeuumarisadinha.
—Seioqueestoudizendo,meufilho.
—Estarãoeles falandoaverdade? Issoéoqueeutenhode
decidir!—disseImhotepgravemente.
— Ora, você não chega a ser a Deusa Maat. E nem pode,
comoAnúbis,pesarocoraçãonabalança!
— Que é um acidente? — Imhotep balançou a cabeça,
judicioso.—Devolembrarqueanotificaçãodeminhasintenções
com relação à minha ingrata família deve ter provocado certos
sentimentospassionais.
—Sim,realmente—disseEsa.—Provocaram.Elesgritavam
tantonosalãoprincipalqueeupodiaouvir,aquidomeuquarto,
o que estava sendo dito. Por falar nisso, suas intenções eram
realmenteaquelas?
Imhotep,enquantomurmurava,pareciapoucoàvontade:
— Escrevi com raiva: raiva justificável. Minha família
precisavaaprenderumaseveralição.
— Em outras palavras — disse Esa —, você estava
simplesmentelhesdandoumsusto.Éisso?
—Minhaqueridamãe,queimportaissoagora?
—Claro—prosseguiuEsa.—Vocênãotinhanoçãodoque
queriafazer.Pensamentosdesordenadosnovamente...
Imhotepcontrolousuairritaçãocomesforço.
—Quero simplesmente dizer que esse aspecto particular já
não faz sentido. São os fatos damorte de Nofret que estão em
questão.Seeutivessedeacreditarquealguémdaminhafamília
pudessesertãoirresponsável,tãodesequilibradoemsuaraivaa
pontodemataramoçatãoaudaciosamente...eu...eurealmente
nãoseioquedeveriafazer!
— Portanto, é uma sorte — disse Esa — que todos eles
contem amesma história. Ninguém deu a entender nada além
disso,nãoé?
—Claroquenão.
—Então,porquenãoencararo incidentecomoterminado?
Vocêdeveriaterlevadoamoçaparaonorteconsigo.Eulhedisse
parafazê-lo.
—Entãovocêrealmenteacredita...
Esadissecomênfase:
—Acredito naquilo queme é dito, a não ser que entre em
conflitocomoquetenhavistocommeusprópriosolhos(oqueé
muitopouco,atualmente)ououvidocommeusprópriosouvidos.
Você interrogou Henet, suponho. Que tem ela a dizer sobre o
caso?
— Ela estámuito angustiada... profundamente angustiada.
Pormim.
Esalevantouassobrancelhas.
—Realmente.Vocêmesurpreende.
— Henet — disse Imhotep com ardor — tem um coração
enorme.
—Tambémacho.Maselatambémabusada línguamaisdo
que onormal. Se é apenas angústia o que ela sente pela perda
que você sofreu, eu certamente daria o caso como encerrado.
Existemmuitasoutrascoisasparaocuparasuaatenção.
—Sim,realmente—Imhoteplevantou-se,reassumindosuas
maneiras irrequietas e importantes.— Yahmose está esperando
por mim no salão principal com toda espécie de assuntos que
necessitam de minha urgente atenção. Há muitas decisões
aguardandominhasanção.Comovocêdiz,tristezasparticulares
nãodevemsuperarasobrigaçõesprincipaisdavida.
Elesaiurapidamente.
Esa sorriu por ummomento, um sorriso um tanto quanto
sardônico, é então sua face tornou-se grave novamente. Ficou
pensativaebalançouacabeça.
II
Yahmoseestavaesperandoopai,tendoKameniaseuserviço.
Hori, explicou Yahmose, estava supervisionando o trabalho dos
embalsamadoreseagentes funerários,ocupadoscomasúltimas
etapasdospreparativosfúnebres.
Aviagemdevoltaaolar,apósterrecebidoanotíciadamorte
de Nofret, demorou alguns dias e os preparativos fúnebres
estavamagoraquaseconcluídos.Ocorpoforadeixadodemolho
por bastante tempo no banho de salmoura, restaurado para
recuperar um pouco da sua aparência normal, azeitado e
esfregado com sais, devidamente envolvido em ataduras e posto
nocaixão.
Yahmose explicou haver indicado uma pequena câmara
funerária, próximo ao túmulo posteriormente designado para
acolher o corpo do próprio Imhotep.Detalhou aquilo que havia
ordenadoeImhotepexpressousuaaprovação.
—Vocêfeztudomuitobem,Yahmose—dissecortesmente.—
Você parece ter demonstrado muito bom discernimento e
conservadosuacabeçanolugar.
Yahmosecorouumpoucodiantedoinesperadoelogio.
— Ipi eMontu são embalsamadores caros, naturalmente—
continuouImhotep.—Essescanopos,porexemplo,meparecem
excessivamente caros. Realmente, não há necessidade de tal
extravagância.Seuspreçosmeparecemextremamentealtos.Éo
que há de pior com esses embalsamadores que têm sido
empregados pelas famílias dos Governadores. Julgam-se no
direitodecobrarpreçosfantásticos.Ter-nos-iasaídomuitomais
baratochamaralguémmenosconhecido.
—Emsuaausência—disseYahmose—,tivededecidirsobre
isso e quis que toda honra fosse tributada à concubina que o
senhortantoprezava.
ImhotepconcordouebateunoombrodeYahmose.
—Foiumerroquependeuparaoladobom,meufilho.Bem
seique,normalmente,vocêémuitomaisprudenteemmatériade
dinheiro. Aprecio o fato de que, neste caso, mesmo despesas
desnecessárias tenhamsido feitasparameagradar.Noentanto,
nãosoufeitodedinheiroeumaconcubinaé...bem...apenasuma
concubina.Creioqueiremoscancelarosamuletosmaiscarose...
deixe-me ver, parece haver um ou outro meio de diminuir as
despesas...Leiaos itensdoorçamento,Kameni.Kameniabriuo
papiro.
Yahmoserespiroualiviado.
III
Kait,caminhando lentamentedacasaparao lago,deteve-se
ondeascriançasesuasmãesestavam.
—Vocêestavacerta,Satipy—disse.—Umaconcubinamorta
nãoéomesmoqueumaconcubinaviva!
Satipylevantouosolhosparaaoutra,numolharvagoecego.
Renisenbperguntourapidamente:
—Quequerdizer,Kait?
—Paraumaconcubinaviva,nadaerasuficientementebom;
roupas, jóias,nemmesmoaherançadoprópriosangueecarne
deImhotep!MasagoraImhotepestáocupadoemreduzirocusto
dasdespesasdofuneral!Afinal,porquejogardinheiroforacom
umamulhermorta?Sim,Satipy,vocêestavacerta.
Satipymurmurou:—Quefoiqueeudisse?Esqueci-me.
—Melhor assim—concordouKait.—Eu tambémesqueci.
AssimcomoRenisenb.
RenisenbolhouparaKaitsemdizernada.Haviaalgonavoz
de Kait — alguma coisa levemente ameaçadora, que a
impressionoudeformadesagradável.Acostumara-seapensarem
Kait como uma mulher bastante estúpida — alguém gentil e
submissa, mas desprezível. Chocava-a, agora, o fato de
aparentementeKaiteSatipyteremmudadodeposições.Satipy,a
dominanteeagressiva,estavasubjugada—quase tímida.Eraa
quietaKaitquepareciaagoradominarSatipy.
Masaspessoas,pensouRenisenb,nãomudamrealmentede
caráter— oumudam? Sentiu-se confusa. TeriamKait e Satipy
realmentemudadonasúltimassemanas,ouseriaamudançade
umaoresultadodamudançadaoutra?TeriasidoKaitquemse
tornara agressiva? Ou ela simplesmente parecia estar assim
devidoàsúbitaprostraçãodeSatipy?
Definitivamente, Satipy estava diferente. Sua voz já não se
levantava mais naquele tom rabugento tão familiar. Ela se
arrastavapelo pátio e pela casanumpassonervoso e inseguro,
completamente diferente do seu jeito autoconfiante. Renisenb
acreditou que a mudança devia-se ao choque pela morte de
Nofret,maspareciaincrívelqueissopudessedurartantotempo.
SeriamuitomaisdoestilodeSatipy,eRenisenbsópodiapensar
assim,terexultadoabertamente,defato,comamorterepentinae
precoce da concubina. Ultimamente, porém, ela se encolhia
nervosamentetodavezqueonomedeNofreterapronunciado.Até
mesmoYahmosepareciaestarasalvodesuaarreliaeopressãoe,
em conseqüência, começou a assumir um comportamentomais
resoluto.DeformaalgumaamudançadeSatipyeratodaparao
bem—oupelomenosassimo/supunhaRenisenb.Noentanto,
alguma coisa nesse comportamento deixava-a um pouco
inquieta...
Derepente,numsobressalto,Renisenbseapercebeudeque
Kaitestavaolhandoparaela,assobrancelhascerradas.Kait,ela
compreendeu,estavaesperandoporumapalavraqueconfirmasse
oqueacabaradedizer.
—Renisenbtambém—repetiuKait—esqueceu.
Subitamente,Renisenbsentiuumaondaderevolta inundá-
la.NemKait,nemSatipy,nemninguémpoderialheditardoque
deveriaounãoselembrar.RespondeuaoolhardeKaitcomuma
claraalusãodedesafio.
— As mulheres de uma casa — disse Kait — devem
permanecerjuntas.
Renisenb ganhou coragem e retrucou clara e
desafiadoramente:
—Porquê?
—Porqueseusinteressessãoosmesmos.
Renisenb sacudiu a cabeça violentamente. Pensou,
confusamente: “Sou uma pessoa, bem como uma mulher. Sou
Renisenb.”
Disseentãoemvozalta:—Nãoéassimtãosimples.
—Estáquerendocriarproblemas,Renisenb?
— Não. Mas, em todo caso, o que você quer dizer com
problemas?
—Tudooquefoiditonosalão,naqueledia,seriamelhorque
fosseesquecido.
Renisenbriu.
—Vocêéestúpida,Kait.Oscriados,osescravos,minhaavó...
todos devem ter ouvido! Por que fingir que coisas que
aconteceramnãoaconteceram?
—Nósestávamoszangadas—disseSatipynumavozpesada.
—Nãofalávamosasério.
Eacrescentoucomirritaçãofervorosa:
— Pare de falar nisso. Kait. Se Renisenb quiser criar
problemas,deixe-a.
— Não quero criar problemas — retrucou Renisenb
indignada.—Maséestúpidofingir.
—Não—disseKait—,ésábio.VocêtemdepensaremTeti.
—Tetiestábem.
— Tudo está bem... agora que Nofret está morta — sorriu
Kait.
Era um sorriso sereno, calmo, satisfeito — e novamente
Renisenbsentiuumamaréderevoltacrescerdentrodesi.
No entanto, o queKait disse era verdade.Agora, queNofret
estavamorta,tudoestavabem.
Satipy,Kait, elaprópria,ascrianças...Tudoseguro— tudo
em paz— sem apreensões com relação ao futuro. A intrusa, a
perturbadora e ameaçadora estranha havia partido — para
sempre.
Por que então esse aflorar de uma emoção, que lhe era
incompreensível,emfavordeNofret?Porqueessesentimentode
vitória para a moça morta, de quem ela própria não gostava?
NofreteramáeNofretestavamorta—nãopoderiaencarar isso
naturalmente?Porqueessasúbitapontadadepiedade—oualgo
maisquepiedade—,algoquequasechegavaasercompreensão?
Renisenb sacudiu perplexa a cabeça. Sentou-se perto da
água, depois que as outras se foram, tentando em vão
compreenderaconfusãoqueiaemsuacabeça.
OsolestavabaixoquandoHori,cruzandoopátio,avistou-ae
veiosentar-seaoseulado.
—Étarde,Renisenb.Osolestásepondo.Vocêdeveriaentrar
—suavozcalmaegraveaacalmou,comosempre.Voltou-secom
umapergunta.
—Devemasmulheresdeumacasaseconservarunidas?
—Quemlhedisseisso,Renisenb?
—Kait.ElaeSatipy...
Renisenbcalou-se.
—Evocê...querpensarporsiprópria?
—Oh,pensar!Nãoseicomopensar,Hori.Tudoestáconfuso
emminhacabeça.Aspessoassãoconfusas.Todossãodiferentes
daquilo que eu pensei que fossem. Sempre pensei que Satipy
fosse corajosa, resoluta, dominante. Mas agora ela está fraca,
vacilante, tímida até. Qual é então a verdadeira Satipy? As
pessoasnãopodemmudarassimderepente.
—Derepente...não.
— E Kait... ela que sempre foi suave e submissa, deixando
todosaintimidarem.Agora,elanosdominaatodos!Atémesmo
Sobekparecetermedodela.MesmoYahmoseestádiferente...ele
dáordenseesperaqueelassejamobedecidas!
—Etudoissolheconfunde,Renisenb?
—Sim,porqueeunãoentendo.Àsvezessintoqueaprópria
Henet talvez seja bastante diferente daquilo que sempre
aparentouser!
Renisenbriu,comoquediantedeumabsurdo.MasHorinão
aacompanhou.Seurostoseconservougraveepensativo.
— Você nunca pensou muito sobre as pessoas, não é,
Renisenb?Setivessepensado,teriacompreendido.—Calou-see
continuou: — Você sabia que em todos os túmulos há sempre
umaportafalsa?
Renisenbolhou-ofixamente.—Sim,éclaro.
—Bem,aspessoastambémsãoassim.Elascriamumaporta
falsa... para iludir. Se estão conscientes de sua fraqueza e
ineficiência,constroemumaimponenteportadeauto-afirmação,
deviolência,deesmagadoraautoridadee,depoisdealgumtempo,
elas próprias passam a acreditar nisso. Elas pensam, e todos
pensam, que são assim.Mas por detrás dessa porta, Renisenb,
existeapenasumvazio...Então,quandoarealidadevemeostoca
com a pena da verdade, seu verdadeiro eu ressurge. Pois a
gentileza e a submissão de Kait lhe trouxeram tudo o que
desejava:maridoefilhos.Aestupideztornousuavidamaisfácil,
mas quando a realidade em forma de perigo se tornou
ameaçadora,suaverdadeiranaturezaapareceu.Elanãomudou,
Renisenb;essaforçaeessacrueldadesempreestiveramnela.
Renisenb disse singelamente: — Mas eu não gosto disso,
Hori. Dá-me medo. Todos sendo diferentes daquilo que eu
pensava.Eeu?Eusousempreamesma.
—Temcerteza?—Elelhesorriu.—Entãoporquevocêficou
aqui sentada todas essas horas, com a testa enrugada,
meditando,pensando?AantigaRenisenb...aRenisenbquesefoi
comKhay...algumavezfezisso?
—Oh,não.Nãoeranecessário.—Renisenbcalou-se.
—Estávendo?Vocêmesmaodisse.Essaéumapalavrareal:
necessidade. Você não é a criança feliz e despreocupada que
sempre aparentou ser, aceitando tudo pelo seu valor aparente.
Vocênãoéapenasumadasmulheresdacasa.VocêéRenisenb,
que quer pensar por si própria, que quer saber sobre as outras
pessoas...
Renisenbdisselentamente:—TenhopensadoemNofret...
—Oquevocêtempensado?
—Tenhopensadonomotivopeloqualnãoconsigoesquecê-
la...Elaeramáecruel, tentounos fazermal, eestámorta.Por
quenãopossodeixarissocomoestá?
—Vocênãopode?
— Não. Eu tento, mas... — Renisenb calou-se. Passou as
mãos pelos olhos, perplexa.— Às vezes eu sinto que sei sobre
Nofret,Hori.
—Sabe?Quequerdizer?
—Nãoseiexplicar.Masissomeaconteceàsvezes;écomose
ela estivesse aqui, ao meu lado. Sinto quase como se eu fosse
ela...pareçosaberoqueelasentia.Elaeramuitoinfeliz,Hori,sei
dissoagora,emboranãoosoubessenaépoca.Elaquerianosferir
exatamenteporsertãoinfeliz.
—Issovocênãopodesaber,Renisenb.
—Não,claroquenãopossosaber,maséoquesinto.Miséria,
amargura,aquelaraivanegra...tudoissoeuvicertavezemsua
face e não entendi! Ela deve ter amado alguém e alguma coisa
correuerrada;talvezeletenhamorrido...oupartido,masofatoé
que a deixou assim, querendo ferir, machucar. Oh, você pode
dizer o que quiser, eu sei que estou certa! Ela se tornou a
concubinadessehomemvelho,meupai;veioparacáenósnão
gostávamos dela. E assim pensou em nos fazer tão infelizes
quantoela.Sim,foiisso!
Horiolhou-acuriosamente.
— Você parece tão certa, Renisenb. No entanto, você não
conheceuNofret.
—Maseusintoqueéverdade,Hori.Euasinto...Nofret.Às
vezeseuasintomuitopertodemim...
—Entendo.
Houveumsilêncioentreeles.Estavaquaseescuro,agora.
Então, Hori disse calmamente: — Você acredita que Nofret
não morreu acidentalmente, não é isso? Acha que ela foi
empurradaládecima?
Renisenb sentiu uma violenta repugnância ao ouvir seus
sentimentostransformadosempalavras.
—Não,não,nãodigaisso.
—Maseucreio,Renisenb,queseriamelhorsetocássemosno
assunto...jáqueestánasuacabeça.Vocêpensaassim,nãoé?
—Eu...sim!
Hori pendeu a cabeça para o lado, pensativamente. E
continuou:
—EvocêpensaquefoiSobek?
—Equemmaispoderiatersido?Vocêselembradelecoma
cobra? Lembra-se do que ele disse, naquele dia, no dia emque
Nofretmorreu,antesdesairdosalão?
— Lembro-me do que ele disse, sim. Mas nem sempre as
pessoasquedizemsãoasquefazem!
—Entãonãoacreditaqueelafoimorta?
— Sim, Renisenb, acredito... Mas, afinal, é apenas uma
opinião. Não tenho provas. E penso que jamais teremos essa
prova.FoiporissoqueencorajeiImhotepaaceitaroveredictode
acidente. Alguém empurrou Nofret... mas jamais saberemos
quem.
—EntãovocêachaquenãofoiSobek?
—Achoquenão.Mas,comodisse,nuncasesabe;portantoé
melhornãopensarsobreisso.
—Mas...senãofoiSobek...quemvocêpensaquefoi?
Horibalançouacabeça.
— Se eu tivesse uma idéia, talvez fosse uma idéia errada.
Portantoémelhornãodizer...
—Masentão...nuncasaberemos!
HaviafraquezanavozdeRenisenb.
—Talvez—Horihesitava—,talvezsejamelhorassim.
—Nãosaber?
—Nãosaber.
Renisenbsentiuumcalafrio.
—Masentão...oh,Hori,eutenhomedo!
CAPÍTULOXI
PrimeiroMêsdeVerão
DécimoPrimeiroDia
I
As cerimônias finais haviam sido concluídas e as magias
devidamente ditas. Montu, o Divino Pai do Templo de Hathor,
pegou a vassoura de folhas de heden e cuidadosamente foi
varrendoacâmara,dedentroparafora,enquantorecitavafrases
mágicas para remover as pegadas de todos os espíritos domal,
antesqueaportafosselacradaparasempre.
Otúmulofoi,então,fechado,etudooquesobroudotrabalho
dos embalsamadores, potes repletos de sódio, sal e trapos que
haviam estado em contato com o corpo, foi colocado numa
pequenacâmaravizinhaetambémestafoilacrada.
Imhotep endireitou os ombros e respirou fundo, relaxando
sua expressão fúnebre. Tudo fora feito de maneira adequada.
Nofret havia sido enterrada com os devidos rituais e sem
economia de despesas (despesas um tanto desnecessárias, na
opiniãodeImhotep).
Imhotep trocava cortesias com os Sacerdotes que, findos
agoraosofíciossagrados,reassumiamseushábitosdehomensdo
mundo.Desceramtodosatéacasaondeosesperavamrefrescos
apropriados. Imhotep discutia com o principal Pai Divino as
recentes mudanças políticas. Tebas estava rapidamente se
transformandonumacidademuitopoderosa.Erapossívelqueem
breveoEgitotivessenovamentedeseunirsobocomandodeum
governante.AIdadedeOurodosconstrutoresdepirâmidestalvez
voltasse.
MontufaloucomreverênciaeaprovaçãodoReiNebhepet-Re.
Umsoldadodeprimeira linhae tambémumhomempiedoso.O
Norte,corruptoecovarde,dificilmentepoderiaseoporaele.Um
Egito unificado, isso é que era preciso. E iria significar, sem
dúvida,muitoparaTebas...
Oshomenspassearamjuntos,discutindoofuturo.
Renisenb olhou para trás, em direção à rocha e à câmara
mortuárialacrada.
—Então,issoéofim—murmurou.Umasensaçãodealívio
apoderou-se dela. Havia temido não sabia bem o quê! Alguma
explosãoouacusaçãodeúltimahora?Mastudocorreranamais
completa tranqüilidade.Nofret foi devidamente enterradadentro
detodososrituaisdareligião.
Eraofim.
Henet disse, suspirando:— Assim o espero, estou certa de
queassimoespero,Renisenb.
Renisenbvoltou-separaela.
—Quequerdizer,Henet?
Henetevitouseusolhos.
—Acabeidedizerqueesperoquesejaofinal.Àsvezes,aquilo
queseacreditaserofim,nãopassadocomeço.Issonãobasta,de
formaalguma.
Renisenb disse zangada:—Do que está falando, Henet? O
queestáinsinuando?
—Estoucertadequenuncainsinuo,Renisenb.Eunãofaria
tal coisa. Nofret está enterrada e todos estão satisfeitos. Então,
tudoestácomodeveriaser.
Renisenb perguntou:—Meu pai lhe perguntou o que você
pensavasobreamortedeNofret?
— Sim, de fato, Renisenb. Mais especificamente, que eu
deverialhedizerexatamenteoquepensavadetodoocaso.
—Eoquevocêlhedisse?
—Bem, claro que eu disse ter sidoumacidente.Quemais
poderiatersido?Vocênãopensou,nemporuminstante,eulhe
disse,quealguémdesuafamília iriaquerercausarmalàmoça,
não é? Eles não se atreveriam; respeitam demais a sua pessoa.
Talvez resmunguem, mas nada além disso, eu disse. Posso
assegurar-lhequenãohouvenadadessegênero!
Henetassentiucomacabeçaeseuumarisadinha.
—Emeupaiacreditouemvocê?
Henetassentiunovamentemostrandosatisfação.
—Ora, seupai sabe comsoudevotadaaos seus interesses.
Ele sempreconfiaránapalavradavelhaHenet.Elemeaprecia,
aindaqueorestodevocêsnãoofaça.Bem,minhadedicaçãopara
comvocêséaprópriarecompensa.Nãoesperoagradecimentos.
—VocêtambémeradedicadaaNofret—observouRenisenb.
— Realmente não sei como é que lhe ocorreu essa idéia,
Renisenb.Eutinhaqueobedecerasordens,comotodomundo.
—Elapensavaquevocêlheeradedicada.
Henetdeuoutrarisadinha.
—Nofretnãoeratãointeligentequantoelaprópriapensava...
Umamoçaorgulhosa...quepensavaserdonadomundo.Bem,ela
terá agora que agradar os juízes do Outro Mundo... e lá uma
carinhabonitanãoiráajudá-la.Estamoslivresdela.Pelomenos:
—acrescentoubaixinhoe tocouumdosamuletosqueusava—
assimespero.
II
—Renisenb,querolhefalarsobreSatipy.
—Claro,Yahmose.
Renisenbolhoucomsimpatiaparaafacesuaveepreocupada
deseuirmão.
Yahmosedisselentaegravemente:—Algumacoisanãoanda
bemcomSatipy.Nãoconsigoentender.
Renisenbbalançouacabeçatristemente.Estavaembaraçada
pornãoencontrarnadadereconfortanteparadizer.
—Tenhoobservado essamudançanelaháalgum tempo—
continuou Yahmose. — Ela se assusta e treme com um mero
ruídoestranho;nãosealimentabem.Arrasta-secomose...como
setivessemedodesuaprópriasombra.Vocêdeveterpercebido,
Renisenb.
—Sim,realmente,todosnósnotamos.
—Perguntei-lhe se estádoente, sedevomandarbuscarum
médico,maseladizquenãoénada...queestáperfeitamentebem.
—Eusei.
— Então você também lhe perguntou? E ela não lhe disse
nada...nada?
Eleacentuoubastanteaspalavras.Renisenbcondoeu-sede
suapreocupação,masnãopôdedizernadaqueajudasse.
—Satipyinsisteemdizerqueestábem.
Yahmosemurmurou:—Elanãodormebemànoite...chora
enquanto dorme. Teria ela alguma tristeza da qual nada
sabemos?
Renisenbbalançouacabeça.
—Nãovejocomoissoseriapossível.Nadahádeerradocom
ascrianças.Nadaaconteceuaqui...anãoser,éclaro,amortede
Nofret; e Satipy dificilmente iria sofrer com isso— acrescentou
Secamente.
Yahmosesorriuligeiramente.
—Não,defato.Muitopelocontrário.Alémdomais,issonão
érecente.Começou,eucreio,antesdamortedeNofret.
Seu tom era um pouco incerto e Renisenb olhou-o
rapidamente.Yahmosedissecompersistênciasuave:
—AntesdamortedeNofret,vocênãoacha?
— Eu nada percebi senão depois — replicou Renisenb
devagar.
—Eelanãolhedissenada...vocêtemcerteza?
Renisenbbalançouacabeça.—Masnãocreio,Yahmose,que
Satipy esteja doente. A mim me parece que ela está antes...
amedrontada.
—Amedrontada?—indagouYahmosecomgrandesurpresa.
— Mas por que deveria Satipy sentir medo? E de quê? Satipy
sempreteveacoragemdeumleão.
—Eusei—disseRenisenbemdesamparo.—Foiassimque
semprepensamos;masaspessoasmudam...éestranho.
—SeráqueKaitsabedealgumacoisa?Satipyfaloucomela?
—Setivessedefalar,elaofariamuitomaiscomKaitdoque
comigo,masnãocreio.Naverdadeestoucertadisso.
—OquepensaKait?
—Kait?Kaitnuncapensanada.
Tudo o que Kait havia feito, refletiu Renisenb, tinha sido
tomarvantagemdaincomumfraquezadeSatipy,apoderando-se
—parasieascrianças—dasmelhoresfazendasrecém-tecidas,
algoquejamaisteriafeitocasoestivesseSatipyemplenaforma.A
casa iria tremer com disputas passionais! O fato de Satipy ter
cedido sem a mínima objeção impressionou Renisenb mais do
quequalqueroutracoisaquepudesseteracontecido.
—VocêfaloucomEsa?—perguntouRenisenb.—Nossaavó
ésábiacomrelaçãoamulhereseseushábitos.
— Esa — disse Yahmose com certa contrariedade —
simplesmentemedizparaseragradecidopelamudança.Dizque
émuitoesperarqueSatipycontinueasertãodocementerazoável.
Renisenbdissecomumalevehesitação:—Vocêperguntoua
Henet?
—Henet?—Yahmosefranziuatesta.—Não,claro.Eunão
falaria de tais coisas com Henet. Seus encargos já vão longe
demais.Meupaiaestragou.
—Oh, eu sei, ela é cansativa.Masmesmo assim... bem—
Renisenbhesitou—Henetsempresabedascoisas.
Yahmosedisselentamente:—Vocêfalarácomela,Renisenb?
Emecontaráoqueeladisser?
—Sevocêquiser.
Renisenbreferiu-seàquestãoquandoseencontrouasóscom
Henet. Dirigiam-se ao galpão dos teares. Para surpresa sua, a
pergunta pareceu ter incomodado Henet, que não demonstrou
aquelasuacostumeiraavidezdemexericar.
Henettocounoamuletoqueestavausandoeolhouporsobre
osombros.
— Não tenho nada a ver com isso, estou certa... Não é da
minha conta observar se alguém está agindode acordo consigo
próprioounão.Preocupa-mecomasminhascoisas.Seháalgum
problema,nãoqueromeenvolver.
— Problema? Que espécie de problema? Henet olhou-a
rapidamentedeesguelha.
— Nenhum, espero. Nenhum que nos diga respeito, pelo
menos. Você e eu, Renisenb, não temos nada do que nos
reprovar.Issoéumgrandeconsoloparamim.
—VocêquerdizerqueSatipy...oquequerdizer?
—Nãoquerodizernada,Renisenb.E,porfavor,nãocomece
a imaginar que sim. Sou poucomais do que uma criada nesta
casaenãoédaminhacontadaropiniãosobrecoisasquenada
têmavercomigo.Sevocêmepergunta,mudouparamelhor;ese
pararporaí,bem,nóstodosnossairemosbem.Agora,porfavor,
Renisenb, devolver se estão marcando corretamente a data no
linho. São todas descuidadas, essas mulheres, sempre falando,
rindoenegligenciandoseutrabalho...
Insatisfeita, Renisenb viu-a afastar-se em direção ao galpão
dosteares.Então,rumoulentamenteparacasa.Suaentradano
quartodeSatipynãofoiouvidaeestasevoltoubruscamentecom
umgritoquandoRenisenbtocou-lheosombros.
—Oh,vocêmeassustou.Pensei...
—Satipy—disseRenisenb—oquehá?Nãovaimedizer?
Yahmoseestápreocupadocomvocêe...
OsdedosdeSatipytaparamabocadeRenisenb.Satipydisse
então, gaguejando nervosamente, os olhos arregalados e
amedrontados:—Yahmose?Quedisseele?
—Eleestápreocupado.Vocêtemgritadonosono...
—Renisenb!—Satipysegurou-apelobraço.—Eudisse...O
quefoiqueeudisse?
Seusolhospareciamdilatadosdeterror.
—Yahmosepensa...quelhedisseele?
—Nósdoispensamosquevocêestádoente...ouinfeliz.
—Infeliz?—Satipyrepetiuapalavrabembaixinho,comuma
entonaçãopeculiar.
—Vocêestáinfeliz,Satipy?
—Talvez...nãosei.Não,nãoéisso.
—Não.Vocêestácommedo,nãoestá?
Satipyaencaroucomsúbitahostilidade.
—Porquedizisso?Porquedevoestarcommedo?Oquehá
parameamedrontar?
—Nãosei—disseRenisenb.—Maséverdade,não?
Com esforço, Satipy readquiriu sua antiga pose arrogante.
Atirouacabeçaparatrás.
— Não estou com medo de nada... de ninguém! Como se
atreveasugerirtalcoisa,Renisenb?Enãoqueroqueconversea
meu respeito com Yahmose. Yahmose e eu nos entendemos.—
Fezumapausaedisseasperamente:—Nofretestámorta...deboa
noslivramos.£issooquedigo.Evocêpodedizeratodosqueé
assimquesinto!
—Nofret?—Renisenbarticulouonomeinquisidoramente.
SatipyfoitomadadeumapaixãoquefezlembraraSatipydos
velhostempos.
—Nofret,Nofret,Nofret!Estoucansadadosomdessenome.
Nãomaisprecisamosouvi-lonestacasa...aindabem.
Suavoz,quehaviaalcançadoovelhotomagudo,baixoude
repenteàentradadeYahmose.Disseele,comausteridadeforado
comum:
— Fique quieta, Satipy. Se meu pai ouvi-la, teremos mais
problemas.Como é que vocêpode se comportar demaneira tão
idiota?
Se o tom austero e contrariado de Yahmose foi incomum,
tambémofoiahumildeprostraçãodeSatipy,quemurmurou:—
Desculpe,Yahmose...Nãopensei...
—Bem,tenhamaiscuidadonofuturo!VocêeKaitcriarama
maioria dos problemas de antes. Vocês, mulheres, não têm o
mínimosenso!
Satipymurmurounovamente:—Desculpe...
Yahmoseretirou-se,osombroserguidoseopassomuitomais
resoluto do que o normal, como se o fato de ter afirmado sua
autoridadedeumavezportodaslhetivessefeitobem.
Renisenbdirigiu-se lentamenteaoquartodavelhaEsa.Sua
avó,pensoudeveriateralgumconselhoútil.
Todavia, Esa, que estava comendo uvas commuito deleite,
recusou-sealevaroassuntoasério.
—Satipy?Satipy?Porque todaestaconfusãoporcausade
Satipy? Todos gostam tanto de sermaltratados e de receberem
ordens a ponto de fazerem toda essa confusão porque ela, pelo
menosumavez,secomportabem?
Cuspiuassementesdauvaeacentuou:
—Emtodoocaso,ébomdemaisparadurar...anãoserque
Yahmoseconsigamanterascoisascomoestão.
—Yahmose?
—Sim.EsperoqueYahmosetenhatomadojuízo,finalmente,
e dado uma boa surra nela. É disso que Satipy precisa; ela é
daquela espécie de mulher que provavelmente vai gostar muito
disso. Yahmose, com seus modos dóceis e servis, deve ter sido
umagrandeprovaçãoparaela.
