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A Filosofia de Ortega y Gasset "ORTEGA NÃO FOI APENAS O MAIOR FILOSOFO ESPANHOL, MAS IGUALMENTE UM DOS MAIORES ESCRITORES QUE A LlNGUA ESPANHOLA CONHECEU EM TODOS OS TEMPOS." ção a Ortega y Gasset, pois ver~· mos que o filósofo espanhol, ape- sar de sê-lo, usará, e em algumas passagens até exagerará, de uma fi- gura de linguagem - a metáfora - para transmitir suas idéias e torná- Ias acessíveis aos seus leitores e ouvintes. O resultado foi uma filosofia profunda com uma excelente lite- ratura, cada vez mais aprimorada e estilizada, própria de um refina- mento interior, capaz de comuni- car com leveza e clareza de uma crônica as mais intrincadas investi- gações filosóficas. Fato que não raro produz no leitor a sensação de ter apreendido (pois tão fácil se torna com o mestre condutor) o â- mago da questão com o mínimo de esforço, e quando nos separa- mos, encontramo-nos de súbito, novamente em completa escuri- dão. Por isso, a opinião de seus es- tudiosos e biógrafos é unânime em afirmar que Ortega não foi apenas o maior filósofo espanhol, mas igualmente um dos maiores escri- tores que a língua espanhola co- nheceu em todos os tempos. As- sim diz José Ferrater Mora sobre sua qualidade literária: "A eleição, por Ortega, de meios de comuni- cação pouco usuais na filosofia de sua época não se deve somente, o ESTILO LITERÁRIO Todos sabemos bem, por expe- riência, a distância que vai do pen- samento à palavra e desta à escri- ta. O primeiro é fluido, penetran- te e instantâneo e não se utiliza de nenhum tipo de representação. A palavra já necessita de uma forma definida - a linguagem -, caso contrário seria ininteligível. A es- crita estratifica-se, torna-se no mo- numento que encerra uma idéia, isto é, tenta significá-Ia. E a proxi- midade entre o que se quer dizer e o que é dito reflete a possibilidade na qual a palavra vai-se transfor- mando no próprio conceito, ou em que significante e significado não sejam mais do que uma só coi- sa. A questão, pois, resume-se em como atingir este ponto. Costuma- se dizer, numa terminologia um tanto mais técnica, que a lingua- gem poética consuma em si este objetivo, e a prosa comum, o dis- curso, geralmente explicativo, en- contra-se mais alheia. O funda- mento é de certa forma simples: Trata-se, na linguagem poética, de carregar a palavra do máximo de significação que comporta, en- quanto que a prosa sempre con- duz a um significado fora dela, é remetente. Nesse sentido podemos THOT entender estas duas antípodas na comunicação humana, de um lado a poesia (e o poeta) que está sem- pre prestes a criar a forma próxi- ma daquilo que quer transmitir, porque poesia se faz com palavras. "Para o poeta, mergulhar na vi- da e mergulhar na linguagem é (quase) a mesma coisa. Ele vive o conflito signo versus coisa. Sabe (isto é, sente o sabor) que a pala- vra "amor" não é o amor - e não se conforma ..." (1). Ou ainda: "Mallarmé falava de uma flor que está ausente de todos os buquês. Que flor é esta?" (2) E no outro lado a prosa e todos os que dela se servem, inclusive o filósofo, porque sua atividade é es- sencialmente ideal. Enquanto o poeta, mergulhado na vida tenta interpretá-Ia, o pensador distancia- se para decifrá-Ia. Dois caminhos distintos para uma mesma inten- ção. Daí que muitas vezes usa-se a oposição raciocínio/sentimento para distinguir prosador ou filóso- fo do poeta. Mas a poesia não se a- limenta somente de impressões, sensações ou sentimentos, usa também idéias, evidentemente de uma forma poética. O que se pretendeu com esta introdução sobre poesia e prosa foi proporcionar uma aproxima- 3

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A Filosofia deOrtega y Gasset

"ORTEGA NÃO FOI APENAS

O MAIOR FILOSOFO ESPANHOL,

MAS IGUALMENTE UM DOS MAIORES ESCRITORES

QUE A LlNGUA ESPANHOLA

CONHECEU EM TODOS OS TEMPOS."

