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1 Rio de Janeiro: Simões Editora, 1969, pp. 19-23. A Crítica e os Rodapés Haverá porventura hábito mais grotesco do que este, tão comum entre nossos críticos, de inaugurarem os seus rodapés com uma introdução em que, pretendendo dar a sua posição, não vão além de uma série de considerações mais ou menos ocas e de algumas barretadas à platéia? Onde as tomadas de posição, as afirmações doutrinárias, as classificações dos problemas? Aliás, não é este o costume apenas que é preciso argüir, tratando-se do problema da crítica no Brasil. É a própria instituição do rodapé, que é condenável por todos os aspectos como um dos responsáveis pelo atraso ou, por que não dizer, pela inexistência da crítica literária entre nós. O rodapé envolve o indivíduo que o enche de uma auréola de falso prestígio, geralmente mais condicionado pelo jornal onde aparece, do que pelo valor intrínseco do mesmo. Várias razões militam contra o rodapé. Em primeiro lugar, a questão do tempo. É materialmente impossível, nas atuais condições de publicidade, que um homem se mantenha em dia com o movimento editorial, por dever ser uma espécie de termômetro do mesmo, conservando, por outro lado, o seu espírito ao nível da cultura da época, para que possa ser um intérprete seguro e um julgador imparcial. A crítica de contemporâneos já por si implica uma série de condições de ordem moral – equilíbrio interior, pureza de intenções, fidelidade a certos princípios, honestidade de meios – sem as quais o crítico não passa de um fraseador vulgar. Tendo, portanto, diante de si esta imensa dificuldade, o crítico do rodapé, por outro lado, não poderá fugir ao dever de aperfeiçoar constantemente o seu preparo básico, o que só consegue com a leitura e o estudo ininterruptos, e ainda por cima, terá de enfrentar os montes de obras que lhe batem à porta a cada correio, só o selecionamento das quais lhe tomará boa parte do tempo. Vê-se, pois, que é tarefa sobre-humana ler sistematicamente o que se publica, afim de dar, cada semana, uma súmula do movimento geral ou um estudo sucinto sobre um livro ou autor. Não poderá fugir da reportagem, da embromação, ou do lero-lero para encher papel, em torno ou a propósito do livro, muitas vezes nada tendo que ver com ele. É geralmente, o espetáculo que oferecem os críticos de rodapé. Mas o rodapé entre nós ainda é culpado de outros pecados. Raros serão os que resistam à tentação do pedantismo, do dogmatismo, da compenetração, raros os que não se deixam desequilibrar. A crítica de rodapé estraga a melhor vocação crítica. Não vou a ponto de pretender que se acabem os rodapés. O que me parece aconselhável é que não se lhes dê a importância exagerada que tem no Brasil. Compenetremo-nos de que já passou o tempo em que o velho Sainte-Beuve podia semanalmente produzir os seus maravilhosos folhetins, coisa aliás que lhe exigia, como se sabe, uma dedicação exclusiva e absorvente, sete horas de leituras diárias, durante sete dias da semana. E mais era Sainte-Beuve... Estas e outras reflexões me tem vindo à mente ao observar certos hábitos da vida literária americana. Dentre os fatos que me chamaram até hoje a atenção, avulta um que me parece dos mais auspiciosos: a existência de uma sólida crítica literária que, a meu ver, é o mais elevado e melhor aspecto desta rica literatura. Este meu ponto de vista, aliás, tem tido a aprovação de muitos escritores, alguns deles grandes críticos, aos quais o tenho referido. Realizando esse magnífico trabalho, original e profundo, os

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Rio de Janeiro: Simões Editora, 1969, pp. 19-23.

A Crítica e os Rodapés

Haverá porventura hábito mais grotesco do que este, tão comum entre nossos críticos, de inaugurarem os seus rodapés com uma introdução em que, pretendendo dar a sua posição, não vão além de uma série de considerações mais ou menos ocas e de algumas barretadas à platéia? Onde as tomadas de posição, as afirmações doutrinárias, as classificações dos problemas? Aliás, não é este o costume apenas que é preciso argüir, tratando-se do problema da crítica no Brasil. É a própria instituição do rodapé, que é condenável por todos os aspectos como um dos responsáveis pelo atraso ou, por que não dizer, pela inexistência da crítica literária entre nós.

O rodapé envolve o indivíduo que o enche de uma auréola de falso prestígio, geralmente mais condicionado pelo jornal onde aparece, do que pelo valor intrínseco do mesmo.

Várias razões militam contra o rodapé. Em primeiro lugar, a questão do tempo. É materialmente impossível, nas atuais condições de publicidade, que um homem se mantenha em dia com o movimento editorial, por dever ser uma espécie de termômetro do mesmo, conservando, por outro lado, o seu espírito ao nível da cultura da época, para que possa ser um intérprete seguro e um julgador imparcial. A crítica de contemporâneos já por si implica uma série de condições de ordem moral – equilíbrio interior, pureza de intenções, fidelidade a certos princípios, honestidade de meios – sem as quais o crítico não passa de um fraseador vulgar. Tendo, portanto, diante de si esta imensa dificuldade, o crítico do rodapé, por outro lado, não poderá fugir ao dever de aperfeiçoar constantemente o seu preparo básico, o que só consegue com a leitura e o estudo ininterruptos, e ainda por cima, terá de enfrentar os montes de obras que lhe batem à porta a cada correio, só o selecionamento das quais lhe tomará boa parte do tempo. Vê-se, pois, que é tarefa sobre-humana ler sistematicamente o que se publica, afim de dar, cada semana, uma súmula do movimento geral ou um estudo sucinto sobre um livro ou autor. Não poderá fugir da reportagem, da embromação, ou do lero-lero para encher papel, em torno ou a propósito do livro, muitas vezes nada tendo que ver com ele. É geralmente, o espetáculo que oferecem os críticos de rodapé.

Mas o rodapé entre nós ainda é culpado de outros pecados. Raros serão os que resistam à tentação do pedantismo, do dogmatismo, da compenetração, raros os que não se deixam desequilibrar. A crítica de rodapé estraga a melhor vocação crítica.

Não vou a ponto de pretender que se acabem os rodapés. O que me parece aconselhável é que não se lhes dê a importância exagerada que tem no Brasil. Compenetremo-nos de que já passou o tempo em que o velho Sainte-Beuve podia semanalmente produzir os seus maravilhosos folhetins, coisa aliás que lhe exigia, como se sabe, uma dedicação exclusiva e absorvente, sete horas de leituras diárias, durante sete dias da semana. E mais era Sainte-Beuve...

Estas e outras reflexões me tem vindo à mente ao observar certos hábitos da vida literária americana. Dentre os fatos que me chamaram até hoje a atenção, avulta um que me parece dos mais auspiciosos: a existência de uma sólida crítica literária que, a meu ver, é o mais elevado e melhor aspecto desta rica literatura. Este meu ponto de vista, aliás, tem tido a aprovação de muitos escritores, alguns deles grandes críticos, aos quais o tenho referido. Realizando esse magnífico trabalho, original e profundo, os

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críticos americanos deste século compreendem perfeitamente aquela palavra de Paul Elmer More, para o qual não poderia haver literatura americana antes de existir a crítica americana. Tese aplicável inteiramente ao Brasil.

Já se podem considerar definitivas as conquistas da crítica americana, não só no que diz respeito a um corpo de doutrinas e padrões, como às obras-mestras que tem produzido. Com os elementos de que disponho, espero poder algum dia comentar mais de espaço, entre nós, alguns dos seus feitios mais interessantes, lamentado hoje apenas o fato de que ela se reduza, aos nossos olhos, ao fossilíssimo Menken, quando, sem abandonar os antigos, aí está viva uma equipe de primeira categoria de críticos, Krutch, Burke, Blackmur, Tate, Ransom, Kazin, Barzum, Trilling, Mathiessen, Hicks, Rahv, Philips, Schuster, e muitos outros, sem falar nos dois mestres, Eliot e o velho Richards, iniciadores de uma ala do movimento moderno da crítica anglo-americana.

Já atingiu altitude tal esse movimento, que já hoje é impossível a um crítico ficar realmente à altura do seu mister sem se assenhorar das idéias e métodos da moderna crítica de língua inglesa. Do contrário, ficará como a maioria dos nossos: em pleno impressionismo crítico.

Pior do que isto: em pleno comentarismo crítico. Era a que desejava chegar, pois me parece que esse estado resulta do hábito de reduzir a crítica àquela que se faz nos rodapés. O que me afigura inadiável entre nós, é a destruição do mito do rodapé. Enquanto considerarmos o rodapé a última palavra em crítica, jamais teremos crítica literária, e ipso facto literatura. Os rodapés não merecem o respeito e a veneração de que são cercados, o prestígio que se lhes espreita. Não devem ser vistos senão como meros registros de livros, sem nenhum valor de julgamento, nem para o bem nem para o mal. Para que se sinta o vazio dos rodapés, basta que procuremos neles o critério que os norteia, o padrão de valores, suas diretivas e normas de interpretação. No Brasil, dificilmente encontraremos mais de m rodapé que possa expor esse corpo doutrinário, e que não se resuma no critério do "gostei" ou "não gostei". Para que, portanto, dar-lhes importância, sabendo que são feitos sobre a perna? Lembremo-nos de que seus autores não se dedicam somente a eles, exercendo ao contrário meia dúzia de atividades, e que, portanto, não tem tempo para estudar e meditá-los.

A propósito disto é que desejo citar o exemplo da vida literária americana. Ela faz uma distinção bem nítida entre crítica e review de livros, entre crítica e reportagem, crônica, registro. Esta distinção é que seria necessário introduzir no Brasil.

Um rodapé não é crítica, mas simples registro ou revista de livros. Não existe, geralmente, o hábito do rodapé na América. Mas as seções de registro de livros, de todos os jornais e revistas, não são consideradas seções de crítica, mas de review, e os seus autores não são tidos como críticos. Além disso, nenhum grande crítico americano assina uma seção permanente, diária, semanal ou mesmo mensal de crítica. Um dos mais jovens dizia-me há pouco ser-lhe impossível fazê-lo, e citava-me o exemplo de um artigo de dez páginas datilografadas que escrevera sobre Henry James, para o número comemorativo de certa revista, o qual lhe levara dois meses de trabalho, entre pesquisa e redação. Com tal método, como se dedicar a uma seção periódica de crítica? Estas, os verdadeiros críticos deixam de bom grado para os repórteres de livros, os Clifton Fadman, John Chamberlain e todos os outros que enchem os suplementos literários dos jornais com as suas notícias de livros, mais ou menos encomendadas e controladas pelas casas editoras.

Não quer dizer que um bom crítico esteja inibido de publicar um artigo de crítica em um periódico qualquer. E o fazem com certeza, mas ocasionalmente, sem a obrigação regular de uma seção permanente. Por outro lado, um reviewer também não estará na impossibilidade de fazer um trabalho crítico. Alguns há que são mesmo dotados de certos recursos críticos, e se o quiserem poderão fazer crítica, se se dedicarem ao estudo. Não, porém, nas suas seções de registro. E o que se dá com eles é que ninguém os leva a sério, o review já os tendo desmoralizado aos olhos dos homens de letras de responsabilidade, e criado neles um hábito de acanalhação, de só encarar a literatura com um espírito de facilidade e mercantilismo.

A grande crítica, inclusive de contemporâneos, se exerce nos livros, nas boas revistas literárias, em estudos sérios, amplos, assentados. É desta maneira que está sendo construída a crítica americana. Confundindo crítica com rodapé – e a prova disto é que os seus autores os publicam depois em livro tais como apareceram nos jornais, sem nenhuma modificação, como obras definitivas de crítica - , teremos sempre uma crítica aleatória, inconsistente, sem padrões nem guias, condicionada à impressão pessoal, às flutuações dos motivos e objetivos pessoais do autor, ao seu caráter, às circunstâncias do ambiente em que ele se move, às imposições de natureza extraliterária, política ou social.

É o nosso triste caso.

Nova York, 13-6-1943

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Rio de Janeiro, 1953, Editora A Noite, pp. I-XXIII.

CORRENTES CRUZADAS (Questões de Literatura)

Introdução Dos meados de 1948 em diante, até os dias em que sai a lume este livro - meados de

1953, - todos os domingos, sem interrupção, no "Suplemento Literário", do "Diário de Notícias", apareceu, e continua, uma seção intitulada Correntes Cruzadas, de autoria do presente escritor. Este volume enfeixa uma seleção daquelas crônicas,ao lado de meia dúzia de páginas outras aparecidas em publicações e ocasiões diversas.

Não é uma seção de crítica literária, o registro (review) de livros, o comentário à margem ou a propósito de livros publicados. Às vezes ela fez crítica, outras nela referiram-se livros para corroborar com obras autorizadas opiniões expedidas por seu signatário ou então como simples noticiário, para corresponder à gentileza de autores ou editores que ocasionalmente lhe ofertaram livros.

De modo geral, a coluna é uma seção livre, assinada por um livre-atirador, um isolado, um individualista, absolutamente sem compromissos nem com pessoas, nem com grupos, nem com partidos, nem com países. Só com a Literatura tem compromissos, e para o estudo do fato literário julga lícito e obrigatório utilizarem-se todas as contribuições, venham de onde vierem, de qualquer setor do mundo intelectual, sem distinção de nacionalidade, pois a literatura comparada lhe ensinou a encarar o fenômeno literário e artístico de uma perspectiva supra-nacional.

É uma seção de debates de idéias literárias, e, mais que isso, de provocações a debates, no bom sentido. O seu autor acredita na fecundidade do debate e da controvérsia, infelizmente, entre nós, transformados em polêmica pessoal. Demais disso, cuida que é fundamental o trabalho doutrinário e teórico, o desbravamento dos problemas de princípio e método, sem o que não lograremos, no Brasil, jamais sair da fase do empirismo e da improvisação. Tem bem presente no espírito o caso do Renascimento, cujo vasto debate teórico deu lugar à admirável eclosão de obras-primas de todos os gêneros. Há muito tempo com o espírito inteiramente voltado para o estudo e a meditação dos problemas gerais da Literatura, da crítica, de teoria literária, em uma palavra, de Filosofia da Literatura, acredita-se

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mais do que com o direito, com o dever de concorrer para a agitação e a divulgação de idéias e informações que foi acumulando em anos e anos de estudo e observação de nossas deficiências e virtudes, e também de anos de experiência no contacto vivido com grandes centros intelectuais e universitários norte-americanos.

É uma contribuição para o esclarecimento de um problema da nossa cultura, tão sério e importante quanto os que mais o forem. Disse um crítico americano, Paul Elmer More, por volta de 1900, que não teriam os americanos literatura enquanto não se firmasse em sólidas bases a crítica americana. E a crítica se ergueu na América, e está talvez mais florescente e original do que em qualquer outro país, para o que foi extraordinariamente fecundo o debate agudo entre humanistas, esteticistas, impressionistas, eruditos universitários, marxistas e outros críticos de orientação social. Na Inglaterra, a crítica nasceu, por assim dizer, da controvérsia entre escolas e correntes como se pode depreender dos dois belos volumes de ensaios críticos editados por Gregory Smith (Elizabethan Critical Essays). A controvérsia é fecunda e arejante, contanto que colocada acima da retaliação pessoal e do deboche.

A propósito, vale insistir em que nada há de pessoal nas opiniões que sustenta sobre a crítica, em que pese à descrença que tal declaração desperta em nosso meio, onde tudo se leva para esse terreno e onde para tudo se procuram explicações vis e subalternas; e em que pese aos que fazem força para enterrar na cabeça imaginárias carapuças. Só interessam mentalidades, hábitos, métodos. Já é tempo de estabelecer-se um debate sobre o problema da crítica, mormente tendo nós chegado, nesse como em muitos outros temas intelectuais, a um período de completa estagnação, decorrente em parte de que nos conformamos com a repetição de métodos vigentes, e há muito esgotados, e com a falta de espírito de renovação. Sobretudo, essa estagnação proveio de não se ter tratado de frente, corajosamente,do problema crítico entre nós, dos métodos e hábitos de nossa crítica, apontando suas deficiências e necessidades. O clima do elogio sempre cercou os críticos, no receio natural das represálias e da irritação dos distribuidores da glória, proprietários do assunto. E o nervosismo e o pânico são uma prova de que a crítica da crítica, tão necessária embora, é sempre arriscada e difícil e de que os críticos são mais do que quaisquer outros suscetíveis à crítica. Mas esse é apenas um aspecto local do problema, um dentre muitos.

Esse trabalho denota, primeiramente, um temperamento, uma vocação, uma dedicação, uma propensão especial de espírito. E, a quem o interprete com olhos de ver, traduz uma determinada formação e orientação intelectual, uma perspectiva estética, uma concepção católica e anti-naturalista da vida e da Literatura que sublinham toda essa atividade. As Correntes Cruzadas são uma seção, pois, onde tem cabido tudo. Inclusive, às vezes, crítica. Mas não é de crítica militante de livros, seu autor não se sentindo com capacidade, nem julgando, já agora, possível, a crítica militante e jornalística de livros, nos moldes tradicionais entre nós.

* * *

A persistência com que vem aparecendo a seção Correntes Cruzadas só causa espécie

aos que desconhecem as reservas de fé, vontade e entusiasmo de seu autor, sua capacidade de sustentar as idéias em que acredita. Sobretudo, sua fé na Literatura.

Essas idéias, elas, tem sustentado de maneira positiva, por vezes com desagrado de alguns. Mas tem-no feito sem dogmatismo, e, mormente, sem deliberada truculência ou provocação. Sua atitude é antes a de um afirmativo, de alguém que tem o hábito da cátedra e o gosto da função de ensinar, não a quem já sabe, porém aos que desejam aprender; e de quem há muito já se desvestiu das hesitações e dúvidas naturais à adolescência, e, sabendo onde está e o que pretende, abomina os trajetos ziguezagueantes e os vais-e-vens.