—Yahmoseéumamor—gritouRenisenbindignada.—Ele
ébomparatodosegentilcomoumamulher...seéqueelasosão
—acrescentou,duvidosa.
Esasoltouumarisadinha.
— Eis aí uma excelente reflexão, minha neta. Não, não há
nadadegentilcomrelaçãoàsmulheres...ou,sehouver,queIsis
asajude!Ehápoucasmulheresquesepreocupamcommaridos
gentis e bons! Elas preferem um bruto bonito e violento como
Sobek;eleédotipopeloqualasmoçasseinclinam.Ouentãoum
jovem inteligente como Kameni, hein, Renisenb? Asmoscas do
pátio não pairam sobre ele! Além disso, tem bom gosto para
cançõesdeamor,hã?Ah,ah,ah!
Renisenbsentiusuasfacesenrubescerem.
—Nãoseioqueestádizendo—retrucoucomdignidade.
—VocêstodospensamqueEsanãosabeoquesepassa!Pois
eu sei e muito bem! — Ela encarou Renisenb com seus olhos
quasecegos.—Eusei,talvez,maisdoquevocê,minhacriança.
Não fique brava. A vida é assim, Renisenb. Khay era um bom
irmãoparavocê—maseleagoranavegaseubarconoCampodas
Oferendas.Airmãencontraráumnovoirmãoquelanceseupeixe
emnossoprópriorio;nãoqueKamenisejasuficientementebom.
Umapenadejuncoeumrolodepapirosãoassuasinclinações.
Trata-sedeumjovematraente,mesmoassim,comumbomgosto
paramúsicas.Masnão estou certa de que ele é o homempara
você.Nãosabemosmuitacoisasobreele...éumnortista.Imhotep
gosta dele, mas eu sempre achei que Imhotep era um tolo.
Qualquerumpodeseacercardelecombajulação.VejaHenet!
— Você está completamente errada — disse Renisenb com
dignidade.
—Muitobem,então,euestouerrada.Seupainãoéumtolo.
—Nãoquisdizerisso.Euquis...
— Sei o que você quis dizer, minha filha. — Esa sorriu
maliciosamente.—Masvocênãoconheceaverdadeiradiversão.
Você não sabe como é bom ficar sentada tranqüilamente, como
eu,ejánãotermaisnadacomessashistóriasdeirmãoseirmãs,
e amor e ódio.Comerumagorda codorniz bemassadaouuma
papa-arroz,edepoisumbolocommel,algunsalhos-poróseaipos
bem cozidos e regá-los com vinho daSíria, e não ter nenhuma
preocupaçãonomundo.Observartodootumultoepreocupação,
esaberquenadadisso lhepodeafetar.Verseufilhopassarpor
idiotaporcausadeumamoçabonita,evê-laatearfogoemtudo...
fiquecertadequejárimuito!Decertomodo,eugostavadaquela
moça!Ela trazia odemônio emsi, pelamaneira como tocouna
feridadecadaum.Sobek,comoum faroleiroamedrontado; Ipy,
como uma criança; Yahmose, envergonhado como um marido
tiranizado. Ela os fez ver da maneira como se parecem para o
mundo.Masporqueelaodiavavocê,Renisenb?Responda-me.
— Elame odiava?— Renisenb retrucou duvidosa.— Eu...
certaveztenteimetornarsuaamiga.
—Eelanãoaceitou?Sim,elaodiavavocê,Renisenb.
Esafezumapausaeentãoperguntoubruscamente;
—SeriaporcausadeKameni?
AfacedeRenisenbcorou:—Kameni?Nãoseioquevocêquer
dizer.
Esadissepensativamente:—ElaeKamenivieramambosdo
norte,maseravocêqueKameniobservavaatravessaropátio.
Renisenbdisseabruptamente:
—PrecisoirverTeti.
OagudoedivertidorisodeEsaacompanhou-a.Comasfaces
quentes,Renisenbcorreupelopátioemdireçãoaolago.
Kameniachamoudopórtico:
—Fizumanovacanção,Renisenb;fiqueeescute.
Ela balançou a cabeça é continuou correndo. Seu coração
batia com fúria. Kameni e Nofret. Nofret e Kameni. Por que
permitir que Esa, com suamalícia, pusesse tais idéias em sua
cabeça?Eporquedeveriaelasepreocupar?
De qualquer maneira, que importância tinha? Pouco se
importavacomKameni.Umjovemimpertinente,devozrisonhae
ombrosqueafaziamlembrardeKhay.
Khay...Khay...
Repetiuseunomeinsistentemente—mas,pelaprimeiravez,
nenhuma imagem lhe veio aos olhos. Khay estava em outro
mundo.EleestavanoCampodasOferendas...
Nopórtico,Kamenicantavasuavemente:
EudireiaPtah:Dê-meminhairmãestanoite...
III
—Renisenb!
Horihaviarepetidoseunomeduasvezesatéqueelaoouviue
deixoudecontemplaroNilo.
—Você estava perdida em pensamentos, Renisenb; em que
pensava?
Renisenbdisseprovocadoramente:
—EstavapensandoemKhay.
Horiolhou-aporunsinstantes—eentãosorriu:
—Sei—disse.
Renisenb teve uma sensação desconfortável de que ele
realmentesabia!Disseapressadamente:
—Queacontecequandosemorre?Alguémsabe realmente?
Todos esses textos, todas essas coisas escritas nos caixões,
algumassãotãoobscurasqueparecemnadasignificar.Sabemos
queOsírisfoimortoequeseucorpofoinovamentereconstituído,
que ele usa a coroa branca e que por causa dele nós não
precisamosmorrer;masàsvezes,Hori,nadadissoparecerealeé
tudotãoconfuso...
Horiassentiugentilmente.
—Masoquerealmenteacontecedepoisqueseestámorto...
issoéoqueeuquerosaber.
—Nãoseidizer,Renisenb;vocêdeveriafazeressasperguntas
aumsacerdote.
—Ele iriamedarapenasasrespostasdesempre.Euquero
saber.
Hori disse gentilmente: — Não saberemos até que nós
própriosestejamosmortos...
Renisenbestremeceu.
—Não,nãodigaisso!
—Algumacoisaaperturbou,Renisenb?
—FoiEsa.—Fezumapausaeentãodisse:—Diga-me,Hori:
KamenieNofretjáseconheciamantes...antesdeviremparacá?
Horiconservou-seimóvelporummomentoeentão,enquanto
caminhavadevoltaparacasa,aoladodeRenisenb,disse:—Sei,
entãoéisso...
— Que quer dizer com “então é isso”? Apenas lhe fiz uma
pergunta.
— Para a qual não sei a resposta. Nofret e Kameni se
conheceramnonorte;oquanto,nãosei.
Eleacrescentougentilmente:—Issoimporta?
— Não, claro que não — disse Renisenb. — Não tem
importânciaalguma.
—Nofretestámorta.
—Mortaeembalsamadaelacradanotúmulo!Epronto!
Horicontinuoucalmamente:
—EKameninãoparecesepreocupar...
— Não — disse Renisenb, surpresa com esse aspecto da
questão.—Issoéverdade.—Voltou-separaeleimpulsivamente.
—Oh,Hori,vocêétãoconfortante!
Elesorriu.
—EuconsertavaosleõesdapequenaRenisenb.Agora...ela
temoutrosbrinquedos.
Renisenbladeouacasaquandoalichegaram.
—Nãoqueroentrar,ainda.Sintoqueosodeio,atodos.Bem,
não realmente, você compreende. Apenas, porque estou mal-
humorada e impaciente, todos me parecem estranhos. Não
poderíamossubiratéoseuTúmulo?Étãobonitoláemcima...é
comoseestivéssemosacimadetudo.
— Disse-o bem, Renisenb. Isso é o que sinto. A casa, a
plantação, as terras cultivadas... tudo está abaixo de nós,
insignificante.Pode-seolharmaisalém,paraorio,eaindaalém,
para todo o Egito. Pois muito em breve o Egito será um só
novamente;forteegrandecomofoinopassado.
Renisenbmurmurouvagamente.
—Oh,eissofazalgumadiferença?
Horisorriu.
— Não para a pequena Renisenb. Para ela, apenas o seu
pequenoleãoimporta.
— Você está rindo demim, Hori. Então isso realmente lhe
importa?
Horimurmurou:—Porquedeveriaimportar?Souapenaso
homem que trata dos negócios do sacerdote de Ka. Por que
deveria eu me importar com o fato de o Egito ser grande ou
pequeno?
—Veja!—Renisenbchamou-lheaatençãoparaopenhasco
acima deles. — Yahmose e Satipy estiveram lá em cima no
Túmulo.Estãodescendoagora.
— Sim — disse Hori. — Havia lá algumas coisas a serem
arrumadas, alguns rolos de linho que os embalsamadores não
usaram.YahmosedissequepediriaaSatipyparasubireajudá-lo
adecidiroquefazercomeles.
Ambos permaneceram olhando para os dois que vinham
descendopelocaminhoacimadeles.
De súbito ocorreu a Renisenb que eles estavam se
aproximandodolugardeondeNofretdeveriatercaído.
Satipyvinhanafrente,seguidadeYahmose.
De repente Satipy virou a cabeça para falar com Yahmose.
Talvez,pensouRenisenb,estejadizendoaelequeesteéo lugar
ondeocorreuoacidente.
Então,Satipydeteve-sebruscamente.Permaneceucomoque
congelada,olhandoparatrás,aolongodocaminho.Seusbraços
ergueram-se como que diante de uma visão horrorosa ou como
paraseprotegerdeumarajadadevento.Satipyexclamoualgo,
tropeçou,osciloue,quandoYahmosesaltavaemsuadireção,ela
soltouumgritode terroreescorregoudabeirada,mergulhando
sobreosrochedosláembaixo....
Renisenb, com a mão na garganta, assistiu incrédula à
queda.
Satipy,ocorpodisforme,jaziaagorabemnolugarondehavia
estadoocorpodeNofret.
Levantando-se, Renisenb correu em sua direção. Yahmose
estavachamandoecorriapelocaminhoabaixo.
Renisenbalcançouocorpodesuacunhadaecurvou-sesobre
ele.OsolhosdeSatipyestavamabertos,aspálpebrasagitando-se.
Seus lábiossemoviamtentando falar.Renisenbcurvou-semais
para perto dela. Estava assustada com o terror estampado nos
olhosdeSatipy.
Ouviu-seentãoavozdamulheragonizante:eraapenasum
murmúriorouco.
—Nofret...
AcabeçadeSatipycaiuparatrás.Seumaxilarpendeu.
HorihaviaseguidoaoencontrodeYahmose.Osdoishomens
chegaramjuntos.
Renisenbdirigiu-seaoseuirmão.
—Oqueelagritou,láemcima,antesdecair?
A respiração de Yahmose tornara-se entrecortada; ele mal
podiafalar.
—Elaolhoupor cimadomeuombro, comose tivesse visto
alguémvindopelocaminho,masnãohavianinguém...nãohavia
ninguémlá.
Horiassentiu:
—Nãohavianinguém...
A voz de Yahmose transformou-se num murmúrio,
aterrorizado:
—Entãoelagritou...
—Oqueeladisse?—perguntouRenisenbimpaciente.
—Eladisse...eladisse...—Suavoztremeu—Nofret..
CAPÍTULOXII
PrimeiroMêsdeVerão
DécimoSegundoDia
—Entãoéissoquevocêqueriadizer?
Renisenb dirigiu essas palavras a Hori mais como uma
afirmaçãodoquecomoumapergunta.
Eajuntoubaixinho,emcrescentecompreensãoehorror:
—FoiSatipyquemmatouNofret...
Com o queixo apoiado nas mãos, sentada na entrada da
pequena câmara de pedra de Hori, junto ao Túmulo, Renisenb
olhavafixamenteovaleabaixodela.
Pensou,sonhadoramente,quãoverdadeiraseramaspalavras
que ela havia proferido ontem (fazia tão pouco tempo,
realmente?). Lá de cima, a casa e as apressadas e ocupadas
pessoas não tinham mais significado ou sentido do que um
formigueiro.
Apenasosol,majestoso,brilhandoacimadetudo—apenasa
finafaixaprateadaqueeraoNiloà luzmatutina—apenaseles
eram eternos e permanentes. Khay havia morrido, bem como
NofreteSatipy—algumdiaelaeHoritambémpartiriam.MasRá
aindareinarianoparaísoeviajariaduranteanoiteemseubarco
através doOutroMundo, até a aurora do dia seguinte. E o rio
continuaria a correr, de além de Elephantine até Tebas, e
ultrapassaria a cidade e chegaria ao Baixo Egito, onde Nofret
viveraeforaalegre,edepoisaooceano,deixandotambémoEgito.
SatipyeNofret...
Renisenb continuou a pensar em voz alta, de vez que Hori
nãolherespondera.
—EuestavatãocertadequeSobek...
Elasecalou.
Horidissepensativamente:—Idéiapreconcebida.
— No entanto, foi estúpido de minha parte — continuou
Renisenb.—Henetmedisse,maisoumenos,queSatipyforadar
umpasseionestadireçãoequeNofretsubiraparacá.Eraóbvio
queeudeveriaterpercebidoqueSatipyhaviaseguidoNofret;que
elas tinham se encontrado no caminho e que Satipy atirou a
outra lá de cima. Satipyhavia dito, poucosminutos antes, que
eramuitomaishomemdoquequalquerumdemeusirmãos.
Renisenbparoueestremeceu.
—Equandoa encontrei—continuou—, eudeveria saber.
Elaestavatãodiferente...tãoamedrontada.Tentoumepersuadir
avoltarcomela.NãoqueriaqueeuencontrasseocorpodeNofret.
Eudevia estar cegaparanãomedar contada verdade.Maseu
estavatãoreceosaporcausadeSobek...
— Eu sei. Isto porque você o viu matar aquela cobra.
Renisenbconcordouvivamente.
— Sim, foi isso. E também sonhei... pobre Sobek! Como o
julgueimal.Comovocêdisse,ameaçarnãoéomesmoquefazer.
Sobeksemprefoicheiodeorgulho,sempresevangloriou.Satipy
équesemprefoiatrevidaecruelesemmedodeagir.Desdeentão,
amaneiracomoelasecomportava,parecendoumfantasma,isso
nos confundiu a todos. Por que não pensamos na verdadeira
explicação?
Elaacrescentouelevandorapidamenteoolhar:
—Masvocêpensou?
—Poralgumtempo—disseHori.—Euestavaconvencidode
que a chave para a verdade sobre a morte de Nofret estava na
extraordináriamudançadecaráterdeSatipy.Foitãonotável,que
deveriahaveralgumacoisaquepudesseesclarecê-la.
—Masvocênãodissenada?
—Ecomopoderia,Renisenb?Oquepoderiaeuprovar?
—Temrazão.
—Provasdevemser fatosconstruídosdesólidasparedesde
tijolo.
—Noentanto,vocêdisseumavez—continuouRenisenb—
queaspessoasnãomudamrealmente.Masagoravocêadmiteque
Satipymudou.
Horisorriuparaela.
— Você deveria argumentar nas cortes nomárquicas. Não,
Renisenb, o que eu disse é muito verdadeiro; as pessoas são
sempre elas próprias. Satipy, como Sobek, era apenas conversa
fiada e bazófia. Ela, realmente, talvez passasse das palavras à
ação.Mas creio que eradesse tipodepessoaquenão consegue
entenderumacoisaenquantoelanãoacontece.Durantesuavida,
até aquele dia, especificamente, Satipy nunca teve nada o que
temer. Quando o medo veio, tomou-a desprevenida. E ela
aprendeu que a coragem era a solução para enfrentar o
imprevisto;eelanãotinhatalcoragem.
Renisenbmurmurouemvozbaixa.
—Quando omedo veio... Sim, foi o que passamos a sentir
desde que Nofret morreu: medo. Satipy o tinha estampado no
rostoparaquetodosvíssemos.Estavalá,impressonosseusolhos
quandomorreu...quandodisse“Nofret...”.Eracomoseelativesse
visto...
Renisenbcalou-se.VoltouorostoparaHori,osgrandesolhos
indagadores:—Hori, o que ela viu? Lá no caminho. Nós nada
vimos!Nãohavianada!
—Nãoparanós.
—Masparaela?FoiNofretqueelaviu...Nofretveioparase
vingar. Mas Nofret está morta e seu túmulo lacrado. Que foi,
então,queelaviu?
—Oquadroquesuaprópriamentelhemostrou.
—Vocêtemcerteza?Porquesenão...
—Sim,Renisenb,senão?
—Hori—Renisenbestendeuamão.—Estáacabado,agora?
AgoraqueSatipymorreu?Estáverdadeiramenteacabado?
Horitomou-lheamãoeapertou-adentrodassuas.
—Sim,sim,Renisenb;claro.Evocê,aomenos,nãoprecisa
termedo.
Renisenbmurmuroubaixinho:
—MasEsadissequeNofretmeodiava...
—Nofretodiavavocê?
—FoioquedisseEsa.
—Nofretsabiaodiarmuitobem—afirmaHori.—Àsvezes,
pensoque ela odiava todasaspessoasdesta casa.Mas você, ao
menos,nãofeznadacontraela.
—Não,não;issoéverdade.
—Portanto,Renisenb,nãohánadaemsuacabeçaquePossa
serlevantadocontravocê.
—Querdizer,Hori,queseeuestivessedescendoporaquele
caminho sozinha, no pôr do sol, àquela mesma hora em que
Nofretmorreu,eseeuvirasseacabeça...eunãoiriavernada?Eu
estariaasalvo?
— Você estará a salvo, Renisenb, porque se você caminhar
porlá,euireicomvocêenenhummalirálheocorrer.
Renisenb,porém,vincouatestaesacudiuacabeça.
—Não,Hori.Euvoucaminharsozinha.
—Masporque,Renisenb?Vocênãoterámedo?
—Sim,creioqueterei.Mas,dequalquerjeito,issotemdeser
feito.Láemcasaestãotodostremendoeabalados,correndoaos
Templos para comprar amuletos, gritando que é melhor não
caminhar por aqui a estahora do poente.Masnão foimagia o
quefezcomqueSatipyescorregasseecaísse:foimedo.Medode
algumacoisaruimqueelahaviafeito.Poisqueémautiraravida
dealguémqueéjovem,forteegostadeviver.Maseunãofizmal
algum e,mesmo que Nofretme odiasse, seu ódio não podeme
ferir.Énissoquecreio.E,dequalquermaneira,setivéssemosde
viverparasemprenomedo,melhorseriamorrer;portanto,euirei
dominaromedo.
—Bravaspalavras,Renisenb!
— Talvezmais fortes do que aquilo que sinto, Hori.— Ela
sorriu-lheelevantou-se.—Masfoibomdizê-las.
Horiergueu-seeficouaoseulado.—Lembrar-me-eidesuas
palavras, Renisenb. Sim; e também da maneira como você
meneou a cabeça ao proferi-las. Elasmostraram a coragem e a
verdadequesempresentiexistirememseucoração.
Horitomou-lheasmãosnasdele.
—Olhe,Renisenb,olhedaquidoalto,atravésdovale,atéo
rio e mais além. Isto é o Egito, nossa terra. Enfraquecido por
guerras e disputas durante muitos anos, dividido em
insignificantesreinos,masqueagora,muitoembreve,iráseunir
para formar mais uma vez um país unido: Baixo e Alto Egito
novamenteconsolidadosemum;esperoeacreditonarecuperação
de sua antiga grandeza! Quando esse dia chegar, o Egito
precisarádehomensemulheresdecoraçãoecoragem,mulheres
comovocê,Renisenb.NãodehomenscomoImhotep,eternamente
preocupadoscomseusparcosganhoseperdas,nemdehomem
como Sobek, negligentes e faroleiros, nem de rapazes como Ipy
quepensamapenasnaquiloquepodemganharparasipróprios
não, nem mesmo de filhos conscienciosos e honestos, como
Yahmose o Egito irá precisar. Aqui, sentado, entre os mortos,
calculando perdas e ganhos, lançando a contabilidade, eu me
depareicomganhosquenãopodemseravaliadosemtermosde
prosperidadeeperdasquecausammaisdanodoqueaperdada
colheita...EuolhoorioevejoosanguevitaldoEgitoqueexistiu
antes de nascermos e continuará a existir depois que
morrermos...Vidaemorte,Renisenb,nãocontamtanto.Eusou
apenas Hori, o homem de negócios de Imhotep, mas quando
observo o Egito eu conheço a paz e uma exultação que não
trocarianemmesmopelocargodeGovernadordaProvíncia.Você
compreendetudooqueeudisse,Renisenb?
—Achoquesim,Hori...emparte.Vocêédiferentedosoutros
láembaixo;dissoeujáseiháalgumtempo.E,àsvezes,quando
estou aqui com você, posso sentir o que você sente, mas
francamente,nãocommuitaclareza.Maseuseioquevocêquer
dizer. Quando estou aqui, as coisas lá embaixo— acentuou—
parecem não ter mais importância. As discussões, os ódios, a
constantegritariaeconfusão.Aquiseescapadetudoisso.
Ela fez uma pausa, a sobrancelha franzida, e continuou,
balbuciando.
—Àsvezeseu...euficofelizporterescapado.Enoentanto...
nãosei...háalgumacoisa,láembaixo,quemechamadevolta.
Horisoltou-lheasmãoserecuouumpasso.
Dissegentilmente:
—Sim,claro;Kamenicantandonopátio.
—Quequerdizer,Hori?NãoestavapensandoemKameni.
— Talvez não estivesse pensando nele. Mas, de qualquer
forma, Renisenb, creio que seja a sua canção que você está
ouvindo,semmesmoosaber.
Renisenboencarou,asobrancelhafranzida.
—Quecoisasincríveisvocêdiz,Hori.Ninguémpoderiaouvi-
locantardaquidecima.Émuitolonge.
Horiolhousuavementeebalançouacabeça.Odivertidodo
seuolharaintrigou.Sentiu-seumpoucoirritadaeconfusa,pois
nãopôdeentendê-lo.
CAPÍTULOXIII
PrimeiroMêsdeVerão
VigésimoTerceiroDia
I
—Possofalarcomvocêporummomento,Esa?
Esa sondouHenet, que permaneciana porta de entradado
quartocomumsorrisoinsinuantenorosto.
—Queé?—perguntouavelha,rispidamente.
—Nãoénada,realmente;pelomenospensoquenão...mas
estavapensandoesóqueriaperguntar...
Esainterrompeu-a.—Entre,entre,Evocê...—eladeuuma
pancadinhacomumavaranascostasdasuapequeninaescrava
negra,queestavaenfiandocontas—váparaacozinha.Traga-me
algumasazeitonas...efaça-meumsucoderomã.
AescravasaiucorrendoeEsaacenouimpacienteparaHenet.
—Éapenasisto,Esa.
Esa lançou uma olhada no objeto que Henet estava lhe
entregando.Eraumapequenacaixadejóiascomumatampaque
corria,tendosuapartedecimasegurapordoisbotões.
—Quehá?
—Édela.Encontrei-aagora...noquartodela.
—Dequemestáfalando?Satipy?
—Não,não,Esa.Aoutra.
—Nofret,vocêquerdizer.Eoquetemisso?
— Todas as suas jóias, potes de maquilagem, frascos de
perfume...tudoissofoienterradocomela.
Esa torceuacorrentedosbotõeseabriua caixa.Ládentro
haviaumacorrentedepequenascontasdecornalinaeametade
deumamuletoesmaltadoemverde,oqualhaviasidopartidoem
dois.
— Ah! — exclamou Esa. — Quase nada. Deve ter sido
esquecido.
—Osembalsamadoreslevaramtudo.
—Ora,pode-seconfiaremembalsamadorestantoquantoem
qualqueroutrapessoa.Elesesqueceramdisto.
—Estoulhedizendo,Esa;istonãoestavanoquartoquando
oexamineipelaúltimavez.
EsaolhouduramenteparaHenet.
— O que está tentando fazer? Dizer que Nofret voltou do
OutroMundoeestáaquiemcasa?Vocênãoétãoidiota,Henet,
apesar de às vezes fingir que o é. Que prazer sente você em
espalharessasestúpidasfábulasmágicas?
Henetsacudiaacabeçafreneticamente.
—TodosnóssabemosoqueaconteceuaSatipy...eporquê!
— Talvez saibamos — disse Esa. — E talvez alguns
soubessematéantes,hein,Henet?Sempremeocorreuaidéiade
quevocêsabiamaisdoquetodoscomoNofrethaviaencontradoa
morte.
—Oh,Esa, com certeza você não iria pensar, nempor um
momento...
Esainterrompeu-abruscamente.
— O que eu não iria pensar? Não tenho medo de pensar,
Henet. Vi Satipy arrastar-se pela casa nos últimos dois meses
aparentando ummedomortal; eme ocorreu, desde ontem, que
alguém a estivesse ameaçando com o que sabia... talvez
ameaçandocontaraYahmose,ouaopróprioImhotep...
Henetexplodiunumfebrilclamordeprotestoseexclamações.
Esafechouosolhoserecostou-senacadeira.
— Eu não pretendi, por um momento sequer, que você
admitisseterfeitotalcoisa.Nemesperoqueofaça.
— E por que deveria? Isso é o que lhe pergunto: por que
deveria?
—Nãotenhoamenoridéia—disseEsa.—Vocêfazmuitas
coisas,Henet,paraasquaisnunca fui capazde encontraruma
razãosatisfatória.
—Suponhoquepensequeeuestavatentandoextorqui-laem
trocadomeusilêncio.JuropelosNoveDeusesdoEnnead...
—NãoperturbeosDeuses.Vocêésuficientementehonesta,
Henet...atéondevaiahonestidade.Epodeserquenãosoubesse
nadasobreamortedeNofret.Masvocê sabeamaiorpartedas
coisasquesepassamnestacasa.Eseeutivessequefazeralgum
juramento, eu juraria que você mesma colocou esta caixa no
quartodeNofret...emboraeunãopossaimaginarporquemotivo.
Mas existem algumas razões por trás disso. Você pode enganar
Imhotepcomseustruques,masnãoamim.Eunãomelamento.
Sou uma mulher velha e não suporto ver as pessoas se
lamentarem. Vá queixar-se a Imhotep. Ele parece gostar disso,
emboraapenasRêsaibaporquerazão!
—VoulevaracaixaatéImhotepedizer-lhe...
—EumesmaentregareiacaixaaImhotep.Deixeisso,Henet,
e pare de espalhar essas estúpidas histórias supersticiosas. A
casaéumlugarmuitotranqüilosemSatipy.AmortedeNofretfez
muitomaispornósdoquea sua vida.Masagora queadivida
estápaga,deixequecadaumretorneàssuastarefasdiárias.
II
— Que está acontecendo? — perguntou Imhotep ao entrar
ruidosamente no quarto de Esa minutos depois. — Henet está
profundamentemagoada.Veioatémimcomlágrimasescorrendo
pelaface.Porqueninguémnestacasapodefazeraessamulhera
mínimagentileza...?
Esa,imóvel,soltouumarisadaestridente.
Imhotepcontinuou:
—Vocêaacusou,meparece,deterroubadoumacaixa;uma
caixadejóias.
—Foiissooqueelalhedisse?Nãofiznadadisso.Aquiestáa
caixa.ParecequefoiencontradanoquartodeNofret.
ImhoteptomouacaixadeEsa.
—Sim,foiumpresentequelhedei.—Eleaabriu.—Hum,
poucacoisa.Foibastantedescuidodapartedosembalsamadores
nãoa terem incluídocomorestodeseuspertences.Levando-se
emconsideraçãoopreçocobradoporMontueIpi,nãoeradese
esperarnenhumdescuido,nomínimo.Bem,tudoissomeparece
umagrandeconfusãopornada...
—Concordo.
— Darei a caixa a Kait... não; a Renisenb. Ela sempre se
comportoudemaneiracortêsparacomNofret.
Elesuspirou.
—Comopareceimpossível,paraumhomem,terumpoucode
paz! Essas mulheres, sempre em lágrimas, quando não são as
discussõesebrigas.
—BemImhotep,pelomenosagoraháumamulherdemenos!
—Sim,realmente.MeupobreYahmose!Dequalquer forma,
Esa,eu...eusintoque...foimelhorassim.Satipygeroucrianças
saudáveis,éverdade,massobváriosaspectoselaeraumaesposa
extremamentedesagradável.ÉclaroqueYahmosecedeudemais.
Bem, bem, está tudo acabado agora. Devo dizer que tem me
agradado muito o comportamento de Yahmose nos últimos
tempos. Parece muito mais confiante, menos tímido e seu
julgamentosobreváriascoisastemsidoexcelente...excelente...
—Elesemprefoiumrapazbomeobediente.
—Sim,sim,mascomtendênciasàlentidãoe,decertaforma,
commedoderesponsabilidade.
Esa disse secamente:— Responsabilidade é uma coisa que
vocênuncalhepermitiuter!
— Bem, tudo isso irá mudar agora. Estou providenciando
uma escrita de associação e sociedade. Deverá ser assinada em
poucosdias.Ireimeassociarcommeustrêsfilhos.
—NãocomIpy,porcerto?
—Ele iria semagoar se euodeixasse fora.Bomeafetuoso
rapaz!
—Comefeito,nãohánadadelentocomele—observouEsa.
—Éisso.ESobektambém;elemedesagradavanopassado,
mas parece ter virado uma nova página em sua vida,
ultimamente.Elejánãomaisdesperdiçaotempoeacatamelhor
asminhasdisposiçõesedeYahmose.
—Issorealmenteéumhinodelouvor—disseEsa.—Bem,
Imhotep,devodizerquevocêestá fazendoacoisacerta.Eramá
políticadeixarseusfilhosdescontentes.MasaindaachoqueIpyé
jovemdemaisparaaquiloquevocêpropõe.É ridículodaraum
rapazdessaidadeumaposiçãodefinitiva.Quecontrolevocêterá
sobreele?
—Háalgumarazãonoquevocêdiz,claro—Imhotepolhou
Pensativo.
Então,levantou-se.
— Devo ir. Há mil coisas a serem providenciadas. Os
embalsamadores estão aqui; precisamos tomar todas as
providênciasparaoenterrodeSatipy.Asmortessãocaras,muito
caras.Eumaseguidadaoutratãodepressa!
—Oh, bem— consolou Esa—, esperemos que esta seja a
últimadelas...enquantonãochegaaminhavez!
—Vocêviverápormuitosanosainda,espero,minhaquerida
mãe.
—Estoucertadequeoespera—disseEsanummuxoxo.—
Nada de economias comigo, por favor! Não ficaria bem! Vou
quererumbocadodecoisascomquemedivertirnooutromundo.
Muita comida, bebida, escravos... uma mesa de jogo ricamente
ornamentada,jogosdeperfumesecosméticos,efaçoquestãodos
canoposmaiscaros:osdealabastro.
— Sim, sim, claro — Imhotep mudava de posição
nervosamente, apoiando-se ora num pé, ora noutro. —
Naturalmente,todoorespeitolheserádevidoquandootristedia
vier.Devoconfessarquemesintobastantediferentecomrelaçãoa
Satipy.Agentenãoquerumescândalo,masrealmente,dadasas
circunstâncias...
Imhotepnãoterminousuafraseeapressou-seemsair.
Esa sorriu sardonicamente ao perceber que aquela frase
“dadas as circunstâncias” seria o mais próximo que Imhotep
chegarianosentidodeadmitirqueumacidentenãocorrespondia
exatamente à maneira pela qual sua valiosa concubina
encontraraamorte.
CAPÍTULOXIV
PrimeiroMêsdeVerão
VigésimoQuintoDia
I
Comoretornodosmembrosdafamíliadacortenomárquica,
ostermosdaassociaçãodevidamenteratificados,umsentimento
geraldealegriaapoderou-sedeles.Aúnicaexceçãoera Ipy,que
noúltimomomentofoiexcluídodeparticipaçãosobaalegaçãode
suaextrema juventude.Eleestavamal-humoradoeseausentou
propositadamentedacasa.
Imhotep, entusiasmado, pediu que um tonel de vinho fosse
trazidoparaavaranda,eomesmofoicolocadonograndesuporte
paravinho.
—Bebamos,meufilho—declarouele,batendonoombrode
Yahmose. — Esqueça por um momento a dor da sua perda.
Vamospensarapenasnosbelosdiasqueestãoporvir.
Imhotep, Yahmose, Sobek e Hori trocaram brindes. Então
veioanotíciadequeumacabeçadegadohaviasidoroubada,e
todososquatrohomenssaíramapressadamenteparainvestigaro
problema.
Quando Yahmose voltou ao pátio, uma hora mais tarde,
estavacansadoecalorento.Foiatéondeestavaaindaa.jarrade
vinho no seu suporte. Afundou dentro da mesma um copo de
bronzeesentou-senavaranda,sorvendoabebidadeliciosamente.