ção a Ortega y Gasset, pois ver~·mos que o filósofo espanhol, ape-sar de sê-lo, usará, e em algumaspassagens até exagerará, de uma fi-gura de linguagem - a metáfora -para transmitir suas idéias e torná-Ias acessíveis aos seus leitores eouvintes.

O resultado foi uma filosofiaprofunda com uma excelente lite-ratura, cada vez mais aprimorada eestilizada, própria de um refina-mento interior, capaz de comuni-car com leveza e clareza de umacrônica as mais intrincadas investi-gações filosóficas. Fato que nãoraro produz no leitor a sensaçãode ter apreendido (pois tão fácil setorna com o mestre condutor) o â-mago da questão com o mínimode esforço, e quando nos separa-mos, encontramo-nos de súbito,novamente em completa escuri-dão. Por isso, a opinião de seus es-tudiosos e biógrafos é unânime emafirmar que Ortega não foi apenaso maior filósofo espanhol, masigualmente um dos maiores escri-tores que a língua espanhola co-nheceu em todos os tempos. As-sim diz José Ferrater Mora sobresua qualidade literária: "A eleição,por Ortega, de meios de comuni-cação pouco usuais na filosofia desua época não se deve somente,

o ESTILO LITERÁRIO

Todos sabemos bem, por expe-riência, a distância que vai do pen-samento à palavra e desta à escri-ta. O primeiro é fluido, penetran-te e instantâneo e não se utiliza denenhum tipo de representação. Apalavra já necessita de uma formadefinida - a linguagem -, casocontrário seria ininteligível. A es-crita estratifica-se, torna-se no mo-numento que encerra uma idéia,isto é, tenta significá-Ia. E a proxi-midade entre o que se quer dizer eo que é dito reflete a possibilidadena qual a palavra vai-se transfor-mando no próprio conceito, ouem que significante e significadonão sejam mais do que uma só coi-sa. A questão, pois, resume-se emcomo atingir este ponto. Costuma-se dizer, numa terminologia umtanto mais técnica, que a lingua-gem poética consuma em si esteobjetivo, e a prosa comum, o dis-curso, geralmente explicativo, en-contra-se mais alheia. O funda-mento é de certa forma simples:Trata-se, na linguagem poética, decarregar a palavra do máximo designificação que comporta, en-quanto que a prosa sempre con-duz a um significado fora dela, éremetente. Nesse sentido podemos

THOT

entender estas duas antípodas nacomunicação humana, de um ladoa poesia (e o poeta) que está sem-pre prestes a criar a forma próxi-ma daquilo que quer transmitir,porque poesia se faz com palavras.

"Para o poeta, mergulhar na vi-da e mergulhar na linguagem é(quase) a mesma coisa. Ele vive oconflito signo versus coisa. Sabe(isto é, sente o sabor) que a pala-vra "amor" não é o amor - e nãose conforma ..." (1). Ou ainda:"Mallarmé falava de uma flor queestá ausente de todos os buquês.Que flor é esta?" (2)

E no outro lado a prosa e todosos que dela se servem, inclusive ofilósofo, porque sua atividade é es-sencialmente ideal. Enquanto opoeta, mergulhado na vida tentainterpretá-Ia, o pensador distancia-se para decifrá-Ia. Dois caminhosdistintos para uma mesma inten-ção. Daí que muitas vezes usa-se aoposição raciocínio/sentimentopara distinguir prosador ou filóso-fo do poeta. Mas a poesia não se a-limenta somente de impressões,sensações ou sentimentos, usatambém idéias, evidentemente deuma forma poética.