* * *

O tempo, cristalizando as características da seção, deu-lhe autoridade e ressonância. O

debate, que inaugurou entre nós, em torno de algumas idéias fundamentais, debate que prosseguirá com a consciência da prestação de um serviço útil, foi estimulado pela persuasão de serem pertinentes os pontos de vista reivindicados. Vários sinais o comprovam: de um

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lado, uma vaga e insegura, não convencida e não convincente, reação de alguns expressa às vezes apenas nas entrelinhas. Adeptos de velhos conceitos empedernidos, mas geralmente acatados, sentiram-se, em face do trabalho revisionistas nela empreendido, na necessidade de justificar-se, desconfiados de que tais postulados foram abalados ou postos em dúvida. Muitos, para combater as novas doutrinas, foram por elas atraídos e conquistados ou forçados a tomar conhecimento de suas teses, e, ainda outros, a tomar posição, por vez primeira, diante dos problemas e idéias nela colocados. Esses os sintomas negativos. Mas, há ainda a convicção de que tais noções constituem a vanguarda do pensamento da época, a vertente ascensional, correspondente a uma aspiração generalizada das gerações novas, como o prova o fato de que há coincidências de idéias, no particular da renovação dos métodos críticos, em vários países do mundo, inclusive no Brasil.

Há, portanto, oportunidade para um recenseamento de algumas das idéias fundamentais que a seção das Correntes Cruzadas introduziu ou repôs no debate literário entre nós, ao longo dos cinco anos de sua aparição.

* * *

1 - A primeira idéia é a da necessidade de criação de uma consciência crítica para a

nossa literatura, que venha corrigir a atitude acrítica e empírica, segundo a qual a literatura é um produto exclusivo das forças inconscientes, telúricas, selvagens, virgens, primitivas, expressão do gênio local, indisciplinado, original. Contra o mito do autoctonismo absoluto, da originalidade incondicional, apresentamos a noção da tradição válida, do passado útil, não com espírito de oposição ou de dilema, porém como corretivo, pois só da fusão dos dois - o gênio local e a tradição - é que é possível a produção de uma literatura madura e consciente, não simplesmente empírica.

2 - Essa consciência crítica só se cria pelo estudo superior e sistemático de letras, estudo universitário, em que pese à nossa descrença, de origem romântica, na viabilidade e eficiência do aprendizado de letras. Os fatos que nos mostra a história literária e a experiência estrangeira convencem que Literatura se ensina e aprende. Esse estudo sistemático desenvolverá a crítica sobre bases científicas e filosóficas, acentuando o papel da teoria e dos princípios, pois sem uma concepção geral da Literatura é vã qualquer procura de método crítico. E à crítica assim concebida e desenvolvida cabe uma função norteadora de disciplina do espírito e da Literatura, proporcionando, direta e indiretamente, a formação de um clima de auto-crítica nos autores e de gosto policiado e exigente no público.

O instrumento dessa reforma de conceitos e métodos de trabalho intelectual terá de ser o ensino superior de letras ministrado nas Faculdades de Filosofia e Letras. Criando melhores professores de letras e investigadores literários, estes, por sua vez, melhorarão o ensino de letras no curso secundário. Daí sairão melhores poetas, melhores romancistas, melhores críticos,melhores pesquisadores e trabalhadores intelectuais. Não serão mais diletantes, autodidatas os homens de letras. A questão fundamental brasileira é de método. Há um método, que aperfeiçoará nossa qualidade de trabalhadores, seja no terreno mecânico, seja no intelectual. Improvisadores e curiosos, temos as intuições das coisas. Falecem-nos os "know-how" de tudo, descura-se o aspecto de "craftmanship", de artesanato de quanto se faz. E a tese não é desmentida, ao contrário confirmada, pelas tentativas isoladas, mesmo brilhantes, que se perderam em meio à desordem geral.

3 - Disso decorre a reconsideração dos problemas técnicos da poesia, da ficção e do drama, (V. sobretudo págs. 76,80, 224, 305) com a reabilitação, em novos moldes, da velha retórica. E decorre também uma exigência de especialização por parte da crítica, inclusive em face dos próprios gêneros literários, em lugar do antigo enciclopedismo crítico.

* * *

4 - A defesa da perspectiva estético-literário na apreciação da literatura contra o

predomínio do método histórico. Isso não significa, todavia, o abandono das contribuições históricas, mas apenas a colocação do método histórico no seu devido lugar, que não é, na consideração da literatura, o primeiro. A crítica é, acima e antes de tudo, crítica-poética, no

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sentido aristotélico, e a história só vale na medida em que é um auxiliar na compreensão da obra, um meio e não um fim, e um meio útil às vezes, por vezes perturbador, e nem sempre indispensável. Para a "nova crítica", o movimento de âmbito universal que forma hoje a tendência dominante, o que importa, sobretudo, é a obra, o texto, e na análise do texto - de poesia ou de prosa - se especializam as várias escolas, buscando o difícil núcleo, o intrínseco, que forma a essência estética da obra de arte literária. Aos métodos de análise extrínseca, ela ajunta e sobrepõe os métodos de análise intrínseca.

Essa visão estética da Literatura foi muito bem definida por um grande medievalista português, Rodrigues Lapa, em suas Lições de Literatura Portuguesa (Época Medieval, 2ª edição, pág. 95): "A deficiência da grande filóloga (D. Carolina Micaelis) está justamente na análise estética do produto literário. Possivelmente o imenso volume de seu saber histórico e filológico marcou nela, como é natural, a delicadeza da sensibilidade artística. Prova desta incapacidade estética está na sua incompreensão de Fernão Lopes (...). Quer isto dizer que vai sendo tempo de considerar os nossos trovadores como artistas e não ver apenas nas suas cantigas pasto filológico."

* * *

5 - O alargamento das influências estrangeiras em nosso país, pondo-se têrmo ao

monopólio e ao imperialismo cultural, e abrindo-se janelas para os vários quadrantes do horizonte. A cultura é supra-nacional, não pertence a este ou aquele país. E toda contribuição válida é útil e fecundante. Só assim, lograremos a maturidade e a autonomia intelectuais: pela exploração de todas as sementes que nos possam oferecer os povos ricos de experiência. O amor da cultura não implica o reconhecimento de superioridade ou primazias de povos. Mas a aceitação das correntes cruzadas supra-nacionais, que formam a unidade da cultura, essa nação acima das nações.

Quem conhece o autor deste sabe que ele não é um admirador cego e passivo dos Estados Unidos, sua opinião pessimista já tendo sido mais de uma vez exposta de público. Não se peja ele de sua formação sobretudo francesa e sua fidelidade à cultura católica, sorvida por intermédio do grande rio gaulês. Mas, doutro lado, julga-se com suficiente independência de espírito para saber distinguir aquilo que na influência francesa é nefasto ou está errado, mormente para diferençar o que é a verdadeira e melhor tradição francesa do pechisbeque que seus importadores, por cálculo, vesguice ou comodismo mental, fazem passar por boa mercadoria, com nenhum outro intuito senão o de tirar disso o máximo partido. E, "çá va sans dire", essa independência conserva-lhe o juízo claro para enxergar o que há de progressista em outras plagas, especialmente o que há de fecundo para nós em abrirmos as janelas a todas as influências. Não tem culpa que muitos, por acanhamento provinciano, sejam impermeáveis a outros ares, numa adoração imutável, sentimental e acientífica do que chamam a "tradição francesa". O preconceito anti-americano, em particular, é muito comum em certos intelectuais que, por maiores que sejam as provas, simplesmente não tomam conhecimento da América, a despeito de, no mínimo, ela ser hoje o mais sério e mais importante centro de estudos do mundo.

6 - A descentralização intelectual, conforme com a nossa realidade, que é de base regional. Corresponde isso também a uma valorização da vida intelectual das províncias, absorvidas, anuladas pela Metrópole, que constitui o polo de atração permanente, concentrando os recursos e os postos de direção intelectual.

7 - Importando sobretudo à "nova crítica" a literatura, o exercício literário constitui atividade autônoma em relação às outras, maximé a política, sendo espúrias as formas de literatura de participação ("engagée"), pois o escritor só deve fidelidade à sua obra, sua vocação, sua arte.

Não escapa a ninguém, todavia, a posição, quase diria ridícula, ao menos sem sentido, dos que se esforçam por manter-se fiéis à Literatura nesse momento no Brasil. Nunca foi a atmosfera tão pouco propícia ao exercício das letras puras. O desprestígio da inteligência desinteressada mostra como não há lugar na sociedade profundamente materializada de nossos dias senão para o combatente político. A inteligência tem que ser subordinada aos interesses da luta, e a literatura não tem valor senão como veículo de outros valores. Parece

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que revivemos a época das lutas de religião, quando a literatura servia de veículo da catequese ou da reconquista religiosa. Apenas, agora, é diferente o senhor. A participação, ou "engagement", para usar a palavra em voga, faz-se em benefício de ideais partidários, nesse mundo separado, com duas facções políticas em antagonismo, tal qual aqueloutro em que duas metades de colorido religioso dividiam a cristandade outrora unificada.

* * *

A Literatura qua Literatura, em si mesma, parece não interessar ao homem atual,

tremendamente solicitado pelos partidos da hora. Nossa época dilemática dilacera-lhe a alma, obrigando-o a tomar partido por um dos lados, como se aí estivesse a solução de seus problemas íntimos, a resposta ao enigma de seu destino. As palavras de ordem e os "slogans" partidários pretendem substituir a meditação das grandes obras-primas do passado. Esquecemos que lucramos muito mais no caminho da perfeição com dois trechos do Hamlet ou dos Pensamentos de Pascal, e que os problemas humanos são problemas sobretudo espirituais, só no homem encontrando a almejada pacificação. Em todas as épocas houve quem se batesse pelos problemas de justiça, e essa luta é legítima. Mas o problema da justiça não pode ser enquadrado no plano do econômico somente. É de ordem moral e espiritual, o econômico e o político dele dependendo estritamente.

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O desprestígio da Literatura neste instante bem reflete a desordem reinante nos

espíritos, a subversão de valores, a confusão de planos que caracteriza a época, situação ainda agravada em nosso meio pelas deficiências que nos são peculiares no terreno educacional. O fato é que ela interessa atualmente pela possível mensagem de caráter político ou social que porventura encerre. Os escritores procuram, para mostrar-se à altura do tempo, infiltrar essa mensagem na obra que produzem. Os críticos contentam-se com realçar, o mais dos casos, o aspecto ou a intenção política, consciente ou latente, da obra ou figura que examinam. A Literatura como arte, essa não vale a pena de ser encarada. Não se leva em consideração. Nem há muito a quem lhe ocorra que existe nela esse aspecto estético.

* * *

Seria incorrer numa estultícia proclamar a morte da Literatura, já que, para veicular

propaganda, se substituem facilmente por outros novos, mais convinháveis às exigências da ação, aqueles gêneros literários tradicionais que fizeram as delícias de nossos antepassados. É preferível aquilatar o valor da época por sua predileção pela reportagem e pela novela radiofônica, enquanto deixa cair no olvido formas ilustres de ficção e poesia, quiçá a própria poesia. Porventura o pragmatismo da ação ou o interesse da massa constituirão o padrão da civilização futura, na qual não mais haverá para certas coisas "inúteis",certas atividades desinteressadas?

* * *

8 - Duas tendências chocam-se nos dias correntes, no tocante à conceituação da

crítica: de um lado, o velho impressionismo, em suas formas artísticas e seus espécimes bastardos (v. págs. 162 e 341 deste livro): do outro lado, as tendências ao estabelecimento de critérios críticos de cunho objetivo, critérios "científicos".

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"E erro ainda tem sido a tendência a considerar sinônimos ‘científico’ e ‘experimental’, a

despeito de que a experimentação não passa de um dos processos pelos quais a ciência progride".

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A afirmação acima, devida a um dos colaboradores do excelente livro Philosophy in American Education, pode à maravilha aplicar-se às tentativas até hoje surgidas de estabelecimento de um método científico para a crítica literária. O defeito de todas elas foi querer transferir para a crítica os critérios e métodos de outras disciplinas e ciências, maximé, modernamente, após os progressos das ciências físicas e biológicas. Taine, Brunetière, Hennequin, Silvio Romero inspiraram-se nos dados e na terminologia das ciências biológicas que informar os seus sistemas apriorísticos de crítica "soi disant" científica, mas que só tinha de científica o jargão e a pseudo-armadura dentro da qual enquadrava a produção literária. Outros, nos séculos XIX e XX, foram buscar à Sociologia a orientação para interpretar a Literatura, e, particularmente, depois que os alemães, Herder à frente, marcaram o desabrochar do Romantismo pela preocupação com as origens nacionais, o estudo e interpretação da Literatura passou a fazer-se em relação estreita com o ambiente histórico e nacional. Taine, ainda, inspirado em Sainte Beuve e Hegel, codificou as leis da crítica histórica, resumidas na famosa fórmula do meio, raça e momento. Outras fórmulas "científicas" vieram vindo do século XIX para os nossos dias, acompanhando o fluxo e refluxo das ondas científicas. Surgiu a Psicologia, e atrás dela as diversas escolas psicanalíticas aplicando métodos e interpretações próprios ao estudo literário. Desde que a arte seria um mecanismo de compensação pelo qual o artista escapa da fantasia introvertida (Freud), a interpretação literária deveria buscar os diversos meios de expressão da libido sexual e penetrar no inconsciente para encontrar-lhe as raízes profundas. Daí Jung, psicanalista heterodoxo, estabeleceu a sua teoria do inconsciente coletivo e das imagens arquétipos, como fonte da produção artística.

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Tudo isso está fora da Literatura propriamente dita. Historicistas, psicólogos,

sociólogos, biologistas, marxistas (estes últimos, apenas uma variante do historicismo, vêem na Literatura um reflexo da luta de classe, para eles, o fato essencial da história, determinado pelas forças econômicas), todas essas escolas críticas, surgidas em reação ao impressionismo subjetivista, consideram a obra literária somente como o resultado de certas forças naturais, e seu interesse dirige-se apenas para o fato (fatualismo ou fenomenalismo), isto é, o documento histórico, sociológico ou psicológico, a ser verificado, descrito e rotulado. Mergulha até Bacon a linha filosófica inspiradora de tais teorias e da metodologia "científica" delas resultante como técnicas de abordagem do fenômeno literário.

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Evidentemente, o ideal da crítica é ser tanto quanto possível científica. Mas o erro de

qualquer daquelas orientações foi tentar aplicar à crítica da Literatura os métodos próprios de ciências cujo objeto não era o fato literário. Cada ciência cria seu próprio método de acordo com o seu objeto. Para desenvolver-se um método científico de aplicação à Literatura há que procurar subordiná-lo às determinações do fato literário, objeto peculiar da crítica literária. A crítica jamais será uma ciência, mas poderá absorver cada vez mais o espírito científico, realizando dentro em seus domínios as revoluções metodológicas e científicas, que lograram outras disciplinas. Para evitar o equívoco é que será sempre vantajoso não falar em crítica científica (quer inspirada na Biologia, na Psicologia, quer na Matemática), mas simplesmente em crítica. Até hoje não atingiu o estudo da Literatura o estágio de disciplina autônoma, a que poderemos um dia chama verdadeiramente crítica, e que será "a ciência da Literatura", dos alemães.

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O grande mestre da crítica literária científica é Aristóteles, que deixou na Poética as

normas para o assunto. O primeiro passo é a correta observação do fato literário, na sua intimidade, ou intrínseco do fato literário; a análise de seus elementos (com todos os recursos

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disponíveis), a descrição e classificação desses elementos,isolados ou combinados; o estudo de seus processos de produção e recepção, e, por último, o julgamento de seu valor. Sem julgamento não há crítica, e nisso a crítica distingue-se da ciência. Mas para julgar, o crítico necessita de um corpo de critérios ou padrões objetivos, o que faz que a crítica não possa ser verdadeiramente crítica enquanto permanecer no plano impressionista, incompatível com o juízo de valor, pois o impressionismo é subjetivista e relativista na sua fidelidade à impressão sensível, à emoção. Esse subjetivismo, é que deve ser afastado no exame do objeto, aplicando-se todas as técnicas e formas de conhecimento que possam pôr em relêvo o que houver de significativo no fato. Por outro lado, a terminologia crítica será escoimada dos sentidos ambíguos, no esforço de torná-la cada vez mais exata, precisa e unívoca, sem conteúdo emocional, exclamatório, puramente subjetivo. Impõe-se o estabelecimento de um vocabulário crítico internacional, indispensável ao desenvolvimento da crítica como ciência. Portanto nada que não seja estritamente observado e que não se apóie em severa verificação deve ser considerado no exame do fenômeno literário.

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A crítica científica (empregando com a devida ressalva essa expressão equívoca e cheia

de conotações perturbadoras) é aquela que, relacionando, como todo conhecimento, o espírito ao ser e à realidade, numa adequação entre o espírito e as coisas sensíveis, procura examinar a sua estrutura intrínseca, o específico, o individual, a matéria, que constitui o fato literário. Seu método é o indutivo, como ensinou Aristóteles, pela observação do dado literário fundamental. Mas que tenha as características, as propriedades adequadas às do objeto a ser estudado, e não qualidades emprestadas de disciplinas de objeto heterogêneo. Ou a crítica literária desenvolve métodos peculiares ao seu objeto de estudo, métodos estéticos ou literários, ou então ficará sempre à mercê das tentativas de aplicação de métodos estranhos à natureza do fenômeno estudado - métodos da Sociologia, das ciências naturais, da Matemática. O método da crítica literária será literário, estético, "poético", ou jamais a crítica será científica, isto é, crítica, mas uma epi-disciplina, dependente das variações de moda das ciências às quais buscará por empréstimo seus métodos.

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9 - Todavia, ao advogar o estabelecimento de padrões objetivos, "científicos", de

análise e apreciação da obra literária, não se quer incorrer no vício que caracterizou os estudos literários do século XIX aos nossos dias, e que foi rotulado como o "positivismo em Scholarship"(v. pgs. 101, 213, 317, 322 e outras deste livro).