Pouco depois, chegou Sobek, andando a passos largos e
exclamandocomprazer:
—Ah!Agorateremosmaisvinho!Bebamosaonossofuturo,
finalmente assegurado. Este é sem dúvida um grande dia para
nós,Yahmose!
Yahmoseconcordou.
— Sim, realmente. Tornará a vida mais fácil em todos os
sentidos.
— Você é sempre tão moderado nos seus sentimentos,
Yahmose.
Sobekriuenquantofalavae,mergulhandoocoponovinho,
sorveu-otodoemumasótalagada.Estalandooslábios,pousouo
copo.
— Veremos agora se meu pai continuará a ser esta mula
empacadaquesemprefoiouseagoravouconseguirconvertê-loa
métodosmaismodernos.
—Euiriadevagar,se fossevocê—aconselhouYahmose.—
Vocêestásempredecabeçaquente.
Sobek sorriu afeiçoadamente para seu irmão. Estava com
excelentehumor.
—Ovelhodevagar-e-sempre—zombou.
Yahmosesorriu,nemumpoucoofendido.
—Essaaindaéamelhorforma.Poroutrolado,meupaitem
sido muito bom para nós. Não devemos fazer nada que possa
aborrecê-lo.
Sobekolhou-ocuriosamente.
— Você gosta mesmo de nosso pai? Você é uma criatura
afetuosa, Yahmose. Já eu... eu não ligo para ninguém; só ligo
paraSobek;salveSobek!
Sorveuoutrogoledevinho.
—Tenhacuidado—preveniuYahmose.—Vocêcomeumuito
poucohoje.Algumasvezes,bem,quandosebebevinho...
Calou-secomumacontorçãodoslábios.
—Qualéoproblema,Yahmose?
—Nada;umadorrepentina...nãoénada...
Levantouporémamãoparaenxugarsuatestaquedesúbito
ficaramolhadadesuor.
—Vocênãoparecebem.
—Euestavaperfeitamentebemaindahápouco.
—Desdequeninguémtenhaenvenenadoovinho...—Sobek
riu de suas próprias palavras e esticou o braço na direção da
jarra. Então, neste exato momento, seu braço enrijeceu e seu
corpocurvou-separafrentenumrepentinoespasmodeagonia...
—Yahmose—disseofegante.—Yahmose...eutambém...
Yahmose, escorregando para a frente, ficara completamente
curvado.Veiodeleumgritoabafado.
Sobekestavaagoracontorcendo-sededor.Ergueuavoz:
—Socorro!Mandembuscarummédico...ummédico...
Henetveiocorrendodedentrodacasa.
—Vocêschamaram?Quefoiquedisseram?Quehá?
Seusgritosalarmadosatraíramosoutros.
Osdoisirmãosgemiamdedor.
Yahmosedissefracamente:
—Ovinho...veneno...mandebuscarummédico...
Henetsoltouumgritaestridente:
— Mais desgraça! Na verdade esta casa está amaldiçoada.
Rápido!Urgente!VáatéoTemploemandechamaroDivinoPai
Mersu,queéummédicohábiledegrandeexperiência.
II
Imhotep andava de um lado para outro na sala central da
casa. Seu fino robe de linho estavamanchado e amassado, ele
não se banhara nem se trocara. Seu rosto estavamarcado pela
preocupaçãoepelomedo.
Do fundo da casa vinha um som baixo de lamentações e
choro— a contribuição das mulheres para a catástrofe que se
abaterasobreacasa.AvozdeHenetcomandavaascarpideiras.
Deumquartoao lado,ouvia-seavozdomédicoesacerdote
Mersu, que se empenhava sobre o corpo inerte de Yahmose.
Renisenb, escapulindo cuidadosamente dos aposentos das
mulheres para a ala central, foi acolhida pelo som. Seus pés a
levaram até a porta aberta, onde estacou, sentindo o bálsamo
curativoqueeramaspalavrasqueosacerdoteestavarecitando.
—ÓIsis,amaioremmágica,desate-me,liberte-medetodas
ascoisasmás,de todoopecado,dogolpedeDeus,dogolpeda
Deusa,doshomensmortosedasmulheresmortas,doinimigoe
dainimigaquepossaseoporcontramim...
UmligeiromurmúriosaiutremidodoslábiosdeYahmose.
Emseucoração,Renisenbreuniu-seàprece.
—ÓIsis,ógrandeIsis,salve-o...salvemeuirmãoYahmose.
Tuqueéscapazdeoperarmágicas...
Pensamentosconfusospassavampelasuacabeça,suscitados
pelaspalavraseencantamento.
“Detodasascoisasmás,detodoopecado.Esteéquehavia
sido o problema aqui nesta casa; sim, pensamentos maus e
raivosos,oódiodeumamulhermorta.”
Falou do íntimo de seus pensamentos, endereçando-se
diretamenteàpessoaemsuamente.
“NãofoiYahmosequemlhefezmal,Nofret;eemboraSatipy
fosse suamulher, você não pode considerá-lo responsável pelas
açõesdela.Elenuncatevenenhumcontrolesobreela...ninguém
tinha.Satipy,quemaltratouvocê,estámorta.Nãoéobastante?
Sobek está morto... Sobek, que apenas ameaçava você, sem
jamais ter-lhe feito mal algum. Ó Isis, não deixe que Yahmose
morratambém;salve-odoódiovingativodeNofret!”
—Venhacá,Renisenb,queridafilha.
ElacorreuparaImhotep,queaenvolveunosbraços.
—Oh,pai,oquedizemeles?
Imhotep disse profundamente: — Dizem que no caso de
Yahmoseaindaexisteesperança.Sobek...vocêsabe?
—Sim,sim.Nãoouviuosnossoslamentos?
—Elemorreuaoamanhecer—disseImhotep.—Sobek,meu
forteebelofilho.—Suavozfalseouecalou-se.
—Oh,éhorrível...nadapodeserfeito?
— Tudo que podia ser feito foi feito. Poções que o fizeram
vomitar. Administraram-lhe suco de ervas potentes. Amuletos
sagrados foram aplicados e poderosos encantamentos foram
proferidos. Nada teve qualquer valia. Mersu é um médico
experimentado. Se ele não pôde salvar meu filho, então era o
desejodosDeusesqueelenãofossesalvo.
Avozdomédicoesacerdoteelevou-senumcantoaltoefinal,
eeleveioparaforadoquarto,limpandoosuordatesta.
—Bem?—Imhotepabordou-oansiosamente.
Omédicodissegravemente:—GraçasaIsisseufilhoviverá.
Ele está fraco, mas a crise do veneno passou. As influências
malignasestãoemdeclínio.
Ele continuou, mudando ligeiramente seu tom para uma
entonaçãomaiscotidiana.
—ÉumasortequeYahmose tenhabebidomuitomenosdo
vinho envenenado. Ele bebericava seu vinho ao passo que seu
filhoSobekparecequeobebeutododeumsógole.
Imhotepgemeu.
— Aí estava a diferença entre os dois. Yahmose é tímido,
cauteloso e vagaroso quando lida com qualquer coisa. Mesmo
quandocomeoubebe.Sobek,sempredadoaexcessos,generoso,
mão-aberta,oh,imprudente!
Concluiuentãorispidamente:
—Eovinhoestavamesmoenvenenado?
—Nãoexistedúvidaarespeitodisso,Imhotep.Oresíduofoi
testado pelos meus jovens assistentes; todos os animais que o
ingerirammorrerammaisoumenosinstantaneamente.
—Noentantoeu,quetinhabebidodomesmovinhohápouco
menosdeumahora,nãosentinenhumefeito.
—Nãoestavapositivamenteenvenenadoentão;oveneno foi
colocadomaistarde.
Imhotepbateucomapalmadeumamãonaoutra,cerrando
ospunhos.
— Ninguém — declarou —, nenhum ser vivente ousaria
envenenarmeus filhosdebaixodomeupróprio teto!Tal coisa é
impossível.Nenhumservivente,éoqueestoudizendo!
Mersu inclinou ligeiramente a cabeça. Sua face tornou-se
imperscrutável.
—Quantoaisso,Imhotep,vocêéomelhorjuiz.
Imhoteppermaneceucoçandoaorelhanervosamente.
—Háumahistóriaqueandacorrendoporaíqueeugostaria
quevocêouvisse—disseabruptamente.
Imhotepbateupalmase,quandoumservoentrou,elepediu:
—Tragaaquiopastor.
Voltou-separaMersu,dizendo:
—Éumrapazcujacapacidadementalnãoédasmelhores.
Eleassimilacomdificuldadeoquelheéditoenãotemcompleto
domíniodesuasfaculdades.Noentanto,temolhosesuavisãoé
boae,maisdoquetudo,émuitodevotadoameufilhoYahmose,
quetemsidosempregentilecompreensivocomsuadeficiência.
Ocriadovoltou,trazendopelamãoumrapazinhomagro,de
pelequasenegra,usandotanga,deolhosligeiramenteestrábicos
erostoamedrontadoeestúpido.
—Fale— ordenou Imhotep.—Repita o que acaboudeme
contar.
Orapazbaixouacabeça,eseusdedoscomeçaramaagarrara
roupaemvoltadacintura.
—Fale!—gritouImhotep.
Esaentrou,mancando,apoiadaemseubastãoeobservando
atentamentecomseusolhosturvos.
— Você está aterrorizando a criança. Renisenb, dê-lhe este
doce.Vamos,menino,diga-nosoqueviu.
Orapazcorriaosolhosdeumparaooutro.
Esaoincitou.
—Foiontem,quandopassavapelaportadopátio,quevocê
viu...—oquevocêviu?
Orapazsacudiuacabeça,olhandodelado.Murmurouentão:
—OndeestámeuamoYahmose?
Osacerdotefaloucombondadeefirmeza:
—ÉvontadedeseuamoYahmosequevocênosconteofato.
Nãotenhamedo.Ninguémlhefarámal.
Umraiodeluzpassoupelorostodorapazinho.—Meuamo
Yahmosetemsidobomcomigo.Fareioqueeledeseja.
Calou-se.Imhoteppareciaestarapontodeexplodir,masum
olhardomédicoodeteve.
De súbito o rapaz pôs-se a falar, nervoso, despejando as
palavras, olhando para os lados, como se tivesse medo de que
algumapresençainvisívelpudesseouvi-lo.
— Foi aquele burrinho, protegido de Seth e sempre dado a
travessuras. Corri atrás dele com meu bastão. Ele cruzou a
grandeportadopátio e euespieiatravésdaportadacasa.Não
havianinguémnavaranda,masviumsuporteparavinho.Então
umamulher,umadamadacasa,saiueveioparaavaranda.Ela
caminhou até o jarro de vinho, colocou as mãos sobre ele e
então... e então ela voltoupara casa, euacho..Nãosei.Pois eu
ouvi passos, virei-me e vi na distância meu amo Yahmose
voltandodos campos.Então continuei àprocuradoburrinho e
meuamoYahmoseentrounopátio.
— E você não o avisou— gritou Imhotep raivosamente.—
Vocênãodissenada.
O rapazgritou:—Eunãosabiaquehaviaalgumacoisade
errado.Eunadavianãoseramulheraliparada,rindoenquanto
punhaasmãossobreajarradevinho...eunãovinada...
—Quemeraessamulher,rapazinho?
Comumavagaexpressão,orapazbalançouacabeça.
— Não sei. Deve ser uma das damas da casa. Eu não as
conheço.Sóconheçoopessoal ládocampo.Elaestavacomum
vestidodelinhotingido.
Renisenbficoupasma.
— Uma criada, talvez? — sugeriu o sacerdote, olhando o
rapazinho.
Orapazbalançouacabeçacomfirmeza.
—Elanãoeraumacriada...Elatinhaumaperucanacabeça
elevavajóias;umacriadanãousajóias.
—Jóias?—perguntouImhotep.—Quejóias?
O rapaz respondeu num tom confiante e firme, como se
finalmentetivessesuperadoomedoeestivessebemcertodoque
estavadizendo.
—Trêscorrentesdecontas,comleõesdouradospendurados
nafrente.
ObastãodeEsacaiunochão,ruidosamente.Imhotepsoltou
umgritoabafado.
Mersudisseameaçadoramente:—Sevocêestivermentindo,
menino...
—Éverdade.Juroqueéverdade.—Avozdorapazergueu-se
claraeaguda.
Do quarto ao lado, onde o enfermo estava, Yahmose falou
debilmente:—Quehá?
Orapazpassourapidamentepelaportaabertaeagachou-se
aoladodacamaemqueestavaYahmose.
—Amo,elesirãometorturar.
—Não, não—Yahmose virou a cabeça comdificuldade no
travesseiro curvo demadeira.—Não deixem que a criança seja
maltratada.Eleésimples,mashonesto.Prometam-me.
— Claro, claro— disse Imhotep.— Não há necessidade. É
evidentequeorapaznoscontoutudooquesabia;enãocreioque
esteja inventando. Pode sair, criança, mas não volte aos
longínquos rebanhos. Fique perto da casa para que possamos
chamá-loseprecisarmos.
O rapazinho se levantou. Lançouuma olhada relutante em
Yahmose.
—Osenhorestádoente,amoYahmose?
Yahmosesorriupalidamente.
—Nãotenhamedo.Nãoireimorrer.Váagora...efaçaaquilo
quelhefoidito.
Então, sorrindo feliz, o rapaz saiu.Osacerdote examinouo
olhos de Yahmose e sentiu a velocidade com que o sangue
circulava sob a pele. Então, recomendando-lhe que dormisse
retirou-secomosoutrosnovamenteparaosalãocentral.
DisseaImhotep:
—Vocêreconheceadescriçãofeitapelomenino?
Imhotep assentiu. Suas faces de um bronzeado escuro
tinhamumaspectodoentiodetonalidadeameixa.
Renisenb disse: — Ninguém senão Nofret usava vestido de
linho tinto. Foi uma novamoda que ela trouxe das cidades do
norte.Masessesvestidosforamenterradoscomela.
Imhotepajuntou:
—Eas trêscorrentesdecontascomascabeçasde leãoem
ouroforamdadasaelapormim.Nãoháoutrapeçaigualnacasa.
Custoucaroeeraincomum.Todasassuasjóias,comexceçãode
umacorrentedecontasdecornalina,foramenterradascomelae
lacradasnotúmulo.
Eleestendeuosbraços.
— Que perseguição... que ímpeto de vingança! Minha
concubina, a quem tratei bem, a quem fiz todas as honras, a
quementerreicomosrituaisapropriados,sempoupareconomias!
Comi e bebi com ela em comunhão... quanto a isso, todos são
testemunhas.Elanãotinhanadadequesequeixar;narealidade,
fiz mais por ela do que seria considerado certo e justo. Estava
preparadopara lhe favoreceremdetrimentodemeus filhos,que
nasceramdemim.Porque,então,elairiavoltardosmortospara
perseguiramimeminhafamília?
Mersudissegravemente:
— Parece não ser contra você, pessoalmente, que amulher
morta deseja fazer mal. O vinho, quando, você o bebeu, era
inofensivo.Quem,emsuafamília,ofendeuaconcubinamorta?
— Uma mulher que está morta — Imhotep respondeu
rapidamente.
—Sei.VocêquerdizeramulherdeseufilhoYahmose?
—Sim—Imhotepfezumapausaeentãoexplodiu:—Maso
quepodeserfeito,ReverendoPai?Comopodemoscombateressa
maldade?Oh,malditoodiaemqueeutrouxeessamulherpara
dentrodecasa!
—Umdiamaldito,realmente—disseKaitcomvozprofunda,
vindodaentradadosaposentosdasmulheres.
Seus olhos estavam inchados de chorar e seu rosto vinha
carregadodeumaforçaeexpressãonotáveis.Suavoz,profundae
rouca,tremiaderaiva.
—FoiumdiamalditoaqueleemquevocêtrouxeNofretpara
cá, Imhotep, para destruir omais inteligente e bonito dos seus
filhos! Ela trouxe a morte para Satipy e para o meu Sobek, e
Yahmose escapou por pouco. Quem será o próximo? Irá ela
poupar as crianças... ela que bateu na minha pequena Ankh?
Algumacoisatemdeserfeita,Imhotep!
—Algumacoisadeveserfeita—ecoouImhotep,implorando
aosacerdotecomosolhos.
Esteassentiucomacabeça,emcalmapresunção.
— Dispomos de meios para isso, Imhotep. Assim que
estivermoscertosdos fatos, iremosadiante.Estoupensandoem
suafinadaesposa,Ashayet.Eraumamulherdefamíliainfluente.
ElapoderáinvocarinteressespoderososnaTerradosMortos,que
poderão intervir em seu favor e contra os quais essa mulher
Nofretnãotempoder.Devemosnosreunir.
Kaitdeuumrisocurto.
—Nãoesperemdemais.Oshomenssãosempre iguais;sim,
mesmoos sacerdotes! Tudodeve ser feitodeacordo coma lei e
com antecedentes. Mas digo-lhes que ajam rapidamente... ou
haverámaismortessobesteteto.
Voltou-seesaiu.
—Mulherexcelente—murmurouImhotep.—Mãedevotada
aos filhos, esposa exemplar...mas seusmedos, às vezes, fogem
muito daquilo que deveriam ser... para com o chefe da casa.
Naturalmente, numa ocasião como esta, eu a perdôo. Estamos
todosperturbados.Malsabemosoqueestamosfazendo.
Eleapertouasmãoscontraacabeça.
—Algunsdenósraramentesabemoquefazem—sublinhou
Esa.
Imhotep dirigiu-lhe um olhar pouco satisfeito. Omédico se
preparava para sair e Imhotep o acompanhou até a varanda,
recebendoinstruçõesdecomocuidardohomemdoente.
Renisenb,deixadaparatrás,olhavainquisidoramenteparaa
avó.
Esaestavasentadamuitoquieta.Tinhaatestafranzidaesua
expressãoeratãocuriosaqueRenisenbperguntoutimidamente:
—Noqueestápensando,avó?
—Pensandoéapalavra,Renisenb.Coisastãocuriosasestão
acontecendo nesta casa que é bastante necessário que alguém
pense.
—Elassãoterríveis—disseRenisenbnumarrepio.—Elas
meassustam.
—Elasassustamamim—replicouEsa.—Masnão,talvez,
pelamesmarazão.
Comovelhogestofamiliar,elaempurrouaperucanacabeça,
deixando-atorta.
—MasagoraYahmosenão irámorrer—disseRenisenb.—
Eleviverá.
Esaconcordou.
—Sim,umMédicoProfessoroatendeuatempo.Masnuma
outra ocasião, entretanto, ele talvez não venha a ser tão
afortunado.
—Vocêacha...queirãoocorreroutrosacontecimentoscomo
este?
—Acho queYahmose, você e Ipy... e talvez atéKait, devem
tomarmuito cuidado como que comem e bebem.Cuidempara
queumescravoprovetudoantes.
—Evocê,avó?
—Eu,Renisenb,souumavelhamulher,eamoavidacomo
apenas os velhos sabem fazê-lo, saboreando cada hora, cada
minutoquenosédado.Detodosvocês,quemtemamaiorchance
devidasoueu,poissereimuitomaiscuidadosadoquequalquer
um.
—Emeupai?Comtodacerteza,Nofretnãodesejarianadade
malameupai.
— Seu pai? Não sei... Não sei. Ainda não consigo ver
claramente. Amanhã, quando terei pensado sobre tudo, falarei
maisumavezcomessepastorzinho.Haviaalgumacoisaemsua
história...
Calou-se, franzindo a testa. Então, com um suspiro,
levantou-see,ajudando-secomobastão,seguiumancandopara
seusprópriosaposentos.
Renisenbfoiparaoquartodeseuirmão.Yahmosedormiae
elasaiusuavemente.Apósummomentodehesitação,dirigiu-se
aosaposentosdeKait.Ficounaportasemsernotada,observando
Kait cantar uma canção de ninar para uma das crianças. Seu
rostoeracalmoeplácidonovamente;pareciatãonormalque,por
ummomento,Renisenb pensou que os trágicos acontecimentos
dasúltimasvinteequatrohorasnãopassavamdeumsonho.
Virou-selentamenteevoltouaoseuquarto.Sobreumamesa,
entre suaspróprias caixasde cosméticos e seus jarros, estavaa
pequenacaixadejóiasquepertenceraaNofret.
Renisenb colocou-a na palma damão e ficou olhando para
ela.Nofretahaviatocado,segurado...pertenceraaela.
E,novamente,umaondadepiedadeinvadiuRenisenb,aliada
àquele estranho sentimento de compreensão. Nofret tinha sido
infeliz.Aoteressapequenacaixaentreasmãos,elatalveztivesse
deliberadamente transformado essa infelicidade em maldade e
ódio...emesmoagoraqueoódionãodiminuía...aindabuscava
vingança...Oh,não,certamentenão!
Quasequemecanicamente,Renisenb virouosdoisbotões e
puxouatampa.Ascontasdecornalinaláestavam,assimcomoo
amuletoquebradoealgomais...
Comocoraçãobatendoviolentamente,Renisenbretirouum
colardecontasdeourocomleõesdeouronafrente...
CAPÍTULOXV
PrimeiroMêsdeVerão
TrigésimoDia
I
AdescobertadocolaramedrontouterrivelmenteRenisenb.
No impulso do momento, ela o recolocou rapidamente na
caixadejóias,encaixouatampaetornouaapertaracorrenteem
volta dos botões. Seu instinto a levou a esconder o que havia
descoberto. Chegou mesmo a olhar de maneira temerosa para
trás,demodoatercertezadequeninguématinhavisto.
Passou a noite sem dormir, virando-se de um lado para o
outro sem achar posição, apoiando e ajustando a cabeça no
suportedemadeiracurvodeseuleito.
Pelamanhãhaviadecididoquetinhadeconfiaremalguém.
Não podia suportar sozinha o peso daquela descoberta. Duas
vezes durante a noite ela havia se levantado imaginando que
talvezpudessepercebera figuraameaçadoradeNofret,depé, a
seulado.Masnãohavianadaparaservisto.
Tirando o colar de leões de dentro da caixa de jóias,
escondeu-onasdobrasde seu vestidode linho.Mal acabarade
fazerissoquandoapareceuHenet.Seusolhosestavambrilhantes
eagudoscomosetivessenotíciasfrescasparaparticipar.
—Imagine,Renisenb,nãoémesmoterrível?Aquelemenino...
opastor,vocêsabe...estavadormindoprofundamentenoceleiro
estamanhãetodossacudindo-oegritandoemseusouvidos...e
agora parece que não voltará a acordar jamais. Até parece que
bebeuosucodepapoula...edefatotalvezotenhafeito;masseo
fez,quemlheterádado?Ninguémporaqui,dissoestoucerta.E
não parece que ele o tenha tomado por livre e espontânea
vontade.Oh,bemquepoderíamosterimaginadoissoontem.—A
mão de Henet encaminhou-se para um dos amuletos que ela
usava. — Amon nos proteja dos maus espíritos da morte. O
meninodisseoqueviu.Dissecomoaviu.Entãoelavoltouedeu-
lheosucodapapoulaparafechar-lheosolhosparasempre.Oh!
Elaépoderosa,aquelaNofret!Elaesteveforadopaís,vocêsabe,
foradoEgito.Euousariaatédizerqueelaconhecetodasortede
magia primitiva estrangeira. Não estamos a salvo nesta casa...
nenhumdenósestáasalvo.Seupaideveriaoferecerváriosbois
paraAmon...todoorebanhosenecessário;nãoéhoradesefazer
economia.Temosdenosproteger.Temosdeatrairasimpatiada
sua mãe; isso é o que Imhotep está planejando. É o que o
sacerdoteMersu diz.UmaCarta solene para aMorte.Hori está
agoraocupadopreparandoos termosdamesma.Seupaiestava
inclinado a endereçar a carta paraNofret, tentando conquistar-
lheasimpatia.Vocêsabe: “MuitoqueridaNofret,queespéciede
mallhefizeu...”etc.Mas,comooDivinoPaiMersuapontou,são
necessárias medidas mais poderosas do que esta. Já sua mãe,
Ashayet,foiumagrandedama.Oirmãodamãedesuamãeerao
monarca e seu irmão o chefe dosmordomos doVizir de Tebas.
Umavezqueistosejalevadoaoseuconhecimento,elatomaráas
devidas providências para que umamera concubina não tenha
permissãoparadestruir seuspróprios filhos!Oh, sim, a justiça
seráfeita.Comojádisse,Horiestáagorapreparandoopedido.
Era intenção de Renisenb procurar Hori e contar-lhe a
respeito da descoberta do colar de leões. Mas se Hori estava
ocupado com os sacerdotes no Templo de Isis, seria vão tentar
encontrar-secomeleasós.
Deveriaelaprocurarseupai?Insatisfeita,Renisenbbalançou
acabeça.Suavelhacrença infantilnaonipotênciadopaihavia
praticamente desaparecido. Ela percebia agora como, em tempo
decrise,elerapidamentecaíaempedaços...umapompaexcessiva
tomava o lugar da verdadeira força. Se Yahmose não estivesse
doente, poderia contar-lhe, apesar de duvidar que ele pudesse
oferecer-lhe algum conselho prático. Provavelmente insistira em
queoproblemafossedeixadoacargodeImhotep.
E isto, Renisenb sentia com uma urgência crescente, devia
ser evitado a todo custo. A primeira reação de Imhotep seria
proclamar o fato e Renisenb tinha uma forte premonição que
aquilo deveria ser mantido em segredo... apesar de que achar
urnaboarazãoparaestecomportamentoseriamuitodifícil.
Não; era o conselho de Hori que ela queria. Hori saberia,
comosempre,qualeraacoisacertaaserfeita.Eletirariaocolar
deseupoder,livrando-aassimdetodotemoreperplexidade.Ele
a olharia com aqueles seus olhos graves e gentis, e
instantaneamenteelesentiriaquetudoestavabem...
Porummomento,Renisenbficoutentadaaconfidenciarcom
Kait; mas Kait era insatisfatória, nunca escutava da maneira
apropriada.Talvez,sefossepossívelsepará-ladascrianças...não,
nãodariacerto.Kaiteraboazinha,masestúpida.
Renisenbpensou:—HáKameni...eminhaavó.
Kameni...?Haviaalgumacoisana idéiadecontaraKameni
que lhe dava prazer. Podia ver sua face claramente em seus
pensamentos... sua expressão transformando-se de um alegre
desafioem interesseeapreensãoemseu favor...Ounãoseriaa
seufavor?
Por que essa suspeita insidiosa de que Nofret e Kameni
haviam sido amigos muito mais chegados do que parecia à
primeira vista? Por que Kameni havia ajudado Nofret em sua
campanha de afastar Imhotep de sua família? Ele protestou
dizendoquenãotinhaalternativa.MasseráqueistoeraVerdade?
Eraacoisamais fácildesedizer.TudoqueKamenidiziasoava
fácil,naturalecerto.Seurisoeratãoalegrequedavavontadede
rir também.O balanço de seu corpo era tão gracioso enquanto
andava... a maneira como virava a cabeça por sobre aqueles
suaves ombros bronzeados... aqueles olhos que olhavam para
você... que olhavam para você... os pensamentos de Renisenb
estancaram confusos. Os olhos de Kameni não eram como os
olhosdeHori,gentiseseguros.Elesexigiamedesafiavam.
Os pensamentos deRenisenb fizeram sua face corar e seus
olhosfaiscarem.MasdecidiuquenãocontarianadaaKamenia
respeito do colar de Nofret. Não; ela iria até Esa. Esa a havia
impressionado no dia anterior. Velha como era, aquela mulher
tinhaumacompreensãodascoisaseumsensopráticotãoastuto
quenãoeracompartilhadopormaisninguémdafamília.
Renisenbpensou:“Elaévelha.Maselasaberá.”
II
À primeira menção do colar, Esa olhou rapidamente em
torno, colocou um dedo sobre os lábios e estendeu a mão.
Renisenbtateouovestidoe,retirando-o,entregou-onasmãosde
Esa. Esa colocou-o por ummomento bem perto de seus olhos
opacosedepoisescondeu-oemseuvestido.Dissenumavozbaixa
eautoritária:
—Bastaporagora.Falarnestacasaéfalarparacentenasde
ouvidos. Estive a noite toda pensando sem poder dormir, e há
muitacoisaparaserfeita.
—MeupaieHoriforamaoTemplodeIsisconferenciarcomo
sacerdoteMersuparaaformulaçãodeumapetiçãoàminhamãe
paraqueelainterfiraemnossofavor.
—Eusei.Bem,deixequeseupaitratedosespíritosdamorte.
Meuspensamentosdizemrespeitoacoisasdestemundo.Quando
Horiretornar, traga-oaquiparamever.Hácoisasqueprecisam
serditasediscutidas...eemHorieupossoconfiar.
—Horisaberáoquefazer—disseRenisenbalegremente.
Esaolhou-acuriosamente.
— Você vai freqüentemente ao Túmulo para vê-lo, não é
verdade?Arespeitodequevocêsconversam,vocêeHori?
Renisenbbalançouacabeçavagamente.
— Oh, sobre o rio... o Egito... a maneira como a luz se
transforma... as cores da areia lá embaixo e os rochedos...Mas
muitas vezes não conversamos de todo. Apenas sento-me lá e
sinto paz, não tendo o vozerio dos ralhos, nem a gritaria das
crianças, nem toda a confusão deste eterno vaivém. Posso ter
meus próprios pensamentos e Hori não os interrompe. Então,
algumas vezes, olhopara ele e encontro-o olhandoparamim, e
ambossorrimos...possoserfelizláemcima.
Esadissevagarosamente:
—Vocêtemsorte,Renisenb.Vocêencontrouafelicidadeque
existe dentro do coração de cada um. Para a maioria das
mulheres, a felicidade quer dizer vaivém e ocupação com
pequenos problemas; apenas cuidar dos filhos e gargalhadas e
conversas e brigas com outrasmulheres, e uma alternância de
amoreódioporumhomem.Éfeitadepequenascoisascolocadas
juntascomoascontasnumcordão.
—Suavidafoiassimtambém,avó?
—Amaiorpartedela.Masagoraqueestouvelhaepassoa
maior parte do tempo sentada e sozinha, queminha vista está
opaca e ando comdificuldade... cheguei à conclusão de quehá
tanta vida dentro quanto fora de nós. Mas estou muito velha
agoraparaapreenderoverdadeirosentidodisto...entãoeuralho
comaminhapequenaempregadaeaprecioaboacomidavinda
aindaquentedacozinhae saboreio todososdiferentes tiposde
pãoqueassamoseaprecioasuvasmaduraseosucodasromãs.
Essascoisaspermanecemquandoasoutrassevão.Osfilhosque
mais amei estão todos mortos agora. Seu pai, Rê que o ajude,
sempre foi um tolo. Eu o amei quando ele era um pequeno
menino titubeante, mas agora ele me irrita com seus ares de
importância.Dosmeusnetos,euamovocê,Renisenb...efalando
denetos,ondeestáIpy?Nãoovinemhojenemontem.
—Eleestámuitoocupadosuperintendendoaestocagemdo
cereal.Meupaioencarregoudisso.
Esasorriuarreganhandoosdentes.
—Issoagradaráonossojovemmacho.Eleficarácheiodesi.
Quandoelevierparacomer,diga-lhequevenhaatémim.
—Sim,Esa.
—Quantoaoresto,Renisenb,silêncio...
III
—Queriamever,avó?
Ipy permaneceu sorridente e arrogante, a cabeça pendendo
um pouco para um lado, uma flor entre os dentes brancos.
Pareciamuitosatisfeitoconsigomesmoecomavidaemgeral.
—Se vocêpuderperderumpoucodo seu valioso tempo—
disseEsa,apertandoosolhosparavermelhorefitando-odealto
abaixo.
O azedume de seu tom não causou em Ipy a menor
impressão.
—Defato,estoumuitoocupadohoje.Tenhodetomarconta
detudo,umavezquemeupaifoiparaoTemplo.
—Jovenschacaislatemalto—disseEsa.
Ipypermaneceuimpassível.
—Vamos,minhaavó,vocêdeveteralgomaisparadizer-me
alémdisso.
—Decertoquetenhomaisparadizer.Eparacomeçar,estáé
umacasaenlutada.OcorpodeseuirmãoSobekestáaindanas
mãos dos embalsamadores. Mesmo assim seu rosto está tão
esfuziantecomosehojefosseumdiadegrandesfestividades.
Ipyfezummuxoxo.
— Você não é hipócrita, Esa. Acaso gostaria que eu fosse?
Você sempre soube que não havia nenhuma grande amizade
entremimeSobek.Elefaziatudoquepodiaparamecontrariare
aborrecer. Tratava-me como uma criança. Dava-me as mais
humilhantes e infantis tarefas nos campos. Freqüentemente
zombavaeriademim.Equandomeupaipretendeuunir-mecom
meus irmãos mais velhos na sociedade, foi Sobek quem o
persuadiuanãofazê-lo.
— Que o fez pensar que foi Sobek quem o persuadiu? —
perguntouEsarispidamente.
—FoiKameniquemmecontou.
—Kameni?—Esalevantouassobrancelhas,empurrousua
perucadeumladoecoçouacabeça.—Kameni,porcerto.Agora
eucomeçoaacharistointeressante.
—KamenidissequetinhaficadosabendoatravésdeHenet...
etodosnósconcordamosqueHenetsempresabedetudoquese
passa.
— Mesmo assim — disse Esa secamente —, esta foi uma
ocasião em que Henet estava errada. Sem dúvida, tanto Sobek
comoYahmose eramde opinião que você eramuito jovempara
negócios; mas fui eu... sim, fui eu quem dissuadi seu pai de
incluí-lo.
—Você,avó?—Orapazfitava-acomfrancasurpresa.Então,
umaescuracarrancaalterou-lheaexpressãodorosto,aflorcaiu-
lhedos lábios.—Porquevocê fez isso?Oquevocê tinhaaver
comisso?
—Oqueinteressaàminhafamília,interessaamim.
—Eomeupaiescutou-a?
—Nãonaquelemomento—disseEsasecamente.—Masvou-
lhe ensinar uma lição, minha bela criança. As mulheres
trabalham através de circunlóquios... e aprendem (se já não
nascem sabendo) a jogar com as fraquezas dos homens. Talvez
você se lembre que eumandei Henet com o tabuleiro de jogos
paraavarandanofrescordoentardecer.
—Eumelembro.Meupaieeujogamosjuntos.Edaí?
— Isso. Vocês jogaram três vezes. E a cada vez, sendo um
jogadormuitomaisesperto,vocêvenceuseupai.
—Sim.
— Isso é tudo— disse Esa fechando os olhos.— Seu pai,
como todos os jogadoresmedíocres, não gostou de ser batido...
especialmente por um pirralho. Então lembrou-se das minhas
palavras e decidiu que você era certamente muito jovem para
tomarpartenasociedade.
Ipyolhouparaelaporummomento.Entãoeleriu—umriso
nãomuitoagradável.
—Vocêéesperta,Esa—disse.—Sim,vocêpodeestarvelha,
mas é esperta. Decididamente você e eu temos os miolos da
família.Vocêvenceuaprimeirapartidadonosso tabuleiro.Mas
heidevencerasegunda.Portantocuide-se,avó.
—Éoquepretendofazer—disseEsa.—Eemretribuiçãoàs
suaspalavras, deixe-meavisá-lo que cuidede simesmo.Umde
seus irmãos está morto, o outro esteve perto da morte. Você
tambéméfilhodeseupai...evocêtambémpodeseguiromesmo
caminho.
Ipyriuescarnecedoramente.
—Hápoucoperigodissoacontecer.
—Porquê?VocêtambémameaçoueinsultouNofret.
—Nofret!—OdesprezodeIpyeramanifesto.
—Emqueestápensando?—perguntouEsarispidamente.
—Tenhominhasprópriasidéias,avó.Epossoassegurar-lhe
que Nofret e seus truques com espíritos não vãome perturbar.
Deixe-afazeroqueelasouberdepior.
Ouviu-se um choro estridente atrás dele e Henet entrou
correndo,aosgritos:
—Menino idiota...criança imprudente!Desafiandoamorte!
Depoisdetudooquepassamos!Enadamaisdoqueumamuleto
parasuaproteção.
— Proteção? Eu irei me proteger. Saia do meu caminho,
Henet; tenho de trabalhar. Esses camponeses preguiçosos vão
saberoqueéterumsenhordeverdadeemcimadeles.
Empurrando Henet para o lado, Ipy saiu bruscamente do
quarto.
Esa interrompeu rapidamente o choro e as lamentações de
Henet.
—Escute-me,Henet,eparedefalardeIpy.Talvezelesaibao
que está fazendo, talvez não. Seusmodos sãomuito estranhos.
Mas, responda-me, você disse a Kameni que foi Sobek quem
persuadiuImhotepanãoincluirIpynasociedade?
AvozdeHenetretomouotomqueixosonormal.
—Tenhocertezadequeandopordemaisocupadacomacasa
para perder meu tempo por aí contando coisas às pessoas... e
falando dos outros a Kameni. Tenho certeza de que jamais lhe
dirigiriaapalavraseelenãoviessefalarcomigo.Eletemmaneiras
agradáveis,comovocêmesmadeveadmitir,Esa...eeunãosoua
única que pensa assim, oh, não! E se uma jovem viúva quiser
lazer um novo contrato de casamento, bem, normalmente se
inclinará para um jovem bonito... embora tenho certeza de que
nãoseioquediriaImhotep.Aofimeaocabo,Kameniéapenas
umescribadeescalãoinferior.
—NãoimportaoqueKamenisejaoudeixedeser!Você lhe
disse ter sido Sobek quem se opôs ao fato de Ipy se tornar
membrodasociedade?
—Bem,Esa,nãome lembrodo quepossa ter dito ounão.
Normalmente não saio por aí contando coisas para quem quer
queseja,issoécerto.Masumapalavraescapaaquieacolá,evocê
mesma sabe que Sobek andava dizendo... e também Yahmose,
embora não tão alto nem tão freqüentemente, que Ipy não
passava de ummenino e que não daria certo nunca; portanto
Kameni deve ter ouvido isso do próprio Sobek, não de mim.
Nuncafaçomexericos,masafinaldecontas,a línguaservepara
sefalareeunãosouumasurda-muda.
— Realmente não — disse Esa. — Uma língua, às vezes,
Henet,podeserumaarma.Umalínguapodecausarumamorte...
oumais do que umamorte. Espero que sua língua não tenha
causadoumamorte.
— Ora, Esa, que coisas você diz! Que se passa em sua
cabeça?Tenhocertezadequenuncadigoumapalavraaalguém
quenãotenhavontadededizerparaomundotodoouvir.Soutão
dedicadaàfamília...quemorreriaporqualquerumdevocês.Oh,
adevoçãodeHenetésubestimada.Prometiàqueridamãedeles...
—Ora—disseEsainterrompendo-a—,lávemomeuroliço
papa-arroz, cozido com alho-poró e aipo. Tem um cheiro
delicioso... e foi viradinhono espeto.Umavezque é tãodevota,
Henet,vocêpodedarumamordidanumdos lados...nocasode
estarenvenenado!
— Esa! — Henet gritou. — Envenenado! Como você pode
dizertalcoisa!Foiassadoemnossaprópriacozinha!
—Bem—disseEsa—,alguémtemqueprová-lo...atítulode
precaução. E o melhor é que seja você, Henet, já que está tão
dispostaamorrerporqualquermembrodafamília.Nãocreioque
seriaumamortemuitodolorosa.Vamos,Henet.Veja como está
roliço, suculento e saboroso. Não, obrigada, não quero perder
minha escrava. Ela é jovem e alegre. Você já passou os seus
melhoresdias,Henet,epoucoimportariaoqueacontecessecom
você. Agora vamos, abra a boca... Delicioso, não é? Ouça, seu
rosto está com um aspecto esverdeado. Não gostou da minha
brincadeira?Creioquenão.Ah,ah,ah!
Esa desatou a rir e então, recompondo-se, sentou-se
ansiosamenteesepôsacomerseupratofavorito.
CAPÍTULOXVI
SegundoMêsdeVerão
PrimeiroDia
I
AconferêncianoTemploestavaterminada.Aformaexatada
petiçãohaviasidoelaboradaeaperfeiçoada.Horiedoisescribas
do Templo foram bastante requisitados. Agora, finalmente, o
primeiropassotinhasidodado.
O sacerdote fez um sinal para que o rascunho da petição
fosselidoemvozalta:
“Aomais Excelso Espírito Ashayet.De seu irmão emarido.
Teriaairmãesquecidodoirmão?Teriaamãeesquecidodosfilhos
nascidosdela?AmaisExcelsaAshayetnãosabequeumespírito
maligno ameaça os seus filhos? Sobek, seu filho, já se foi para
Osíris,porenvenenamento.Tratei-aemvida,comtodaahonra.
Dei-lhejóiasevestidos,ungüentoseperfumeseóleosparaseus
membros. Juntos comemos boas comidas, sentados em paz e
amizade em frente a mesas fartas. Quando você adoeceu, não
poupeigastos.ProcureiumMédicoProfessor.Você foienterrada
com todahonra e comasdevidas cerimônias, e todas as coisas
necessáriasparasuavidanoAlémforamprovidenciadas:servos,
bois,comida,bebida,jóiasevestimentas.Fiqueidelutopormuito
tempo. E só depois de muitos e muitos anos tomei uma
concubinaparaquepudessevivercomoconvémaumhomemque
aindanãoestávelho.
É essa concubina que agora traz omal a seus filhos. Você
sabedisso?Talvezo ignore.Pois certamenteseAshayet souber,
elaviráprontamenteemsocorrodosfilhosnascidosdela.
SeráqueAshayetsabe,masamaldadecontinuasendofeita
porque a concubina é poderosa em mágicas demoníacas? No
entanto,serácertamentecontraasuavontade,excelsaAshayet.
Portanto,pensequenoCampodasOferendasvocê temgrandes
parentesepoderososajudantes.OgrandeenobreIpi,Mordomo
ChefedoVizir.Invoquesuaajuda!Tambémoirmãodesuamãe,o
grande e poroso Meriptah, o Nomarca da Província. Faça-o
conhecer a vergonhosa verdade. Leve-a diante de sua corte.
Providencie testemunhas. Deixe-as depor contra Nofret para
provarqueelacometeumaldades.Deixequehajaumjulgamento
equesecondeneNofret,equesedecretequeelanão façamais
maldadesnestacasa.
Oh, excelsa Ashayet, se você está brava com seu irmão
Imhotepportereledadoouvidosàspersuasõesdemoníacasdessa
mulhereameaçadofazerinjustiçaaseusfilhos,nascidosdevocê,
então pense que não é apenas ele que sofre,mas também seus
filhos.PerdoeseuirmãoImhotepporqualquercoisaqueeletenha
feito,poramoraseusfilhos.”
O Escriba Chefe parou de ler. Mersu assentiu
aprovadoramente. — Está bem redigido. Nada, eu creio, foi
deixadodelado.
Imhoteplevantou-se.
—Agradeço-lhe,ReverendoPadre.Minhasoferendas irãoao
seu encontro amanhã, antes do pôr do sol: gado, óleo e linho.
Podemos fixar o dia seguinte para a Cerimônia, a colocação do
vasocomasinscriçõesnacâmaradeoferendasdoTúmulo?
—Quesejarealizadadaquiatrêsdias.Ovasodevereceberas
inscrições e devem-se fazer as preparações para os rituais
necessários.
—Comodesejar.Estouansiosoparaquemaisnenhummal
aconteça.
— Posso bem compreender sua ansiedade, Imhotep. Mas
nadareceie.ObomespíritodeAshayetirácertamenteresponder
aesteapelo;seusparentestêmautoridadeepoder,epodemfazer
justiçaondeelaétãomerecida.
—Que Isis permita que assim seja! Agradeço-lhe,Mersu, e
também por seus cuidados e pela cura de meu filho Yahmose.
Venha,Hori,temosmuitoquefazer.Vamosretornaràcasa.Ah,
esta petição realmente me tirou um peso da cabeça! A excelsa
Ashayetnãoiráabandonarseuperturbadoirmão.
II
Quando Hori entrou no pátio, carregando seus rolos de
papiro,Renisenbestavaprocurandoporele.Elaveiocorrendodo
lago.
—Hori!
—Sim,Renisenb.
—QuervircomigoatéEsa?Elaestáesperandoeprecisade
você.
—Claro.Deixe-meapenasverseImhotep...
MasImhotepestavaenvolvidocomIpy,epaiefilhoestavam
entretidosnaconversação.
—Deixe-meguardarestesrolosdepapeleestasoutrascoisas
eireicomvocê,Renisenb.
EsapareciacontentequandoHorieRenisenbforamvê-la.
—AquiestáHori,avó.Euotrouxeimediatamente.
—Bom.Oarestáagradávelláfora?
— Penso que sim — Renisenb mostrou-se um pouco
surpresa.
—Entãodê-meomeubastão.Voucaminharumpoucopelo
pátio.
EsararamentedeixavaacasaeRenisenbsesurpreendeu.Ela
guiou a velha senhora com uma dasmãos sob o seu cotovelo.
Atravessaramosalãocentralesaíramparaopórtico.
—Quersentaraqui,avó?
—Não,minhafilha,caminhareiatéolago.
Esa progredia lentamentemas, apesar demancar, tinha os
pés firmes e nãomostrava sinal de cansaço.Olhando em volta,
escolheu um canto onde as flores haviam sido plantadas num
canteiro próximo ao lago, cuja sombra bem-vinda era fornecida
porumafigueira.
Então,umavezacomodada,dissecomsoturnasatisfação:
—Pronto!Agorapodemosconversareninguémpoderáouvir-
nos.
—Vocêésábia,Esa—disseHoriaprovadoramente.
—As coisas a serem ditas deverão ser do conhecimento de
apenasnós três.Confio emvocê,Hori.Você está conoscodesde
menino.Temsidosemprefiel,discretoesábio.Renisenbmeéa
maisqueridadetodosos filhosdemeufilho.Nenhummaldeve
acontecer-lhe,Hori.
—Nenhummaliráaconteceraela,Esa.
Horinãolevantouavoz,masseutomeaexpressãodeseus
olhos quando encontraram os da velha mulher a satisfizeram
profundamente.
— Disse-o bem, Hori: com calma e sem exasperação, mas
comoalguémquesabeoquediz.Agora,diga-meoque foi feito
hoje.
Horicontousobreaelaboraçãodapetiçãoesuaessência.Esa
escutouatenciosamente.
—Agoraescute-me,Hori,eveja isto.—Elatirouocolarde
leões de seu vestido e entregou-lhe. Acrescentou: — Diga-lhe,
Renisenb,ondevocêoencontrou.
Renisenbcontou.EntãoEsadisse:—Bem,Hori,oqueacha?
Hori conservou-se quieto por um instante e depois
perguntou:—Vocêévelhaesábia,Esa.Queachavocê?
Esa respondeu:— Você é desses, Hori, que não gostam de
dizer palavras impensadas que não estejam acompanhadas de
fatos. Você soube, desde o princípio, como Nofret encontrou a
morte,não?
—Eususpeitavadaverdade,Esa.Eraapenasumasuspeita.
—Exatamente.Eagorasótemossuspeitas.Noentanto,aqui,
perto do lago, entre nós três, suspeitas podem ser ditas... para
não mais serem pronunciadas posteriormente. Bem, parece-me
haver trêsexplicaçõesparaas tragédiasocorridas.Aprimeira, é
queopastorzinhofalouaverdadeequeoqueviuerarealmenteo
fantasmadeNofretquevoltoudosmortos, equeela tinhauma
determinação demoníaca de se vingar ainda mais, causando
constante tristeza e amargura à nossa família. Talvez seja isso:
sacerdoteseoutraspessoasdizemserpossívelenóssabemosque
asdoençassãocausadasporespíritosdomal.Masmeparece,eu
quesouvelhaenãoestoumuitoinclinadaaacreditaremtudoo
que os sacerdotes e outras pessoas dizem, que existem outras
possibilidades.
—Taiscomo?—perguntouHori.
— Admitamos que Nofret tenha sidomorta por Satipy, que
algumtempodepois,nomesmolugar,teveumavisãodeNofrete
que,cheiademedoeculpa,caiuemorreu.Issoébastanteclaro.
Passemos agora a outra suposição, que é o fato de que, depois
disso, alguém, por uma razão que ainda não descobrimos,
desejassecausaramortedosdoisfilhosdeImhotep.Quealguém
contou com o temor pela superstição imputada às façanhas do
espíritodeNofret...umahipótesesingularmenteconveniente.
— Quem desejaria matar Yahmose ou Sobek? — gritou
Renisenb
—Nãoseriaumcriado—disseEsa—,elesnãoseatreveriam.
Issonosdeixacompoucaspessoasparaescolher.
—Umdenós?Mas,avó,issonãopodeser!
—PergunteaHori—disseEsasecamente.—Vocêvêqueele
nãoprotesta.
Renisenbvoltou-separaele.—Hori...certamente...
Horibalançouacabeçagravemente.
— Renisenb, você é jovem e confiante. Pensa que todos
aquelesaquemconheceeamasãoexatamenteoqueaparentam
ser para você. Você não conhece a alma humana nem a
amargura...enemamaldadequeelapodeconter.
—Masquem...qual...
Esainterrompeu-abruscamente:
—Voltemosaestahistóriacontadapelopastor.Eleviuuma
mulherusandoumvestidodelinhotingidoetambémocolarde
Nofret.Senãosetratavadeumespírito,entãoeleviuexatamente
o que disse ter visto... o que significa que viuumamulher que
estavadeliberadamentetentandoparecercomNofret.Poderiater
sido Kait... poderia ter sido Henet... poderia ter sido você,
Renisenb! Daquela distância poderia ter sido qualquer um,
usandoumvestidodemulhereumaperuca.Silêncio:deixe-me
continuar. A outra possibilidade é que o menino estivesse
mentindo. Ele contou umamentira que lhe tinham ensinado a
contar. Estava obedecendo a alguém que tinha o direito de
comandá-loepodeserquetenhasidosuficientementeestúpidoa
pontodenãopercebero intuitodahistóriaaquefoiobrigadoa
contar.Agorajamaispoderemossaber,poisomeninoestámorto,
oqueporsisóébastantesugestivo.Estoupropensaacrerqueo
menino contou uma história que lhe foi ensinada. Interrogado
rigorosamente, como ele teria sido hoje, aquela história poderia
ter sido desmascarada... é fácil saber, desde que se tenha uma
certapaciência,quandoumacriançaestámentindo.
—Entãovocêacreditaquetemosumenvenenadorentrenós?
—perguntouHori.
—Acredito—disseEsa.—Evocê?
—Tambémpensoassim—respondeuHori.
Renisenb,consternada,olhavaparaumeparaoutro.
Horicontinuou:
—Masomotivoparece-meaindalongedeestaresclarecido.
—Concordo—disseEsa.—Éissoquemedeixapreocupada.
Nãoseiqualseráopróximoacorrerperigo.
Renisenbatalhou:—Mas...umdenós?—Seutomeraainda
incrédulo.
Esadisse firmemente:—Sim,Renisenb;umdenós.Henet
ouKaitouIpy,ouKameni,ouopróprioImhotep...sim,ouEsa
ouHorioumesmo...—elasorriu—Renisenb.
— Você tem razão, Esa — disse Hori. — Temos que nos
incluir.
—Maspor quê?—Na vozdeRenisenbhaviaummistode
horroresurpresa.—Porquê?
— Se o soubéssemos, chegaríamos a conhecer, também,
quase tudo o que queremos saber — disse Esa. — Podemos
começar por quem foi atacado. Sobek, lembrem-se, juntou-se a
Yahmose inesperadamente, depois que este havia começado a
beber.Portantoécertoqueapessoaquecolocouvenenonovinho
queria matar Yahmose, mas não podemos ter certeza de que
queriamatarSobektambém.
—Mas quem poderia querer matar Yahmose? — Renisenb
indagou com incredulidade. — Yahmose, certamente, de todos
nóséoquemenosprobabilidadestemdepossuirinimigos.Eleé
sempretãoserenoegentil.
—Portanto,éóbvioquenãose tratadeumódiopessoal—
disseHori.—ComoRenisenbestádizendo,Yahmosenãoéotipo
dehomemquefazinimigos.
—Não— disse Esa.—Omotivo émais obscuro que este.
Temos aqui uma inimizade contra a família como um todo, ou
entãooque estápor trásde tudo isso é aquela cobiça contraa
qualasMáximasdePtahotepnosadvertem.Trata-se,dizele,de
umatrouxacomtodosostiposdemaleseumsacoquecontém
tudoqueéculpável!
— Percebo a direção que sua mente está tomando, Esa —
disseHori.—Mas,parachegarmosaqualquerconclusão,temos
defazerumprognósticodofuturo.
Esaacenoucomacabeçavigorosamenteesuagrandeperuca
caiusobreumadasorelhas.Apesardogrotescodesuaaparência,
ninguémsesentiainclinadoarir.
—Façaesseprognóstico,Hori—disseela.
Horipermaneceusilenciosoporumoudoisminutos,osolhos
pensativos.Asduasmulheresesperaram.Então,afinal,elefalou.
— Se Yahmose tivesse morrido como havia sido planejado,
entãoosprincipaisbeneficiadosteriamsidoosrestantesfilhosde
Imhotep:SobekeIpy.Semdúvida,partedosbensseriaseparada
paraosfilhosdeYahmose,masaadministraçãodelesestariaem
suas mãos... particularmente nas mãos de Sobek. Sobek teria
sido sem dúvida o grande vencedor. Ele funcionaria
presumivelmentecomosacerdotedeKaduranteasausênciasde
Imhotepeosucederiadepoisdesuamorte.Mas,apesardeSobek
serobeneficiado,Sobeknãopodetersidooculpadoumavezque
eleprópriobebeudovinhoenvenenadoetãoconfiantementeque
morreu. Assim, tanto quanto posso entender, a morte dessas
duaspessoaspodebeneficiarapenasumapessoa(pelomenoséo
quepareceatéomomento),eessapessoaéIpy.
—Concordo—disseEsa.—Vocêéperspicaz,Hori,eapreciei
suas palavras. Mas vamos considerar Ipy. Ele é jovem e
impaciente, está quase sempre emburrado, encontra-se numa
idadeemquearealizaçãodaquiloquedesejapareceserparaelea
coisamais importantena vida.Ele sentia raiva e ressentimento
contraseusirmãosmaisvelhoseacreditavatersidoinjustamente
excluídodaparticipaçãona sociedade familiar. Parece, também,
quecoisasinsensatasforamditasaeleporKameni...
—Kameni?
FoiRenisenbqueminterrompeu.E,imediatamenteapósfazê-
lo,enrubesceuemordeuoslábios.Horivirouacabeçaparamirá-
la.Oolharlongo,gentilepenetrantequeelelhedirigiuferiu-ade
algumamaneiraindefinível.Esaespichouseupescoçoparafrente
eencarouamenina.
—Sim—disseela.—PorKameni.Seelefoiounãoinspirado
porHenet,issoéoutroproblema.OfatoéqueIpyéambiciosoe
arrogante, estava ressentido da autoridade superior de seus
irmãos e definitivamente se considera, como ele me disse há
muitotempo,ainteligênciasuperiorepredominantedafamília.
OtomdeEsaeraseco.
Horiperguntou:—Eledisseissoavocê?
— Foi educado o bastante para associar-me a ele como
possuidoradeumacertaquantidadedeinteligência.
Renisenbperguntouincrédula:
—VocêachaqueIpyenvenenouYahmoseeSobek?
—Consideroistocomumapossibilidade,nadamais.Nós,por
enquanto, estamos conversando acerca de suspeitas; ainda não
dispomosdeprovas.Oshomensvêmmatandoseusirmãosdesde
o princípio dos tempos, mesmo sabendo que os Deuses
abominamessecrime,instigadospelopecadodoódioedacobiça.
E se Ipy fez tal coisa, nãonos será fácil encontrar provas, pois
Ipy,euadmitoabertamente,éesperto.
Horiassentiu.
—Mas,comoeujádisse,édesuspeitasquefalamosaquisob
a figueira. E agora colocaremos cada membro da casa sob
suspeita.Comodisse,excluoosservosporquenãoacreditonem
por ummomento que algum deles ousaria fazer tal coisa. Mas
nãoexcluoHenet.
— Henet? — gritou Renisenb. — Mas Henet é devotada a
todosnós.Elanuncasecansadedizerisso.
— É fácil dizer mentiras por verdades. Conheço Henet há
muitos anos. Conheci-a quando aqui chegou, ainda jovem,
acompanhada de sua mãe, Renisenb. Era uma parenta dela...
pobreedesafortunada.Seumaridoahaviadeixado... realmente
Henetsemprefoicomumesematrativos.Aúnicacriançaqueteve
morreuna infância.Elaveioparacádizendo-sededicadaàsua
mãe,mascostumavaespreitá-laquandoandavapelacasaepelo
pátio...edigo-lhe,Renisenb,nãohaviaamoremseusolhos,mas
uma inveja azeda.Quanto às suasdeclaraçõesde amor a vocês
todos,eudesconfiodelas.
— Diga-me, Renisenb — disse Hori. — Você mesma sente
algumaafeiçãocomrelaçãoaHenet?
—Não—respondeuRenisenbsemvontade.—Nãoconsigo.
Sempremereproveipornãogostardela.
— Não acha que isso é porque, instintivamente, você sabia
quesuaspalavraseramfalsas?Elademonstroualgumavezoseu
reputadoamorporvocêatravésdealgumpréstimoreal?Elanão
sempre fomentou a discórdia entre vocês todos, cochichando e
repetindocoisasquetinhamaintençãodeferirecausarraiva?
—Sim...sim,issoébemverdade.
Esadeuumarisadaseca.
—Vocêtembonsolhoseouvidos,meuexcelenteHori.
Renisenbcontestou:
—Masmeupaiacreditanelaegostadela.
—Meufilhoéumtoloesempreofoi—disseEsa.—Todosos
homens gostam de lisonjas... e Henet aplica a lisonja tão
profusamente como ungüentos num banquete! Ela pode ser
devotada a ele, algumas vezes eu acredito que seja, mas com
certezanãoédevotadaamaisninguémnestacasa.
— Mas certamente ela não iria... ela não iria matar —
protestou Renisenb. — Por que razão quereria ela envenenar
qualquerumdenós?Queproveitoteriaela?
—Nenhum. Nenhum. Com relação ao porquê... eu não sei
nadaa respeitodoquesepassanacabeçadeHenet.Oqueela
pensa, o que ela sente, isso eu não sei. Mas às vezes fico
imaginando que coisas estranhas estão borbulhando por trás
daquelas maneiras bajuladoras e servis. E, se assim for, suas
razõessãorazõesquenós,você,eueHori,nãoentenderíamos.
Hori assentiu. — Há uma podridão que começa de dentro.
CertavezfaleiaesserespeitocomRenisenb.
—E eunão consegui entendê-lo—disseRenisenb.—Mas
começo a entender melhor agora. Começou com a chegada de
Nofret...vientãoquenenhumdenóseraoqueeuacreditavaser.
Issomemeteumedo...Eagora...— fezumgestodedesamparo
comasmãos—tenhomedodetudo...
—Medoéapenasoconhecimento incompleto—disseHori.
—Quandonós soubermos, Renisenb, então não haverámais o
quetemer.
—E,éclaro,tambémháKait—prosseguiuEsa.
—Kaitnão—protestouRenisenb.—Kaitnãotentariamatar
Sobek.Éinacreditável.
— Nada é inacreditável — disse Esa. — Pelo menos isso
aprendi ao longo daminha vida. Kait é realmente umamulher
estúpida e eu sempre desconfiei de mulheres estúpidas. São
perigosas. Só enxergam aquilo que está mais próximo a elas e
apenasumacoisadecadavez.Kaitvivenocentrodeumpequeno
mundoqueseresumenela,seusfilhoseSobek,porseresteopai
de seus filhos. Poderia simplesmente ter-lhe ocorrido que,
eliminando Yahmose, estaria enriquecendo seus filhos. Sobek
sempre agiu de forma insatisfatória aos olhos de Yahmose: era
rude, incontrolável edesobediente.Yahmose erao filhonoqual
Imhotepconfiava.Mas,semYahmose,Imhotepteriadeconfiarem
Sobek. Ela seria capaz, creio eu, de pensar de maneira tão
primária.
Renisenbestremeceu.Mas,apesardoquesentia,reconheceu
naquelas palavras uma descrição verdadeira da atitude de Kait
diante da vida. Sua gentileza, sua ternura, seu jeito amoroso
eramtodosvoltadosparaseuspróprios filhos.Aforaelamesma,
seusfilhoseSobek,omundonãoexistiaparaela;encarava-osem
curiosidadeouinteresse.
Renisenbdisselentamente:—Maseladeveriaterimaginado
queSobekpoderiavoltar,comodefatoaconteceu,sedentoeque
tambémbeberiaovinho.
—Não—retrucouEsa—,nãocreio,Kait, como jádisse, é
estúpida. Ela veria apenas o que gostaria de ver: Yahmose
bebendoemorrendoetodoocasosendoimputadoàintervenção
mágica de nossa diabólica e bela Nofret. Ela veria apenas uma
únicacoisa;enãováriaspossibilidadeseprobabilidades.Euma
vez que não desejava amorte de Sobek, jamais iria ocorrer-lhe
queelepudessevoltarinesperadamente.
—E agora Sobek estámorto e Yahmose vivo!Quão terrível
istodeveserparaela,seoquevocêestásugerindoforverdade.
— É o tipo de coisa que acontece quando se é estúpido—
disse Esa. — Tudo acontece de forma diferente da que foi
planejada.
Fezumapausae,então,continuou:
—EagorachegamosaKameni.
—Kameni?—Renisenbsentiunecessidadededizeronome
tranqüilamenteesemprotesto.Maisumavezsentiusobresios
olhosdeHori,causando-lheumasensaçãodesconfortável.
—Sim,nãopodemosexcluirKameni.Elenão temnenhum
motivoaparenteparanosprejudicar,masafinal,oquesabemos
delerealmente?Elevemdonorte,damesmapartedoEgitoque
Nofret. Ele a ajudou, espontaneamente ou não, quem pode
dizer?... a virar o coração de Imhotep contra os filhos nascidos
dele.Euotenhoobservado,porvezes,enaverdadenãoconsigo
chegar a conclusão alguma. Parece-me, no todo, um jovem
normaleperspicazque,alémdeserbonito,temumcertoquêque
atraisobresiosolhos femininos.Sim,asmulheres irãosempre
gostardeKameni,maseupenso,talvezestejaerrada,queelenão
é do tipo que controla seus corações e suasmentes. Ele parece
estarsemprefelizedespreocupado,enãomostrougrandepesar
quandodamortedeNofret.
—Masissotudoéapenasaparência.Quempodedizeroque
vai dentro do coração humano? Um homem decidido poderia
facilmente tomar parte... Teria, de fato, Kameni sentido
profundamenteamortedeNofretapontodebuscarvingança?Já
que Satipy matou Nofret, deve seu marido, Yahmose, morrer
também?Sim, e tambémSobekqueaameaçou—e talvezKait
que a perseguiu de maneira mesquinha, e também Ipy que a
odiava?Parecefantástico,masquempodedizer?
Esacalou-seeolhouparaHori.
—Quempodedizer,Esa?
Esamirou-oastutamente.
— Talvez você possa nos dizer, Hori. Você acha que pode,
não?
Horiconservou-sequietoporuminstante,eentãodisse:
—Tenhoumaidéia,sim,dequemenvenenouovinhoepor
quê;masaindanãoestámuitoclaraerealmentenãovejo...—Ele
parouumminuto,franzindoatesta,ebalançouacabeça.—Não,
eunãopoderiafazerumaacusaçãodefinitiva.
— Estamos falando apenas de suspeitas, aqui. Continue,
Hori,fale.
Horisacudiuacabeça.
—Não, Esa, é apenas um pensamento nebuloso... E se for
verdade,entãoémelhorquevocênãosaiba.Averdadepodeser
perigosa.OmesmoseaplicaaRenisenb.
—Acasoaverdadetambéméperigosaparavocê,Hori?
— Sim, é perigosa... Eu penso, Esa, que todos corremos
perigo...emboraRenisenb,talvez,menosdoqueosoutros.
Esaolhou-oporalgumtemposemfalar.
—Eudariamuitacoisa—dissefinalmenteEsa—parasaber
oquevaipelasuacabeça.
Horinãorespondeudiretamente.Apósalgumtempoemque
pareceuestarrefletindo,afirmou:
—Aúnicachaveparaaquiloquenosvainamenteestáem
nosso comportamento. Se um homem se comporta de maneira
estranha,diferente,elenãoéelepróprio...
—Entãovocêsuspeitaqueele?—perguntouRenisenb.
— Não — respondeu Hori. — Apenas quero dizer que um
homemcujamenteédiabólica,ecujasintençõessãodiabólicas,
estáconscientedessefatoesabequedeveocultá-loatodocusto.
Ele não se pode permitir, portanto, nenhum comportamento
inusitado...
—Umhomem?—perguntouEsa.
—Homemoumulher;éamesmacoisa.
—Sei—disseEsa,dirigindo-lheumolharpenetrante.Então
acrescentou: — E sobre nós? Em que suspeitas nós três nos
incluiríamos?