Esse vício determinou um conflito entre a crítica e a erudição, de profundos prejuízos nos estudos literários. Ao reagir contra o exagero do eruditismo em "scholarship" literário, não se deseja proclamar a desvalia da erudição, mas colocá-la no seu lugar, a serviço do estudo literário, iluminada pela crítica, e não como um fim em si mesma, e substituindo, com seu aparato mecânico, o trabalho crítico. Por força do positivismo metodológico, nos estudos sistemáticos de letras, segundo os critérios inspirados em Kant, Lessing, Herder, etc., produziu-se, maximé nos meios universitários, uma exacerbação da erudição em detrimento da crítica, responsável por um amontoado de mediocridades e futilidades saídas dos prelos universitários. Para se ter boa idéia do assunto, consulte-se a excelente obra de Martin Schutze, Academic Illusions, (Chicago, 1933), um dentre os muitos trabalhos suscitados pela polêmica em torno do tema.

Mas o problema foi muito bem resumido por Fidelino Figueiredo no seguinte trecho: "A Crítica literária ou, na designação alemã, a ciência da Literatura (Literaturwissenschaft) não poderia eximir-se a tal renovação. Chegara a extrema decadência: metodização de curiosidades pequenas, recuperação do anedótico singular da vida dos autores, da história externa das obras, pesquisa e recolha de tudo que precedeu à criação. E uma curiosidade aplicável indiferentemente ao ótimo e ao péssimo. O melhor da crítica do fim do Século XIX foi feito com sacrifício das obras aos autores: Shakespeare, o homem mal identificado, em vez de seu teatro; Balzac, o homem da bata branca, da bengala mágica e dos amores ocultos com

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"l'étrangère", em vez da Comédie Humaine; a nevrose revolucionária de Dostoiewsky em vez das intimidades humanas do seu romance...Era como vegetação teimosa e rasteira, à sombra de grandes árvores. E sem chegar a nenhuma conclusão geral, além do amontoamento de livros sobre livros, cujo conteúdo era insusceptível de assimilação no espírito sob forma de idéias. Não se chegava a conclusão nenhuma, porque há dois mistérios insondáveis na ciência da literatura o da criação pelo artista e o da recepção pelo público ou da ressonância no meio ledor. Um século de erudição não nos legava nenhum dado positivo sobre tais mistérios. Tudo o que o método histórico poderia produzir na ciência da literatura já estava realizado: os grandes monumentos da erudição que constituem títulos de glória do século. E tudo que o impressionismo estético nos poderia oferecer, já no-lo havia legado: as obras dos altos críticos criadores. Umas e outras se completavam, mas todas se detinham no limiar do incognoscível, guardado por aqueles dois cerberos..." Fidelino Figueiredo, "Rumos novos da ciência da literatura", Boletins da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, nº 7, Universidade de São Paulo.

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10 - O método ideal em crítica literária é o integral, que hoje está sendo propugnado

pelas correntes e figuras mais avançadas em todo o mundo. A propósito, veja-se um comentário às páginas 233 deste livro sobre o estudo de Manfred Kridl, "The Integral Method of Literary Scholarship", publicado em Comparative Literature, Vol. III Nº 1.

A crítica só alcançará seu objetivo de uma completa compreensão da obra de arte quando utilizar tudo o que estiver ao alcance para essa finalidade. Nada pior em crítica do que a unilateralidade de método ou o método único. A obra literária é polimorfa e não será bem vista enquanto encarada por uma só face do prisma. O conjunto de perspectivas é que oferece oportunidade para uma visão total. Há obras que se deixam ver melhor de determinado ângulo de visão e mediante certas técnicas de abordagem. Ao passo que outras escondem seus segredos se não colocadas sob a luz de refletores apropriados.

O erro da crítica de orientação sociológica determinista foi acreditar na explicação genética exclusiva do meio, da raça e do momento. Sabemos quão superada está a teoria de Taine e dos críticos que nele se inspiraram. Os fatores extrínsecos não têm o monopólio da formação artística, nem mesmo a importância que se lhes atribuiu. Podem estar ou não presentes na gênese da obra e não satisfazem de todo quando pretendem explicar a natureza do produto estético. Por si não passam, quando estão presentes, de meros elementos condicionantes, incapazes de esgotarem o mistério da criação artística.

Em igual situação está o fator psicológico. Como se pode estudar num livro recente, Taste and Criticism in the Eighteenth Century (Londres, 1952), o século XVIII, ao reintroduzir na explicação da poesia, noções como a de sentimento, de paixão, de entusiasmo, de gênio, de imaginação, legaria ao Ocidente um corpo de doutrinas estéticas e literárias que teria imensa fortuna em todo o período de tempo que se lhe seguiu até nossos dias. Doutrinas estas que formariam o sistema de idéias romântico e que, por assim dizer, monopolizariam a mente dos críticos, a elas consciente ou inconscientemente subordinados. Ao reagir contra o primado das regras, que fôra um dos cânones do neoclassicismo, como a noção da imitação fôra outro, o romantismo forçou a mão na estimação do princípio pessoal da inspiração, do gosto, do temperamento individual, do gênio, da emoção, qualidades estas a que se passou a responsabilizar por toda a criação artística.

Um passo apenas e cairíamos em outro monismo interpretativo: o da obra através do homem, que redundaria, pela mão mágica de um Sainte Beuve, no estudo do homem artista graças a tudo que a isso se prestasse, inclusive às vezes a obra. De estudo da literatura na obra, a crítica resultou em biografia dos autores, em retrato psicológico dos escritores, para o que podia também, caso fosse útil, utilizar-se a obra, simples documento ilustrativo de uma vida. Inverteu-se a ordem do estudo literário: em vez da obra através do autor, chegou-se ao autor por intermédio da obra. Como se, afinal de contas, o que devesse interessar acima de tudo ao estudo literário, à crítica, não fosse a obra, o documento literário por excelência, cuja autoria é um simples acidente, nem sempre interessante ou útil à interpretação, às vezes até

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prejudicial muitas vezes ignorada sem que se perca qualquer parcela do interesse e valor estético da obra.

Em todos esses casos o que ressalta é o prejuízo monista na explicação literária. Todos esses "approaches" ao fato literário podem prestar serviços contanto que não elevados em absolutos e únicos meios de penetração das obras literárias. A tendência no momento é para uma visão total, que conduza a interpretação, através de toda a soma de elementos, para o núcleo intrínseco da obra. Não se conformará o olho crítico em deter-se na superfície, na camada externa, nos elementos extra-literários propriamente, mas descobrirá os fatores intrínsecos do "valor" estético-literário. O ideal crítico é ver a obra em globo, mercê de um método integral, que use os métodos de investigação extrínsecos e os intrínsecos ou ergocêntricos; os genéticos, - psicológico, sociológico, histórico, cultural, - mas também os literários. Mas sem predomínio de um deles. No passado os métodos extrínsecos tiveram a preferência. Do começo do século presente datam os esforços dos críticos no sentido de desenvolver os métodos literários ou ergocêntricos. Pelo fato de haverem os outros monopolizado os estudos literários, poderá parecer que os atuais propugnadores de métodos literários estejam advogando um novo monismo crítico. Nada mais falso. E nada menos fecundo do que substituir um por outro monismo. O que se pretende é aquilo muito bem definido por Manfred Kridl:um método que seja "integral", isto é, que abrace tudo o que existe na obra de arte, e "literário",istoé, que estude todos os elementos dentro dos limites da obra, de um ponto de vista literário. E que, assim, consiga conciliar várias perspectivas com a técnica do "close reading", "close scrutiny of style", "close verbal analysis", "detailed study of actual words on the page", o princípio básico do moderno método crítico.

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11 - Tal colocação do problema crítico põe em relêvo a necessidade de uma reação

contra a preocupação biográfica em crítica tão larga e tão devastadora entre nós, onde, como bem acentua Afonso Arinos de Melo Franco, a biografia monopoliza as atenções dos críticos e historiadores literários (V. págs. 91, 122, 125 e outras).

12 - À exacerbação do positivismo na metodologia literária correspondeu um divórcio entre a crítica e a erudição. Em quem estuda a literatura do passado, o ideal realmente é adotar uma atitude em que a crítica e a história literária se fundam numa só perspectiva, isto é, em que as questões sejam encaradas ao mesmo tempo como questões de fato e questões de valor. O comum, porém, é existência de um conflito desesperado entre a crítica e a história literária, com o predomínio absoluto do critério histórico em detrimento do critério crítico. E chegou-se, através desse divórcio, a um prejuízo da crítica, da avaliação estética, pois a história literária deixou que a preocupação histórica se exagerasse à custa da preocupação literária, a ponto de se tornar, por influência aliás da atmosfera espiritual do século XIX, mera história social da Literatura ou então série de ensaios biográficos de escritores em ordem cronológica.

Mas esse conflito entre a crítica e a história literária tem outra conseqüência igualmente funesta: é o desprezo dos historiadores e eruditos literários pela literatura viva, contemporânea. Em geral, erudição literária confunde-se com Literatura passada. É o que caracteriza a Literatura acadêmica, o espírito acadêmico em Literatura. Aqui o conflito tem sido quase insolúvel; quem se dedica a estudar a Literatura desse ponto de vista arrima-se a essa espécie de horror ao vivo, denotando por ele uma incompreensão total e um desprezo absoluto. O espírito especializa-se no sentido do morto, do que é consagrado pelo tempo. Há nessa mentalidade uma evidente deficiência de formação do espírito literário e da capacidade crítica, pois a crítica e o estudo literário devem visar primordialmente ao contemporâneo, cuja compreensão e interpretação o estudo do passado há que auxiliar. Revela-se uma verdadeira deformação do espírito literário quando o interesse se detém há meio século do observador, que só tem capacidade e gosto pelo antigo. É uma doença do espírito a erudição pura e simples, desacompanhada da crítica. E é doença não menos grave a preocupação dominante com o passado literário, sem estar equilibrada pela compreensão do presente. Ambos os casos decorrem de perniciosa formação literária e crítica. De má definição dos problemas teóricos da Literatura.

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13 - Entre os espíritos mais conscientes e lúcidos das últimas gerações brasileiras, e

entre representantes mais íntegros da mocidade, lavra hoje um descontentamento em relação aos hábitos vigentes entre nós quanto ao exercício das letras. Por toda a parte, sente-se reação contra aquelas normas e costumes.

Tal reação encontra eco no esforço de alguns por uma moralização de nossos costumes intelectuais. A Literatura no Brasil sempre viveu presa a um dilema entre a vida literária e a obra literária, de funestas conseqüências para o valor de nossa Literatura e fonte de inferioridade para os nossos hábitos intelectuais.

Disse Oscar Wilde certa feita a André Gide que havia dado a sua obra somente o seu talento, enquanto pusera "todo o meu gênio em minha vida".

Esta frase parece que pode ser tomada como uma definição de toda a Literatura brasileira. Os homens de letras no Brasil gastam o que possam ter de gênio na sua vida, dedicando às obras apenas um pouco de talento.

Daí esta conclusão geral que se reduz da observação de nossa história literária: no Brasil, a vida literária é mais importante do que a Literatura. A vida literária suplanta as obras. Enquanto a Literatura brasileira denota grande pobreza em obras, é muito rica em figuras de homens curiosos, de homens de espírito, numa palavra, em vidas. E a vida que se desenvolve em torno da Literatura é de fato muito mais interessante, de modo geral, do que importantes as obras.

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Talvez por uma questão de temperamento racial não temos as qualidades intelectuais e

psicológicas para nos dedicar à produção de grandes obras. Talvez ainda não estejamos maduros, ainda não tenhamos atingido a maioridade mental. Com certeza.

O fato é que a nossa produção ainda é episódica, inconsistente, fluída. Ainda é muito pobre. Ainda não desenvolveu um sentido de universalidade que a fará ouvida e admirada no estrangeiro. Naturalmente, falando-se de maneira geral, sem querer argumentar com exceções.

Ressalvando-se um ou dois exemplos, raros têm sido os nossos homens de letras que tiveram a capacidade de ser fiéis à vocação, e se dedicaram de corpo e alma, a vida toda, à construção de uma obra. Não temos essa pertinácia, essa constância, essa fidelidade, que fazem as grandes obras. Tudo o que produzimos é apressado, fragmentário, à margem. A Literatura brasileira é uma Literatura marginal. Os escritores brasileiros são homens marginais.

Não é possível em poucas palavras dizer se um fenômeno é causa ou conseqüência do outro. Isso merece e exige estudo mais amplo. Mas o fato é que a pobreza em obras contrasta gritantemente com a intensidade da vida que se vive, da vida literária no Brasil. Será um livro muito pitoresco, divertido, muito mais interessante do que as nossas maçudas histórias literárias. Brito Broca tem-nos dado alguns fragmentos dessa história que está obrigado a dar-nos.

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Ao invés de se propor uma obra de criação, o escritor brasileiro prefere viver

literariamente. Dispersa a sua atividade, a sua capacidade, o seu gênio, nas rodas, nos corrilhos, nas disputas, nas intrigas. As lutas entre as várias capelinhas é uma delícia. Uma antologia de epigramas trocados entre os vários escritores e grupinhos, e de suas intrigas, faria o encanto dos amantes da sátira. Seria talvez mais genial do que a sua própria poesia.

O regime tem seu lado divertidíssimo, quando não ridículo. Mas tem também o seu lado negativo. Os escritores esterilizam-se, dispersam-se, estragam-se. Criam um complexo de medo uns dos outros. E a produção literária se empobrece, pois muitos talentos legítimos não se prestam a tomar parte nessa comédia. Recolhem-se num canto, desanimam, perdem o

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estímulo. Enquanto triunfa a mediocridade dos protegidos pelos poderosos, debaixo de sua fronde.

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Não são poucas as más conseqüências do fato de darem os escritores maior dedicação

à vida literária do que à própria Literatura. Já não se fala na pobreza de obras de valor, na fraqueza de nossa Literatura, fato mais que óbvio. A intriga, as lutas, a corrida às posições, tudo o que constitui a chamada "comédia literária", enfraquece a capacidade dos escritores, tolhe-os, limita-os, tira-lhes qualquer interesse humano e universal.

Mas esse hábito de dar maior importância à vida literária tem ainda outra conseqüência, além desse enfraquecimento da produção. É que a vida literária nem sempre é muito limpa. O que domina é a intriga, o espírito de capela, as rivalidades, as competições mesquinhas, as ambições pessoais. De maneira geral é o personalismo. Tudo gira em torno de pessoas. Da glorificação de uns. Da destruição de outros. Raramente a sinceridade é o móvel das atividades. Na maioria dos casos não é o interesse geral, coletivo, do país ou da sua Literatura, que predomina.

Um dos vícios mais graves da nossa vida literária é a tendência que têm os escritores a não se limitarem só à Literatura. Fazer Literatura é antes o veículo para alcançar posições na administração pública, na vida social ou política. É a tendência ao expoente. Não se compreende porque se critica tanto o medalhão. Pois não há tipo mais representativo do homem de letras brasileiro do que o medalhão. É o indivíduo que, depois de conquistar certa fama e prestígio pela publicação de meia dúzia de livros, passa a ser figura indispensável nas saudações de banquetes ou ofícios fúnebres, nas comemorações patrióticas ou sociais. Torna-se membro de todas as sociedades recreativas e beneficentes. É uma figura. A literatura fica para trás, esquecida. Serviu apenas de canal ou instrumento de acesso.

Temos às pencas os exemplos no Brasil de escritores que se perderam por falta de fidelidade à vocação intelectual. Por não saberem resistir às solicitações do brilhantismo social, do poderio político ou administrativo; e porque não tinham vocação para isto, degeneraram, começaram a fazer tolices. Enquanto intelectuais, foram respeitadíssimos; fazendo-se políticos, reformadores, chefes de clãs, servidores de causa, as críticas surgiram,na maioria justas.

Esta é a tendência natural do homem de letras no Brasil. A literatura é apenas escada para alcançar a posição. E nem sempre essa conquista se faz por meios decentes e honestos. Nem sempre conservando pura a consciência e imaculada a pena, e independente em face aos poderosos do momento.

Tudo isto é que fez a Literatura muito desmoralizada no Brasil. Ninguém acredita mais nela. Sempre houve entre o nosso povo uma tendência para respeitar a Literatura e os homens de letras, certa boa vontade para com eles. Pode-se falar mesmo em certo respeito nato no brasileiro pelo intelectual. Mas de algum tempo a esta parte vêm sendo Literatura e intelectuais desacreditados. Há uma queixa constante entre nós: porque existe tal divórcio entre Literatura e povo, porque não se lêem os nossos livros. Uma das razões deverá ser esta: o povo não acredita mais em intelectual brasileiro. Literato é hoje palavra de significado pejorativo, quase sinônimo de cafajeste. O povo cansou de suportar o intelectual. Cansou de lhe dar regalias, de lhe conceder certas licenças e privilégios, só para que ele pudesse viver a vida a seu modo, a boa vida, a boêmia, o montparnassismo. Cansou de malazartismo. Cansou da literatice dos nossos literatos, e da sua mentalidade de aldeia.

A preocupação dos nossos escritores é de fazer Literatura, de viver literariamente. Daí que a nossa Literatura seja tão pobre, e que não ofereça interesse maior aos estrangeiros. O fato é este: nós nos queixamos de que os outros não conhecem as nossas obras, e acusamos a barreira lingüística. A verdade é que a língua não foi obstáculo para os russos serem universalmente conhecidos. Quando há força real, todas as barreiras são derrubadas. Devemos antes fazer um auto-exame e compreender que nada temos que possa realmente impor-se à atenção. E nada possuiremos enquanto nos esgotarmos no personalismo, na literatice de café, no malazartismo, no cafajestismo. Mesmo do cafajestismo dos que o praticam com ares de trapista.

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14 - É mister falar claro e francamente, embora sabendo a quanto nos arriscamos.

Certa feita, aludiu Alcântara Silveira ao solilóquio em que acaba sempre o intelectual brasileiro, a falar de coisas que ninguém ouve ou a que não se dá atenção, fenômeno bem típico do nosso estado primário de civilização, misto de geléia e cortiça, como diz muito bem. E sugere o cultivo de um pessimismo fecundo, melhor chamado talvez dinâmico, resultante da crença na possibilidade de supressão desse estado de coisas através da indicação dos erros, do combate e da resistência. É claro que, como adverte o articulista, a prática desse pessimismo, longe de ser cômoda e fácil (ao contrário do conformismo ufanista), é árdua e difícil, exigindo repúdio às facilidades que nos rodeiam e coragem de mexer numa situação que a maioria, inconscientemente, tudo faz por prolongar.