—Isso,também,deveserencarado—disseHori.—Sempre
confiarammuitoemmim.Afeituradecontratoseadistribuição
da colheita sempre estiveram em minhas mãos. Como escriba,
cuidei de toda a contabilidade. Pode ser que eu as tenha
falsificado,damesmaformaqueKamenidescobriutersido feito
no norte. Talvez Yahmose tenha ficado confuso e começou a
suspeitar.Portanto,serianecessárioqueeuosilenciasse.—Ele
sorriulevementedesuasprópriaspalavras.
—Oh,Hori—disseRenisenb—,comoéquevocêpodedizer
taiscoisas?Ninguémqueoconhecesseiriaacreditarnisso.
—Ninguém,Renisenb, conheceninguém.Deixe que eu lhe
digaaindaumavezmais.
—Eeu?—indagouEsa.—Ondeéquerecaiasuspeita,no
meu caso? Bem, eu sou velha. Quando um cérebro envelhece,
torna-sedoentio,àsvezes.Elepassaaodiaraoinvésdeamar.Eu
posso estar aborrecida com os filhos de meu filho e procuro
destruirmeuprópriosangue.Éumadesgraçadeumespíritodo
mal,queàsvezesatingeosvelhos.
—Eeu?—perguntouRenisenb.—Porque tentariamatar
meusirmãos,aquemamo?
Horidisse:
— Se Yahmose, Sobek e Ipymorressem, então você seria o
últimodos filhosde Imhotep.Ele iria lhearranjarummaridoe
tudoseriaseu;evocêeseumaridoseriamguardiãesdosfilhosde
YahmoseeSobek.
Eleentãosorriu.
— Mas, aqui, sob esta figueira não suspeitamos de você,
Renisenb.
—Sobestafigueira,ouforadela,nósaamamos,Renisenb—
disseEsa.
CAPÍTULOXVII
SegundoMêsdeVerão
PrimeiroDia
I
— Então você esteve fora de casa? — perguntou Henet,
enquanto Esa entrava mancando no quarto. — Uma coisa que
vocênãofaziaháquaseumano!
SeusolhosolhavaminquisidoramenteparaEsa.
—Gentevelha—disseEsa—temseuscaprichos.
—Euavisentadanolago...comHorieRenisenb.
—Companhiasagradáveis,aquelesdois.Seráquealgumavez
vocêdeixoudeveralgumacoisa,Henet?
—Realmente,Esa,nãopercebooquevocêestádizendo!Você
estevelásentadaàvistadetodos.
—Masnãopertoobastanteparatodosmeouvirem!
EsasorriumaliciosamenteeHenetempertigou-sefuriosa.
—Não sei por que você é tão indelicada comigo, Esa! Você
está sempre sugerindo coisas. Estou demasiado ocupada nesta
casa,cuidandoparaqueascoisassejam feitascomodevemser,
paraouvirasconversasdasoutraspessoas.Alémdisso,nãoligoa
mínimaparaoqueasoutraspessoasdizem!
—Eusempreimaginei.
—SenãofosseporImhotep,querealmentemeaprecia...
Esainterrompeu-arispidamente:
— Sim, se não fosse por Imhotep! É de Imhotep que você
depende,nãoé?SealgumacoisaacontecesseaImhotep...
FoiavezdeHenetinterrompê-la.
—NadairáaconteceraImhotep!
—Comoéquevocêsabe,Henet?Existetalsegurançanesta
casa?PoisaconteceucomYahmoseeSobek.
— Isso é verdade; Sobek está morto... e Yahmose quase
morreu...
—Henet!—Esa inclinou-se para a frente.— Por que você
sorriuquandodisseisso?
—Eu?Sorri?—Henetfoitomadadesurpresa.—Vocêestá
sonhando, Esa! E você acha que eu iria sorrir em tal ocasião,
falandodecoisastãoterríveis?
—Éverdadequeestouquasecega—disseEsa.—Masnão
completamente.Àsvezes,porumclarãodeluz,apertandobemas
pálpebras, consigo ver muito bem. Pode acontecer que alguém,
falandocomumapessoaquenãoenxergabem,nãotomemuito
cuidado e assumaumaexpressão facial que emoutras ocasiões
nãorevelariam.Entãovoltoalheperguntar:Porquevocêsorriu
comtalsatisfação?
—Oquevocêdizéumultraje...umultraje!
—Agoravocêestáamedrontada.
—Equemnão ficaria,comascoisasdo jeitoquevãonesta
casa? — gritou estridentemente Henet. — Estamos todos com
medo,claro,dosespíritosdomalqueretornamdentreosmortos
para nos atormentar!Mas eu já sei o que é: você tem escutado
Hori.Quelhedisseelesobremim?
—OqueHorisabesobrevocê,Henet?
— Nada; nada absolutamente. Melhor seria se você
perguntasseoqueeuseisobreele.
OsolhosdeEsasedilataram.
—Bem,quesabevocê?
Henetbalançouacabeça.
—Ah,vocêstodosdesprezamapobreHenet!Achamqueelaé
feiaeestúpida.Maseuseioquesepassa!Háumasériedecoisas
que eu sei... na verdade, não hámuita coisa que eu não saiba
nestacasa.Possoserestúpida,maspossocontarquantosfeijões
estãoplantadosnumafila.TalvezeuVejamaisdoqueaspessoas
inteligentescomoHori.QuandoHorimeencontra,ondequerque
seja, eleme lança um olhar como se eu não existisse, como se
enxergassealgumacoisaatrásdemim,algumacoisaquenãoestá
lá.Seriamelhorqueolhasseparamim,éoquedigo!Elepodeme
considerardesprezível e estúpida,masnemsempresãoosmais
sábios aqueles que sabem de tudo. Satipy pensou que era
inteligente;eondeestáelaagora,gostariadesaber?
Henet calou-se triunfante; sentiu então uma espécie de
tonturaeservilmenteencolheu-se,olhandonervosaparaEsa.
MasEsapareciaperdidanacorrentedeseusprópriospensa
mentos. Tinha uma expressão chocada, um olhar amedrontado
deespanto.Dissedevagarepensativamente:
—Satipy...
Henetdissecomaquelevelhotomchoroso:
—Desculpe-me,Esa,porperderacalma.Realmentenãoseio
que aconteceu comigo. Eu não queria dizer nada daquilo que
disse...
Levantandoosolhos,Esaatalhou:
—Saia,Henet.Sevocêqueriaounãodizeroquedisse,não
interessa. Mas você disse uma frase que despertou novos
pensamentos em minha cabeça... Vá, Henet, e eu lhe previno:
tenha cuidado com suas palavras e ações. Não queremos mais
mortesnestacasa.Esperoquemeentenda.
II
Tudoémedo...
Renisenb sentira essaspalavras saíremautomaticamentede
seus lábios durante a conversa junto ao lago. Somente depois
começouaperceberoquantoeramverdadeiras.
Dirigiu-semecanicamenteemdireçãoaKaiteàscriançasque
estavamaglomeradaspertodopequenopavilhão,massentiuque
suas pegadas se retardavam e então cessavam como que por
vontadeprópria.
Estava commedo, pensou, de encontrar Kait, de olhar sua
face clara e plácida, e nela ver a face de uma envenenadora.
Observou Henet sair até o pórtico e voltar novamente, e a
costumeira sensação de repulsa aumentou. Desesperadamente,
voltou-se para a porta do pátio e, em seguida, encontrou Ipy
transpondo-a com passos largos, a cabeça altiva e um sorriso
alegrenorostoarrogante.
Renisenbfitou-oadmirada.Ipy,acriançamimadadafamília,
obeloevoluntariosomeninodoqualselembravaquandopartiu
comKhay...
—PorqueRenisenb,oqueHouve?Porquevocêmeolhade
maneiratãoestranha?
—Eu?
Ipyriu.
—Vocêestámeolhandocomumacaraestúpidacomoade
Henet.
Renisenbbalançouacabeça.
—Henetnãoéestúpida.Émuitoastuta.
—Elaestácheiademaldade,issoeusei.Narealidade,elaé
umestorvonacasa.Gostariademeverlivredela.
Os lábios de Renisenb abriram-se e fecharam-se. Ela
sussurrou:—Livrar-sedela?
—Minhaqueridairmã:quehácomvocê?Tambémtemvisto
espíritosdomalcomoaquelacriançanegraeestúpida?
—Vocêachaquetodomundoéestúpido?
—Aquelacriançacertamenteoera.Bem,éverdadequetenho
umatendênciaaserimpacientecomrelaçãoàestupidez.Jáestou
farto disso. Não é nada agradável, posso lhe dizer, ser
importunado por dois irmãos mais velhos e molengas que não
podem ver além de seus próprios narizes! Agora que eles estão
foradocaminhoeháapenasmeupaicomquemlidar,vocêverá
embreveadiferença.Meupaifaráoqueeudisser.
Renisenblevantouoolhar.Elepareciamaisbeloearrogante
doquenunca.Havianeleumavitalidade,umquêdevidaevigor
triunfantes, que a impressionaram além do normal. Alguma
consciência íntima parecia proporcionar-lhe esse senso vital de
bem-estar.
Renisenbdissebruscamente.
—Meusirmãosnãoestãoambosforadocaminho,comovocê
disse.Yahmoseestávivo.
Ipyaolhoucomumardetroça:
— E eu suponho que você acredita que ele voltará a ficar
completamentebom?
—Porquenão?
Ipyriu.
—Porquenão?Bem,digamosqueeusimplesmentediscordo
devocê.Yahmoseestáacabado,terminado:elepoderastejarPor
aí, sentar-se e comer ao sol. Mas já não é um homem. Ele se
recuperoudosprimeiroefeitosdoveneno,masvocêprópriapode
verqueelenãofaznenhumprogresso.
—Mas por que não?— perguntou Renisenb.— Omédico
dissequelevariapoucotempoatéqueelesesentissebemeforte
novamente.
Ipyencolheuosombros.
—Osmédicosnãosabemtudo.Eles falamcomsabedoriae
utilizam-se de grandes palavras. Ponha a culpa na malvada
Nofret,sequiser,masYahmose,seuqueridoirmãoYahmose,está
condenado.
—Evocê,nãotemeporsipróprio,Ipy?
—Temer?Eu?—O rapaz riu e jogoupara trás suabonita
cabeça.
—Nofretnãomorriadeamoresporvocê,Ipy.
— Nada pode me prejudicar, Renisenb, a não ser que eu
mesmo queira! Ainda sou jovem, mas sou dessas pessoas que
nasceram para vencer. Com relação a você, Renisenb, seria
melhor se ficasse domeu lado, ouviu?Você freqüentementeme
tratacomoummenino irresponsável.Massoumaisdoque isso
agora.Cadamês será diferente. Logo não haverá outra vontade
nestacasaanãoseraminha.Meupaipoderádarasordens,mas
atrásdesuaspalavrasestaráomeucérebro!
Deu alguns passos, parou e disse por sobre os ombros:—
Portanto, tenha cuidado, Renisenb, para que eu não fique
descontentecomvocê.
Renisenbolhava-oaindaquandoouviupassos,virou-seeviu
Kaitaoseulado.
—OqueIpyestavadizendo,Renisenb?
Renisenbrespondeulentamente:
—Eledissequeembreveseráosenhoraqui.
—Disse?—falouKait.—Poispensodiferente.
III
Ipy subiu lépido as escadas do pórtico e entrou na casa. A
visão de Yahmose deitado no catre pareceu agradar-lhe. Disse
jovialmente:
—Bem,ecomovaiisso,irmão?Seráquenãomaisoviremos
devoltaàsplantações?Nãoposso entender comoas coisasnão
deramparatrássemvocê!
Yahmose,demau-humor,dissecomvozfraca:
—Nãoconsigoentender.Ovenenojáfoieliminado.Porque
não readquiro as forças? Tentei caminhar esta manhã, mas
minhaspernasnãomeagüentam.Estoufraco...e,oqueépior,
pareçoenfraquecermaisacadadia.
Ipybalançouacabeçaemafávelcomiseração.
—Issoérealmentemau.Eosmédicosnãoajudam?
— O assistente de Mersu vem aqui todos os dias. Ele não
consegueentendermeuestado.Tenhotomadofortesinfusõesde
ervas. As feitiçarias diárias são feitas aos deuses. Uma dieta
especialmeépreparada.Nãohárazão,dizomédico,paraqueeu
nãofiqueforterapidamente.Noentanto,eupareçodefinhar.
—Issoémuito-mau—disseIpy.
Eleseretirou,cantarolandosuavemente,etopoucomopaie
Horiatarefadoscomumafolhadecontabilidade.
OrostodeImhotep,ansiosoepreocupado,iluminou-seante
avisãodeseuamadofilhomenor.
— Cá está o meu Ipy. O que você tem para contar da
propriedade?
—Tudovaibem,pai.Estivemosceifandoacevada.Umaboa
colheita.
— Sim, graças a Rê, tudo vai bem lá fora. Bom seria se o
mesmosedesseaquidentro.Porém,eudevo ter fé emAshayet,
elenão irá se recusar anos ajudar emnosso infortúnio.Estou
preocupado com Yahmose. Não posso entender essa lassidão...
essainexplicávelfraqueza.
Ipysorriucomescárnio.
—Yahmosefoisempreumapessoafraca—disse.
— Isso não é verdade— retrucouHori suavemente.—Sua
saúdesemprefoiboa.
Ipydissepositivamente:
—Asaúdedependedoespíritodohomem.Yahmosenunca
teveespírito.Sempretevemedo,inclusive,dedarordens.
— Não ultimamente — disse Imhotep. — Yahmose tem-se
mostrado cheio de autoridade nos últimos meses. Tenho me
surpreendido.Masessafraquezanaspernasmepreocupa.Mersu
meassegurouqueassimqueoefeitodovenenotivessepassado,a
recuperaçãoseriarápida.
Horipôsalgumasfolhasdepapirodelado.
—Háoutrosvenenos—dissesuavemente.
—Quequerdizer?—Imhotepvoltou-se.
Horifaloucomsuavozsuaveeespeculativa.
—Hávenenosconhecidosquenãoagemimediatamente,com
violência.Sãotraiçoeiros.Umpouquinhodeles,ministradoacada
dia, acumula-se no corpo. Somente depois de longos meses de
fraquezaéquevemamorte...Háamploconhecimentodissoentre
asmulheres;elasàsvezesosempregamparaseverem livresde
ummaridoeconseguirumaaparênciademortenatural.
Imhotepempalideceu.
— Você sugere que é... isso... que está acontecendo com
Yahmose?
— Estou sugerindo que é uma possibilidade. Embora sua
comidasejaagoraprovadaporumescravoantesdechegaraele,
talprecauçãonadasignifica, jáqueaquantidadecolocadanum
prato,numdia,nãocausariaefeitosmalignos.
—Loucura!—gritouIpy.—Absoluta loucura!Nãoacredito
queexistamtaisvenenos.Eununcaouvifalardeles.
Hori levantouosolhos.—Vocêémuito jovem, Ipy.Existem
coisasquevocêaindanãosabe.
Imhotep indagou:—Masoquepoderemos fazer?Apelamos
para Ashayet. Enviamos oferendas ao Templo; não que eu
acreditemuitoemtemplos.Asmulhereséqueacreditamemtais
coisas.Quemaispodeserfeito?
Horidissepensativamente:
—DeixequeacomidadeYahmosesejafeitaporumaescrava
de confiança e faça com que essa escrava seja vigiada o tempo
todo.
—Masissosignifica...queaquinestacasa...
—Bobagem—gritouIpy.—Bobagemcompleta.
Horilevantouassobrancelhas.
—Quepelomenossejatentado—disse.—Logosaberemos
seébobagem.
Ipy saiu furiosodo quarto.Hori olhoupensativamente para
ele,comumaexpressãocarregadaeperplexa.
IV
IpysaiudecasacomtalfúriaquequasederrubouHenet.
— Saia de meu caminho, Henet. Você está sempre se
arrastandoporaíesemetendonocaminho.
—Comovocêérude,Ipy,vocêmachucoumeubraço!
—Ótimo.Estoufartodeseusmodoshipócritas.Quantomais
rápidovocêfordestacasa,melhor;eeufareicomquevocêsevá.
OsolhosdeHenetfaiscarammaliciosamente.
— Então, você me poria para fora, não é? Depois de todo
cuidadoeamorquedediqueiatodosvocês.Tenhosidodevotadaa
todaafamília.Seupaisabemuitobemdisso.
—Elejáouviuissoosuficiente,estoucerto!Enósdamesma
forma! Na minha opinião, você não passa de uma velha
linguaruda,maldosa,criadoradedesordens.VocêajudouNofret
comseusplanos;issoeuseimuitobem.Entãoelamorreuevocê
voltou a nos adular novamente. Mas você vai ver; no final das
contasmeupaiouviráamim,enãoàssuasmentiras.
—Vocêestámuitobravo,Ipy;oqueodeixouzangado?
—Nãoimporta.
— Você não está com medo de nada, está, Ipy? Estão
acontecendocoisasestranhasporaqui.
—Vocênãopodemeamedrontar,suaraposavelha!
Passourapidamenteporelaesaiudecasa.
Henet voltou-se lentamente para dentro. Um gemido de
Yahmose atraiu sua atenção. Ele havia se levantado do catre e
tentavacaminhar.Massuaspernasnãosuportavamoseupesoe,
nãofossepelarápidaajudadeHenet,eleteriacaídonochão.
—Pronto,Yahmose,pronto.Deite-senovamente.
— Como você é forte, Henet. Olhando para você, ninguém
diria.—Elesedeitoudenovo,comacabeçaapoiadanoencosto
demadeira.—Obrigado.Mas o que acontece comigo? Por que
essasensaçãodequemeusmúsculossetransformaramemágua?
—Oproblemaéqueestacasaestáenfeitiçada.Otrabalhode
umdemônio-mulherqueveioaténósdonorte.Nenhumbemveio
jamaisdonorte.
Yahmosemurmurouemsúbitodesespero:
—Estoumorrendo.Sim,estoumorrendo...
—Outrosmorrerãoantesdevocê—disseHenetinflexível.
—Quequerdizer?—Eleseergueunumcotoveloeencarou-a
perplexo.
— Sei o que estou dizendo — Henet balançou a cabeça
diversas vezes. — Não será você o próximo a morrer. Espere e
verá.
V
—Porquevocêmeevita,Renisenb?
Kameni plantou-se no caminho de Renisenb. Ela corou e
achoudifícildarumarespostaconveniente.Naverdadeelahavia
sedesviadodeliberadamenteaoverKameniseaproximar.
—Porque,Renisenb,porquê?
Mas ela não tinha nenhuma resposta pronta; só conseguia
sacudiracabeça,emsilêncio.
Renisenb então o olhou, enquanto ele a encarava. Tinha
também um pequeno receio de que a face de Kameni pudesse
parecerdiferente.E foicomestranhaalegriaqueelaobservouo
contrário:seusolhosaolhavamgravementee,pelaprimeiravez,
seuslábiosnãosorriam.
Antes de olhar em seus olhos, os dela baixaram. Kameni
sempreaperturbava.Suaproximidadeaafetavafisicamente.Seu
coraçãobatiamaisrapidamente.
—Seiporquevocêmeevita,Renisenb.
Elaconseguiufalar.
—Eu...eunãooestavaevitando.Nãovivocêseaproximar.
—Émentira—Kameni agora estava rindo; elapodia ouvir
pelasuavoz.
—Renisenb,lindaRenisenb.
Ela sentiu a mão quente e forte em volta de seu braço e
imediatamente,comumpuxão,libertou-se.
—Nãometoque.Nãogostodesertocada.
—Porquelutacontramim,Renisenb?Vocêsabemuitobem
oqueháentrenós.Vocêé jovem,forteebonita.Éabsurdoque
você continue a prantearummarido por toda a vida. Vou tirar
você desta casa. Ela está cheia de morte e encantamentos
diabólicos.Vocêvirácomigoeestaráasalvo.
—Suponhamosqueeunãoqueirair—disseRenisenbcom
entusiasmo.
Kameniriu.Seusdentesbrilharam,brancosefortes.
—Masvocêquervir,apenasnãoadmite isso!Avidaéboa,
Renisenb, quando um irmão e uma irmã estão juntos. Eu a
amareiefareifeliz,evocêseráumcampogloriosoparamim,seu
senhor.NãocantareimaisaPtah“Dê-meminhairmãestanoite”,
masireiaté Imhotepedirei“Dê-meminhairmãRenisenb”.Mas
não creio que este lugar seja seguro para você; portanto eu a
levareidaqui.Souumbomescribaepossoentrarparaacasade
umdosmaioresnobresdeTebas,sequiser,apesardepreferira
vidaaquinocampo:aplantação,ogadoeascançõesdoshomens
que fazem a colheita, e as pequenas embarcações de recreio no
rio.ElevaremosTeticonosco.Elaéumacriançabonitaefortee
euaamareiesereiumbompaiparaela.Então,Renisenb,que
mediz?
Renisenbconservou-seemsilêncio.Tinhaconsciênciadoseu
coração que batia forte e sentiu uma espécie de langor se
apoderandodeseussentidos.Porém,juntocomessasensaçãode
suavidade, essa falta de resistência, veio algo mais: um
sentimentodeantagonismo.
“Otoquedesuamãoemmeubraçoeeusoutodafraqueza...”,
elapensou. “Porcausadesua força... seusombros largos... sua
bocasorrindo:..Masnadaseideseuspensamentos,suamente,
seucoração.Nãohápazentrenós,nemdoçura...Quequeroeu?
Nãosei...Masnãoéisso...Não,issonão...”
Ela se ouviu falando e,mesmo a seus próprios ouvidos, as
palavrassoavamfracaseincertas:
— Não quero outro marido... quero ficar só... quero ser eu
mesma...
— Não, Renisenb, você está errada. Você não foi feita para
viver sozinha. Suas mãos o dizem quando tremem entre as
minhas...Vê?
Comesforço,Renisenbretirousuasmãos.
—Eunãooamo,Kameni.Achoqueoodeio.
Elesorriu.
— Nãome importo que vocême odeie, Renisenb. Seu ódio
estámuitopróximodoamor.Falaremosdissonovamente.
Eleadeixou,movendo-secomasuavidadeecomopassoleve
comodeumagazela.Renisenbdirigiu-se lentamentepara junto
dolago,ondeKaitéascriançasseencontravambrincando.
Kaitdirigia-lheapalavra,masRenisenbrespondiaaoacaso.
Kait,entretanto,nãopareceunotar,ouentão,comosempre,
suamenteestavapordemaisocupadacomascriançasparaque
pudesseprestaratençãoemoutrascoisas.
Subitamente,quebrandoosilêncio,Renisenbdisse:
—Você acha que devo arrumar um outromarido?Queme
diz,Kait?
Kaitrespondeuplacidamente,semmuitointeresse:
—Épossível,creioeu.Vocêéforteejovem,Renisenb,epode
termuitomaisfilhos.
—Nissoseresumeavidadeumamulher,Kait?Ocupar-me
no fundodacasa, ter filhos,passaras tardescomelespertodo
lago,sobafigueira?
—Étudooqueimportaaumamulher.Éclaroquevocêsabe
disso.Nãofalecomosefosseumaescrava;asmulherestêmpoder
noEgito;asherançaspassamatravésdelasparaseus filhos.As
mulheressãoosanguevitaldoEgito.
Renisenb olhou pensativamente para Teti, que fazia uma
guirlandade floresparaa suaboneca.Teti franziaumpoucoa
testa,concentradaemsuatarefa.HouveumtempoemqueTetise
parecia tantocomKhay, levantandoo lábio inferior,movendoa
cabeça um pouco para o lado, que o coração de Renisenb se
revolviadedoreamor.Masagora,nãoapenaso rostodeKhay
estava obscuro na memória de Renisenb, como Teti não mais
tinhaaquelecacoetedegiraracabeçaelevantaroslábios.Houve
outros momentos em que Renisenb segurou Teti junto a si,
sentindoacriançacomoseaindafizessepartedeseucorpo,sua
própria carne viva, como um sentimento apaixonado de
propriedade.“Elaéminha,todaminha”,disseconsigomesma.
Agora,olhandoparaela,Renisenbpensou:“Elaéeu...elaé
Khay”.
EntãoTetilevantouosolhos,evendoamãe,sorriu.Eraum
sorriso grave e amigo, demonstrando confiança e prazer.
Renisenb pensou: “Não, ela não é nem eu nemKhay: ela é ela
mesma. Ela é Teti. Ela está só, como eu estou só, como todos
estamossós.Seháamorentrenós,devemosseramigasportoda
avida;massenãoexistiramor,elacresceráeseremosestranhas.
ElaéTetieeusouRenisenb.”
Kaitaolhavacomcuriosidade.
—Oquevocêquer,Renisenb?Nãocompreendo.
Renisenbnãorespondeu.Comotransformarempalavras,as
coisasqueelaprópriamalcompreendia?Olhouemvolta,paraas
paredesdopátio,paraocoloridopórticodacasa,paraascalmas
águas do lago e o gracioso pavilhão, os canteiros de flores ali
pertoeasmoitasdepapiro.Tudoeraseguro,fechado,nadahavia
atemer,eelaestavarodeadapelomurmúriofamiliardossonsda
casa, o balbuciar das vozes das crianças, o rouco e longínquo
clamor estridente das mulheres na casa, o mugido distante do
gado.
Disselentamente:
—Nãosepodeveroriodaqui...
Kaitpareceusurpresa:—Eparaquequerervê-lo?
Renisenbdissedevagar:
—Eusouidiota.Nãosei...
Ante seus olhos, muito nitidamente, ela viu se estender o
panorama dos campos verdes, ricos e viçosos, e,mais além, de
longe, uma encantadora extensão de rosa-pálido e ametista se
desfazendo no horizonte e, separando os dois, o pálido azul-
acinzentadodoNilo...
Respirou fundo:pois, comavisão,apaisagemeos sonsse
esmaecendo, veio-lhe uma calma, uma riqueza, uma infinita
satisfação...
Disse consigomesma: “Se eu virar a cabeça, vereiHori.Ele
levantaráosolhosdopapiroesorriráparamim...Agoraosolse
esconderá,viráaescuridãoeentãoireidormir...Issoserámorte.”
—Oquevocêdisse,Renisenb?
Renisenbseassustou.Nãosederacontadequehaviafalado
alto.Voltoudavisãoàrealidade.Kaitaolhavacuriosamente.
—VocêdisseMorte,Renisenb.Noqueestápensando?
Renisenbsacudiuacabeça.
—Nãosei.Nãoquis...—Olhouàsuavoltanovamente.Quão
agradável era essa cena familiar, com a água espirrando e as
criançasbrincando.Respirouprofundamente.
—Comoistoaquiécheiodepaz!Nãosepodeimaginarnada
dehorrívelacontecendoaqui.
Mas foi junto ao lago que encontraram Ipy na manhã
seguinte. Ele estava esticado de bruços, com o rosto dentro da
água,ondeumamãoohaviaseguradoenquantoseafogava.
CAPÍTULOXVIII
SegundoMêsdeVerão
DécimoDia
I
Imhotepestavasentado,enrodilhadosobresimesmo.Parecia
muitomaisvelho,umvelhoalquebradoeenrugado.Haviaemseu
rostoumaexpressãodetotaldesnorteamento.
Henettrouxe-lhecomidaepersuadiu-oacomer.
—Sim,sim,Imhotep,vocêtemquemanterasuaforça.
—Porquê?Que força? Ipyera forte, jovemebelo... eagora
estánobanhodesalmoura...Meufilho,meufilhomaisamado.O
últimodosmeusfilhos.
—Não,não,Imhotep;vocêtemYahmose,seubomYahmose.
— Por quanto tempo? Não; também ele está condenado.
Todos nós estamos condenados. Quemal é esse que se abateu
sobrenós?Comopoderiaeusaberquetaisfatosiriamocorrerpor
eutertrazidoumaconcubinaparadentrodecasa?Éumacoisa
perfeitamenteaceitável: é justoeestádeacordocomas leisdos
homenseas leisdosDeuses.Eua tratei corretamente.Porque
entãodeveriamessascoisasacontecercomigo?OuéAshayetque
descarregasuavingançasobremim?Seráquenãomeperdoará?
Certamente ela não deu nenhuma resposta ao meu pedido. A
malvadezaaindapersiste.
—Não,não,Imhotep.Vocênãodevedizerisso.Poucotempo
sepassoudesdequeovasofoicolocadonoquartodasoferendas.
Qualquer pessoa sabe como os casos com a justiça demoram
neste mundo... quão infindáveis são as demoras na corte dos
monarcas...emaisaindaquandoumcasovaiparaovizir.Justiça
é justiça, nestemundo e no próximo: umnegócio que semove
lentamente,masquenofinalagecomprecisão.
Imhotepbalançouacabeçaduvidoso.Henetcontinuou:
—Poroutrolado,Imhotep,vocêdeveselembrarqueIpynão
erafilhodeAshayet;elenasceudesuairmãAnkh.Porqueentão
deveriaAshayet interessar-sepelasuasorte?MascomYahmose
serádiferente:Yahmose vai-se recuperarporqueAshayet tratará
disso.
—Devoadmitir,Henet,quesuaspalavrasmeconfortam...Há
muitode verdadeno que vocêdiz. Yahmose, é verdade, recobra
suasforçasacadadia.Eleéumfilhobomeleal...masquantoao
meuIpy...tãointeligente...tãobelo—Imhotepgemeumaisuma
vez.
—Oh,oh!—lamentou-seHenetemsolidariedade.
—Aquelamalditameninaesuabeleza.Gostariadenuncater
postoosolhosemcimadela.
—Sim, realmente,meu caro amo.Uma filha de Seth como
nuncavioutraigual.Versadaemmagiaeencantosmalignos,não
sepodeterdúvidasarespeito.
Ouviu-seabatidadeumabengalanochãoeEsaentrouna
salacapengando.Elabufouridiculamente.
—Seráqueninguémnestacasatemqualquersenso?Vocês
não têm nada melhor para fazer do que imprecar contra essa
desafortunadameninaporquemImhotepseenamorouequese
deixou levar por um ligeiro rancor e malícia femininos,
provocados pelo comportamento estúpido das esposas de seus
estúpidosfilhos?
—Ligeirorancoremalícia...éassimquevocêchamaa isto,
Esa?Quandodosmeus três filhosdois estãomortos eumestá
morrendo!Oh!Comominhaprópriamãeécapazdemedizertais
coisas?
—Parece-mequealguémdevadize-las,umavezquevocênão
consegueverosfatoscomosão.Tiredamenteessaidéiaestúpida
esupersticiosadequeoespíritodeumamoçamortaéqueestá
operandotodoomal.Foiumamãovivaquesegurouacabeçade
Ipydentrodolagoefê-loafogar-se;eumamãovivaquederramou
veneno no vinho que Yahmose e Sobek beberam. Você temum
inimigo,sim,uminimigoaquinestacasa.Eaprovaéquedesde
queoconselhodeHorifoiouvidoeaprópriaRenisenbpreparaa
comidadeYahmose,ouumescravoapreparaenquantoelavigia
esuasmãosa levamatéele,desdeentão,eu lhedigo,Yahmose
esta ganhando saúde e força a cada dia. Procure deixar de ser
tolo, Imhotep,afligindo-seearrancandooscabelos,coisasessas
queHenetadorafazer.
—Oh,Esa,comovocêmejulgamal!
—Coisasessas,diziaeu,queHenetadorafazer...ouporqueé
umatolatambémouporalgumaoutrarazão...
—Que Rê possa perdoá-la, Esa, por sua indelicadeza para
comumapobremulhersolitária!
Esadeuumavoltasobresimesma,balançandosuabengala
numgestoimpressionante.
— Contenha-se, Imhotep, e pense. Sua finada esposa
Ashayet,queeraumamulheradorávelenãoumatola,diga-sede
passagem, pode exercer a sua influência por você no outro
mundo,masdificilmentepoderápensarporvocêneste!Nóstemos
de agir Imhotep, porque se não o fizermos, então haverá mais
mortes.
—Uminimigovivo?Uminimigonestacasa?Vocêrealmente
acreditanisto,Esa?
— É claro que acredito, porque é a única coisa que faz
sentido.
—Entãoestamostodoscorrendoperigo?
—Certamentequeestamos.Perigoquenãovemdasmãosdos
espíritos,mas que vemdeumagentehumano... de dedos vivos
que derramam veneno na comida e na bebida, de uma figura
humanaqueanda furtivamenteatrásdeumrapazquevoltada
aldeiaemergulhasuacabeçadentrodaságuasdolago!
Imhotep disse pensativo: — Seria preciso muita força para
isso.