Realmente, nada mais bem observado. O autor deste, uma vez, convencido da mesma necessidade de reação, propôs, a formação de um "partido dos homens desagradáveis", aos quais incumbiria dizer verdades que habitualmente não se gosta de ouvir e que, no entanto, se impõem. O brasileiro está visceralmente e secularmente habituado ao ufanismo. O nosso primeiro cronista foi o avô dos ufanistas ao dar conta ao rei de Portugal das belezas da terra descoberta. É esta uma das linhas do nosso ideário nacional, se formos um dia fazer um levantamento das idéias-forças de nossa civilização e de nossa vida espiritual. De sorte que ir ao arrepio da corrente é encontrar toda a espécie de resistência, de oposição, de condenação. É desafiar a tolerância, é condenar-se a réprobo de um crime inafiançável. Jamais conseguirá o perdão. Por isso, é-lhe necessário coragem àquele que se abalançar a ingressar no partido dos desagradáveis. Coragem de sacrifício, de renúncia às vantagens da glória, da fama, do cartaz, da aceitação pelo oficialismo intelectual. Os próprios amigos lhes exprobarão a maluquice, não lhe apoiarão a atitude. Procurarão afastá-lo do mau caminho, justamente receosos quanto ao seu futuro. É muito mais fácil e lucrativa a posição de conformismo, de aceitação passiva ou de encolhimento, ou ainda de não-pronunciamento. O perigo está em dizer-se em voz alta, em expor as chagas. As teorias dominantes são as do - é-ruim-mas-é-nosso, aqui-só-isso-é possível, tem-sido-sempre-assim-para-que-mudar. As nossas figuras mais representativas são as que melhor refletiram tais defeitos, defeitos endeusados, apontados como normas e modelos a seguir e imitar. Um Machado de Assis que se fez pelo esforço, que adquiriu cultura pela paciência e o estudo, lutando contra todos os empecilhos que o meio lhe pôs no caminho, será sempre antipático à maioria. Os que mais apreciamos são os gênios nativos, que abandonaram a escola cedo, no pressuposto de que ela coibia os impulsos naturais e ofuscava a originalidade. Toda hora lemos endeusamento de tipos ou fatos dessa ordem, a ignorância e a originalidade espontânea colocados acima de qualquer outra norma de apreciação e julgamento dos homens.

* * *

Quem quer que se arrogue a função de dizer coisas experimentará logo a reação.

Conhecerá os olhares de constrangimento, os sussurros significativos, os risinhos de mofa, os silêncios reticenciosos, por vezes as reações desabridas, os castigos exemplares e as advertências caridosas. Verá relações esfriarem, sentirá a boicotagem silenciosa ou pública, viverá sempre à margem. Leiam-se, por exemplo, os ensaios de Tito Lívio de Castro, um desses marginais que tiveram a ousadia de "falar". Crítica, só toleramos sob a forma da piada e da anedota. A análise séria, causticante, mesmo com pretensão construtiva, essa jamais encontrará senão resistência e azedume. E quem se der ao seu uso não evitará a sorte dos réprobos, dos párias, será tido como insociável, merece o destino dos encarcerados ou enclausurados, pois a tanto equivale a segregação que experimentam. No mínimo, será um solitário. Ao livre-atirador corresponde sempre um isolado. Nenhuma batata lhe caberá no acerto final, porquanto nenhuma vitória vencerá. É um contra. Um desmancha-prazeres. Não ecoa as louvações aos deuses da hora, também não lhe recebe as benesses. Restar-lhe-á quando muito a satisfação da consciência e da inteligência. E certo respeito.

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Em todos os nossos campos de atividade intelectual, impõe-se essa atitude de

inconformismo e revisionismo desassombrados, de permanente exame de consciência. Em vez de nos orgulharmos, de nos ufanarmos, de nutrirmo-nos de ilusões e falácias, procurando fingir ou mentir a nós próprios, na construção nunca terminada do castelo de areia do faz-de-conta nacional, seria mais avisado falássemos francamente, desagradavelmente, tomando consciência de nossas fraquezas. Ainda não tivemos entre nós uma geração correspondente à geração americana de após a guerra de 1914, que procedeu à mais severa crítica dos Estados Unidos, na ficçào, na poesia, no ensaio, e que, tendo dado as costas ao país, teve depois a coragem de a ele voltar - "Exile's Return" - para reconhecer afinal que a pátria podia ser vivida.

Na intimidade, temos a franqueza de falar de nossos defeitos. Por que não fazê-lo em público?

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Essa a intenção do autor destas notas no tocante à Literatura, à crítica, ao exercício da

profissão intelectual. Sua preocupação com a reforma dos métodos críticos e a moralização dos hábitos

intelectuais remonta aos anos de sua adolescência, quando ainda inseguros os lineamentos de suas concepções ou intuitivos apenas os juízos que formava acerca desse problema.

Mais tarde, com uma viagem aos Estados Unidos, quando lhe foi proporcionado um contacto prolongado com os meios universitários e intelectuais (1942-1947), seus pontos de vista se reafirmaram e clarificaram, tendo, em trabalhos de então e publicados no Brasil, refletido tais orientações, hoje reiteradas nos ensaios aqui compendiados.

* * *

Uma acusação séria tem sido proferida contra o autor do presente volume: a de que,

em sua atividade nas Correntes Cruzadas, não sai do terreno da teoria para o da prática crítica.

Reiterou-a, emprestando-lhe o brilho de sua inteligência sedutora, o Sr. Afonso Arinos de Melo Franco, em momento severo: quando da argüição de sua tese para o concurso de Literatura do Colégio Pedro II. Era como um bicho de seda encerrado em seu casulo. Em vez de contemplar as águas do rio, que se atirasse nelas. Não se confinasse à crítica da crítica, aplicasse sua instrumentação à crítica das obras de arte.

Talvez haja lugar aqui para mais uma nota pessimista, ou ao menos de humildade: nossa incompetência para realizar-nos, para concretizar aquilo que idealizamos ou visualizamos. Falecem-nos as disciplinas, os recursos, mesmo quando não ignoramos onde estão. As gerações como a de quem aqui escreve, comprometidas por graves deficiências de formação e falta de orientação, agravados tais defeitos pelas circunstâncias locais, é natural que se vejam peadas no realizar a operação de passagem dos princípios básicos e dos planos teóricos para o campo da prática.

Além disso, há que deixar espaço para a atividade - oportuna e necessária - dos que têm preferência pelas questões de princípio e método. É uma tarefa que se impõe no Brasil, e é justo que nela se especialize quem de vocação e gosto, numa divisão nacional de trabalhos. Não há mal nenhum em que alguém faça a crítica dos padrões vigentes e aponte novos caminhos, a outrem deixando a complementação do esforço na prática.

Se nada mais fizer do que essa contribuição ao debate revisionista e clarificador de normas e rumos, confessa-se seu autor bem compensado com o papel de agente catalizador. Sua contribuição ficará como uma ponte para a imperiosa reforma de métodos críticos.

Rio de Janeiro, maio de 1953.

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Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1963, pp. 27-30.

A COMÉDIA DA VIDA LITERÁRIA

A vida literária é, no Brasil, muito mais importante do que a própria

literatura. É este um dos fatores de pobreza de nossas letras, do escasso número de obras de importância e de figuras literárias de primeira plana. A superficialidade é a regra em nossos livros e em nossos homens de letras. Raros os que alcançam um nível de profundidade e de essencialidade. Isso porque nos gastamos, desperdiçamos nossas energias em preocupações bem diversas da produção de verdadeira literatura.

Uma dessas preocupações é a da glória em vida. Já se disse de alguém que teve tanta glória em vida que a esgotou nada lhe sobrando para depois de morto. São os vários processos e táticas de administração da glória que constituem um dos muitos meios de esgotamento dos escritores entre nós. O fenômeno é por demais conhecido: escritores que, em vida, desfrutaram de rumorosa nomeada e domínio sôbre a opinião do público e dos confrades e que dêles hoje ninguém quase desconfia da existência. Gastaram-se na vida literária, atiraram fora nas disputas de rodinhas e nas lutas pelo domínio da opinião tudo o que poderia ter sido empregado na construção de obras sérias. Pela notoridade efêmera queimaram toda a lenha que trouxeram. Mas a notoridade é feminina: com freqüência varia de ânimo e de senhor.

Nada mais divertido do que observar a comédia da vida literária no Brasil. A felicidade é que o público não toma conhecimento dela, senão a literatura já estaria há muito desmoralizada, pois dificilmente saberia ele distinguir literatura de vida literária e verificar que esta não passa de exploração daquela em proveito de meia dúzia de sabidos. Aliás, já é de se atribuir muito do desprestígio de que a literatura é vítima nos últimos tempos nos leitores ao fato de que afinal se vai tomando conhecimento fora dos meios literários, dos processos e artimanhas dos aproveitadores da literatura.

Nesse particular, como em muitos outros para o bem e para o mal, devemos enormemente à França. Não há número de periódico francês, à imagem dos quais são feitos os nossos em sua maioria, que não estampe uma reportagem ou uma entrevista a propósito desse ou daquele aspecto da vida particular ou das intimidades de determinado escritor. A preocupação com a obra é de somenos e descresce dia a dia. Em vez da obra a vida dos autores. Em vez da literatura, o extra-literário. Em lugar da literatura a história literária. E foi isso que Renan quis

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dizer quando afirmou que cada vez mais a história da literatura iria substituindo a leitura das obras. E a crítica foi-se aos poucos transformando em biografia ou interpretação do homem e da época, deixando de lado aquilo que deve ser sua primordial finalidade - a obra, sua análise, interpretação, julgamento.

Que interesse tem para a literatura que o poeta fulano haja completado anos ou tenha ido veranear em Petrópolis e o romancista sicrano em Caxambu. Apenas para ele, para o bom funcionamento de seu fígado, é que o fato tem importância. E para a alegria de seus amigos. A não ser que daí resulte uma obra fundamental que venha enriquecer nosso patrimônio literário. De outro modo, isso tem tanta importância quanto a ida para uma estação de repouso de um fiscal de consumo ou um amanuense, e, no entanto, ninguém disso toma conhecimento nem se anunciam esses acontecimentos. Mas de certos literatos qualquer que seja o seu movimento, lá vem a notícia que os amigos dos suplementos e dos jornais literários não esquecem. Há nomes que aparecem inexoravelmente todos os domingos nos órgãos literários. E às vezes com os retratos. É uma estratégia cansativa de meter pelos olhos a glória de um personagem. É um processo que está intimamente ligado à estrutura da vida literária em que dominam as igrejinhas, as cadeias de felicidade e os fogos cruzados de elogios. Sobretudo, muitas igrejinhas vivem à sombra de alguma árvore frondosa. Quais cogumelos, seus membros necessitam de sua proteção. Por isso, dão-lhes em troca o côro de louvores e de propaganda.

8/3/1953 Nota de 1963 Produtos típicos e exclusivos da vida literária são as famas rápidas e descabidas. As

igrejinhas transformam, da noite para o dia, sem que nada justifique, improvisados comentaristas em críticos famosos, e meros revisores de provas em "mestres" filólogos, só porque os primeiros "promovem" os livros e os últimos colocam certo os acentos e os pronomes nos trabalhos dos membros do grupo.

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Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1963, pp. 127-131. ANTROPOFAGIA DE GERAÇÕES

Quem tem contacto com a mocidade estudantil de nossa terra não pode

deixar de observar a enorme ânsia de aprender e a larga receptividade que denota em relação ao saber. É uma mocidade ávida, sequiosa, intelectualmente disponível, mas buscando aprender com volúpia, para preencher a sua disponibilidade e dirigi-la. Onde quer que haja possibilidade de beber conhecimentos, aí estará ela, buliçosa, mas atenta e vigilante ao que possa beneficiá-la no particular. Veja-se o exemplo dos cursos de letras, em toda a parte, aos quais acorreram às centenas superlotando anfiteatros. E não se diga que é a cata ao diploma, pois desses cursos não tirarão certificados que lhes possam render algo material. É simplesmenteo desejo insopitável de saber que leva os jovens a ouvir tais cursos, no afã de completar a formação que os estudos regulares não proporcionam.

Em verdade, aí está o ponto crucial do assunto, o Brasil tem crescido desproporcionalmente, do ponto de vista material, sobretudo, a que não corresponde, de modo algum, um desenvolvimento intelectual consentâneo e à altura das necessidades de ordem material. A vida intelectual brasileira oferece um atraso, um retardamento de cinqüenta anos em relação ao estado presente da cultura mundial e ao próprio desenvolvimento material do país. Não estávamos ainda adequadamente preparados, do ponto de vista intelectual, para enfrentar a situação de avanço material do país. Por isso devemos responsabilizar a ausência de universidades, com que nos brindou uma colonização estreita e egoística. Não formamos, em consequência, uma mentalidade de nível superior e uma equipe de dirigentes desse tipo, que teria criado no país hábitos de pensamento e ação diferentes dos quais dominam até hoje, inspirados na improvisação, empirismo, desplanejamento, irreflexão.

Tal defeito repercute naturalmente em nosso meio educacional, onde os corpos docentes, na sua generalidade, são constituídos de professores improvisados, sem o devido preparo técnico e sem o gosto da profissão, que exercem como um bico acrescentado às suas atividades normais e mais lucrativas

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ou de mais relêvo social e político. O ensino, entre nós, ainda é atividade marginal, sem espírito profissional e sem dedicação e especialização.

Daí a insatisfação com que reagem aos seus mestres os jovens estudantes brasileiros. É geral o divórcio entre o que exigem os alunos e o que lhes podem oferecer os seus mestres. As novas gerações brasileiras vivem um drama: ansiosas de aprender, falecem-lhes os guias normais. Raramente, entre nós, se dá a formação de uma escola, isto é, um mestre cercado de auxiliares que lhe prolongam e transmitem o pensamento a discípulos que o seguem para cumprir, por sua vez, a missão de alargar a cultura a partir daquele ensinamento. Em nosso meio, não há liderança intelectual. Não há líderes intelectuais, como não os há literários. Aqui é cada um por si, e os outros contra. As nossas figuras intelectuais, literárias ou educacionais, por desencanto ou outra qualquer razão preferem participar social ou politicamente, tornam-se chefes sociais ou políticos, desviando-se e deixando de ser líderes intelectuais, o que acarreta o desbarato ou a perda das gerações. Na língua portuguesa não há mesmo expressões usuais para designar o que os franceses significam por "ainé" e "cadet", palavras tão comuns para exprimir o escalonamento e sucessão das gerações, literárias ou outras. Entre nós, o corrente é a antropofagia das gerações, cada uma sentindo-se obrigada a partir do começo, após destruir ou negar a anterior, conforme o mito enganoso da soberania da geração presente. Mas isso decorre da falência de liderança e guia da geração mais velha. A desilusão com que sai de uma classe um aluno aberto à conquista intelectual só terá como consequência o iconoclastismo e a repulsa.

É de fácil observação nos nossos meios intelectuais, nos diversos centros universitários e colegiais do país, como os alunos se deparam com verdadeiros desertos intelectuais representados pelos seus mestres com raros oásis de exceção. Atrasados, inatuais, sem cultura, sem gosto pelo estudo, sem domínio da bibliografia antiga e corrente da matéria, cépticos, sem élan, meros repetidores de sovados compêndios, incapazes de experimentações e mudanças, empedernidos, fossilizados na repetição anual das mesmas apostilas, exclusivamente preocupados com aumentos de vencimentos ou época de aposentadoria, não podem, de maneira alguma, corresponder às exigências de uma mocidade ávida de saber, inquieta e marcada pelo sentimento de insegurança do futuro. Resultam o divórcio, o conflito, ainda agravados pelo crescimento de número que elevou a população escolar a verdadeira avalanche. Assim, o pequeno contingente de professores não corresponde, nem mesmo numericamente, às necessidades do ensino.

Há que pingar, todavia, uma palavra ao crédito dos professores. Não há dúvida que muitos são verdadeiros heróis, vindos por si, sem que ninguém os houvesse ensinado como ensinar, abrindo caminho na pobreza, sem poder comprar livros, não tendo tempo para estudar porque os dias eram gastos em aulas de ganha-pão e em energias físicas, sem faculdades de educação onde formar as saus técnicas. Merecem todas as honrárias e gratidões. O que não impede que desejemos mudar a situação. O fato de ter sido assim não nos obriga a ficarmos sempre assim, em homenagem ao erro. O conformismo com a tradição errada é a pior desgraça. Tenhamos a coragem de romper com ela para criarmos algo melhor.

31/3/1957.

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Rio de Janeiro, 1968, Livraria Acadêmica, pp. 115-157.

A CRÍTICA LITERÁRIA NO BRASIL

Estudo publicado em Revista Interamericana de Bibliografia , Washington april june64, vol XIV, Nº 2.

I . A década de 1950, na literatura brasileira, pode ser considerada como da crítica literária. É o

momento em que se adquire a consciência exata do papel relevante da crítica em meio à criação literária e aos gêneros de literatura imaginativa, função da disciplina do espírito literário. Sem ser um gênero literário, mas uma atividade reflexiva de análise e julgamento da literatura, a crítica se aparenta com a filosofia e a ciência, embora não seja qualquer delas. É uma atividade autônoma, obediente a normas e critérios próprios do funcionamento, e detentora de uma posição específica no quadro da literatura.

O reconhecimento de tudo isso pode-se afirmar que se fixou naquela década, sob forma tão aguda e profunda que justifica para ela a denominação de a década crítica , pela descoberta de sua autonomia e cunho técnico.

Essa época é uma réplica a outra, de grande importância na história brasileira, a iniciada em 1870 com a geração naturalista, a cujo trabalhos devem os estudos literários no Brasil a maioria dos padrões predominantes a partir de então e só postos em cheque nos últimos quinze anos. A era da crítica corresponde à terceira fase do modernismo brasileiro. Como se sabe, este movimento, iniciado em 1922 com a Semana de Arte Moderna, em seguida a um período precursor e de preparação, compreende três fases : a primeira, de 1922 a 1930, fase heróica de ruptura, de revolução, de demolição do passado, de polêmica e pesquisa estética, de liberdade criadora, com predomínio da poesia (Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Mário de Andrade, Menotti del Piccchia, etc.) ; a segunda, de 1930 a1945, recolhe os resultados da primeira, substituindo a destruição pela intenção construtiva : a poesia prossegue a tarefa de purificação de meios incluindo novas preocupações de ordem política e social (Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Augusto Frederico Schmidt, Vinícius de Morais, etc.), mas foi na prosa de ficção que ela mais se destacou, criando um período de extraordinária floração e esplendor, a partir de 1928, com a publicação de A bagaceira, de José Américo de Almeida, e Macunaíma, de Mário de Andrade, e com a grande geração de ficcionistas - José Lins do Rêgo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, Cornélio Pena, Otávio de Faria, José Geraldo Vieira, Lúcio Cardoso, Érico Veríssimo, João Alphonsus, etc.; a terceira fase, iniciada por volta de 1945, assiste a um esforço de apuramento formal e de recuperação disciplinar, abrindo novas experiências no plano da linguagem, tanto na poesia quanto na ficção (Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Lêdo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, etc.), mas é sobretudo no campo da crítica de cunho estético e a superação do impressionismo jornalístico, o que leva a designá-la de fase estética do modernismo.

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Ao atingir, assim, os últimos anos de 50, a crítica brasileira encontra-se dividida em três grupos. De um lado, os reacionários e saudosistas, que efetuavam o seu trabalho e construíram fama sobre um tipo de crítica opiniática, e impressionista, de comentário irresponsável e superficial de divagação subjetiva, sem cânones e rigor metodológico, sob a forma de militância dos rodapés de jornais, e que não se conformam com perder a situação ; o grupo conservador que se realiza dentro dos ramos tradicionais da biografia crítica, da crítica sociológica e psicológica ; por último, os que buscam um novo rumo para a atividade crítica, na base de um rigorismo conceitual e metodológico, de um conceito da autonomia do fenômeno literário e da possibilidade da sua abordagem por uma crítica estética visando mais aos seus elementos intrínsecos, estruturais, isto é, à obra em si mesma, e não às circunstâncias externas que a condicionaram . A geração empenha neste último movimento está levando à cabo uma completa renovação dos estudos literários e uma revisão crítica da literatura brasileira à luz de novos critérios de caráter estético. Graças a ela, o problema da crítica atinge, neste momento, uma fase, de auto-consciência, de domínio metodológico e técnico, de repúdio pelo auditatismo e a improvisação, dando preferência à formação universitária.

Esse movimento de renovação da crítica e da revisão estética da literatura está vinculado às tendências universais que caracterizam a atual fase da história crítica, na qual se podem citar o grupo do formalismo ou estruturalismo eslavo, o grupo espanhol de Dámaso Alonso, a estilística teuto-suíça, o grupo italiano da autonomia estética, o new creticism anglo-americano, etc.

II A crítica brasileira, durante os quatro séculos de evolução literária, enquadra-se em uma ou outra

das categorias em que se divide a história da crítica : didática, histórica, sociológica, psicológica, biográfica, filologico-gramatical, impressionista, estética.

1) As origens da literatura, no Brasil, nas fases barroca e neoclássica anteriores ao advento do romantismo, conheciam um tipo de crítica rudimentar , praticada sobretudo nas academias e consiste, de acordo com o dogmatismo neoclássico de origem horaciana , no estabelecimento de regras ou preceitos através dos tratados de poética e retórica tão em voga entre os séculos XVI e XVII. A literatura servia de instrumento ou veículo para a divulgação de mensagens, especialmente religiosas, e éticas . Era o que faziam os jesuítas, como exemplifica a obra de Anchieta : usar a literatura a fim de conquistar o espírito rude dos selvagens para as verdades do catecismo cristão. Assim a crítica funcionava sobretudo através da aprendizagem retórica e na mente de quem a exercia um está sempre o código clássico absorvido nos tratados de perceptística. Essa atitude reproduz-se nos poetas e prosadores mais ou menos didáticos que encheram as academias. Em suas obras de poesia descritiva, ecomiástica, hagiológica, jaculatória, comemorativa e em prosa historiográfica ou de narração de fatos da expansão e descobrimento, relatos de naufrágios, aventuras e façanhas de viagens , toda essa literatura produzida durante a época colonial, sob o signo do barroquismo, e, depois, do neoclassicismo, está inspirada, quanto ao aspecto técnico, em princípios críticos oriundos da perspectiva horaciana. De conformidade com este espírito, surgiram os primeiros críticos e historiadores literários brasileiros que atuaram na primeira metade do século XIX : Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), Odorico Mendes (1799-1864), João Francisco Lisboa (1812-1863), Gonçalves de Magalhães (1811-1822), Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891), Sotero dos Reis (1800-1871), o Cônego Fernandes Pinheiro (1826-1878), sendo este último realmente o iniciador da historiografia literária brasileira . É a “antológica” da crítica e da história literária , em a que as obras eram antologias acompanhadas de biografias.

2) O romantismo rompeu esta tradição, como já havia feito, em parte, a literatura arcádica ao introduzir um sopro de lirismo pessoal na poesia, embora nos demais permanecesse fiel aos cânones neoclássicos. Coube, porém, ao romantismo, nos meados do século XIX, dirigira a crítica e as idéias literárias noutro sentido. A famosa polêmica sustentada em 1856 por José de Alencar (1829-1877) com os epígonos de um neoclassicismo retardado e que se firmava no poema épico de Gonçalves de Magalhães, a Confederação dos Tamoios, é o marco de uma nova era na história da crítica brasileira, situando-se José de Alencar no ponto crucial dessa nova direção.

A grande idéia que entra em cena é a da “nacionalidade literária”. A literatura não deveria realizar-se pelos modelos absolutos das formas tradicionais. Deveria condicionar-se ao meio onde se produzia, recolhendo aos usos e costumes, as tradições populares , as peculiaridades idiomáticas, os temas e os tipos que constituem a cultura do povo. Tinha que fazer-se “nacional”, buscando esse “Instinto de Nacionalidade” , mais tarde (1873) definido por Machado de Assis (1839-1908) em um famoso ensaio, que é dos mais importantes documentos da teoria crítica brasileira.

3) Essa doutrina resultou em um verdadeiro manifesto da independência literária, claro que, inicialmente, dirigido contra o predomínio luso. Recém-libertado do jugo português (1822) , o país tratava de tornar conscientes os motivos dessa autonomia também no terreno cultural, de modo que a reação anti-lusa

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era o passo imediato necessário no sentido dessa tomada de consciência . Havia sido tão forte e profunda a subordinação a Portugal se justifica a violência da rebelião, abrindo nossos portos a outras influências intelectuais , especialmente a francesa. De qualquer modo , a literatura se lança à busca de um caráter nacional. Voltou-se a atenção para o passado colonial na pesquisa do que poderia constituir os traços definidores desse caráter . Essa pesquisa do que seria a literatura brasileira foi o corolário do grande movimento de indagação histórica, de valorização do passado nacional, uma das importantes atividades desencadeadas pelo romantismo, manifestada na moda dos estudos de história, etnologia e lingüística, e corporifica particularmente na fundação do Instituto Histórico e Geográfico (1838 ). Essa onda historicista contaminou os estudos literários, trazendo ademais a identificação entre historiadores e críticos, o que assinala os albores da historiografia literária brasileira com Francisco A . Varnhagen (1816-1878) , exemplo típico dessa preocupação dos historiadores com o fenômeno literário. Desde então, os estudos críticos de história literária no Brasil se realizariam, segundo uma grande família de críticos brasileiros, como uma dependência da história geral, política e social, utilizando o método histórico, e concebida a literatura como um reflexo das atividades humanas gerais, um fenômeno histórico. A historiografia e a crítica literárias, à luz desse conceito, que é o de um grande setor do pensamento brasileiro até nossos dias, foram vistas como parte da história geral, impregnadas, portanto, de historicismo. Ainda são de atualidade os estudos críticos e historiográficos que tentam explicar as obras literárias através do conhecimento do ambiente histórico de que emergiram e em função do qual surgiram.

Manifestações desse ideal de nacionalização da literatura francesa foram os movimentos “indianista” ( romântico ) e os que o seguiram - “sertanismo” , “caboclismo” , literatura folclórica e outras formas de brasileirismo literário, que desaguaram na moderna literatura regionalista. Em todos predomina a preocupação por encontrar o tipo e o tema brasileiros que melhor capitalizassem ou realizassem esse nacionalismo literário.

4) A valorização da “cor local” e do pitoresco , resultado do romantismo, iria encontrar na ideologia realista a substância doutrinária que frutificaria em expressões de alta qualidade crítica. O princípio relativista, de origem romântica, segundo o qual o homem varia de conformidade com os tempos e lugares, sua verdade residindo na diversidade exterior e interior de costumes, sentimentos, línguas que o tornam típico, teria a confirmação na filosofia do realismo, mormente no postulado positivista do ambientalismo e na famosa teoria determinista de Taine, que coloca a origem da literatura nos três fatores do meio, raça e momento. As teorias de Comte e Taine, o conceito historiográfico de Buckle, ao lado do monismo de Haeckel e do evolucionismo de Darwin e Spencer, formaram o substrato doutrinário da época realista e naturalista, aprofundando a imersão na massa nacional, na ânsia do característico, típico, peculiar, local, que dariam um caráter brasileiro à literatura. A ficção entrou por este caminho, e a crítica ofereceu sua fundamentação teórica, criando uma corrente crítica que se pode denominar sociológica, e cujo método consiste na interpretação da gênese ( daí a crítica genética) da literatura nos fatos sociais, de acordo com o que sugeriram Taine e seus continuadores. É essa corrente uma das mais importantes no Brasil pelo número de seus representantes, pelo valor de muitos deles e pelo prolongado tempo de permanência na cena literária desde a geração de 1870 em diante.

Tobias Barreto (1839-1889), Silvio Romero (1851-1914), Araripe Júnior (1848-1911), Capistrano de Abreu (1853-1927), Rocha Lima(1855-1878), Clóvis Beviláqua (1859-1944) , Valentim Magalhães (1850-1913), Oliveira Lima (1865-1928) , Artur Orlando (1858-1916) , são alguns dos mais notáveis entre, talvez, dezenas de críticos literários que se destacaram segundo os cânones do positivismo naturalista e historicista. A mesma geração pertenceu José Veríssimo (1857-1916), o qual não escapou ao espírito do seu tempo, posto que intentasse reagir contra as doutrinas sustentadas por seu rival Silvio Romero, em nome de um indefinido intelectualismo, em que se apoiou possivelmente por notória incapacidade filosófica e deficiências culturais.

O fato é que a tradição dos estudos literários que representa a monumental obra de Silvio Romero, a História da literatura brasileira (1888) , baseada na interpretação sociológica da literatura , isto é, na crítica pelo esclarecimento de sua gênese ou dos fatores sociais que lhe deram nascimento, teve imensa fortuna no Brasil, e é, ainda hoje grande o número de críticos a ela filiados. A esse grupo pertence o sociólogo Gilberto Freyre (1900), que em trabalhos literários aplica critérios extraídos das ciências sociais e biológicas : Perfil de Euclides e outros perfis (1944) , José de Alencar (1952) , Vida, forma e cor (1962) ; o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902) , também inspirado , embora de maneira menos sistemática e mais eclética em pressupostos sociológicos, historicistas e culturais ; diversos críticos de orientação marxista, entre os quais se destacam Astrogildo Pereira (1890), em Interpretações (1944) , e Nelson Werneck Sodré (1911) , em Histórias da literatura brasileira (1938, 4ª edição ., 1960 ) para os quais o valor literário reside na eficácia com que o escritor soube interpretar os ideais de sua classe e refletir o seu ambiente histórico, social e econômico ; e o crítico Antônio Cândido (1918) , sobretudo na sua obra

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Formação da literatura Brasileira (1959) , com idêntica tendência ao enquadramento histórico - social como critério crítico.

5) Ao lado da corrente sociológica tem sido amplamente cultivada a interpretação psicológica. Em vez da ligação com o fator histórico - social, trata de interpretar o fenômeno literário mediante a análise do autor, sua alma, caráter, temperamento, e de verificar como os traços de sua psique terão influído na gêneses de sua obra. Muito mais divulgada, porém, é a corrente, que a esta se vincula, da biografia crítica ou crítica biografia, quiçá a mais popular no Brasil, graças à influência de Sainte - Beuve, só comparável a de Taine. Não somente as peculiaridades do autor servem aqui de veículo de acesso à compreensão da obra literária, mas também toda a sua vida através de um levantamento de sua biografia, nos menores detalhes, e do ambiente histórico em que viveu. Grande é no Brasil a difusão da crítica biográfico - psicológica, havendo aparecido, nos seus moldes, alguns livros de mérito que superam a pura biografia. Podem citar-se neste caso as obras de Lúcia Miguel Pereira, Machado de Assis (1936) e A vida de Gonçalves Dias (1943) ; de Hermes Lima , Tobias Barreto, (1943) ; de Homero Pires, Junqueira Freire (1929) ; Augusto Meyer, Machado de Assis (1938) ; de Sílvio Rabelo, Farias Brito (1941), Itinerário de Sílvio Romero (1944) e Euclides da Cunha (1940) e Monteiro Lobato (1955) ; de Manuel Bandeira, Gonçalves Dias (1952) ; de Pedro Calmon, A vida de Castro Alves (1956); de Luís Viana Filho, A vida de Rui Barbosa (1941) A vida de Joaquim Nabuco (1952), A vida de Rio Branco (1959); de Raimundo Magalhães Jr., Artur Azevedo e sua época (1955), Machado de Assis desconhecido (1957). Ao redor de Machado de Assis (1958) e outros o sobre Cruz e Souza e Álvares de Azevedo (1961-1962) ; de Josué Montelo, Gonçalves Dias (1942) e O Presidente Machado de Assis (1961) ; de Ivan Lins, Aspectos do Padre Antônio Vieira (1958) ; de Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto (1952) ; de Waldir Ribeiro do Val, Vida e obra de Raimundo Correia (1960), de Sousa Andrade, Histõria e interpretação de Os Sertões (1960); de H. Nóbrega, Augusto dos Anjos e sua época (1960); de Nilo Bruzzi , Casimiro de Abreu (1957) ; de Elói Pontes, A vida inquieta de Raul Pompéia (1935) , A vida de dramática de Euclides da Cunha (1938), A vida exuberante de Olavo Bilac (1944). A vida e a obra de Machado de Assis têm sido objeto de numerosos estudos, seja de um ponto de vista puramente erudito, seja de interpretação crítico-biográfico ou psicológica, seja ainda de análise crítica ,estilística, comparatista. Citem-se , além dos já referidos acima: Peregrino Júnior, Doença e constituição de Machado de Assis (1938); Astrojildo Pereira, Machado de Assis (1959); Eugênio Gomes, Machado de Assis (1958); Miécimo Tati , O mundo de Machado de Assis (1961) ; Agripino Grieco, Machado de Assis (1959); Wilton Cardoso, Tempo e memória de Machado de Assis (1958) ; Fonseca Pimentel, Machado de Assis e outros estudos (1962) ; de Gondim da Fonseca, Machado de Assis e o hipopótamo (1960); Matoso Câmara, Ensaios machadianos (1961) ; Otávio Brandão , O niilista Machado de Assis (1958) ; Afrânio Coutinho, A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios (1959) e Machado de Assis na literatura brasileira (1960) ; Elói Pontes , A vida contraditória de Machado de Assis (1939). A vida e a obra de Jorge Amado foram objeto de estudo de Miécimo Tati (1961) e de um simpósio - Jorge Amado: 30 anos de literatura (1961).

6) Herdeiros do neoclassicismo retórico são críticos literários que reduzem sua tarefa a uma simples polícia gramatical, mantendo-se no plano verbal puro, incapazes de compreender o processo através do qual a palavra se torna literária em uma obra de arte, isto é, o processo através do qual a palavra adquire sentido estético literário. São também numerosos os cultores de uma crítica que se pode , embora impropriamente, chamar gramatical ou filológica. Para eles, os escritores se classificam em bons e maus, que sabem ou não sabem escrever , na medida do uso que fazem do idioma de acordo com os padrões gramaticais, e estes críticos têm sido entre nós um obstáculo não somente contra o reconhecimento de uma língua nacional, senão também contra o desenvolvimento dos estudos de ciência de linguagem e da estilística, pela subordinação aos cânones de uma filologia historicista e normativa que tudo vincula às regras da língua tradicional. O crítico Osório Duque Estrada (1870-1972) foi o protótipo desses críticas gramaticais, atualmente um tanto desacreditados pela reação do modernismo em favor da linguagem coloquial brasileira e contra a gramatiquice.

7) O exercício da crítica literária no Brasil tem sido, em sua maior parte, feito nos jornais, sob forma militante, condicionado à produção literária, que acompanha e julga. É verdade que também se realizou em livros e estudos em revistas, já com caráter mais profundo. Não foi, todavia, esta uma forma corrente, e o uso estabeleceu para ela a denominação de “ensaio”.

Assim , praticada na imprensa diária, a crítica não podia deixar de sofrer a influência do espírito ligeiro e superficial do jornalismo, o que lhe comunicou um caráter circunstancial, aproximando-a do tipo do “review” dos ingleses e norte-americanos.