— A julgar-se pelas aparências, sim, mas não estou bem
certa. Ipy tinha bebido muita cerveja na aldeia. Estava num
ânimode rebelde e orgulhoso. Pode ser que tenha voltado para
casacomoandarumtantotrôpegoe,nãotendomedodapessoa
que se aproximou dele, curvou-se pela própria vontade para
banharorostonolago.Poucaforçaseriaprecisoentão.
—Queestáquerendodizer,Esa?Queumamulherfezisso?
Maséimpossível...todaacoisaéimpossível;nãopodehaverum
inimigonestacasa,ouentãonóssaberíamos...eusaberia!
— Existe o mal do coração, Imhotep, que não aparece no
rosto.
—Vocêquerdizerqueumdoscriadosouumescravo...
—Nemcriadonemescravo,Imhotep.
—Umdenós?Ouentão...vocêquerdizerHoriouKameni?
MasHoriécomoummembrodafamília,eleprovousuafidelidade
eédignodeconfiança.EKameni...eleéumestranho,decerto,
mastemonossosangueeprovousuadevoçãopelozelocomque
meserviu.Alémdisso,eleveioatémimhojedemanhãesolicitou
omeuconsentimentoparacasar-secomRenisenb.
—Entãoelefezisso,hã?—Esademonstrouinteresse.—Eo
quedissevocê?
—Oqueeupodiadizer?—Imhotepestavairascível.—Eisso
éhoradesefalaremcasamento?Foiexatamenteoquelhedisse.
—Eoqueelerespondeu?
— Que na sua opinião essa era a hora de se falar em
casamento.DissequeRenisenbnãoestavaasalvonestacasa.
— Imagino— volveu Esa. — Gostaria de saber... Será que
ela?Penseiqueela...eHoripensoutambém...masagora...
Imhotepcontinuou:
— Será que alguém pode ter cerimônias de funeral e de
casamentoacontecendoaomesmotempo?Nãoédecente.Todoo
nomofalariaarespeito.
— Não é hora para convencionalismos — disse Esa. —
Sobretudo quando, pelo visto, os embalsamadores viverão
conosco permanentemente. Tudo isso deve ser como que uma
bênção para Ipi e Montu... a firma deve estar indo
excepcionalmentebem.
— Eles aumentaram seus preços em dez por cento! —
Imhotep estava momentaneamente divertido. — Iníquos! Dizem
queotrabalhoémaiscaro.
—Elesdeviamnosdarumdescontopelaquantidade!—Esa
sorriusarcasticamentedeseuprópriogracejo.
—Minhaqueridamãe—Imhotepolhouparaelahorrorizado.
—Issonãoéumabrincadeira!
—Avidaéumabrincadeira,Imhotep;eéamortequemripor
último.Vocênãoouveissoemtodasasfestas?Coma,bebaeseja
felizporqueamanhãvocêmorrerá?Bem,issoébemverdadepara
nós...aúnicadúvidaésaberquemmorreráamanhã.
—Oquevocêestádizendoéterrível...terrível!Quepodemos
fazer?
—Nãoconfieemninguém—disseEsa.—Istoéoprincipal,
acoisamaisvitalquese tema fazer.—Repetiucomênfase:—
Nãoconfieemninguém.
Henetcomeçouasoluçar.
—Porqueolhaparamim?Estoucertadequeseninguém
maisédignodeconfiança,eusou.Euoproveiaolongodetodos
essesanos.Nãopresteatençãoaoqueeladiz,Imhotep.
—Calma,calma,minhaboaHenet;decertoqueeuconfioem
você.Conheçobastantebemseucoraçãodevotadoeverdadeiro.
—Vocênão sabedenada—disseEsa.—Nenhumdenós
sabedenada.Éporissoquecorremosperigo.
—Vocêmeacusou—choramingouHenet.
— Não posso acusar. Não tenho nem conhecimento nem
provas...apenassuspeitas.
Imhotepolhou-aaguçadamente.
—Vocêtemsuspeitas...dequem?
Esadissedevagar:—Suspeiteiumavez...duasvezes...euma
terceiravez.Sereihonesta.PrimeiroeususpeiteideIpy;masIpy
estámorto,logominhasuspeitaerafalsa.Entãoeususpeiteide
outra pessoa; mas, exatamente no dia da morte de Ipy uma
terceiraidéiameocorreu...
Elafezumapausa.
—Hori eKameni estão emcasa?Mande-os vir até aqui... e
também Renisenb, sim, mande-a vir da cozinha. E Kait e
Yahmose.Tenhoalgoadizeretodosnacasadevemouvi-lo.
II
Esaolhouparaafamíliareunida.Encontrouoolhargravee
gentildeYahmose,osorrisoprontodeKameni,oassustadoolhar
inquiridor deRenisenb, o olhar plácido e indiferente deKait, a
quieta inescrutabilidade do olhar pensativo de Hori, o irritante
receiona faceContorcidade Imhotepeaávidacuriosidadee—
sim—oprazernosolhosdeHenet.
Elapensou:“Seusolhosnadamedizem.Mostramapenasa
emoção exterior. No entanto, e com toda certeza, deve haver
algumatraição”.
Emvozalta,disse:—Tenhoalgoadizeratodosvocês;mas,
emprimeirolugar,falareiapenasaHenet:perantetodos.
AexpressãodeHenetmudou—aavidezeoprazerseforam.
Elapareciaamedrontada.Suavozelevou-senumagudoprotesto.
— Você suspeita de mim, Esa. Eu sabia disso! Você vai
levantar hipóteses contra mim e como poderei eu, uma pobre
mulherdepoucainteligência,medefender?Eusereicondenada
—condenadasemserouvida.
— Não sem ser ouvida— disse Esa ironicamente, vendo o
sorrisodeHori.
Henetcontinuou,suavoztornando-secadavezmaisemais
histérica.
— Não fiz nada... sou inocente.. Imhotep, meu senhor
querido, salve-me...— Ela atirou-se no chão e o agarrou pelos
joelhos. Imhotep, indignado, começou a falar precipitadamente,
enquantoafagavaacabeçadeHenet.
—Realmente,Esa,euprotesto:issoévergonhoso...
Esainterrompeu-obruscamente.
— Não fiz acusação alguma; não acuso sem provas. Peço
apenasqueHenetnosexpliqueosignificadodecertascoisasque
disse.
—Eunãodissenada,nadamesmo...
—Oh,sim,vocêdisse—volveuEsa.—Hápalavrasqueouvi
com meus próprios ouvidos; e meus ouvidos são aguçados,
embora minha vista seja fraca. Você devia saber alguma coisa
sobreHori.Bem,oqueéquevocêsabesobreHori?
Horimostrou-selevementesurpreso.
— Sim, Henet — disse ele. — Que sabe você sobre mim?
Vamosver.
Henet sentou-se e enxugou os olhos. Parecia zangada e
desafiadora.
—Nãoseidenada—disse.—Oquedeveriaeusaber?
—Éoqueestamosesperandoquenosdiga—replicouHori.
Henetsacudiuosombros.
—Euestavaapenasfalando.Nãoquisdizernada.
Esadisse:—Euireirepetirparavocêsuasprópriaspalavras.
Vocêdissequenóstodosadesprezamos,masquevocêsabiade
muitascoisasqueestavamacontecendonestacasa... equevocê
podiavermelhordoqueofariampessoasinteligentes.
—DepoisdissequequandoHoriaencontrava, eleaolhava
comosevocênãoexistisse,comosevissealgoatrásdevocê,algo
quenãoestavalá.
—Elesempreolhaassim—disseHenetmal-humorada.—É
comoseeu fosseum inseto,pela formacomoelemeolha;uma
coisasemamenorimportância.
Esadisselentamente.
—Essafraseficounaminhacabeça:algumacoisaatrás,algo
que não estava lá.Henet disse “Ele deveria olhar paramim”. E
continuou,falandodeSatipy;sim,deSatipyedecomoSatipyera
inteligente,masondeestavaSatipyagora...
Esaolhouemvolta.
— Isso não significa nada para vocês? Pensem em Satipy:
Satipyqueestámorta.Elembrem-sequesedeveolharparauma
pessoaenãoparaalgoquenãoestálá...
HouveummomentodesilênciomortaleentãoHenetgritou.
Foiumgritoaltoeagudo;umgritoquepareciaserdepuroterror.
Elagritavaincoerentemente:
— Eu não... salve-me, senhor, não a deixe... Eu não disse
nada...nada.
AraivacontidadeImhotepexplodiu.
—Issoéimperdoável—berrou.—Nãoqueroverestapobre
mulher apavorada e nem acusada. O que você tem contra ela?
Pelassuasprópriaspalavras,absolutamentenada.
Yahmosejuntou-seaelesemsuatimidezusual.
— Meu pai está certo. Se você tem uma acusação precisa
contraHenet,traga-aàtona.
—Eunãoaestouacusando—disseEsadevagar.
Ela se apoiou no bastão. Sua figura parecia ter encolhido.
Suavozsoavalentaepesadamente.
Yahmosevoltou-seautoritárioparaHenet.
—Esa não está lhe acusando de ter causado osmales que
nos têm ocorrido,mas, se a entendi bem, ela acredita que você
conhececoisasquenosestáocultando.Portanto,Henet,seexiste
algumacoisaquevocêsaiba,sobreHoriououtrapessoa,chegou
ahoradefalar.Aqui,diantedetodos.Queinformaçõesvocêtem?
Henetbalançouacabeça.
—Nenhuma.
—Estejabemcertadoqueestádizendo,Henet.Informações
podemserperigosas.
— Eu não sei nada. Eu juro. Juro pelos Nove Deuses do
Ennead,pelaDeusaMaat,pelopróprioRê.
Henetestavatremendo.Suavoznadatinhadaquelaafetada
maneirachorosa.Soavarespeitosaesincera.
Esa suspirou. Sua figura curvou-se para a frente. Ela
murmurou:
—Ajudem-meavoltarparaomeuquarto.
HorieRenisenbvieramrapidamenteatéela.
Esadisse:—Vocênão,Renisenb.EuqueroHori.
ElaseapoiouemHori,queaconduziudasalaemdireçãoa
seus próprios aposentos. Olhando para ele, observou que seu
rostopareciaausteroeinfeliz.
Elamurmurou:—Bem,Hori?
—Vocêfoiimprudente,Esa,muitoimprudente.
—Eutinhadesaber.
—Sim,masoriscofoiterrível.
—Sei.Então,vocêtambémpensadamesmaforma?
—Tenhopensadoassimporalgumtempo,masnãoexistem
provas,nemumasombradeprova.Emesmoagora,Esa,vocênão
temprovas.Estátudonasuacabeça.
—Ésuficientequeeusaiba.
—Talvezsejademais.
—Comoassim?Ah,sim,claro.
—Cuide-se,Esa.Deagoraemdiantevocêcorreperigo.
—Devemostentaragirrapidamente.
— Claro que sim, mas o que podemos fazer? Deve haver
provas.
—Eusei.
Nada mais puderam dizer. A pequena criada de Esa veio
correndoparasuaama.Horiaentregouaoscuidadosdamenina
esefoi.Seurostoestavagraveeperplexo.
A pequena criada falava,mexia e remexia em volta de Esa,
masestapraticamentenãoanotava.Sentia-sevelha,doente,com
frio...Mais uma vez ela viu o atento círculo de faces olhando-a
enquantofalava.
Apenas um olhar — um faiscar momentâneo de medo e
entendimento—estariaelaerrada?Poderiaestartãocertadoque
tinhavisto?Afinal,seusolhoseramfracos...
Sim, ela estava certa. Foramenos uma expressão do que a
súbita tensão de todo um corpo— um endurecimento— uma
rigidez. Para uma pessoa, e apenas uma, suas desconexas
palavrastinhamfeitosentido.Essesentidomortaleinfalívelque
éverdadeiro...
CAPÍTULOXIX
SegundoMêsdeVerão
DécimoQuintoDia
I
— Agora que o problema está colocado diante de você,
Renisenb,oquevocêtemadizer?
Renisenb olhava incerta de seu pai para Yahmose. Sua
cabeçaestavapesadaeconfusa.
—Nãosei.—Aspalavrassaíramdeseuslábiossemqualquer
expressão.
—Emcondiçõesnormais— continuou Imhotep—,haveria
tempo suficiente para discussões. Tenho outros parentes e
poderíamos escolher e rejeitar, até encontrarmos omaridomais
convenienteparavocê.Mascomoéincerto...sim,avidaéincerta.
Suavozvacilou.Elecontinuou.
— É assim que estão as coisas, Renisenb. A morte nos
espreitahoje, aos três. Yahmose, você e eu.Qual denós será o
próximoaseratingidopeloperigo?Portanto,éconvenienteque
euponhameusnegóciosemordem.Sealgumacoisaacontecera
Yahmose,você,minhaúnicafilha,precisarádeumhomempara
ficaraoseulado,compartilhardesuaherança,realizartarefasna
minha propriedade que não podem ser efetuadas por uma
mulher.Poisquempodedizerquandoeusereiafastadodevocês?
Estabeleciemmeutestamentoqueatutelaeguardadascrianças
deSobekficarãoacargodeHori,casoYahmosenãoestejamais
vivo,assimcomoatuteladosfilhosdeYahmose,jáqueessaéa
suavontade,nãoéYahmose?
Yahmoseassentiu.
—Horitemsempreestadomuitopróximoamim.Écomose
pertencesseàminhaprópriafamília.
—Exato,exato—disseImhotep.Porémofatoéqueelenãoé
da família. Mas Kameni, sim. Portanto, considerando todos os
fatos, ele é o melhor marido disponível para Renisenb, no
momento.Então,oquediz,Renisenb?
—Nãosei—Renisenbrepetiunovamente.
Elasentiuumterrívelcansaço.
—Eleébonitoeagradável,vocêconcorda?
—Oh,sim.
— Mas você não quer se casar com ele? — perguntou
Yahmosegentilmente.
Renisenblançouumolharagradecidoaseuirmão.Eleestava
tãoresolutoqueelanãoprecisariaseapressarouseaborrecerem
fazeroquenãoqueria.
—Eu realmente não sei o que quero fazer.—E continuou
apressada. — É estúpido, eu sei, mas sinto-me estúpida hoje.
Deveserapressãosobaqualestamosvivendo.
—ComKameniaoseuladovocêsesentiráprotegida—disse
Imhotep.
Yahmoseperguntouaopai:—VocêjápensouemHoricomo
umpossívelmaridoparaRenisenb?
—Bem,sim,éumapossibilidade...
—Suamulhermorreuquandoeleaindaerajovem.Renisenb
oconhecebemegostadele.
ParaRenisenbaquilonãofaziasentido.Eraoseucasamento
que estavam discutindo e Yahmose estava tentando ajudá-la a
escolheroqueelaprópriaqueria,maselasesentiutãosemvida
comoabonecademadeiradeTeti.
Disse então abruptamente, interrompendo-os sem mesmo
ouviroqueestavamdizendo:
— Eu me casarei com Kameni, já que vocês acreditam ser
umaboacoisa.
Imhotepsoltouumaexclamaçãodecontentamentoesaiuàs
pressasdosalão.Yahmoseaproximou-sedairmãecolocou-lhea
mãonoombro.
—Vocêqueressecasamento,Renisenb?Vocêseráfeliz?
—Porquenãoseriafeliz?Kameniébonito,alegreegentil.
—Eusei.—Yahmoseaindapareciainsatisfeitoeemdúvida.
—Mas a sua felicidade é importante, Renisenb. Você não deve
permitir que meu pai imponha algo que você não deseja. Você
sabecomoeleé.
—Oh, sim, quando ele põe alguma coisa na cabeça, todos
temosdenoscurvar.
— Não necessariamente. — Yahmose falou com firmeza. —
Nestecaso,eunãoireimecurvaranãoserquevocêoqueira.
—Oh,Yahmose,vocênuncasepõecontraonossopai.
—Masofareinestecaso.Elenãopodemeforçaraconcordar
comele,eeunãoofarei.
Renisenbelevouoolharatéele.Quãoresolutoedeterminado
estavaseurostosempretãoindeciso!
—Vocêébomparamim,Yahmose—eladisseagradecida.—
Masrealmenteeunãoestoumerendendoàcoação.Aantigavida
daqui,avidaqueeuestavatãoencantadadepodervoltaraviver,
jánãoexiste.Kamenieeuconstruiremosumanovavidajuntose
viveremoscomobonsirmãoeirmã.
—Sevocêtemcerteza...
— Tenho certeza — disse Renisenb e, sorrindo-lhe
afetuosamente,saiudosalãoemdireçãoaopórtico.
Delá,cruzouopátio.Próximoàextremidadedolago,Kameni
estavabrincandocomTeti.Renisenbaproximou-sesuavementee
os olhou enquanto ainda não se haviam dado conta de sua
presença. Kameni, alegre como sempre, parecia gostar do jogo
tantoquantoacriança.Seucoraçãobateuforteporele.Pensou:
“EleseráumbompaiparaTeti.”
Então Kameni virou a cabeça, viu Renisenb e levantou-se
comumarisada.
—TransformamosabonecadeTetinumsacerdotedeKa—
disse. — E ele está fazendo as oferendas e participando das
cerimôniasnoTúmulo.
—SeunomeéMeriptah—disseTeti,queestavamuitoséria.
—Eletemdoisfilhoseumescriba,comoHori.
Kameni riu.— Teti émuito inteligente— disse.—E ela é
forteebonitatambém.
Seus olhos foram da criança para Renisenb e, nesse olhar
carinhoso, Renisenb leu o pensamento que lhe ia namente: o
filhoqueelaumdiadariaaele.
Isso lheprovocouuma leveexcitação,masaomesmo tempo
umrepentinoe intensoremorso.Gostariade tervisto,nosseus
olhos, naquele momento, apenas sua própria imagem. Ela
pensou:“PorquenãopodeserapenasRenisenboqueelevê?”
Entãoosentimentopassoueelalhesorriugentilmente.
—Meupaifaloucomigo—disseela.
—Evocêconsentiu?
Hesitouporummomentoantesderesponder:
—Euconsinto.
Aúltimapalavrahaviasidodita,aquiloeraofim.Estavatudo
acertado. Ela gostaria de não estar se sentindo tão cansada e
entorpecida.
—Renisenb?
—Sim,Kameni.
—Vocêvaivelejarcomigonorio,numbarcodepasseio?Isso
éumacoisaqueeusemprequisfazercomvocê.
Eracuriosoqueeledissesseisso.Nomomentoexatoemque
elaovirapelaprimeiravez,haviapensadonumavelaquadradae
norio,enorostorisonhodeKhay.Eagoraelahaviaseesquecido
do rosto deKhay e no lugar dele, contra a vela e o rio, estaria
Kamenisentadoerindoparaosseusolhos.
Aquiloeraamorte.Issoeraoqueamortefaziacomvocê.“Eu
sentia isto”,vocêdiz, “Eusentiaaquilo”—masvocêapenasdiz
isso, você agora não sente nada. O morto estava morto. Não
existiatalcoisacomorecordação.
Sim, mas havia Teti. Havia a vida e a renovação da vida,
assimcomoaságuasdas inundaçõesanuais varriamoque era
velhoepreparavamosoloparaonovoplantio.
Kaithaviadito:“Asmulheresdeumacasadevempermanecer
unidas.”Oqueeraela,afinal,senãoumadasmulheresdacasa?
SeeraRenisenbouumaoutra,quediferença?
EntãoouviuavozdeKameni,ansiosa,umpoucoconfusa.
—Emqueestápensando,Renisenb?Vocêàs vezes fica tão
distante...Vocêirácomigoaorio?
—Sim,Kameni,euireicomvocê.
—NóslevaremosTetitambém.
II
Era como um sonho, pensou Renisenb — o barco, a vela,
Kameni,elamesmaeTeti.Eleshaviamescapadodamorteedo
medodamorte.Esseeraocomeçodeumanovavida.
Kamenifalavaeelarespondiacomoseemtranse...
“Essaéaminhavida,”pensouela,“nãohácomofugir...”
Entãoperplexa:“Masporqueeudigoparamimmesmafugir?
Quelugaréesseparaondeeupossofugir?”
Enovamenteapareceudiantedeseusolhosopequenoquarto
depedraaoladodoTúmulo,eelasentadacomojoelholevantado
eoqueixorepousandonamão...
Pensou:“Masaquiloeraalgoàpartedavida—issoévida—
eagoranãohaviamaismeiodefugiratéamorte...”
Kameniancorouobarcoeelapisounapraia.EletrouxeTeti
para fora. A criança agarrou-se ao pescoço de Kameni e
arrebentouacordadoamuletoqueeleusava.Esteveiocairaos
pésdeRenisenb.Elaoapanhou.EraumsímbolodeAnkhfeito
deeletroeouro.
Deuumgritinhodepesar.—Estáamassado,lamento.Tenha
cuidado...—Kamenitomou-odesuasmãos.—Podequebrar—
eladisse.
Mas seus dedos fortes, curvando-o ainda mais, fizeram-no
deliberadamentepartir-seemdois.
—Oh,oquevocêfez?
—Tomeestametade,Renisenb,eeuficareicomaoutra.Será
umsímboloentrenós:dequenóssomosasduasmetadesdeum
todo.
Justo quando esticava suamão para pegá-lo, alguma coisa
estalounoseucérebroeelatomoufôlegorepentinamente.
—Quefoi,Renisenb?
—Nofret.
—Oquevocêquerdizercom...—Nofret?
Renisenbfaloucomumacertezaimediata.
—Oamuletoquebradonacaixade jóiasdeNofret.Foivocê
quemodeuaela...VocêeNofret...Vejotudoclaramente,agora.
Porqueelaeratãoinfeliz.Seiquempôsacaixadejóiasnomeu
quarto. Sei de tudo... Nãominta paramim, Kameni. Estou-lhe
dizendoquesei.
Kameni não protestou. Permaneceu olhando para ela
fixamente e seu olhar não vacilou. Quando falou, sua voz era
gravee,destavez,nãohaviaumsorrisoemseurosto.
—Nãomentireiparavocê,Renisenb.
Ele esperou por um momento, franzindo as sobrancelhas,
comoquetentandoordenarseuspensamentos.
— De certo modo, Renisenb, estou feliz por você saber.
Emboranãosejaexatamentecomovocêestápensando.
—Vocêdeuoamuletoquebradoparaela...comoteriadado
paramim,comoumsímbolodequevocêserammetadesdeum
mesmotodo.Essasforamsuaspalavras.
—Vocêestácomraiva,Renisenb.Ficocontenteporque isto
demonstraquevocêmeama.Mas,emtodocaso,tenhoquefazê-
laentender.EunãodeioamuletoaNofret.Elaodeuamim...
Ele fez uma pausa. — Talvez você não me acredite, mas é
verdade,Eujuroqueéverdade.
Renisenb disse vagarosamente: — Não vou dizer que não
acreditoemvocê...Issopodeperfeitamenteserverdade.
AfaceescuraetristedeNofretapareceudiantedeseusolhos.
Kamenicontinuava,impulsivaesingelamente...
—Tentecompreender,Renisenb.Nofreteramuitobonita.Eu
me senti lisonjeado e satisfeito... quem não ficaria? Mas eu
realmentenuncaaamei...
Renisenbsentiuumaestranhapontadade compaixão.Não,
Kameni não havia amado Nofret; mas Nofret havia amado
Kameni; amara-o desesperada e amargamente. Fora exatamente
nesta parte do Nilo que ela havia falado com Nofret naquela
manhã,oferecendo-lheamizadeeafeição.Lembrava-semuitobem
da negra corrente de ódio e miséria que emanava da moça
naquele dia. A causa disso estava agora bastante clara. Pobre
Nofret... a concubina de um velho irrequieto, o coração sendo
corroído pelo amor por um alegre, despreocupado e belo jovem
queligavamuitopoucoounadaparaela.
Kamenicontinuavaansiosamente.
—Vocênãopercebe,Renisenb,quelogoquandoaquicheguei
eu a vi e a amei?Quedesde aquele instante eunão pensei em
maisninguém?Nofretpercebeu-oclaramente.
Sim, pensou Renisenb, Nofret percebeu-o. E desde aquele
momento Nofret a odiou; e Renisenb não se sentiu inclinada a
condená-la.
— Eu nemmesmo queria escrever aquela carta para o seu
pai.NãoqueriamaismeenvolvercomosesquemasdeNofret.Mas
eradifícil...vocêtemquetentarentenderqueeradifícil.
— Sim, sim — Renisenb falou impacientemente. — Nada
disso importa. Só Nofret interessa. Ela era muito infeliz. Ela o
amou,pensoeu,emuito.
—Bem,eunãoaamava—retrucouKameni.
—Vocêécruel—afirmouRenisenb.
— Não, eu sou um homem e isso é tudo. Se uma mulher
escolhedesgraçar-seporminhacausa,issomeincomoda,estaéa
pura verdade. Eu não queria Nofret. Eu queria você. Oh,
Renisenb,vocênãopodeficarzangadacomigoporcausadisso!
Elasorriu,mesmosemquerer.
—NãodeixeNofret,queestámorta,causarproblemasentre
nósqueestamosvivos.Euamovocê,Renisenb,evocêmeama;e
issoétudooqueimporta.
“Sim”,pensouRenisenb,“issoétudoqueimporta...”
OlhouparaKameni,quepermaneciaempé,comsuacabeça
umpoucocaídaparaoladoeumaexpressãosuplicanteemseu
rostoalegreeconfiante.Elepareciamuitojovem.
Renisenb pensou: “Ele está certo. Nofret está morta e nós
estamosvivos.Compreendoagoraoseuódiopormim...elamento
queelatenhasofrido,masnãofoiminhaculpa.Etambémnãose
pode culparKameni por amar amim e não a ela. Essas coisas
acontecem”.
Teti,queestavabrincandonasmargensdorio,aproximou-se
epuxouamãodesuamãe.
—Vamosparacasaagora?Mamãe,vamosparacasa?
Renisenbdeuumprofundosuspiro.
—Sim—respondeu—,vamosparacasa.
Foramandandoemdireçãoàcasa,Teti correndoumpouco
adiante.
Kamenideuumsuspirodesatisfação.
— Você é generosa, Renisenb, tanto quanto encantadora.
Tudoestácomoantesentrenós?
—Sim,Kameni.Tudoestácomoantes.
Eleabaixouavoz.—Lánorio...euestavamuitofeliz.Você
tambémestavafeliz,Renisenb?
—Sim,euestavafeliz.
— Você parecia feliz; mas dava a impressão de que estava
pensando em algomuito distante. Eu queria que você estivesse
pensandoemmim.
—Euestavapensandoemvocê.
Kamenipegou-lheamãoeelanãoa retirou.Elesussurrou
meigamente:
—Minhairmãécomoumaárvore...
Sentiu a mão de Renisenb tremer na dele, ouviu-lhe a
respiraçãoapressadaeficoufinalmentesatisfeito...
III
RenisenbchamouHenetaoseuquarto.
Henet entrou apressadamente, estacando abruptamente
quandoviuRenisenbempé,juntoàcaixadejóiasabertaecomo
amuletoquebradonamão.OrostodeRenisenbestavazangadoe
severo.
— Você pôs esta caixa de jóias no meu quarto, não pôs,
Henet?Vocêqueriaqueeuachasseesteamuleto;queriaqueeu
umdia...
— Descobrisse quem tinha a outra metade? Vejo que
descobriu.Bem,ésemprebomsaber,nãoé,Renisenb?
Henetriuencarnecedoramente.
— Você queria que eu soubesse para me ferir — disse
Renisenb furiosa. — Você gosta de magoar as pessoas, não é,
Henet? Você nunca fala por falar; espera até que chegue o
momentocerto.Vocênosodeiaatodos,nãoé?Sempreodiou.
— O que está dizendo, Renisenb? Estou certa de que você
falousempensar!
NãohaviaagoralamentonavozdeHenet,apenasumtriunfo
dissimulado.
—VocêqueriacausarproblemasentremimeKameni.Bem,
nãoháproblemas.
— Isso foi muito bom e generoso de sua parte, Renisenb,
estoucerta.VocêébemdiferentedeNofret,não?
—NãovamosfalardeNofret.
— Sim, talvez seja melhor. Kameni tem sorte, além de ser
bonito,não?EletevesortedeNofrettermorrido.Elapoderiater-
lhecausadomuitosproblemas.Comseupai.Elanãogostariade
vê-locasadocomvocê...não,elanãogostarianemumpouco.Na
verdade,creioqueelaencontrariaalgummeiodeimpedi-lo.Estou
quasecertadisso.
Renisenbolhouparaelacomumarepugnânciagélida.
—Há sempre veneno em sua língua,Henet. Ela pica como
umescorpião.Masvocênãopodefazer-meinfeliz.
— Bem, isso é esplêndido, não? Você deve estar muito
apaixonada. Oh, ele é um belo homem, Kameni; e sabe como
cantar uma bela canção de amor. Ele sempre conseguirá o que
quer,não tema.Euoadmiro, realmente.Ele sempreparece tão
simplesehonesto...
—Queestátentandodizer?
—EstouapenasdizendoqueadmiroKameni.Etenhoquase
certezadequeeleésimplesehonesto.Nãoéfingimento.Acoisa
toda é bem parecida comuma daquelas histórias contadas nos
bazares.Opobree jovemescribacasa-secoma filhadopatrão,
divide com ela toda a herança e os dois acabam vivendo felizes
parasempre.Émaravilhosaasortequetodobelo jovemsempre
tem.
—Sei—disseRenisenb.—Vocêrealmentenosodeia.
— Como pode dizer isso, Renisenb, quando sabe que me
torneiescravadetodosvocêsdesdequesuamãemorreu?
Mas ainda havia um triunfo maléfico na voz de Henet, ao
invésdocostumeirolamento.
Renisenbolhouparaacaixadejóiase,desúbito,umaoutra
certezasurgiuemsuamente.
—Foivocêquemcolocouocolarcomosleõesdeouronesta
caixa.Nãonegue,Henet.Seioqueestoudizendo.
OtriunfodissimuladodeHenetdesapareceu.Derepenteela
pareceuintimidada.
—Nãopudeevitar,Renisenb.Euestavaassustada...
—Quequerdizercomassustada?
Henetchegouumpassomaisparapertoeabaixouavoz.
— Ela o deu para mim... Nofret, quero dizer. Oh, algum
tempoantesdemorrer.Elamedeuumoudoispresentes.Nofret
eragenerosa,vocêsabe.Oh,sim,eragenerosa.
—Eudiriaqueelalhepagavabem.
— Essa não é uma maneira gentil de colocar a coisa,
Renisenb,masestou-lhecontandotudoarespeito.Elamedeuo
colarcomosleõesdeouro,obrochedeametistaemaisumaou
duascoisas.Eentão,quandoaquelemeninoapareceucontando
aquelahistóriadequetinhavistoumamulherusandoocolar...
bem,eufiqueiassustada.Penseiquetalvezpensassemquehavia
sido eu que tinha envenenado o vinho de Yahmose. Então
coloqueiocolarnacaixa.
—Istoéverdade,Henet?Vocêalgumavezfalaaverdade?
—Juroqueéverdade,Renisenb.Euestavaassustada...
Renisenb olhou-a curiosamente. — Você está tremendo,
Henet.Vocêparecequeestácommedo.
—Sim,estouassustada...etenhoboasrazõesparaestar.
—Porquê?Diga-me.
Henet molhou os finos lábios. Olhou para os lados e para
trás.Seusolhoseramosdeumanimalacuado.
—Diga-me—volveuRenisenb.
Henetsacudiuacabeça.Dissenumavozincerta:
—Nãohánadaparacontar.
—Vocêsabedemais,Henet.Vocêsempresoubedemais.Você
gostavadisso,masagoraéperigoso.Éisso,não?
Henetsacudiuacabeçadenovo.Riuentãomaliciosamente.
— Espere, Renisenb. Um dia ainda hei de empunhar o
chicotenestacasa...eestalá-lo.Espereeverá.
Renisenb levantou-se. — Você não me fará nenhum mal,
Henet.Minhamãenãopermitiráquevocêmefaçamal.
OrostodeHenettransformou-se;seusolhosfaiscaram.
— Eu odiava sua mãe — disse. — Eu sempre a odiei... E
tambémvocê,quetemosolhosdela...suavoz,suabelezaesua
arrogância,euodeiovocê,Renisenb.
Renisenbriu.—Afinal...euafizfalar!
CAPÍTULOXX
SegundoMêsdeVerão
DécimoQuintoDia
I
AvelhaEsamancavacomdificuldadepeloquarto.
Ela estava perplexa e exausta. A idade, chegara a essa
conclusão, estava cobrando seus tributos. Hámuito tempo que
haviatomadoconhecimentodocansaçodoseucorpo.Masestava
consciente de que não havia cansaço da mente. Agora, porém,
tinha de admitir que a força de se manter alerta mentalmente
estavasobrecarregandosuasreservascorporais.
Muito embora sabendo, como acreditava que sabia, de que
quadrante o perigo ameaçava, ainda assim esse conhecimento
nãolhepermitiaumrelaxamentomental.Aoinvésdisso,tinhade
estarmaisdoquenuncaemguarda,umavezquehaviaatraídoa
atenção para si mesma. Provas... provas... tinha de encontrar
provas;mascomo?
Eraaí, ela concluiu, quea idadeatrapalhava.Estavamuito
cansadaparaimprovisar...parafazerumesforçomentalcriativo.
Somenteeracapazdesedefender...permaneceralerta,atentae
precavida.
Quanto ao assassino, não tinha ilusões a esse respeito: ele
estariaprontoparamatarnovamente.
Nãotinhaamenorintençãodeserapróximavítima.Veneno,
tinhacerteza,seriaomeioutilizado.Violêncianãoeraconcebível,
umavezqueelanuncaestavasozinha,massemprecercadapor
criados. Portanto seria veneno. Contra isso podia se prevenir.
Renisenb cozinharia e traria comida para ela. Mandaria trazer
paraoseuquartoumajarradevinhoe,depoisqueumescravoo
provasse,esperariavinteequatrohorasparapoderficarcertade
que nenhum resultado maléfico sucederia. Faria com que
Renisenb partilhasse de sua comida e de seu vinho— embora
nadatemesseporRenisenbainda.Talvezjamaistivessequetemer
porRenisenb.Masquantoaisso,nuncasepodiaestarcerto.
Àsvezes,ficavasentada,imóvel,forçandoseufatigadocérebro
aplanejarumamaneiradeprovaraverdade,ouobservandosua
pequenacriadaengomandoepregueandoseusvestidosdelinho,
e reenfiando colares e braceletes. Esta tarde ela estava muito
cansada.Encontrara-secomImhotep,apedidodele,paradiscutir
a questão do casamento de Renisenb, antes de ele próprio ter
faladocomafilha.
Imhotep,encolhidoemal-humorado,eraumasombradoque
havia sido. Seus modos tinham perdido a antiga pompa e
segurança. Ele agora se apoiava na vontade indomável e na
determinaçãodesuamãe.
QuantoaEsa,elaestavareceosa—muitoreceosa—dedizer
a coisa errada. De palavras imprudentes poderiam depender
vidas.
Sim,concordarafinalmente,a idéiadecasamentoerasábia.
Enão haviamuito tempo para se ir a campo à procura de um
marido entre os membros mais importantes do clã familiar.
Afinal,alinhafemininaeraamaisimportante:seumaridoseria
apenas o administrador da herança que caberia a Renisenb e
seusfilhos.
A questão era decidir entre Hori, um homem íntegro, cuja
amizade fora longamente provada, filho de um pequeno
proprietáriocujasterrashaviam-se juntadoàsdeles;ouo jovem
Kameni,comsuasreivindicaçõesdeprimo.
Esa pesou o assunto cuidadosamente antes de falar. Uma
palavraemfalso...eoresultadopoderiaserdesastroso.
Conseguiuentãochegaraumasolução,queenfatizoucoma
forçadesuaindomávelpersonalidade.Kameni,disseela,erasem
dúvida omarido para Renisenb. Os problemas e as respectivas
festividades necessárias — muito reduzidas devido às recentes
perdas — poderiam ser realizados dali a uma semana. Isto se
Renisenb estivesse querendo. Kameni era um jovem saudável...
juntosteriamfilhosfortes.Alémdisso,elesseamavam.
Bem,pensouEsa, elahavia jogadocomsuamorte.Agoraa
coisaseriadecididano tabuleiro.Estava foradesuasmãos.Ela
haviafeitooquejulgouserconveniente.Seeraarriscado—bem,
EsagostavadeumapartidanotabuleiroquasetantoquantoIpy.
A vida não era uma questão de segurança — era preciso
expor-separapoderganharojogo.
Ela olhou suspeitosamente em tornodo seu quarto quando
voltouparaomesmo.Examinouprincipalmenteajarradevinho:
estavacobertaelacradacomohaviadeixado.Elasemprealacrava
quandodeixavaoquartoeoseloestavapenduradoemsegurança
noseupescoço.
Sim— não correria riscos daquele tipo. Esa cacarejou com
umasatisfaçãomaliciosa.Nãoeratão fácilmatarumavelha.As
velhas conhecem o valor da vida... e quase todos os truques,
também.Amanhã...Chamousuacriada.
—OndeestáHori?Vocêsabe?
AmeninarespondeuqueachavaqueHoriestavaláemcima
noTúmulo,noquartodepedra.
Esaanuiusatisfeita.
— Vá lá em cima falar com ele. Diga-lhe que amanhã de
manhã, quando Imhotep e Yahmose estiverem nas plantações,
juntamentecomKameni,paraqueelefaçaacontagem,equando
Kaitestiverno lagocomascrianças,queeledeveráviratéaqui
falarcomigo.Vocêentendeu?Poisentãorepita.
AcriadarepetiueEsaadispensou.
Sim, seu plano era bastante satisfatório. Sua consulta com
Horiseriabastanteparticular,umavezquemandariaHenetlevar
umamensagemparaosgalpõesde tecelagem.AvisariaaHori o
queestavaparaacontecereelespoderiamconversarabertamente.
Quando a criada voltou com amensagem de Hori, dizendo
queelefariacomoelahaviadito.Esadeuumsuspirodealívio.
Agora,arranjadasessascoisas,suaexaustãoespalhou-sepor
todo o corpo como se fosseumaonda. Pediu àmenina que lhe
trouxesseopotedeungüentodecheiroadocicadoemassageasse
seusmembros.
Omovimentoritmadoreconfortou-aeoungüentomelhoroua
dordeseusossos.
Finalmente esticou-se, a cabeça apoiada no travesseiro de
madeira e dormiu, aliviada por alguns momentos de seus
temores.
Acordou bem mais tarde com uma estranha sensação de
friagem. Seus pés e mãos estavam dormentes e mortos... Era
como uma contração que se ia apoderando de todo seu corpo.
Pôdesenti-laentorpecendoseucérebro,paralisandosuavontade
ediminuindoasbatidasdeseucoração.
Pensou:“IssoéaMorte...”
Uma morte estranha... uma morte sem arautos, sem aviso
prévio.
Eraassim,pensouela,queosvelhosmorriam...
Veio-lheentãoumaconvicçãofulminante.Issonãoeramorte
natural!EraoInimigoarremetendodaescuridão.
Veneno...
Mascomo?Quando?Tudoquehaviacomido,tudoquehavia
bebido—testado,seguro—nãopodiaterhavidoengano.
Entãocomo?Quando?
Com suas últimas e frágeis centelhas de inteligência, Esa
procuroupenetraromistério.Tinhadesaber—tinha—antesde
morrer.
Sentiu a pressão aumentando sobre o seu coração — a
friagemmortal—alentaedolorosaexpiração.
Comoéqueoinimigohaviafeitotalcoisa?
De súbito, vinda de algum lugar no passado, uma fugidia
lembrança clareou-lhe as idéias. A pele tonsurada de uma
ovelha... um bocado de gordura... uma experiência de seu pai
parademonstrarquealgunsvenenospodiamserabsorvidospela
pele. Lanolina, ungüentos feitos de lanolina! Tinha sido assim
que o inimigo a alcançara. Seu pote de ungüento de cheiro
adocicado,tãonecessárioparaamulheregípcia.Ovenenoestava
lá...
E amanhã... Hori... ele não saberia, ela não poderia dizer-
lhe...Eratardedemais.
Pela manhã, a assustada criada saiu correndo pela casa
dizendoquesuasenhorahaviamorridoduranteosono.
II
ImhoteppermaneceuolhandoparaocorpodeEsa.Seurosto
estavapesaroso,masnãodesconfiado.
Suamãe,disseele,haviamorridonaturalmentedevidoàsua
idadeavançada.
—Elaeravelha—afirmou.—Sim,elaestavavelha.Jáera
tempo, sem dúvida, de ela ir para Osíris e todos os seus
problemasetristezashaviamaceleradoseufim.Maspareciaque
este viera bastante pacificamente. Graças a Rê em sua
misericórdia,eisaquiumamortesema interferênciadohomem
ou dos maus espíritos. Não há violência aqui. Vejam como ela
parecetranqüila,
Renisenb chorou e Yahmose confortou-a.Henet andava por
alisuspirandoeabanandoacabeça,dizendoqueeraumagrande
perda e quãodedicada ela,Henet, tinha sidoparaEsa.Kameni
interrompeuseucantoemostrounorostoolutoapropriado.
Horichegoueficouolhandoparaamulhermorta.Eraahora
queelahavia combinadoparaque viesse.Procurava imaginar o
que,exatamente,elaquerialhedizer.
Esadeviateralgodefinitivoparalhedizer.
Agoraelejamaissaberia.
Maspensouquetalvezpudesseadivinhar...
CAPÍTULOXXI
SegundoMêsdeVerão
DécimoSextoDia
I
—Hori...elafoiassassinada?
—Creioquesim,Renisenb.
—Como?
—Nãosei.
— Mas ela era tão cuidadosa! — A voz da moça era
angustiadaeconfusa.—Estavasempreatenta;tomavatodasas
precauções.Tudoquecomiaoubebiaeraprovadoeexaminado.
— Eu sei, Renisenb, mas, mesmo assim, creio que foi
assassinada.
—Eelaeraamaissábiadetodosnós...amaisesperta!Ela
estavacertadequenenhummalpoderiaocorrer-lhe.Hori,temde
sermagia!Magiamalvada,oencantodeummauespírito.
— Você acredita nisso porque é a coisa mais fácil de se
acreditar. As pessoas são assim. Mas a própria Esa não teria
acreditadonisso.Poissesabia,antesdemorrer,eelanãomorreu
duranteosono,queissoeratrabalhodeumapessoaviva!
—Eelasabiadequem?
—Sim,elamostrousuasuspeitamuitoabertamente.Elase
tornouumperigoparaoinimigo.OfatodeEsatermorridoprova
quesuassuspeitasestavamcertas.
—Eelalhecontou...quemera?
— Não — disse Hori. — Ela não me contou; nunca
mencionou um nome. Mesmo assim, seu pensamento e o meu
eram,estouconvencido,osmesmos.
—Entãovocêtemdemecontar,Hori,paraqueeupossaficar
emguarda.
—Não,Renisenb,preocupo-medemaiscomasuasegurança
parafazerisso.
—Acasoestouassimtãosegura?
OrostodeHoriturvou-se.Eledisse:—Não,Renisenb,você
nãoestásegura.Ninguémestáseguro.Masvocêestámuitomais
seguradoqueseestivessesabendodaverdade...poisentãovocê
passaria a ser definitivamente uma ameaça a ser eliminada a
qualquerpreço.
—Equantoavocê,Hori?Vocêsabe.
Eleacorrigiu.—Eupensoquesei.Masnãodissenadanem
demonstreinada.Esafoiimprudente.Eladeixouclaro;mostroua
direção que seuspensamentos estavam tomando.Elanãodevia
terfeitoisso....eulhedissemaistarde.
—Masvocê,Hori...Sealgumacoisaacontecercomvocê...
Calou-se.EstavaconscientedosolhosdeHoriquefitavamos
seus.
Graves, atentos, olhandodiretamentepara suamente e seu
coração...
Eletomousuamãossuavemente.
—Nãotemapormim,pequenaRenisenb...Tudoseresolverá.
Sim, pensou ela, tudo se resolverá, se Hori assim o diz.
Estranha sensação aquela de contentamento, de paz, uma
felicidadeclaraeesfuziante...Tãoencantadoraeremotaquantoa
paisagemvistadoTúmulo...umapaisagemnaqualnãohaviao
clamordasexigênciaserestriçõeshumanas.
Desúbito,quaserispidamente,elaseouviudizendo:
—VoumecasarcomKameni.
Horilargou-lheasmãos,tranqüilaeaténaturalmente.
—Eusei,Renisenb.
—Eles...meupai...elespensamqueéomelhorquesetema
fazer.
—Eusei.
Horiseretirou.
Osmurosdopátiopareciamseaproximar,asvozesdentrode
casaedosceleirosláforasoavamaltasebarulhentas.
Renisenbtinhaapenasumpensamentoemsuamente:“Hori
estáindoembora...”
Chamou-otimidamente:
—Hori,ondevocêvai?
— Para os campos com Yahmose. Hámuito trabalho a ser
feitoecompilado.Aceifaestáquaseterminada.
—EKameni?
—Kamenivemconosco.
Renisenbgritou.—Tenhomedodeficaraqui.Sim,mesmoà
luzdodia,comoscriadospor todaparteeRênavegandopelos
Céus,aindaassimtenhomedo!
Horivoltourapidamente.
—Nãotenhamedo,Renisenb.Juro-lhequevocênãoprecisa
termedo.Hojenão.
—Masedepoisdehoje?
—Porenquanto,hojeéobastante...eeujuroquehojevocê
nãocorreperigo.
Renisenbolhouparaeleefranziuaosobrancelhas.
— Mas nós estamos em perigo? Yahmose, meu pai, eu
mesma?Nãosereieuaprimeiraaseratacada...é issoquevocê
acha?
—Tentenãopensarnisso,Renisenb.Estou fazendo tudoo
queposso,aindaquelhepareçaqueeunãoestejafazendonada.
—Percebo...—Renisenbolhouparaelepensativamente.—
Sim,percebo.HádeserYahmoseoprimeiro.Oinimigojátentou
duasvezescomvenenoefalhou.Haveráumaterceiratentativa.É
por isso que você estará ao lado dele... para protegê-lo. Depois
disso seráa vezdemeupai e aminhaprópria.Quemseráque
odeiatantoanossafamíliaapontode...
— Silêncio. O melhor que você tem a fazer é não falar a
respeitodessascoisas.Confieemmim,Renisenb,tenteexpulsaro
medodedentrodevocê.
Renisenb atirou sua cabeça para trás; olhou para ele
orgulhosamente.
—Eu realmente confio emvocê,Hori.Vocênãomedeixará
morrer...Euamomuitoavidaenãoqueroperdê-la.
—Vocênãoaperderá,Renisenb.
—Nemvocê,Hori.
—Nemeu.
SorriramumparaooutroeentãoHoriseguiuaoencontrode
Yahmose.
II
Renisenbsentou-seenquantofitavaKait.
Kaitestavaajudandoseusfilhosafazerbrinquedosdeargila,
utilizando a água do lago. Seus dedos estavam ocupados
amassandoemodelando,esuavozencorajavaosdoispequenose
sériosmeninosnassuastarefas.OrostodeKaiteraomesmode
sempre: afável, comum, sem expressão. A atmosfera de morte
violenta eo constante temorqueenvolviaa todosnãopareciam
afetá-ladetodo...
HoripediraaRenisenbparanãopensarmas,mesmocoma
melhor boa vontade do mundo, Renisenb era incapaz de
obedecer.SeHorisabiaquemerao inimigo,seEsasabiaquem
era o inimigo, entãonãohavia razão para que também ela não
soubessequemeraoinimigo.Podiaestarseguranãoosabendo,
mas nenhuma criatura humana poderia se contentar com isso.
Elaqueriasaber.
Etinhadeserbastantefácil...muitofácilmesmo.Seupai,é
claro, não poderia querermatar seus próprios filhos. Restavam
então... quem restava? Restavam, pura e simplesmente, duas
pessoas:KaiteHenet.
Mulheres,ambas...
Ecertamentesemnenhumarazãoparamatar...
Muito embora Henet os odiasse a todos... Sim,
indubitavelmente Henet os odiava. Ela tinha admitido odiar
Renisenb.Porquenãohaveriadeodiartambémosoutros?
Renisenb tentou mergulhar nas obscuras e conturbadas
profundezasdocérebrodeHenet.Vivendoaqui,todosestesanos,
trabalhando, proclamando sua vocação, mentindo, espiando,
provocando mal-entendidos... Tendo aqui chegado há muito
tempo,comoumapobreparentadeumagrandeebelasenhora.
Vendo esta adorável senhora feliz com seu marido e filhos.
Repudiada pelo próprio marido, seu único filho morto... Sim,
talveztenhasidotudoisso.Comoumaferidaprovocadaporum
golpedelança,queRenisenbviraumavez.Curou-serapidamente
nasuperfície,mas,porbaixo, oquehaviade ruimulcerou-se e
alastrou-se,eobraçoinchou,tornando-seduroaotoque.Depois
veioomédicoe, comosencantamentosapropriados, introduziu
umapequenafacanobraçoendurecido, inchadoedisforme.Foi
comosetivessemabertoascomportasdeumdiquedeirrigação.
Umatorrentedeumasubstânciamal-cheirosajorrouparafora...
Aquilo era, talvez, como a mente de Henet. Amarguras e
tristezas suavizaram-se depressa demais e continuaram
destilando veneno por dentro, numa crescente onda de ódio e
peçonha.
MasseráqueHenetodiavatambémImhotep?Certamenteque
não. Durante anos ela andou em volta dele, bajulando-o,
adulando-o...
Eleconfiavanelainteiramente.Certodequeadevoçãoéalgo
quenãopodesercompletamenteforjado.
Eseelafossedevotadaaele,seráqueseriacapazdeinfligir-
lhedeliberadamentetantadoreperda?
Ah,massuponhamosqueelaoodiassetambém;quesempre
otivesseodiado.Queotivessebajuladocomointuitodefazervir
à tona sua fraqueza? Suponhamos que Imhotep fosse aquele a
quem ela odiasse mais? Então, para uma mente distorcida,
perseguida pelos maus espíritos, que prazer maior que este
poderiaexistir?Deixá-loverseusprópriosfilhosmorreremuma
um...
—Qualéoproblema,Renisenb?—Kaitestavaolhandopara
ela.—Vocêpareceesquisita.
Renisenblevantou-se.
—Sinto-mecomoseestivesseapontodevomitar—disseela.
Num certo sentido, isso era bastante verdadeiro. O quadro
que havia imaginado provocou-lhe uma forte sensação de
náusea..Kaittomou-lheaspalavraspelosentidoaparente.
—Vocêcomeumuitas tâmarasverdes,ou talvezopeixe lhe
tenhaembrulhadooestômago.
—Não,nãoénadaqueeutenhacomido.Éaterrívelfaseque
estamosatravessando.
—Ah,isso!
A desaprovação de Kait foi tão indiferente que Renisenb
olhou-aperplexa.
—MasKait,vocênãoestácommedo?
—Creio que não— retrucou Kait.— Se acontecer alguma
coisa a Imhotep, as crianças terão a proteção de Hori. Hori é
honesto.Eletomarácontadaherançadelas.
—Yahmosefaráisso.
—Yahmosetambémmorrerá.
—Kait,vocêdizissocomtantacalma!Vocênãoseimportade
todo?Querodizer,quemeupaieYahmosemorram?
Kaitrefletiuumpouco.Depois,encolheuosombros.
— Somos duas mulheres, sejamos honestas. Sempre
considereiImhopettirânicoeinjusto.Elesecomportoudeforma
ultrajante com relação à sua concubina, deixando-se persuadir
por elaadeserdar seupróprio sanguee carne.Nuncagosteide
Imhotep. Com relação a Yahmose, ele não é nada. Satipy o
governavade todasasmaneiras.Ultimamente, desde que ela se
foi,eleassumiuautoridade,passouadarordens.Elesempredará
preferênciaaosseusfilhosenãoaosmeus,énatural.Então,se
ele tem de morrer, melhor para meus filhos que assim seja; é
assim que vejo as coisas. Hori não tem filhos e é justo. Todos
esses acontecimentos têm sido perturbadores,mas ultimamente
tenhopensadoqueéomelhorquepodiateracontecido.
—Evocêfalasobreisso,Kait,tãocalmamente,tãofriamente?
Quandofoiseuprópriomarido,aquemvocêamava,oprimeiroa
serassassinado?
Umapálidaexpressãodenaturezaindefinidapassoupelaface
de Kait. Lançou um olhar a Renisenb que parecia conter uma
certaironiadesdenhosa.
— Você se parece muito com Teti, às vezes, Renisenb.
Realmente,eupoderiaatéjurar...nemumpoucomaisvelha!
— Você não pranteia Sobek — Renisenb pronunciou
lentamenteaspalavras.—Eujápercebiisso.
—Ora,vamos,Renisenb,euobedecia todasasconvenções.
Seicomoumaviúvarecentedevesecomportar.
—Sim,efoiapenasissooquehouve...Então,issosignifica
quevocênãoamavaSobek?
Kaitencolheuosombros.
—Eporquedeveria?
—Kait!Eleeraseumarido...elelhedeufilhos.
A expressão de Kait suavizou-se. Ela olhou para os dois
meninosatarefadoscomaargilaedepoisparaAnkh,querolava
pelochão,cantandoparasimesmaebalançandoasperninhas.
—Sim,elemedeuosmeusfilhos.Porissoeulhesougrata.
Mas o que era ele, afinal de contas? Um belo fanfarrão... um
homemqueestavasempreprocurandooutrasmulheres.Elenão
traziaparacasauma irmã,decentemente,umapessoamodesta,
que seria útil para todos nós. Não; ele ia para casas de má
reputação, gastava nelas muito cobre e ouro, bebendo e
solicitandoasdançarinasmaiscaras.FoiumafelicidadeImhotep
tê-loconservadocomasrédeascurtas,comoofez,equetivessede
prestar contas minuciosamente das vendas que fazia na
propriedade.Que amor e respeito poderia eu encontrar por um
homemassim?Dequalquerforma,quesãooshomens?Elessão
necessáriosparagerarcrianças,étudo.Masaforçadaraçaestá
namulher. Somos nós, Renisenb, que legamos a nossos filhos
tudooqueénosso.Quantoaoshomens,deixem-nosprocriar e
morrercedo...
O escárnio e o desdém na voz de Kait atingiram um tom
agudocomoodeuminstrumentomusical.Seurostoforteefeio
estavatransfigurado.
Renisenbpensou,comassombro:
“Kaitéforte.Seéestúpida,édeumaestupidezquesesatisfaz
porsisó.Elaodeiaedesprezaoshomens.Eudeviasaber.Certa
vez, cheguei a perceber isso por um momento; essa qualidade
ameaçadora.Sim,Kaitéforte...”
Sem pensar, o olhar de Renisenb recaiu sobre as mãos de
Kait. Elas amassavam e misturavam a argila — mãos fortes e
musculosas.Ao vê-las pressionar a argila,Renisenbpensou em
Ipyenas fortesmãospressionando-lheacabeçaparadentroda
água e segurando-a inexoravelmente. Sim, as mãos de Kait
poderiamterfeitoaquilo...
ApequenaAnkh rolousobre espinhos e soltouumgemido.
Kait correu para ela, segurando-a contra o peito, cantando
baixinho para ela. Seu rosto, agora, era todo amor e ternura.
Henetveiocorrendodopórtico.
—Algumacoisaerrada?Ameninagemeutãoalto!Penseique
talvez...
Calou-se, desapontada. Seu rosto ávido, mesquinho e
malvado,ansiosoporalgumacatástrofe,abateu-se.
Renisenbolhavadeumamulherparaaoutra.
Ódionumrosto.Amornooutro.Qualdeles,perguntava-se,
seriaomaisterrível?
III
—Yahmose,tenhacuidado;tenhacuidadocomKait.
— Kait? — Yahmose mostrou-se estarrecido. — Minha
queridaRenisenb...
—Éoquelhedigo,elaéperigosa.
—Nossa tranqüilaKait?Elasempre foiumamulhermeiga,
submissa,nãomuitointeligente...
Renisenbointerrompeu.
—Ela não é nemmeiga, nem submissa. Tenhomedo dela,
Yahmose.Queroquevocêfiquealerta.
—ContraKait?—Eleaindaestava incrédulo.—Malposso
imaginar Kait espalhando a morte a sua volta. Ela não tem
cérebroparaisso.
— Não creio que se trate de cérebro. Conhecimento sobre
venenos é tudo quanto foi preciso. E você sabe que tal
conhecimentoseencontra,freqüentemente,entrecertasfamílias.
Eleétransmitidodemãeparafilha.Elasprópriasfermentamas
misturas de poderosas ervas. É uma espécie de saber que Kait
facilmente pode ter. Ela prepara remédios para as crianças
quandoelasadoecem,vocêsabe.
—Sim,éverdade—Yahmosedissepensativamente.
— Henet, também, é uma mulher diabólica — continuou
Renisenb.
—Henet... sim.Nuncagostamosdela.De fato, senão fosse
pelaproteçãodemeupai...
—Meupaiestáiludidocomela—disseRenisenb.
—Podeser—Yahmoseconcordou.—Elaolisonjeia.
Renisenb o olhou com surpresa por um instante. Era a
primeira vez que ouviu Yahmose proferir uma frase contendo
críticaaImhotep.Elesemprepareceuintimidadopelopai.
Mas, agora, ela percebia, Yahmose estava assumindo o
comando gradualmente. Imhotep envelhecera anos nas últimas
semanas.Eleagoraeraincapazdedarordens,detomardecisões.
Atésuaatividadefísicapareciaenfraquecida.Passavahorascomo
olharparado,osolhosembaçadoseabstratos.Àsvezes,parecia
nãoentenderoquelhediziam.
—Vocêachaqueela...—Renisenbcalou-se.Olhouemvolta
eprosseguiu:—Foielaque...vocêachaque...
Yahmosesegurou-apelobraço.
—Fiquequieta,Renisenb;essascoisasnãodevemserditas,
nemsussurradas.
—Entãovocêtambémpensa...
Yahmosedissesuaveeapressadamente:
—Nãodiganadaagora.Temosplanos.
CAPÍTULOXXII
SegundoMêsdeVerão
DécimoSétimoDia
I
O dia seguinte era o do festival da lua-nova. Imhopet foi
forçado a subir ao Túmulo para fazer as oferendas. Yahmose
implorou ao pai que lhe deixasse fazer as obrigações desta vez.
Imhotepteimou.Comoquepareciaagoraumaleveparódiados
seusantigoshábitos,elemurmurou:—Anãoserqueeupróprio
providencie as coisas, como posso saber que serão feitas
corretamente? Alguma vez fugi às minhas responsabilidades?
Acasonãoosalimenteiatodos,nãoossustenteiatodos...
Calou-se.—Todos?Todos?Oh,euesquecia-me...meusdois
valentesfilhos,meubonitoSobek,meuinteligenteeamadoIpy...
deixaram-me.YahmoseeRenisenb...meusqueridosfilhoefilha...
vocêsaindaestãocomigo,masporquantotempo,quantotempo?
Faloubastantealto,comosesedirigisseaumsurdo.
— Hã? Quê? — Imhotep parecia ter entrado em estado de
inconsciência.
Dissedesúbitoedeformasurpreendente:
—DependedeHenet,nãoé?Sim,dependedeHenet.
YahmoseeRenisenbtrocaramolhares.
Renisenbdissegentileclaramente:
—Nãocompreendovocê,pai.
Imhotep balbuciou algo que eles não conseguiram captar.
Então,aumentandoumpoucoo tomdavoz,emboracomolhos
embaçadosevagos,disse:
—Henetmeentende.Sempreentendeu.Elasabecomosão
grandes as minhas responsabilidades... grandes... Sim, quão
grandes...Esempreingratidão...Portanto,devehaverretribuição.
Essaé,creioeu,umapráticabemfundada.Apresunçãodeveser
punida.Henetsemprefoimodesta,humildeedevotada.Elaserá
recompensada...
Levantou-seedissecomtodaapompa:
— Você compreende, Yahmose. Henet deve ter tudo o que
quiser.Suasordensdevemserobedecidas!
—Masporqueisso,pai?
— Porque eu estou dizendo. Porque se for feito aquilo que
Henetquiser,nãohaverámaismortes...
Balançou a cabeça sabiamente e retirou-se, deixando
Yahmose e Renisenb olhando um para o outro, espantados e
alarmados.
—Quesignificaisso,Yahmose?
—Nãosei,Renisenb.Àsvezespensoquemeupaijánãosabe
oquefazoudiz...
—Não,talveznão.Mascreio,Yahmose,queHenetsabemuito
bemoqueandadizendoefazendo.Elamedisse,aindaoutrodia,
quemuito em breve seria ela quem iria estalar o chicote nesta
casa.
Olharam-se. Yahmose colocou então a mão nos ombros de
Renisenb.
—Não a irrite. Você demonstra os seus sentimentosmuito
claramente, Renisenb. Você ouviu o quemeu pai disse? Se for
feitooqueHenetquiser,nãohaverámaismortes...
II
Henet estava agachada num dos quartos da despensa,
contandopilhasde lençóis:Eram lençóis velhos e ela segurava,
próximoaosolhos,amarcadeumdeles.
—Ashayet—murmurou.—O lençol de Ashayet.Marcado
com o ano em que veio para cá... ela e eu juntas... Isso foi há
muitotempo.Vocêsabe,eumepergunto,paraqueservemagora
seuslençóis,Ashayet?
Parounomeiodeumarisadaeassustou-secomumsomque
afezolharporsobreosombros.
EraYahmose.
—Queestáfazendo,Henet?
— Os embalsamadores precisam de mais lençóis. Eles já
usaram pilhas e pilhas de lençóis. Só ontem utilizaram
quatrocentoscúbitos.Éterrívelamaneiracomqueessesfunerais
acabamcomaroupadecama.Teremosqueusarestesvelhos.São
de boa qualidade e não estão muito gastos. Os lençóis de sua
mãe,Yahmose;sim,oslençóisdesuamãe...
—Quemdissequevocêdeveusá-los?
Henetriu.
— Imhotep deixou tudo por minha conta. Não tenho que
pedirpermissão.EleconfianapobreevelhaHenet.Elesabeque
cuidareidetudodamaneiraapropriada.Tenhocuidadodamaior
parte das coisas nesta casa por muito tempo. Creio que agora
tereiaminharecompensa!
—Parecequesim,Henet.—OtomdeYahmoseerasuave.—
Meupaidisseque—elefezumapausa—tudodependedevocê.
—Eledisse?Bem,issoébomdeseouvir,mastalvezvocênão
penseassim,Yahmose.
—Bem,não tenhocerteza.—OtomdeYahmoseaindaera
suave,maseleaobservavabemdeperto.
— Creio que será melhor você concordar com seu pai,
Yahmose.Nãoqueremos,maisnenhum...problema,nãoé?
— Não estou entendendo bem. Você quer dizer que... não
queremosmaismortes?
—Haverámaismortes,Yahmose.Oh,sim...
—Quemseráopróximoamorrer,Henet?
—Porquevocêachaqueeudeveriasaber?
—Porquepensoquevocêsabeumbocado.Nooutrodiavocê
sabia,porexemplo,queIpyiriamorrer...Vocêémuitointeligente,
nãoé,Henet?
Henetempertigou-se.
— Então você está começando a se dar conta disso agora?
NãosoumaisapobreeestúpidaHenet.Souaquesabe.
—Quesabevocê,Henet?
AvozdeHenetmudou.Tornou-sebaixaeríspida.
—Seiquefinalmentepossofazeroquequisernestacasa.Não
haverá ninguémparame deter. Imhotep já depende demim.E
vocêfaráomesmo,nãoé,Yahmose?
—ERenisenb?
Henetriuumarisadafelizemaliciosa.
—Renisenbnãoestaráaqui.
—VocêacreditaqueseráRenisenbapróximaamorrer?
—Queachavocê,Yahmose?
—Estouesperandoparaouviroquevocêdiz.
—TalvezeuapenasquisessedizerqueRenisenbirásecasare
partir.
—Oquevocêquerdizer?
Henetdeuumarisadinha.
—Certavez,Esadissequeminhalínguaeraperigosa.Talvez
oseja!
Elariuestridentemente,balançando-senoscalcanhares.
—Bem,Yahmose,quedizvocê?Possofinalmentefazeroque
quisernestacasa?
Yahmoseestudou-aporuminstanteantesdedizer:
—Sim,Henet.Vocêétãointeligente!Vocêfaráoquequiser.
Ele se voltou e encontrou Hori que chegava do salão
principal. Hori disse: — Cá está você, Yahmose. Imhotep está
esperando-o.ÉhoradesubiratéoTúmulo.
Yahmoseassentiu.
—Estouindo.—Eleabaixouavoz:—Hori,creioqueHenet
está louca; ela está definitivamente tomada por demônios.
Começo a acreditar que foi ela a responsável por todos esses
acontecimentos.
Hori parou por um. momento antes de dizer, com sua voz
calmaeimparcial:
—Elaéumaestranhamulher...ediabólica,creio.
Yahmosebaixouavozaindamais:
—Hori,euachoqueRenisenbcorreperigo.
—PorpartedeHenet?
—Sim.Ela acaboude dar a entender queRenisenb será a
próximaa...partir.
AvozdeImhotepchegou-lhesmal-humorada:
—Seráquetereideesperarodiatodo?Quecomportamentoé
esse?Ninguémmaisme leva em consideração.Ninguém sabe o
quesofro.OndeestáHenet?Henetcompreende.