Essa modalidade da crítica aplicada consiste em fornecer uma “impressão” acerca da obra do momento. Daí que seja comumente como “impressionismo”, ainda que não consiga atingir o nível do verdadeiro impressionismo de Anatole France, Jules Lamaitre , Walter Pater, etc. Numerosos têm sido os críticos que se empenharam nesta atividade, alguns prestigiando-a graças à singularidade de suas

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qualidade pessoais, especialmente o bom gosto e a sensibilidade literária. Citem-se : José Veríssimo (1857-1916) , João Ribeiro (1860-1934), Medeiros de Albuquerque (11867-1934), João do Rio(1880-1921), Agripino Grieco (1888), Humberto de Campos (1886-1934), Ronald de Carvalho (1893-1935) , Tristão da Cunha (1878-1942), Afonso A de Melo Franco(1905), Múcio Leão(1898), Elói Prates (1889), Sud Mennucci (1892-1948) , Álvaro Lins(1912), Wilson Martins (1920), Temístocles Linhares (1905), Carlos D. de Morais(1902), Moisés Velinho (1901), Odilo Costa Filho(1914) , Guilhermino César(1908), Cândido Mota Filho(1897), Ségio Millet(1898), Oscar Mendes (1902), Luís Delgado(1906), Carlos Chiachio(1884-1947), Guilherme Figueiredo(1915), Rosário Fusco(1910), José Lins do Rego(1901-1957), Prudente de Morais Neto(1904), Antônio Cândido(1918), Alcântara Silveira(1910), Roberto Alvim Correia (1898), Antonio Olinto(1919), Valdemar Cavalcanti(1912), Brito Broca (1907-1961), Olívio Montenegro(1896-1961), Haroldo Bruno, Joel Pontes (1926), etc. Na divulgação literária empenha-se Otto Maria Carpeux (1900).

8) De modo geral, pode afirmar-se que o estudo histórico e crítico da literatura no Brasil, obedeceu, na sua maior parte, a uma orientação historicista, psicológica, prufundamente marcada pelas teorias deterministas da Segunda metade do século XIX. Essa orientação resulta de uma concepção da literatura que a considera um produto de forças históricas e sociais externas a ela e, como tal, um documento de uma época, uma sociedade, uma raça ou uma grande individualidade, em vez de a encarar como um monumento estético. Nisso teve papel preponderante a influência de Silvio Romero, crítico e exageta do passado literário, além de propugnador das “idéias modernas” que marcou profundamente os estudos literários no Brasil a partir de 1870 sob o signo do materialismo do naturalismo e do positivismo, divulgados sob a rubrica da “Escola de Recife” . O cânone historiográfico e crítico, desde então considerado como verdadeira ortodoxia , consistia em investigar as “raízes” sociais e biológicas das quais nascia a literatura , critério seguidos muito tempo por críticos e historiadores literários. As obras de história literária pós-romerianas seguiram os seus princípios : José Veríssimo, Ronald de Carvalho, Artur Mota, Djacir Meneses, Pinto Ferreira, Antônio Soares Amora e outros. O livro de Brito Broca, A vida literária no Brasil – 1900 (1960) é uma crônica da vida literária da belle-époque no Brasil.

Uma reação contra a doutrina de Silvio Romero estava no ar desde muito tempo. Já alguns críticos inspirados na doutrina simbolista a havia iniciado. Foi o caso de Nestor Victor (1868-1932) , e sobretudo Henrique Abílio (1893-1932) , autor de Crítica pura (1938) ; de Andrade Muricy (1895) , Tasso da Silveira (1895) e Barreto Filho (1908) este principalmente na sua Introdução a Machado de Assis (1947) , na qual reúne análise psicológica e a interpretação estética do fato literário. Mário de Andrade (1893-1945) , defendendo os valores estéticos da literatura e mostrando preocupação pelo seu aspecto técnico, coloca-se como um dos precursores da reação : Aspectos da literatura brasileira (1943) e O empalhador de passarinho (1946). Tristão de Ataíde , o grande crítico da época modernista, lançou uma semente fecunda a revindicar, na obra Afonso Arinos (1922), um “expressionismo” crítico, como reação contra o anterior impressionismo, e propondo uma crítica em que predominasse o “objeto”, isto é, a obra em lugar do “sujeito”, o crítico, com suas impressões. Na série de seus Estudos, resultado de uma crítica militante, também demonstrou-se sempre atento aos elementos propriamente literários da obra. Igualmente, Eugênio Gomes (1897) , em diversos ensaios de literatura comparada e estudos críticos aplicados a autores brasileiros, em Espelho contra espelho (1949) , Prata da casa (1953), Visões e revisões (1958), O romancista e o ventríloquo (1952), Aspectos do romance brasileiro (1958) , revelou-se perfeitamente na direção da crítica estética.

Porém a reação deveria aguardar ainda alguns anos para frutificar de modo mais generalizado e decisivo. Contra a teoria de que a literatura não passa de um epifenômeno da vida política e social e de que a crítica consistia em sua interpretação genética ou seja de suas raízes e sues elementos extraliterários , desencadeou-se um movimento a favor da compreensão da autonomia do fenômeno literário e de uma crítica estética fundada na análise da obra em si mesma e de seus elementos intrínsecos.

III Essa reação foi o objetivo de Afranio Coutinho, na campanha que, a partir de 1948, regressando

dos Estados Unidos, empreendeu em termos positivos, submetendo a processo a velha crítica brasileira, na seção intitulada “Correntes Cruzadas” que instalou no Suplemento literário do Diário de Notícias, jornal do Rio de Janeiro, e , depois, em livros como Correntes Cruzadas (1953), Por uma crítica estética (1953), Da crítica e da nova crítica (1957), Introdução à literatura no Brasil (1959) , bem como na história literária que planejou e dirigiu, A literatura no Brasil (1955-1959) , 4 volumes , na qual aplicou o critério estético à análise das obras e à periodização estilística .

A campanha que desencadeou tendo em mira a renovação dos métodos e processos da crítica literária, bem como por uma reforma dos costumes literários, de acordo com a mais pura ética do homem

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de letras, provocou naturalmente reações e controvérsias, as quais evidenciaram a grandeza e a atualidade do problema que procurava enfrentar.

Sobre os resultados e espírito desse trabalho, há que citar dois testemunhos. O primeiro é de Alceu Amoroso de Lima (Tristão de Ataíde ):

A figura proeminente dessa fase crítica mais recente é o sr. Afrânio Coutinho, que, estreando em 1935 , durante a Segunda fase do modernismo , deu nos em 1940 o seu estudo sobre A filosofia de Machado de Assis que chamou a atenção para o seu nome e com os prefácios aos volumes já publicados da obra coletiva, por ele dirigida – A literatura no Brasil , na qual colaboraram cerca de 50 escritores, marcou um turning point em nossa crítica moderna, (...) Com o neomodernismo e a campanha de renovação crítica empreendida por Afranio Coutinho e de tanta repercussão nas novas gerações, emergiu o estudo do texto, a expressão verbal, a forma, como sendo o objeto capital da função crítica . Com isso deslocou-se de novo a crítica no sentido do objeto (...) . Daí o nome de crítica formalista que podemos dar esse tipo mais recente da crítica literária entre nós, que marca uma tendência decidida no sentido do abandono do amadorismo crítico, por uma prática profissional, mais cuidada, dessa atividade (...) . Ao lado do nome de Afrânio Coutinho e da obra de que a data, afinal, o início dessa nova perspectiva em nossa crítica, devemos mencionar alguns nomes que começam a revelar-se nesse novo tipo de crítica que inicia uma era nova , no balanço de nossa crítica literária ( “A crítica literária no Brasil “ in Decimalia, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1958, pp. 15-17) . O segundo testemunho é de Eduardo Portela : Por isto se fez necessário o estabelecimento imediato de uma nova ordem. Todos, os lúcidos, os que se marginalizaram, reconheciam a falência do antigo sistema. O ambiente se tornou propício à instauração do novo regime crítico. Apoderava-se do país uma mentalidade nova, a do conhecimento aparelhado, da conclusão científica. A fase do amadorismo estava definitivamente sepultada. O espírito da Universidade começva a comandar os estudos literários no Brasil. Afranio Coutinho foi o principal servidor dessa causa : a de reformulação crítica, da renovação metodológica . Ele mostrou, com intransigência e às vezes até com violência, todo um sistema de idéias novas, que se opunha radicalmente àquela entidade inconsequente e amorfa que era a crítica nas mãos dos nossos críticos de então. E ao mesmo tempo em que lutava para destruir o cômodamente estabelecido, a mistificação institucionalizada, o que parecia definitiva e inarredávelmante instalado no país, Afrânio Coutinho afrontava e erguia complexa tábua de valores : a princípio combatida, dificultada, e logo em seguida confirmada, aplaudida. É verdade que ele se inscrevia num movimento de âmbito universal pela renovação dos processos e métodos de pesquisa e investigação literária .E não tardou para que essa consciência e esse ímpeto renovador conquistassem toda a nossa motivação crítica , transformando por completo o nosso modo de operar criticamente e repercutindo, de maneira particular e positiva, em nossa própria concepção do fenômeno literário. Mas eu não penso que a crítica de hoje seja mais eficaz que a de ontem porque os críticos de hoje são mais capazes que os de ontem. Não. Acho apenas que, mais do que eles, temos o tempo a nosso favor. Esse momento a que me referia foi intensamente reflexivo. Às vezes exageradamente reflexivo e doutrinador. O que deu origem a irônicos comentários, segundo os quais a crítica desse período nada mais era do que crítica da crítica. Não tinham, evidentemente, razão esses implacáveis observadores, na sua maioria sobreviventes a velha ordem que não perdoavam o esfacelamento da sua casa de vidro. Não eram capazes de compreender que uma tomada de consciência como a que se operou em nossa literatura teria forçosamente de se fazer acompanhar do necessário e conveniente aparato teórico. E tanto foi oportuno esse comportamento que nos encaminho definitivamente para um exercício superior da atividade crítica. Para a crítica que venho chamando totalizante, porque interessada em compreender a obra literária na sua totalidade. Crítica informada por uma visão totalizadora e hierárquica do fato literário. Voltada para uma razão interna da obra de arte, mas lúcida de que a obra não surge no ar. Não existe abstratamente. Tem por detrás de si um vasto repertório de condicionamentos (“Crítica literária : brasileira e totalizante “, in Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, ano I , Nº 1, setembro 1962, pp. 67-69 ).

Em que consistiu o conjunto de teorias postas em circulação nessa fase ? Eis algumas das idéias

fundamentais que integram o arcabouço crítico do movimento renovador : 1) Necessidade da criação de uma consciência crítica para a literatura brasileira, a fim de corrigir a

atitude acrítica e empírica na criação e no exercício da leitura ; 2) Valorização do estudo superior e sistemático de letras nas Faculdades de Filosofia, instrumento

dessa criação da consciência crítica; 3) Reconsideração dos problemas técnicos da poesia, ficção e drama, graças ao mesmo estudo

superior, e, ao mesmo tempo, criação do espírito profissional e de especialização na crítica; 4) Defesa da perspectiva e abordagem estético-literária na apresentação crítica, contra o

predomínio do método histórico, embora sem o abandono das contribuições históricas, mas colocando-as no seu lugar de subsídio, quando úteis à compreensão da obra ;

5) Valorização da concepção estética da crítica , para a qual o que importa, sobretudo, é a obra, o texto, e na análise do texto – de poesia ou prosa- criar métodos que visem a penetra-lhe até o núcleo

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intrínseco, ou essência estética da obra de arte literária, métodos estes intrínsecos ou egocêntricos em oposição aos extrínsecos ;

6) Estabelecimento de critério críticos de cunho objetivo, “científicos”, isto é, critérios que absorvem cada vez mais o espírito científico, introduzindo em seus domínios as revoluções metodológica e científica que lograram outras disciplinas, e o rigorosismo metodológico característico do espírito científico e das disciplinas que seguem o raciocínio lógico-formal. Mas sem recorrer aos métodos das várias ciências, e sim procurando desenvolver métodos peculiares ao objeto de estudo da crítica literária ( o fato literário ) , ou métodos literários, “poéticos”, estáticos;

7) Relegação para segundo plano da preocupação biográfica em crítica ; o mesmo em relação aos fatores ambientais, históricos, sociológicos, econômicos, supervalorizados pelo determinismo naturalista ;

8) Revisão dos conceitos historiográficos, à luz desses princípios, com a criação de nova teoria historiográfica para a literatura, que ponha em relevo o fenômeno literário em sua autonomia, e crie um sistema de periodização de natureza estética e pelos estilos individuais e de época.

Eis os principais pontos, centralizados por um pensamento diretor ou princípio de ordem, o de que à crítica compete antes de dirigir a mirada para a obra em si e analisá-la em seus elementos intrínsecos, precisamente os que lhe comunicam especificidade artística. Essa é a crítica intrínseca, ergocêntrica, ,operocéntrica, verdadeiramente estática, litarária ou “poética”, em oposição à crítica extrínseca, historicista, sociológica do último século. Era mister quebrar o monopólio da crítica sociológica no Brasil, sem negar de todo a validade dos diversos recursos de interpretação e análise crítica que ela fornecia. O problema é, sobretudo, de ênfase nos valores estéticos, a partir do princípio de que um fato estético-literário exige, como meio mais adequado de análise, um método estático-literário, inspirado em teoria estético-litarária. A primazia há que ser dada às técnicas criadas de conformidade com a natureza do fenômeno a estudar, subordinando-se a elas todas as outras que, estranhas embora, lhes possam ser úteis. Crítica literária, sem dúvida, é aquela que utilizar os métodos literários. Ela porfia em desenvolver seus métodos próprios, o que a elevará à categoria de disciplina autônoma. E esses métodos têm caráter científico.

IV O movimento da “nova crítica”, como ficou designado esse esforço por encontrar novos métodos e

uma nova atitude para a crítica, na base do rigor, científico e da análise da obra literária em si mesma, isto é, no seu valor estético intrínseco, tornou-se o mais importante na literatura brasileira no último decênio e continua dando os seus frutos.

Pode-se, primeiramente, assinalar afirmação, em conseqüência, de uma mentalidade coletiva entre as novas gerações de estudiosos da literatura, inteiramente infensa à concepção anterior que limitava a crítica a ser a expressão da resposta emocional do crítico àquilo que era considerado, por sua vez, à luz de uma filosofia romântica, a expressão da personalidade do autor, isto é, a obra de arte. Essa mentalidade nova cresceu e se consolidou sob a forma de uma consciência grupal, de um espírito coletivo. Foi o que se verificou precisamente com a realização do Primeiro Congresso de Crítica e História Literária, em 1960, na cidade de Recife, Pernambucano. O conclave culminou toda uma evolução recente no sentido de pôr termo à velha atitude, dominada pelos interesses personalistas, as rivalidades pessoais mesquinhas e os falsos pressupostos que sacrificavam a objetividade e impessoalidade, o desinteresse dos estudos literários entre nós. O Congresso evidenciou a criação de uma verdadeira mentalidade de scholarship, para a qual o que importa são os problemas da literatura e não os do crítico, e para a qual os problemas da literatura devem ser resolvidos ou debatidos com a humildade da verdadeira ciência, na base da cooperação, da compreensão e do respeito pelo que os outros fazem ou podem fazer, pelo que os outros estudiosos estão realizando no mesmo campo a merecer a nossa atenção e conhecimento. Assim, o Congresso do Recife, além do seu aspecto intrínseco no que concerne à contribuição intelectual e técnica, teve um significado muito mais amplo, denotando um amadurecimento de nossa consciência crítica e uma atitude de seriedade em relação aos estudos literários.

Foi, portanto, 1960 um ano crucial no que tange à história da crítica, pela realização desse acontecimento fundamental. A importância da reunião foi reconhecida por Alceu Amoroso de Lima, ao enviar uma mensagem ao Congresso, alto e nobre documento em que define sua posição na crítica brasileira, posição primacial pela dimensão de seriedade, elevação e dignidade que emprestou ao exercício da crítica, afastando-a em definitivo da palhaçada e da gramatiquice. Ligando significativamente a cátedra e a imprensa, numa atividade de mais de quarenta anos, sua personalidade respeitável de decano é também a maior figura de nossa crítica moderna, o que é geralmente reconhecido através do preço e admiração que a cercam.

De qualquer modo, o Congresso marcou o fim da era do individualismo feroz, do esforço puramente individual, do trabalho no isolamento dos gabinetes fechados, para dar nascimento ao espírito de equipe e

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de colaboração científica em que uns auxiliam outros, cooperam e permutam experiências e indicações a fim de que os resultados sejam mais rapidamente e melhor atingidos. Essa modificação de mentalidade é um produto da educação universitária que as Faculdades de Filosofia, com o ensino de letras, vêm introduzindo no Brasil de vinte anos a essa parte. O Congresso ratificou-a.

E ratificou-a pelo próprio lugar em que se realizou a Universidade de Recife, sob cujo patrocínio se deu o conclave. A literatura no Brasil sempre foi produzida à custa do amadorismo. Predominavam o autodidatismo, a ausência de estudo sistemático, de método e disciplina, a improvisação, a facilidade e superficialidade jornalística e opiniática. Em crítica, era sobretudo funesta essa falta de estudo sistematizado, sendo como é ela uma atividade reflexiva.

O Congresso do Recife veio dar um passo decisivo para libertar a literatura dessa mentalidade amadorista, ao colocar-se sob a égide da Universidade. Já a criação das Faculdades de Filosofia, em 1939, havia sido o fato novo a que se deveu a redireção e reorientação da vida literária brasileira, pois, antes, era da mocidade estudantil das Faculdades de Direito que se recrutavam as vanguardas literárias e se constituíam os quadros de homens de letras. Embora com pouco tempo de vida, já é possível, todavia avaliar a contribuição que vêm dando as Faculdades de Filosofia, as quais só tendem a melhorar em influência benéfica à medida que se vai aperfeiçoando o seu funcionamento e sua qualidade de centros de ensino e pesquisa.

Surgindo na linha da nova consciência universitária em evolução o Congresso do Recife, realizado no seio da Universidade, ao agasalho da Faculdade de Filosofia, deu prova de que o homem de letras brasileiro, mais especificamente o crítico, o erudito, o historiador literário, passaram a pensar em termos universitários no que respeita ao aprendizado de letras e à crítica e interpretação do fenômeno literário. É uma nova mentalidade que surge e se consolida, impulsionada pela instituição universitária, e a ela está preso todo o futuro das letras pátrias. Ligando-se à Universidade, o Congresso de Recife colocou-se na senda que as Faculdades de Filosofia abriram para a literatura. Aceitou a idéia nova, que se tornou fato consumado. Enlaçou definitivamente Literatura e Universidade. E iniciou, destarte, a solução do problema da educação da cultura literária.