De dentro da despensa, o riso triunfante de Henet veio
estridente.
—Vocêouviuisso,Yahmose?Henet!ÉHenet!
Yahmosedissecalmamente:
—Sim,Henet,euentendi.Vocêéapoderosa.Vocêemeupai
eeu...nóstrêsjuntos...
Hori saiu para procurar Imhotep. Yahmose dirigiu mais
algumas palavras a Henet, que balançava a cabeça, a face
radiantedemaliciosotriunfo.
Em seguida Yahmose juntou-se a Hori e Imhotep,
desculpando-sepelademora,eostrêshomenssubiramjuntosaté
oTúmulo.
II
OdiapassavalentoparaRenisenb.
Ela estava inquieta, indo e vindo da casa para o pórtico, e
entãoparaolagoedevoltaàcasanovamente.
Aomeio-dia,Imhotepretornoue,depoisdelheserviremuma
refeição,veioatéopórtico,ondeRenisenbjuntou-seaele.
Ela se sentou com as mãos agarradas em volta do joelho,
olhando ocasionalmente para o rosto do pai. Nele ainda havia
aquela expressão ausente e confusa. Imhotep falou pouco. De
quandoemquando,suspiravaprofundamente.
Acertaaltura,levantou-seeperguntouporHenet.Masjusto
nessemomentoHenet se ausentara para entregar os panos aos
embalsamadores.
RenisenbperguntouaopaiondeestavamHorieYahmose.
—Hori foi até os campos de linho.Há uma inspeção a ser
feita lá. Yahmose está na plantação. Tudo fica por conta dele,
agora...AideSobekeIpy!Meusmeninos...meusbelosmeninos...
Renisenbtentourapidamentedistraí-lo.
— Será que Kameni não pode supervisionar os
trabalhadores?
—Kameni?QueméKameni?Não tenhonenhum filhocom
essenome.
—Kameniéoescriba.Kameniserámeumarido.
Eleaolhouincrédulo.
—Você,Renisenb?MasvocêdeverásecasarcomKhay.
Elasuspirou,masnãodissemaisnada.Pareciacrueltentar
trazê-lodevoltaaopresente.Depoisdealgumtempo,entretanto,
eleselevantoueexclamousubitamente:
— Claro, Kameni! Ele foi dar algumas instruções ao
supervisordadestilaria.Devoiraoencontrodele.
Afastou-seapassoslargos,balbuciandoconsigomesmo,mas
reassumindo sua antiga pose e fazendo com que Renisenb se
sentisseumpoucomaisanimada.
Talvez que esse nevoeiro em sua cabeça fosse apenas
passageiro.
Olhou em volta. Parecia haver algo de sinistro, hoje, como
silêncio da casa e do pátio. As crianças estavam na partemais
afastada do lago. Kait não estava com elas e Renisenb se
perguntavaondeelapoderiaestar.
EntãoHenetsaiueveioatéopórtico.Elaolhouàsuavoltae
veio aproximando-se sorrateiramente de Renisenb; havia
retomadoseusvelhosmodoschorososesubmissos.
— Fiquei esperando até que pudesse encontrá-la sozinha,
Renisenb.
—Porque,Henet?
Henetabaixouavoz.
—Tenhoumrecadoparavocê...deHori.
—Quedizele?—AvozdeRenisenbestavaansiosa.
—ElepedequevocêsubaatéoTúmulo.
—Agora?
—Não.Esteja láumahoraantesdopôrdo sol.Esse erao
recado.Seelenãoestiverlá,espereatéquechegue.Eledisseque
éimportante.
Henetfezumapausaeacrescentou:
—Eu tinha de esperar que você estivesse só para lhe dizer
isso...eninguémdeveriaescutar.
EdenovoHenetsefoisorrateiramente.
Renisenbsentiuoseuânimoaumentar.Sentia-sefelizantea
perspectivadesubirparaapazequietudedoTúmulo.Felizpor
poder ver Hori e falar com ele livremente. A única coisa que a
surpreendiaumpoucoeraofatodeeleterconfiadoamensagem
aHenet.
Entretanto, embora fossemaliciosa, ela havia transmitido o
recadofielmente.
“EporquedeveriaeutemerHenet?”,pensouRenisenb.“Sou
maisfortedoqueela.”
Ergueu-se vaidosamente. Sentia-se jovem, confiante e cheia
devida...
IV
ApóstertransmitidoorecadoaRenisenb,Henetvoltoumais
umavezàdespensa.Elariabaixinhoconsigomesma.
Curvou-sesobreaspilhasdelençóisdesarrumados.
— Logo estaremos precisando de mais alguns de vocês —
disse-lhesalegremente.—Estáouvindo,Ashayet?Souasenhora
aquieestoulhedizendoquesuaroupairáataraindaumoutro
corpo.Eocorpodequemvocêachaqueserá?Ah,ah!Vocênão
temsidocapazdefazermuitacoisa,tem?Vocêeoirmãodesua
mãe, o Nomarca! Justiça? Que justiça você pode fazer neste
mundo?Responda!
Houveummovimento atrás do fardo de roupa.Henet virou
umpoucoacabeça.
De súbito, uma quantidade de roupa foi jogada sobre ela,
sufocando-lheabocaeonariz.Umamão inexorável começoua
enrolarotecidoemvoltadeseucorpo,enfaixando-acomoaum
cadáver,atéquealutacessou...
CAPÍTULOXXIII
SegundoMêsdeVerão
DécimoDia
I
Renisenb estava sentada na entrada do quarto de pedra,
admirandooNiloeimersanumestranhosonhofantásticoqueela
criara.
Parecia-lhe que muito tempo havia se passado desde a
primeiravezquesesentaraali,logoapóssuavoltaàcasadopai.
Aquele tinha sido o dia no qual ela tão alegremente havia
declarado que tudo estava inalterado, que tudo na casa estava
exatamentecomohaviadeixadoháoitoanos.
Lembrava-se agora de como Hori lhe havia dito que ela
próprianão era amesmaRenisenbquepartira comKhay, e de
comoelaconfiantementehaviarespondidoqueembrevevoltaria
asê-lo.
Horicontinuaraentãoafalarsobremudançasquevinhamde
dentro,depodridõesquenãodeixavamnenhumsinalaparente.
Agora ela sabia alguma coisa a respeito do que lhe ia na
mentequandoelefalouessascoisas.Eleestavatentandoprepará-
la. Ela estava tão certa, tão cega, aceitando tão facilmente os
valoresaparentesdesuafamília...
Foi preciso que Nofret aparecesse para que ela abrisse os
olhos...
Sim,avindadeNofret:tudodecorreradaí.
ComNofretveioaMorte...
FosseNofretmáounão,elacertamentehaviatrazidoomal...
Eomalaindaestavanomeiodeles.
Pela última vez, Renisenb brincava com a crença de que o
espíritodeNofreteraacausadetudo...
Nofretmaliciosaemorta...
Ou Henet maliciosa e viva... Henet a desprezada, a servil,
Henetbajulante...
Renisenbtremiaeagitava-se;então,lentamente,levantou-se.
Não podia esperar mais tempo por Hori. O sol estava se
pondo.Porque,perguntava-se,elenãotinhavindo?
Ergueu-se,olhouemtornoecomeçouadescerpelocaminho
quelevavaaovale.
Tudo estava muito quieto a esta hora da tarde. Belo e
tranqüilo, pensou ela.O que teria atrasadoHori? Se ele tivesse
vindo,pelomenosteriamtidoestahorajuntos...
Não haveria muitas outras horas como esta. Num futuro
próximo,quandoelafossemulherdeKameni...
Seráqueiriamesmocasar-secomKameni?Comumaespécie
de choque, Renisenb libertou-se daquele espírito de estúpida
aquiescência que a dominara por tanto tempo. Sentia-se como
alguém que estivesse dormindo e que acordasse de um sonho
febril. Presa àquele estupor demedo e incerteza, consentiria no
quequerquelhepropusessem.
Mas agora ela era Renisenb novamente, e se casasse com
Kameni seria porque queria casar com ele e não porque sua
famíliahaviadecidido.Kamenicomseubeloerisonhorosto!Ela
oamava,nãoamava?Eraporissoqueiacasarcomele.
Nesta hora, ao entardecer aqui em cima, havia clareza e
verdade. Nada de confusão. Ela era Renisenb, andando aqui,
acimadomundo,serenaesemmedo,elamesma,afinal.
Pois não havia dito a Hori que teria de andar por aquele
caminho, sozinha, nahora damorte deNofret?E que, com ou
semmedo,aindaassimteriadeirsó?
Bem,eraoqueelaestava fazendo.Aproximou-seahoraem
queelaeSatipyhaviam-securvadosobreocorpodeNofret.Eera
tambémmaisoumenosessaahoraemqueSatipy,porsuavez,
haviadescidopelocaminhoerepentinamenteolhadoparatrás...
paraencontraramorte.
Eforatambémnestemesmolocal.QueteriaescutadoSatipy,
parasubitamenteolharparatrás?
Passos?
Passos...masRenisenbouviaagorapassos...seguindo-apelo
caminho.
Seucoraçãodisparou.Eraverdadeentão!Nofretestavaatrás
dela,seguindo-a...
Omedo apossou-se dela,mas seus passos não afrouxaram;
nemseaceleraram.Tinhadedominaromedo,umavezquenão
haviaemsuamentequalqueratomaudequesearrependesse...
Aprumou-se e, juntando toda sua coragem, ainda
caminhando,voltouacabeça.
Sentiu então um grande alívio. Era Yahmose que a seguia.
Não era o espírito da morte, mas seu próprio irmão.
Provavelmente ele estava ocupado na sala das oferendas do
Túmulo,tendosaídologodepoisqueelapassou.
Renisenbdeteve-seegritoupeloirmão.
—Oh,Yahmose,ficotãofelizquesejavocê!
Elevinharapidamenteemsuadireção.Elajáiacomeçaruma
outra frase,um relatode seusmedos tolos, quandoaspalavras
congelaram-senosseuslábios.
AquelenãoeraoYahmosequeelaconhecia,oirmãogentile
amável. Seus olhos estavam muito brilhantes e ele passava a
língua rapidamente pelos lábios secos. Suas mãos, que se
mantinham um pouco à frente do corpo, estavam ligeiramente
curvaseosdedospareciamgarras.
Ele a estava encarando e seu olhar tinha uma expressão
inconfundível.Eraoolhardeumhomemquejáhaviamatadoe
estava prestes a matar de novo. Havia um regozijo cruel, uma
satisfaçãodiabólicaemseurosto.
Yahmose... O impiedoso inimigo era Yahmose! Atrás da
máscaradeseurostomeigoegentil...aquilo!
Ela pensava que seu irmão a amava, mas não havia amor
naquelerostodesumano,cheiodeumasatisfaçãomaligna.
Renisenbgritou:umgritoesmaecidoedesesperado.
Aquilo,sabia,eraamorte.Nãohavianelaforçaquepudesse
fazerfrenteàforçadeYahmose.Ali,ondeNofrethaviacaído,onde
ocaminhoeraestreito,tambémelairiacairemorrer...
— Yahmose! — gritou. Era um último apelo; naquele grito
estava todo o amor que havia dedicado àquele seu irmão mais
velho. Implorou em vão. Ele riu, uma pequena risada, baixa e
desumana.
Yahmoseentãoprecipitou-seemdireçãoaRenisenb;asmãos
dele, cruéis, com os dedos recurvados como garras, pareciam
ansiososporentrangulá-la...
Renisenb apoiou-se na encosta do penhasco, as mãos
estendidasparaafrente,tentandoemvãoproteger-secontraele.
Aquiloeraterror...morte.
Entãoelaouviuumsom,umvagoemetálicosommusical.
Alguma coisa veio zunindo através do ar. Yahmose parou,
oscilou e, comumgrito agudo, tomboupara a frente, caindo a
seuspés.
Ela ficou olhando estupefata para a plumagemdahaste de
umaseta.Olhouentãoparabaixodorochedo...paraondeestava
Hori,oarcoaindaseguroaoombro...
II
—Yahmose...Yahmose...
Renisenb,atordoadapelochoque,repetiuonomenovamente,
eaindamaisumavez.Eracomoseelanãopudesseacreditar...
Encontrava-sedoladodeforadopequenoquartodepedra,o
braçodeHoriaindaemtornodela.Malpodiarecordar-sedecomo
eleahaviaconduzidodevoltaaocaminho.Apenaseracapazde
repetironomedeseuirmãonumtomperturbadodesurpresae
horror.
Horidissegentilmente:
—Sim,Yahmose.Todootempo,Yahmose.
— Mas como? Por que poderia ter sido ele? Como, se ele
mesmofoienvenenadoequasemorreu?
—Não, elenão correu riscodemorrer; foimuito cuidadoso
com a quantidade de vinho que bebeu. Apenas bebericou o
suficiente para ficar doente e então exagerou seus sintomas e
suasdores.Eraomeio,elesabia,deevitarsuspeitas.
—Mas poderia ele termatado Ipy?Como, se ele estava tão
fracoquenãopodiasustentar-senasprópriaspernas?
— Também isso foi forjado. Você não se lembra queMersu
dissequeumavezqueovenenofosseeliminado,elerecuperaria
asforçasrapidamente?Naverdade,foiissoqueaconteceu.
—Masporque,Hori?Éissoquenãoconsigoentender...por
quê?
—Lembra-se,Renisenb,dequeumavezeulhefaleideuma
podridãoquevemdedentro?
—Lembro-me.Naverdadeestivepensandonissoestatarde.
—CertavezvocêdissequetinhasidoavindadeNofretque
haviatrazidoomalparaestacasa.Issonãoeraverdade.Omaljá
estavaaqui, ocultonocoraçãode todos.Tudooquea vindade
Nofretfezfoitrazê-lodolugarondeestavaescondidoparaaluz.
Suapresençabaniuadissimulação.Odelicadoamormaternalde
Kait havia-se transformado num rude egoísmo para consigo
mesmaeparaseusfilhos.Sobeknãoeramaisaquelejovemalegre
eencantador,masumfracodissipadoeexibido.Ipynãoeratanto
uma criançamimada e simpática quanto ummenino egoísta e
intrigante. Através da fingida devoção de Henet, o veneno
começavaatransparecerclaramente.Satipyrevelava-semandona
e covarde. O próprio Imhotep havia-se degenerado,
transformando-seemumtiranomesquinhoepomposo.
—Eu sei... eu sei—Renisenb levouasmãos aos olhos.—
Você não precisa me dizer. Fui, por mim mesma, descobrindo
poucoapouco...Porqueessascoisastinhamqueacontecer?Por
queessapodridãoteria,comovocêdisse,quesurgirdedentro?
Horisacudiuosombros.
— Quem pode dizer? Talvez seja preciso que haja sempre
algumtipodecrescimento...Equequandoalguémnãocresceem
bondade, em sabedoria e em qualidades, há então um
crescimentooposto,estimulandoomal.Ouentãopodeserquea
vida que todos eles levavam era muito claustrofóbica, muito
voltadaparasimesma...semamplitudeouvisão.Podeserainda
como uma praga nas colheitas, que, sendo contagiosa, ataca
primeiroumaplantaelogotodasficamdoentes.
—MasYahmose...Yahmosepareciasempreomesmo.
— Sim, e esta foi uma das razões, Renisenb, por que eu
comecei a suspeitar. Porque os outros, em função de seus
temperamentos, podiam obter alívio. Mas Yahmose sempre foi
tímido, facilmente dominável, nunca tendo coragem bastante
para se rebelar. Ele amava Imhotep e trabalhava duro para
agradá-lo,eImhotepachava-obem-intencionado,masestúpidoe
lento. Ele a desprezava. Satipy, também, tratava-o com todo o
escárniodeseutemperamentoautoritário.Lentamentesuacarga
deressentimento,ocultomasprofundo,tornou-secadavezmais
pesada.Quantomaishumildeeleparecia,maiorsetornavaasua
raivainterior.
—Então,justoquandoYahmoseesperava,finalmente,colher
a recompensa por seu empenho e diligência, ser reconhecido e
associado a seu pai, veio Nofret. Foi Nofret e talvez a beleza de
Nofretqueacendeuaúltimafagulha.Elaatacouahombridadede
todos os três irmãos. Ela tocou Sobek no seu ponto fraco, ao
desprezá-lo comoum tolo; enfureceu Ipy, tratando-o comouma
criança truculentasemummínimodematuridade;emostroua
Yahmose que ele era, a seus olhos,menos queumhomem.Foi
depois da vinda de Nofret que a língua de Satipy espicaçou
Yahmosealémdoslimitessuportáveis.Foramsuaschacotas,sua
insistência em dizer que era mais homem do que ele, que
finalmente solaparam seu autocontrole. Ele encontrou Nofret
nestecaminhoe,levadoaodesespero,atirou-aláembaixo,
—MasfoiSatipy...
— Não, não, Renisenb. É aí que você está completamente
enganada. De lá de baixo Satipy viu tudo como aconteceu.
Compreendeagora?
—MasYahmoseestavacomvocênasplantações.
—Sim,nessaúltimahora.Masvocênãopercebe,Renisenb?
OcorpodeNofret já estava frio.Vocêmesmasentiu suas faces.
Vocêpensouqueela tivessecaídoháalgunsmomentosapenas,
masissoeraimpossível.Estavamortanomínimoháduashoras;
de outra forma, naquele sol forte, sua face não poderia jamais
estarfriaquandovocêatocou.Satipyviuoqueaconteceu.Satipy
ficou por ali, aterrorizada, sem saber o que fazer; então ela viu
vocêchegandoetentoudesviá-la.
—Hori,quandovocêficousabendodetudoisso?
—Eulogoadivinhei.FoiocomportamentodeSatipyqueme
revelou.Eraóbvioqueelaandavamortademedodealguémoude
algumacoisa,eeulogomeconvencidequeapessoaaquemela
temiaeraYahmose.Elaparoudeatormentá-loe,aoinvésdisso,
mostrava-se ansiosa por obedecê-lo de todas as maneiras
possíveis.Tinhasido,comovocêvê,umchoqueterrívelparaela.
Yahmose, a quem ela desprezava como o mais humilde dos
homens, na verdade tinha sido aquele que matara Nofret. Isso
virouomundodeSatipyde.cabeçaparabaixo.Comoamaioria
dasmulheresautoritárias,elaeracovarde.EssenovoYahmosea
aterrorizava.Noseumedo,elacomeçouafalarenquantodormia.
Yahmoselogopercebeuqueelaeraumperigoparaele...
—Eagora,Renisenb,vocêpodeentenderaverdadedaquilo
queviucomseusprópriosolhosnaqueledia.Nãofoiumespírito
queSatipyviuequeafezcair.Elaviuoquehojevocêviu.Viuno
rostodeumhomemqueaseguia,seuprópriomarido,aintenção
deatirá-ladoprecipíciocomoofizeracomaoutramulher.Noseu
medo, ela chegou para trás, afastando-se dele e caiu. E então,
numúltimosuspiro,elapronunciouapalavraNofret;comoque
estavatentandodizer-lhequeYahmosetinhamatadoNofret.
Horifezumapausaeentãocontinuou:
— Esa chegou à verdade por causa de um comentário,
inteiramenteirrelevante,feitoporHenet.Henetreclamavaqueeu
nãoolhavaparaela,masparaalgoqueestavaatrásdela,algoque
nãoestavalá.EelapassouafalardeSatipy.Numlampejo,Esa
viu como toda a coisa era mais simples do que nós havíamos
pensado.Satipynãohaviaolhadoparaalgoqueestavaatrásde
Yahmose...masparaopróprioYahmose.Paratestarsuaidéia,ela
introduziu o assunto de modo casual, de modo que não
significasse nada para ninguém, a não ser para o próprio
Yahmose... e para ele somente, caso suas suspeitas fossem
verdadeiras.Suaspalavrasosurpreenderame,porummomento,
ele reagiu a elas, o que foi o suficiente para que Esa tivesse
confirmadas as suas suspeitas. Mas Yahmose percebeu que ela
suspeitava. E, uma vez levantada uma suspeita, as coisas se
encaixariamperfeitamente,inclusiveahistóriaqueopastorzinho
havia contado; um menino devotado a ele, que faria qualquer
coisaque seuamoYahmosemandasse... atémesmoengolirum
remédio, naquela noite, que seguramente o faria não acordar
mais...
—Oh,Hori,étãodifícilacreditarqueYahmosepossaterfeito
tais coisas! Nofret, bem, eu posso entender.Mas por que todos
estesoutrosassassinatos?
—Édifícil explicá-lo a você,Renisenb,masuma vez que o
coraçãoseabreparaomal,esteflorescecomopapoulasnotrigo.
Durantetodasuavida,Yahmosetalveztenhatidoumanseiopor
violência que não foi capaz de concretizar. Ele desprezava sua
própria humildade, seu papel submisso. Acredito que, tendo
matado Nofret, ele alcançou um grande sentimento de poder.
Percebeu-o,primeiramente,atravésdeSatipy.Satipy,queotinha
intimidadoeinsultado,estavaagorameigaeaterrorizada.Todas
as mágoas que haviam ficado enterradas em seu coração por
tantotempo,empinaramsuascabeças...comoaquelacobra,aqui
nocaminho,naqueledia.SobekeIpyeram,oprimeiro,maisbelo
e o outro, mais inteligente do que ele; portanto deviam ser
afastados. Ele, Yahmose, ficaria sendo então o rei da casa e o
únicoconfortoeapoioparaseupai!AmortedeSatipyaumentou-
lheoefetivoprazerdematar.Comoresultado,elesesentiumais
poderoso ainda. Foi a partir daí que sua mente começou a
fraquejar... e, depois disso, o mal apoderou-se dele
completamente.
—Você,Renisenb,nãoeraumarival.Tantoquantoeraainda
capaz,eleamavavocê.Masa idéiadequeseumaridorepartiria
com ele todos os bens era-lhe insuportável. Creio que Esa
concordou com a idéia de aceitar Kameni tendo em vista duas
coisas: a primeira era que, se Yahmose voltasse a atacar, seria
maisprovavelmenteaKamenienãoavocê;e,dequalquermodo,
ela confiava em mim para que conservasse você a salvo. A
segunda, pois Esa era audaciosa, era provocar uma crise.
Yahmose, vigiado por mim, pois ele não sabia que eu tinha
suspeitas,podiaserpegoemflagrante.
— Tal como aconteceu— observou Renisenb.— Oh, Hori,
fiqueitãoassustadaquandoolheiparatráseovi...
—Eusei,Renisenb.Mas tinhadeserassim.Desdequeeu
meplantasseaoladodeYahmosevocêestariaemsegurança;mas
isto não poderia continuar para sempre. Eu sabia que se ele
tivesseaoportunidadedeatirarvocêdomesmolugar,elenãoa
deixaria passar. Isto reavivaria a explicação supersticiosa das
mortes.
—EntãoorecadoqueHenetmetrouxenãovinhadevocê?
Horisacudiuacabeça.
—Nãolhemandeinenhumrecado.
—Mas por queHenet...—Renisenb calou-se e balançou a
cabeça.—Não consigo entender o papel deHenet dentro disso
tudo.
—CreioqueHenetsabeaverdade—disseHoripensativo.—
Ela estava transmitindo a você um recado de Yahmose... uma
coisabastanteperigosa...Eleausouparaatraí-laatéaqui...uma
coisaqueHenetdeveriaestarloucaparafazer,umavezqueelaa
odiava,Renisenb...
—Eusei.
—Depoisdetudo...eu ficopensando.Henetdeviaacreditar
queo seu conhecimento lhe trariapoder.Masnãoacredito que
Yahmose a teria deixado viva por muito tempo. Talvez mesmo
agora...
Renisenbestremeceu.
— Yahmose era louco — disse Renisenb. — Ele estava
possuídopelosmausespíritos,masnãofoisempreassim.
—Não,mas...Lembra-se,Renisenb,dequandoeulhecontei
ahistóriadeSobekeYahmosequandocrianças,edecomoSobek
bateu com a cabeça de Yahmose contra o chão, e de como sua
mãe veio, pálida e tremendo, e disse: “Isso é perigoso.”? Creio,
Renisenb,queelaqueriadizerquefazertaiscoisascomYahmose
era perigoso. Lembre-se que, no dia seguinte, Sobek ficou
doente... comida envenenada, pensou-se então. Creio que sua
mãe, Renisenb, sabia alguma coisa a respeito dessa estranha
fúriacontroladaquehabitavaocoraçãodeseumeigoehumilde
filhinho,etemiaquealgumdiaelafosseprovocada...
Renisenbestremeceu.
—Ninguéméoqueparece?
Horisorriuparaela.
— Sim, algumas vezes. Kameni e eu, Renisenb, nós dois,
creio,somosoquevocêacreditaquesejamos.Kamenieeu...
Disse as últimas palavras significativamente e, de súbito,
Renisenb percebeu que estava diante de uma decisão a ser
tomada.
Horicontinuou:
—Nósdoisamamosvocê,Renisenb.Vocêdevesaberdisso.
—Masmesmoassim—disseRenisenb lentamente—,você
deixouqueospreparativosparaomeucasamentofossemfeitose
nãodissenada,nemaomenosumapalavra.
— Isso era para sua proteção. Esa teve amesma idéia. Eu
tinha de me manter desinteressado e indiferente, pois assim
poderiamanterYahmosesobconstantevigilânciaenãoprovocar
asuaanimosidade.—Horiacrescentouemocionado:—Vocêtem
deentender,Renisenb,queYahmose foimeuamigopormuitos
anos.EuamavaYahmose. Tentei persuadir seupai a lhedar a
posição e autoridade que ele desejava. E falhei. Tudo isso veio
muito tarde. Mas mesmo que no fundo do meu coração eu
estivesseconvencidodequeYahmosehaviamatadoNofret,tentei
não acreditar. Encontrei até mesmo desculpas para o seu ato.
Yahmose, meu amigo infeliz e atormentado, era muito querido
paramim.EntãoveioamortedeSobek,deIpyefinalmenteade
Esa... Descobri que o mal finalmente o subjugara de vez. E,
depois,Yahmoseveioamorrerpelasminhasprópriasmãos.Uma
morteimediata,quaseindolor.
—Morte...sempremorte.
—Não,Renisenb.Nãoéamortequeestádiantedevocê,hoje,
mas a vida. Com quem você vai querer compartilhar esta vida?
ComKamenioucomigo?
Renisenbolhavaparaafrente,atravésdovaleeparaafaixa
prateadadoNilo.
Diantedela,claramente,ressurgiaaimagemdorostorisonho
deKameni,talcomootinhavisto,naqueledia,nobarco.
Belo,forte,alegre...Sentiunovamenteocoraçãopalpitar-lhe
nopeito.TinhaamadoKameni,naquelemomento.Eelaoamava,
agora. Kameni poderia tomar o lugar que um dia pertencera a
Khay.
Pensou: “Seremos felizes juntos... sim, seremos felizes.
Viveremosjuntosesentiremosprazeremnosterumaooutro,e
teremos filhosbelos e fortes.Haverádiasatarefados e cheiosde
serviço, e dias de prazer, quando navegarmos pelo rio... A vida
seránovamentecomoeuaconhecicomKhay...Quepossopedir
alémdisso?Quepossodesejaralémdisso?”
E, devagar, muito lentamente mesmo, voltou seu rosto em
direçãoaHori.Eracomose,mesmoemsilêncio,elalheestivesse
perguntandoalgo.
Eele,comoseativesseentendido,respondeu:
— Quando você era criança, eu amava você. Amava o seu
rostograveeaconfiançacomquevocêvinhaatémim,pedindo
para que eu consertasse seus brinquedos quebrados. E então,
depoisdeoitoanosdeausência,vocêvoltouenovamentesentou-
seaqui,trazendo-meospensamentosqueestavamemsuamente.
Esuamente,Renisenb,nãoé comoasdo restodesua família.
Não está voltada para si mesma, buscando encerrar-se entre
estreitosmuros.Suamenteécomoaminha;elaolhaparaalém
dorio,olhaparaummundoemeternamudança,ummundode
novas idéias; olha para um mundo onde tudo é possível para
aquelesquetêmcoragemevisão...
—Eusei,Hori,eusei.Sentiessasmesmascoisascomvocê.
Mas não o tempo todo. Haverá momentos em que não poderei
acompanhá-lo,quandodevereificarsó...
Calou-se, incapaz de encontrar palavras que pudessem
exprimir seuspensamentosdesordenados.Oquea vidapoderia
ser comHori, elanão sabia.Apesarde suameiguice, apesarde
seuamorporela,elepermaneceriadealgumaformaimprevisível
eincompreensível.Compartilhariamjuntosmomentosdegrande
belezaeprofundidade...masoqueseriadasuavidacotidiana?
Impulsivamenteestendeuasmãosparaele.
—Oh,Hori,decidapormim.Diga-meoquefazer!
Elesorriuparaela;eraacriançaRenisenbquefalava,talvez
pelaúltimavez.Masnãotomou-lheasmãos.
—Eunãopossolhedizeroquefazerdasuavida,Renisenb...
porqueéasuavida,esóvocêpodedecidir.
Ela então percebeu que não encontraria nenhuma ajuda,
nenhum apelo aos sentidos, como encontrara em Kameni. Se
Horiativesseaomenostocado...maselenãoatocou.
E, de súbito, a escolha se apresentou sob forma bastante
simples:avidafácileadifícil.Estavabastantetentadaavoltar-se
edescerpelocaminhosinuoso,paraumavidanormalefelizque
jáconhecia...avidaquehaviaexperimentadocomKhay.Láhavia
segurança... repartindoosprazeres e afliçõesdiários,não tendo
nadaatemer,excetoavelhiceeamorte...
Morte...Partindodepensamentosdevida,eladeraumavolta
completa, chegando novamente à morte. Khay havia morrido.
Kamenitalvezmorressetambémeseurosto,comoodeKhay,aos
poucosdesapareceriadesuamemória...
OlhouentãoparaHori,quepermaneciatranqüiloaseulado.
Eraestranho,pensou,quenuncativesserealmentesabidocomo
eraaaparênciadeHori...Nuncaprecisavasaber...
Entãoelafalou,eotomdesuavozeraomesmodequando
certa vez anunciou que haveria de descer pelo caminho, a sós,
duranteopôrdosol.
—Fizaminhaescolha,Hori.Repartireiminhavidacomvocê
paraobemeparaomalatéquevenhaamorte...
ComosbraçosdeHoriemtornodelaeodocecontatodaquele
rosto contra o seu, Renisenb sentiu-se invadida por uma
exultantealegriadeviver.
“SeHoritiverdemorrer”,pensouela,“eunãoesquecerei!Hori
éuma cançãoque estaránomeu coraçãopara sempre...Oque
valedizer...quenãoexistemaismorte...”
FIM
SobreaAutora
AgathaChristieiniciousuabrilhantecarreiraliteráriacomo
livro “Omisterioso casodeStyles”em1921.Desdeseuprimeiro
romance, revelou uma habilidade fantástica para arquitetar um
mistério policial, engendrando uma série de pistas falsas. Ao
mesmo tempo, demonstrava um notável senso de observação
psicológica.
NascidaemTorquay,na Inglaterra,emsetembrode1891,
Agatha Mary Clarissa Miller era filha de mãe inglesa e pai
americano, que morreu quando ela ainda era bem criança. Na
infânciae juventude,dedicou-secomentusiasmoàleitura,e logo
descobriu seusautorespreferidos.Emvezdehistóriasdeamor,
seu interessevoltava-separaCharlesDickenseConanDoyle,o
criadordeSherlockHolmes.
Seusconhecimentosdequímica,poçõesevenenos,quetêm
papelrelevanteemquasetodasassuastramas,foramadquiridos
quando trabalhou como voluntária em um hospital da Cruz
Vermelha, durante a Primeira Guerra Mundial, ajudando
especialmenteosrefugiadosbelgas.
Dame Agatha sempre foi excelente cozinheira, gostava da
vidadomésticaeodiavaapublicidadeeasocasiõesemquetinha
de aparecer em público. Construía seus mistérios caminhando
pelos parques ou devorando maças em grande quantidade,
durante seus banhos de imersão. Lia muita poesia moderna e
detestava o revólver e o punhal: “Prefiro as mortes por
envenenamento”,costumavadeclarar.
“Aparticipaçãodo leitorêessencial.Eledevedesvendaro
mistério lentamente, como se estivesse sendo envenenado.” Tão
traduzida quanto Shakespeare, com quase quatrocentosmilhões
deexemplaresvendidos,a“damadocrime”éaresponsávelpela
quarta tiragemmundial de todos os tempos: à sua frente estão
apenasLênin,JúlioVerneeLievTolstói.
Ao falecer, em 1976, deixou uma obra que continua a
mereceraadmiraçãodeleitoresdomundointeiro.