Ficou também evidenciada no Congresso a independência da atividade crítica, isto é, a noção de que a crítica literária deve ser, antes e acima de tudo, literária, uma atividade autônoma, com individualidade própria, não subsidiária de outras atividades intelectuais, como era hábito corrente entre nós. Cada vez se fará mais nítida essa distinção : o crítico literário pode ser somente isso, e há uma lata dignidade na sua função, sem que haja necessidade de ser também sociólogo, historiador, político, jornalista, poeta ou romancista, para ter lugar na república das letras. E como tal ele pode Ter posição de relevo, tanto quanto a do romancista ou poeta. Não precisará dispensar-se por outras atividades, nem outros assuntos, desviando-se ou perdendo-se no caminho ; tampouco será o seu trabalho menor em meio aos demais, pois ele tem uma função tão alta quanto qualquer outro, contanto que saiba manter-se num plano de elevação, dignidade e fidelidade ao ofício. Saiba ele , pois, defender-se e defender sua autonomia a posição, em relação aos demais assuntos, sem subordinação a qualquer deles.

Para conseguir tal objetivo, faz-se mister que a crítica desenvolva e aprimore seu instrumental de trabalho, tornando-se a “visão armada” a que aspirava Coleridge. Uma visão armada a serviço da literatura, na análise compreensão, julgamento ; portanto, crítica literária e não biográfica ou autobiográfica.

Não é verdade que “nova crítica” já seja um corpo acabado de métodos e teorias, e os seus adeptos uns conformados com o que lograram até agora como modificação no terreno da crítica brasileira.

O que prevalece no seu espírito é antes um estado permanente da inquietação e busca . Qualquer deles que for sincero consigo mesmo e com a crítica não poderá senão reconhecer que o nosso processo da velha crítica foi terminado. Mas que resta muito que fazer para atingir a meta final, a despeito do que já se realizou como contribuição positiva e prática.

Mas a evolução está em marcha. Os espíritos construtivos, que realmente são os que contam, não estão satisfeitos ; ao contrário, continuam a pesquisa. Contudo, a inquietação e o incoformismo são preciosos. E a esse estado de espírito se deve o que já se realizou, passo de gigante em relação ao pequeno período de tempo que levou para efetuar-se ; mudança radical, se compararmos o que se fazia antes com as preocupações e pesquisas atuais.

Por outro lado, posto que se use a denominação de nova crítica para designar a nova atitude de modo global, os seus adeptos não oferecem unicidade de métodos nem de idéias ou aspirações. Caracteriza-os de maneira de maneira geral a atitude de busca. Porém cada qual emprega os seus próprios meios e segue caminhos diferentes. E isso é mais interessante para a riqueza de resultados e possibilidades de soluções. E se pensarmos que fato idêntico ocorre em outras partes, com a escola formalista eslava distinta da estilística teuto-suíça, da escola espanhola dos grupos anglo-americanos, estes últimos, por sua vez, bem diversificada dentro do new-criticism, compreenderemos a vantagem dessa

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variedade de tentativas e rumos visando ao objetivo comum de estabelecer a crítica literária como uma disciplina autônoma de abordagem do fenômeno literário em si.

V O estudo da história da crítica e dos críticos brasileiros do passado mostra que a realização dos

congressos de crítica – o primeiro em 1960, em Recife, e o segundo em 1961, na cidade de Assis, sob os auspícios tembém da sua Faculdade de Filosofia, como o terceiro em João Pessoa em dezembro de 1962, patrocinado pela universidade local – constitui um marco da mudança de mentalidade que se opera na consciência crítica brasileira, a despeito dos esforços dos reacionários que lutam para manter o estado de coisas de que tiravam partido pessoal. Mas a reação contra essa atitude é forte entre os espíritos sérios .

Há uma diferença de mentalidade na crítica brasileira, e a idéia do Congresso é disso um índice , como idéia , mas também pelo valor dos debates e das teses e temas discutidos.

Aquilo, porém, que o Congresso exprime está , outrossim, patenteado nos trabalhos, teses, estudos, ensaios, publicados em livros e revistas, nos últimos dois lustros no Brasil acerca da literatura brasileira passada e presente.

O exemplo mais frisante e indiscutível foi a publicação de A literatura no Brasil, concebida e planejada desde 1951 e lançada entre 1955 e 1959 . A própria possibilidade de uma obra com seu programa já revela uma profunda revolução. E ela não teria sido possível dez anos antes, quer no que concerne ao seu princípio de ordem, quer pela sua execução em equipe, utilizando cerca de 50 colaboradores especializados.

Em comparação com as obras anteriores do gênero , ressalta a olhos vistos a novidade de seu plano e de sua base conceitual, tal como se indica na introdução geral devida ao seu grande organizador e diretor : um princípio diretor de natureza estática que é o conceito estético ou poético da literatura, literatura concebida como arte, a arte da palavra, produto da imaginação criadora, com valor e finalidade em si mesma, dotada de composição específica e elementos intrínsecos; a crítica como análise desses componentes específicos ou estéticos; a história literária como história dessa arte no seu desenvolvimento autônomo; a libertação da literatura de sua subordinação ao histórico, à cronologia e à biografia ; o primado da obra como norma de crítica ; a redução dos gêneros literários aos de específica natureza literária (romance, conto, poesia, drama, crônica, epopéia, etc.) ; a adoção da periodização estilística, fundamentada nas noções de estilo individual e estilo de época, com o estudo da literatura brasileira à luz de uma reformulação dos períodos, em barroquismo, neoclassicismo, arcadismo, romantismo, realismo, naturalismo, simbolismo, parnasianismo, impressionismo, modernismo do que resultou a revisão e a clarificação de pontos duvidosos, obras e figuras não classificadas ou mal interpretadas, como a origem da literatura brasileira, Anchieta, Vieira, o barroco literário brasileiro, o impressionismo na literatura, Raul Pompéia, Graça Aranha, etc.

Naturalmente, pela própria novidade de sua formulação da historiografia literária, a sua realização teve alguns pontos fracos, nem todos os colaboradores tendo compreendido completamente o sentido das inovações metodológicas e conceituais, o que será sanado, por certo, em futuras reedições da obra. Mas o impacto que produziu foi grande e é hoje o tratado padrão no estudo superior de letras no Brasil.

VI As tendências da nova crítica no Brasil estão, portanto, expressas em A literatura no Brasil, não só

no aspecto intelectual, como também nos nomes dos críticos que as procuram pôr em prática, muitos dos quais a integram como colaboradores.

O movimento, porém, tem frutificado em trabalhos independentes, inspirados, também, na idéia da reavaliação estética da literatura e da autonomia da fenômeno literário, bem como de uma crítica estética, fundada na análise da obra em si mesma e de seus elementos intrínsecos, isto é, na aplicação de critérios estéticos à aferição das obras.

Essas preocupações refletem-se em diversos livros ou ensaios recentes, seja referentes à crítica de poesia ou ficção, seja à literatura comparada ou história literária.

Alguns desses críticos novos revelarem-se ou impuseram-se como colaboradores de A literatura no Brasil: Péricles Eugênio da Silva Ramos (1919) , Waltensir Dutra (1926) , Fausto Cunha (1923) , Franklin de Oliveira (1918), Heron de Alencar (1921), José Aderaldo Castelo (1921), Segismundo Spina (1921) , Domingos Carvalho Silva (1915) , Xavier Placer (1916) , Darcy Damasceno (1922) , Carlos Burlamaqui Kopke (1916), muito dos quais se afirmam na mesma direção, em livros ou em colaborações para periódicos. Assim, Péricles Eugênio da Silva Ramos publicou : O amador de poemas (1956) e O verso romântico (1960), depois de Ter colaborado com dois capítulos, para aquela obra, sobre “a renovação

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parnasiana na poesia” e o “O modernismo na poesia” ; Franklin de Oliveira lançou A fantasia exata (1959), depois do capítulo sobre Euclides da Cunha ; José Aderaldo Castelo, autor do estudo sobre “O movimento academocista” do século XVIII, continua suas investigações no terreno da erudição literária com Homens e intenções (1960), Aspectos do romance brasileiro (1961) e José Lins do Rego: Modernismo e regionalismo (1961) , que iniciara, aliás, com vários estudos e edição do texto da polêmica de José de Alencar em torno da Confederação dos Tamoios; Darcy Damasceno aprofunda suas análises da poesia a propósito de Cecília Meireles, na introdução à edição completa da poetisa lançda pela Editora José Aguilar; Domingos Carvalho da Silva prossegue as suas pesquisas a propósito das origens da poesia brasileira e de outros aspectos de nossa história literária; o mesmo ocorre com Segismundo Spina a respeito das formas medievais da poesia de língua portuguesa, e Fausto Cunha sobre a poesia romântica ; Xavier Placer aplica-se ao estudo do poema em prosa no Brasil ; Carlos Burlamaqui Kopke insiste em investigações sobre poesia e estética.

Em direção idêntica surgiram obras de Ledo Ivo: O preto no branco (1955) ; Othon Moacir Garcia : Esfinge clara (1955), Luz e fogo no liresimo de Gonçalves Dias (1956), Cobra Norato - O poema e o mito (1962) ; Osvaldino Marques: O poliedro e a rosa (1952), A seta e o alvo (1957) e O laboratório poético de Cassiano Ricardo (1962) ; Dirce côrtes Riedel: O tempo no romance machadiano (1961), Aspectos da imaginística de Guimarães Rosa (1962), O mundo sonoro de Guimarães Rosa (1962) ; Eduardo Portela, revelando-se a mais aguda e mais completa organização de crítico da geração: Dimensões I (1958) e Dimensões II (1969); Adonias Filho (1915); Modernos ficcionistas brasileiros (1958); Cavalcanti Proença (1905): Roteiro de Macunaíma (1955) e Augusto dos Anjos e outros ensaios (1959); Rolando Morais Pinto, Graciliano Ramos, autor e ator (1962); Antonio Hauaiss (1915): Crítica avulsa (1960), Seis poetas e um problema (1960); Celso Cunha (1917): Estudos de poética trovadoresca (1961) . Outros, ainda que sem livros publicados, destacam-se pela mesma atitude crítica : Assis Brasil, Mário Faustino, Fábio Lucas, Rui Mourão, Afonso Àvila, Osmar Pimentel, Bráulio do Nascimento, Adalmir da Cunha Miranda, José Guilherme Merquior, Luís Costa Lima, Walmir Ayala e outros.

O movimento da poesia concretista, provocando uma intensa agitação de idéias críticas e poéticas, tem dado lugar a valiosas manifestações críticas e poéticas, tem dado lugar a valiosas manifestações críticas pela pena de Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grunewald, Ferreira Gular, Mário Chamie, Pedro Xisto, sem falar em estudos de Cassiano Ricardo e Manuel Bandeira, e de alguns dos anteriormente citados. O filósofo Euríalo Cannabrava (1908) tem dedicado numerosos trabalhos ao estudo da poesia e da teoria crítica estética.

Essas diversas manifestações referem-se a estudos de aspectos da obra literária, ora visando à análise de sua estrutura interna através dos gêneros, ora à temática, aos elementos componentes, à forma-conteúdo, aos artifícios poéticos (esquema métrico, técnica da narrativa, imaginística, caracterização, estilo, vocabulário, convenções dramáticas, etc.), rimático e prosódico (metáforas , estrutura estrófica, padrão rítimico, etc.), aos artifícios narrativos, etc.

De modo geral, a nova atitude desacreditou a crítica exclamativa, procurando ensinar a ler a literatura, interpretar seu significado intrínseco, descobrir como a linguagem funciona na obra literária, em suma, o que é literatura, que existe nela e como atua.

A nova mentalidade estende-se à organização de edições de autores, crítica ou simples. É um fato evidente a melhoria de padrão nas edições brasileiras de modo geral, destacando-se as editoras José Olímpio, Civilização Brasileira, Companhia Editora Nacional, Martins, Saraiva, Melhoramentos, Globo, Brasiliense, Agir, São José, Acadêmica e outras. Mas é no campo da edição crítica ou simplesmente de texto crítico que se revela a influência da nova atitude que as atuais gerações de estudiosos alimentam em ralação ao tratamento dos textos de autores como base indispensável ao bom estudo crítico.

Estão neste caso as edições da Editora José Aguilar, com a sua coleção em papel bíblia de autores brasileiros e portugueses, Biblioteca Luso-Brasileira, devendo mencionar-se de Castro Alves, aos cuidados de Eugênio Gomes, a de Cecília Meireles por Darcy Damasceno, a de Alphonsus de Guimarães por Alphonsus de Guimarães Filho, a de Gonçlves Dias por Antônio Hauaiss, a de Raimundo Correia por Waldir Ribeiro do Val, a de José de Alencar por Cavalcanti Proença, a de Machado de Assis por Galante de Sousa, etc. Também merece referência a coleção de Livros DO Brasil da Companhia Editora Nacional, que inclui edições de Gonçalves Dias, Castro Alves, Fagundes Varela, etc. A obra de Machado de Assis tem sido objeto de especial carinho por parte dos modernos editores. Hajam vista as edições da Aguilar, em três volumes, a da Editora Cultrix, sem falar na edição oficial, do Instituto Nacional do Livro, dirigida por uma comissão de técnicos sob a égide da Academia Brasileira de Letras, com o objetivo de estabelecer o texto canônico da obra machadiana. A literatura de Anchieta foi também extremamente cuidada em edições do Museu Paulista e do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, com reprodução fac-similar e leitura dos textos. A Casa Rui Barbosa vem cumprindo modelarmente a sua missão de publicar a obra do seu patrono em edições completas ou seletas do melhor padrão; por outro lado, o Centro de Pesquisas da mesma instituição vem lançando edições do Marques de Maricá e Casimiro de Abreu por Sousa da Silveira, de

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Araripe Júnior por Afrânio Coutinho, do Livro de Vita Christi pelo Pe. Augusto Magne, e outras obras numa coleção de textos da língua portugueas. O Instituto Nacional do Livro tem ocupado numerosas edições críticas, como a das obras de Tomás Antônio Gonzaga, de Bernardo de Guimarães, Alvarenga Peixoto do Boosco Deleitoso, sem falar em obras de referência bibliográfica relativas a Machado de Assis, Gonçalves Dias, o teatro no Brasil, etc., devidas sobretudo a Galante de Sousa. Edição valiosa foi a obracompleta de Lima Barreto, da Livraria Brailiense, aos cuidados de Assis Barbosa, Antônio Hauaiss e Cavalcanti Proença. Mesmo quanto a ediçoes correntes e comerciais é notória a preocupação de editores em fornecer boas edições, como as de poetas contemporâneos – Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, etc., pela Livraria José Olímpio, bem como a de José Lins do Rego e Gilberto Freyre, pela mesma editora, as de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Guilherme de Almeida e José Geraldo Vieira, pela livraria Martins ; a de Érico Veríssimo pela Livraria do Globo ; a de Alceu Amoroso Lima pela Livraria Agir, etc. Diversas imprensas universitárias têm republicado textos raros ou editado obras inéditas, como as da Universidade da Bahia e do Ceará.

Na crítica erudita, máxime de aplicação à exagese textual e à interpretação de autoria, merece destaque o nome do mestre Afonso Pena Júnior (1878), cuja obra A arte de furtar e o seu autor ( 1946) é clássica ; nesse terreno tem realizado obras de vulto o erudito português Rodrigues Lapa, sobretudo em relação aos poetas da pêiade mineira.

Aliando a erudição e a crítica interpretativa, detacam-se Augusto Meyer (1902), em A Sombra da estante (1947), Prosa dos pagos (1960), Preto & branco (1956) e Josué Montelo (1917) , em Estampas literárias (1956) e Caminho da fonte (1959) . É o caso de Guilherme César em História da literatura do Rio Grande do Sul (1956), bem como o de Mário da Silva Brito em História do modernismo brasileiro (1958).

De modo geral, o movimento editorial brasileiro da atualidade, quer pelas editoras comerciais, quer pelos diversos serviços oficiais, testemunha a modificação de mentalidade no que tange ao tratamento do texto e ao cuidado editorial. A Ecdótica desperta o interesse de estudiosos que procuram dedicar-se ao estudo de seus segredos e técnicas. Não é de menor importância a atenção especial dada aos aspectos de normalização relativos à apresentação do trabalho erudito, à redação, à disposição gráfica, à sinalização, à uniformização das referências e documentação, graças ao esforço da Associação Brasileira de Normas Técnicas (Rio de Janeiro) e a órgãos especializados como Instituto Brasileiro e Documentação Rio de Janeiro ) e aos cursos de Biblioteconomia e Documentação instituídos pelas Universidades. Cria-se, desarte, uma consciência documental e bibliográfica, paralela à nova consciência profissional que se alastra entre os estudiosos, eruditos, críticos, historiadores, inimiga do diletantismo, autodidatismo e improvisação.

BIBLIOGRAFIA

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Curso de crítica. Rio de Janeiro, 1956. Alceu Amoroso Lima . “A crítica literária no Brasil”, Decimália (Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro ), 1958. Wilson Martins. A crítica literária no Brasil. São Paulo, Departamento de Cultura, 1952. Xavier Marques. “Evolução da crítica literária no Brasil”, in Ensaios. Rio de Janeiro, vol. I, 1944.

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Rio de Janeiro, Pallas S.A., INL-MEC, 1980, pp. 13-19.

INTRODUÇÃO GERAL A Crítica Literária no Brasil

Evolução histórica; temática; os métodos de abordagem; tentativa de classificação. As grandes linhas e escolas. Figuras principais.

1. Esboçam-se manifestações de pensamento crítico-literário no Brasil no seio das academias

literárias dos séculos XVII e XVIII, sob as mais variadas formas. O levantamento dessas manifestações só poderá ser realizado, na sua importância e características, quando terminada a publicação dos códices daquelas agremiações (1).

2. Já em pleno arcadismo, pensamento crítico ou estético entremostram-se, o mais das vezes em verso como era comum nos séculos XVII e XVIII, e como se repetirá depois.

3. As duas primeiras décadas do século XIX são ainda mais marcadas de indecisão e sincretismo, com predomínio do colorido neoclássico e iluminista.

É antiga a querela sobre José Bonifácio, quanto a sua posição na literatura brasileira (2). Afrânio Peixoto defendeu para ele a categoria de primeiro romântico. Parece mais acertado atribuir-lhe o papel de precursor pré-romântico, de caráter de transição e sincretismo, pois, a despeito de seus avanços românticos, ficou fiel ao credo clássico, através de notações neoclássicas e arcádicas.

Assim, na "Dedicatória" das "Poesias Avulsas" (3), com data de fevereiro de 1825, mostra-se um admirador e imitador dos antigos gregos e romanos, bem como da poesia hebraica do Antigo Testamento. Ao mesmo tempo, contudo, confessa-se não menos seguidor e admirador das poesias inglesa e alemã ("os cantos da soberba Albion e da Germânia culta"); em poesia, foge da rima e da "monotônica regularidade das estâncias, que seguem à risca em franceses e italianos", apartando-se delas "de propósito, usando da mesma soltura e liberdade, que vi novamente praticadas por um Scott e um Byron, cisnes da Inglaterra". É evidente que ele se inclina para as duas literaturas que lideravam havia muito a revolução romântica. Em outro ponto, na "Advertência" à sua tradução da "Ode Primeira" das Olímpicas de Píndaro, reafirma a sua preferência pelos ingleses e alemães. Sem embargo de sua impregnação arcádica, de que dá prova a sedução por Píndaro, em meio à sua ampla admiração pelos antigos, reage ao arcadismo, bem como ao barroco: "Quem folgar de Marinismos e Gongorismos, ou de Pedrinhas no fundo do ribeiro, dos versistas nacionais de freiras e casquilhos, fuja desta minguada rapsódia...". É o pré-romantismo, em que pese a sua afirmativa horaciana de arte como instrumento didático, exposta ainda no mesmo prólogo:

Mas se no meio da vileza e corrupção moderna não pode o escritor honrado obstar que escravos lisonjeiros não enxovalhem com inépcias e baixezas a razão e as boas artes, pelo menos deve alçar a voz em seus escritos para atacar o crime e ridicularizar o vício, para instruir e enobrecer a humanidade; e, quando o inspira Apolo, deve então com a sua musa animar a virtude, e deleitar o coração.

Vale registrar ainda a sua teoria do enriquecimento da língua portuguesa à custa da criação de "vocábulos novos, principalmente compostos", do grego, como já a tem do latim, para dar maior força e laconismo, ênfase e riqueza.

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4. O romantismo brasileiro propriamente inaugura-se em 1836 com os Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, e a Niterói, Revista Brasiliense, do grupo fluminense a que ele pertencia (4). É ele, assim, a primeira figura a ocupar a história do romantismo, não somente como poeta, senão também como teorizador das transformações em curso. É bem verdade que ainda se notam nele rsequícios do neoclassicismo anterior, fato aliás que não deve surpreender, porquanto aqueles remanescentes se vão encontrar ainda até em Gonçalves Dias.

O conjunto de conceitos e teses que irá constituir o ideário crítico do romantismo começa a delinear-se com o chamado grupo fluminense, de que é Gonçalves de Magalhães o mentor.

Podem apontar-se alguns desses conceitos ou problemas teóricos dominantes nas preocupações dos críticos brasileiros da era romântica. Alguns desses são temas permanentes da filosofia da literatura e da arte, outros são peculiares a uma literatura nova, em vias de afirmação e autonomia, a partir do transplante da literatura de outro continente.

Assim: a idéia de natureza; a busca do caráter nacional e do caráter que deve assumir a produção literária para ser "brasileira"; o instinto de nacionalidade na literatura; o "indianismo" ou o indígena como elemento diferenciador; as características sociais; o "sentimento íntimo" necessário para dar cunho distintivo à poesia e à ficção; os tipos nacionais e o seu comportamento na diferenciação literária; o problema da língua portuguesa no Brasil e sua diferenciação para a expressão da alma brasileira nas artes e letras; o problema do gênero melhor adequado à expressão de uma literatura nova; a busca da síntese da nacionalidade na literatura; os assuntos (históricos, sociais, populares, nativos, paisagísticos...) peculiares à nova civilizaçõ e que deveriam ser próprios da nova literatura; o problema das heranças e influências estrangeiras, ou do choque da cultura nova no contato com a tradição ocidental.

Em resumo, esse conjunto de idéias, que se podem reunir na fórmula "Que é ser brasileiro?", título do primeiro capítulo desta antologia, forma uma constante no pensamento dos críticos e teóricos da literatura durante o século XIX, passando do romantismo para o realismo. Era um aspecto da velha busca da literatura em apreender a realidade. Se a literatura é uma forma de captação da realidade, tratando-se de literatura de um povo novo e uma nova situação geográfica, qual deveria ser a realidade a exprimir, como se caracterizaria, que formas assumiria, que gêneros literários melhor se lhe adequariam?

Essa a pergunta que apaixona seguidamente os críticos do século XIX, todos procurando oferecer-lhe a resposta conveniente, no intuito de dar autonomia e fisionomia própria à literatura brasileira, para reconhecer as suas diferenças em relação à portuguesa, da qual se destacou e para ser digna de um povo forte e jovem. E o que é interessante é que a temática aqui refererida de tal modo é integrante da mente e da sensibilidade brasileiras (o romantismo no Brasil, mais do que uma escola literária, é uma qualidade permanente do espírito), que ressurge na doutrinação modernista, quando se complementa a integração e maturidade da literatura brasileira.

Por isto, reúnem-se no primeiro capítulo alguns textos como espécimes característicos da constante nacionalista a partir do romantismo (5).

5. Esgotado o romantismo como fonte de inspiração literária, não por isto desapareceu a preocupação com a busca do caráter nacional da literatura brasileira. Os críticos da fase naturalista e positivista seguiram na esteira dos românticos, sem embargo da diversa orientação doutrinária que os norteou (6). O ideário crítico da era naturalista fundmentou-se no materialismo e no culto da ciência. Buscou-se um instrumento de análise e valoração de cunho objetivo, baseado no espírito positivo, na observação dos fatos. A sociologia fornecia os cânones que deviam inspirar o estudo das literaturas, e ao lado dela, a biologia e a psicologia. A literatura era concebida como um produto da sociedade e a sua gênese condicionada a fatos externos - meio, raça, momento, fórmula esta de grande fortuna devida ao filósofo e crítico francês Hipólito Taine. Passou-se a encarar a produção artística como condicionada ao relativismo de tempo, lugar, autor, ao tipo de sociedade que a viu nascer. A idéia mestra era estabelecer o tipo social, o caráter do autor, para assim melhor compreender e interpretar o fenômeno literário. A arte devia ser interpretada relativamente ao meio e época em que surgiu. Ao lado de Taine, foram seus inspiradores intelectuais Spencer, Comte, Buckle, com o positivismo, o evolucionismo, o determinismo, o monismo.

No Brasil, a crítica naturalista e positivista foi cultivada pela poderosa geração surgida em 1870. Em todos os centros intelectuais ela foi impregnada daquela mentalidade. É a geração do materialismo.

A essa geração de críticos deve a literatura brasileira a consolidação do pensamento crítico em termos rigorosos, embora à luz de concepções filosóficas e científicas hoje sujeitas a contestação. Todavia, o espírito de rigor metodológico, da busca de uma base teórica para o exercício da crítica, de uma criteriologia e uma metodologia, ficaram como contribuição definitiva, em que pese às deformações devisão operadas com freqüência na sua atividade prática, em conseqüência das falsas premissas doutrinárias d que se valiam. É preciso não esquecer que a essa vigorosa plêiade de grandes espíritos deveu o Brasil a

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sua verdadeira independência com a implantação da República, de modo a permitir-nos qualificr a época de 1870 a 1900 de a Renascença Brasileira.

Como representantes da crítica naturalista e positivista arrolam-se: Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Araripe Júnior, Sílvio Romero e outros.

6. Correspondendo ao ideal de objetividade de que a ciência impregnou a mentalidade literária, passou-se a dar ênfase à preofupação formal. Instalou-se mesmo um verdadeiro culto da forma. A esta deveria ser reduzida praticamente a intnção do escritor, uma forma isolada e mesmo esvaziada de conteúdo, às vezes até a ele oposta. Dizia-se de um escritor que tinha conteúdo e forma, ou forma e não conteúdo, ou conteúdo e não forma. Este era o cânon de certa crítica primária ou de alguns críticos gramaticais, que se fizeram arautos de uma crítica puramente reduzida à censura gramatical, entre nós bem representada por Osório Duque Estrada. Evidentemente, no extremo a que chegu, era negação da própria crítica, uma deformação de sua finalidade e uma incompreensão do que é a literatura, a obra de arte literária. Se a obra de arte literária é uma obra de arte de linguagem, não se deve compreender que essa linguagem se reduza aos aspectos exclusivamente gramaticais, para que pronunciemos juízos críticos baseados no correto ou não modo de exprimir-se. Basta lembrar que a lingüística moderna renega esse conceito do certo ou errado em linguagem.

De qualquer modo, porém, foi muito comum entre nós a confusão resultante desse culto da forma. 7. Outra conseqüência do espírito positivista e naturalista, centrado na explicação genética, que

caracterizou a abordagem histórico-cultural, foi a corrente de críticos e historiadores literários, para os quais o essencial era a ênfase na busca dos valores da tradição e da história. O método adotado, apropriado a esse culto do passado, foi o histórico. A crítica confundiu-se com a história literária, esta mesma uma dependência da história geral, dividida, como ela, em períodos correspondentes aos da história política. A esse historicismo aliou-se o "fatualismo", isto é, a mania do fato histórico e do estabelecimento das relações entre eles e dos nexos causais existentes de uns dos outros. Redundou isso no eruditismo, confundido com ciência, crítica e história. Essa forma de positivismo, que não se confune com o positivismo filosófico do Comte, contaminou certos estudiosos do fenômeno literário. Do estudo ou levantamento das tradições, partiu-se para as investigações dos mínimos detalhes do passado. E, se em muitos casos, inegáveis benefícios advieram desse trabalho de beneditinos, sobretudo quando aplicado o comparatismo, o estudo das fontes e influências, da evolução das formas, a história literária, em outros casos, degenerou em mania erudita, sem virtude crítica, divorciando-se mesmo da crítica, pois focalizada apenas nos aspectos exteriores do fato literário, e nas circunstâncias de seu aparecimento ou constituição. A busca legítima das heranças do passado transformou-se em casuística erudita e exegese de fatos miúdos e sem vida.

8. Produziu-se então uma reaçõ, em nome do valor literário. Em vez de buscar no trabalho crítico as conotações da obra com as circunstâncias exteriores, caberia ao crítico não mais do que externar o prazer, a impressão que a obra lhe despertava à leitura. Anatole France, em La Vie Littéraire, instituíra o padrão dessa atitude para ele a única de validade para o julgamento da obra literária. O critério era a sensibilidade e o goto do crítico. E o ato crítico resumir-se-ia num passeio da alma através das obras-primas. Este foi o impressionismo crítico, de larga fortuna, e alguns grandes cultores entre homens de gênio artístico superior, como Walter Pater, Virgínia Woolf, Anatole France, e outros muitos, a quem se devem admiráveis páginas de crítica impressionista, antes expressões de autobiografia do que propriamente crítica literária.

Mas o impressionismo cedo degenerou em meros borboleteios ou viagem intelectual, nos muitos pronunciamentos jornalísticos e torneios opiniáticos, de gostei-ou-não-gostei, de "achismo" sem conteúdo doutrinário nem base crítico.

Em vez de compreender e valorar, não mais caberia ao crítico senão diertir-se com os livros, reduzindo-se ao registro de impressões, e tornando-se simpes noticiarista jornalístico ou colunístico. Ao abandonar o uso dos critérios, estabeleceuk-se o trabalho crítico no relativismo ambiental e biográfico.

E a supervalorização do autor teve como conseqüência igual valorização do crítico como criador, segundo o modelo de Anatole France, pra quem o que importava no trabalho crítico eram as reações do crítico enão o livro que lia.

9. Ainda outra reação já se havia operado contra o complexo doutrinário e as normas estéticas do realismo-naturalismo literário e crítico. Contra o culto da objetividade materialista e naturalista, por volta da última década do século XIX, efetuou-se no Brasil, por influência francesa, a reação da subjetividade, da interiorização, da espiritualidade , do individualismo.

A crítica literária também acordou cedo para o reconhecimento dessa visão nova da literatura. Logo viu, pela pena de Araripe Júnior, e mais tarde de Nestor Vítor, que há lugar no fenômeno literário, não só para os aspectos materiais da vida, mas também para o lirismo, o sonho, a lenda, o mito, o ideal, o imaginário, o símbolo.

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Aquilo que veio a denominar-se, em poesia e prosa, o simbolismo também encontrou ressonância na crítica, numa crítica que valorizou o símbolo como essência da literatura. Uma crítica para qual a litertura não é apenas o visível e observável, mas também a representação figurativa e indireta, alegórica, simbólica, mítica.

10. Mas a literatura também pode ser encarada como instrumento de ação moral. No Brasil, essa tendência foi predominantemente de origem católica. Exemplo disso é a obra crítica de Jackson de Figueiredo; de modo algum um caso isolado, mas, ao contrário, ligado à velha e forte linhagem da crítica ocidental.

11. Também foi representada no Brasil a verdadeira crítica literária, aquela para a qual a literatura é antes de tudo uma estrutura estética, constituída de elementos intrínsecos que lhe são peculiares. São precursores das doutrinas estéticas e dos métodos daquilo que veio a ser chamado de "nova crítica", ou conjunto de correntes universais tendentes à renovação da metodologia crítica para estudar, analisar e interpretar a obra de arte literária per se, em si mesma, nos seus elementos estruturais específicos.

Essa tendência, que considera a literatura como estrutura estética, e portanto estudando-a nos elementos que compõem essa estrutura interna, encontrou em Machado de Assis o seu mais ilustre precursor, seguindo-se-lhe Henrique Abílio e Mário de Andrade, dentro do período compreendido por esta antologia, isto é, até o advento do modernismo.

12. Por último, uma seção intitulada "A Poesia como Crítica", exemplifica uma tendência dos poetas a apresentar doutrinas estéticas, manifestos literários, artes poéticas, sob a roupagem da poesia, seguindo uma velha tradição universal. Os espécimes recolhidos revelam o nível a que atingiu o pensamento crítico de muitos poetas.

13. Esta antologia procura ser um espelho da evolução da crítica literária brasileira desde o início do romantismo até o início do modernismo, só incluindo autores mortos. A distribuição da matéria é temática, e não simplesmente cronológica, embora uma relativa diacronia seja inevitável.

Assim, são os seguintes os capítulos que abrangem os textos selecionados, como representativos das idéias literárias e críticas do século XIX e primeiras décadas do XX.

I. Que é ser Brasileiro? II. Abordagem Histórico-cultural. III. O Culto da Forma. IV. As Heranças da Tradição. V. Impressionismo. VI. Literatura e Idéias Morais. VII. A Literatura como Estrutura Estética. VIII. A Poesia como Crítica.

_________________________ (1) Essa publicação foi sugerida por Afrânio Coutinho à Comissão do Quarto Centenário, encarregada das comemorações da fundação da cidade do Rio de Janeiro, da qual era membro. Aprovada a sugestão, o presidente do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, historiador José Wanderley de Pinho, também presidente da Comissão, aind acatando outra sugestão do mesmo escritor, encarregou o Professor José Aderaldo Castelo, da Universidade de São Paulo, de proceder à referida publicação, em vista da sua comprovada competência no assunto (Ver: Castelo, José Aderaldo. O Movimento Academicista. In: A Literatura no Brasil, dir. Afrânio Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro, Ed. Sul American, 1969. Vol. 2, cap. 15; idem. Manifestações Literárias da Era Colonial. São Paulo, Ed. Cultrix, 1962. - Col. A Literatura Brasileira, 1). A publicação dos códices está em curso: Castelo, José Aderaldo. O Movimento Academicista no Brasil. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1969. V. 1, Tomo 1. (Col. Textos e Documentos) (2) Ver Coutinho, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. 6. ed. Rio de Janeiro, Editora Distribuidora de Livros Escolares, 1970. p. 169. (3) Poesias de Américo Elísio . Rio de Janeiro, Imp. Nacional, 1946. (4) Ver Coutinho, Afrânio. Op. cit., para os detalhes sobre a origem e classificação geracional do romantismo. Ver também A Literatura no Brasil. Dir. Afrânio Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro. Ed. Sul Americana, 1969. v.2. (5) Sobre o problema acima esboçado ver Coutinho, Afrânio. A Tradição Afortunada. RIo de Janeiro, J. Olímpio, 1968, em que se estuda desenvolvidamente a evolução do espírito de nacionalidade na crítica brasileira do século XIX. Ver também: idem. A Crítica Romântica. In: A Literatura no Brasil. ed. cit., v. 2, cap. 23. (6) Ver Coutinho, Afrânio. A Crítica Naturalista e Positivista. In: A Literatura no Brasil. ed. cit., v. 3, cap. 26. BIBLIOGRAFIA:

Para o estudo da crítica literária no Brasil, ver:

Academia Brasileir de Letras. Curso de Crítica. Rio de Janeiro, 1956; Introdução ao Estudo da Literatura Brasileira. Org. Brito Broca e J. Galante de Sousa. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1963; Coutinho, Afrânio. A Tradição Afortunada. Rio de Janeiro, J. Olímpio, 1968; idem. Crítica e Críticos. Rio de Janeiro, Simões1969; idem.Crítica e Poética. Rio de Janeiro, Acadêmica, 1968; Lima, Alceu Amoroso. A Crítica Literária no Brasil. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1958. (Col. Decimália); Marques, Xavier.Ensaios. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1944. V. 1; Martins, Wilson.A Crítica Literária no Brasil. São Paulo, Dep. Cultural, 1952. A Literatura no Brasil. Dir. Afrânio Coutinho. ed. cit. (Ver os capítulos 23, 26, 38, 45, além do Prefácio da 2ª edição, no v. 1).