O que se pretendeu com estaintrodução sobre poesia e prosafoi proporcionar uma aproxima-

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porém, ao motivo indicado. Orte-ga não foi apenas um filósofo; foitambém, e em medida importante,um escritor. Perfilou no grupo deautores espanhóis de nosso séculoque deram à Espanha e, em geral,ao mundo hispânico, uma espéciede novo Século de Ouro literário."(3)

Os "meios de comunicaçãopouco usuais na filosofia de SU{i é-poca" a que se refere seu contem-porâneo são os periódicos espa-nhóis e argentinos para os quaisOrtega colaborava com ensaios fi-losóficos. E não fazia isso aleato-riamente, pois sua intenção eraprincipalmente criar uma atmosfe-ra filosófica, pelo menos reflexivana Espanha. Pretendia elevar seupovo "à altura dos tempos" (Orte-ga), trazer o homem espanhol aoposto de relevo que lhe cabia se-gundo sua tradição. Assim sua ati-vidade filosófica concentrou-se emensaios através de jornais, e tal foisua participação nestes veículosque chegou-se a afirmar que Orte-ga nascera "sobre uma rotativa."E ele próprio lamentou-se muitasvezes por não ter um jornal.

Devemos contudo, outro crédi-to a este filósofo: o reavivamentode um estilo literário pouco utili-zado para esse fim. O ensaio sem-pre foi, ou, até então, apenas ti-nha sido um modo de transmitiruma idéia sem necessitar uma rigo-rosa argumentação, constituindo-se desde Montaigne, seu criador,na exposição de um ponto de vistaparticular ou uma nova opinião,excluído o caráter que tem umtratado científico.

Com Ortega o ensaio adquiriuuma dimensão maior tanto emforma como em conteúdo, poisdele não saía nada menos que filo-sofia brotada do mais puro veio li-terário. Se houveram motivos paraa escolha do ensaio pode-se eduzirque, em primeiro lugar servia comexatidão para a atração que sentia

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"A CLARIDADE E ACORTESIA

DO FILOSOFO",DIZIA ORTEGA

A RESPEITO DE SUACOPIOSA PRODUÇÃO,E E ESTE O OBJETIVO

QUE VAI PREVALECEREM SUA OBRA.

o filósofo em esboçar um novo te-ma logo que terminasse o que es-tava tomando sua atenção. Umoutro é o dito por Julián Marias"ao mostrar que Ortega teve queadotar meios de comunicação de-masiado públicos" (4), pois, já dis-semos, intentava elevar o nível re-flexivo de seu povo. Por isso rece-ber o epíteto de nacionalista, po-rém sem nada subtrair da filosofia,ao contrário, através de uma in-tensa literatura, inundar a culturaespanhola de filosofia, e sabia Or-tega o quanto era preciso estabele-cer um clima propício.

"A claridade é a cortesia do fi-lósofo", dizia Ortega a respeito desua copiosa produção, e é este oobjetivo que vai prevalecer em suaobra, composto de uma nítida vi-são de que "era necessário cativá-los com meios líricos a fim de oslevar aos problemas filosóficos."(5)

A OBRA DE ORTEGA Y GASSET

Se grande parte de seus escritosforam destinados aos periódicos,de maneira alguma deixou Ortegade publicar o que ele mesmo de-nominou de "livros formais" eartigos em revistas especializadas.

"Rebelião das Massas", seu maisconhecido e retumbante livro saiu,antes de condensado, em forma deensaios e alguns outros provindosde aulas e cursos, inclusive um eoutro livro póstumo seu teve ori-gem em conferências que versa-vam sobre um mesmo tema.

A enormidade da obra deixadamostra-nos a fecundidade do filó-sofo e ainda a imensa gama de in-teresses que tinha, pois escreveusobre quase tudo. Eis o que dizJosé Ferrater Mora sobre isto:"Um rápido olhar ao índice ono-mástico colocado no fim de suasobras confirma a multiplicidadede interesses do filósofo. Renan,Einstein, Júlio César, Husserl,Kant, Goya, Proust, Ibn Khaldun:eis aqui os nomes de algumas figu-ras não somente mencionadas aoacaso, mas também estudadas de-moradamente. Alguns dos ensaioscontidos nas obras são inclassificá-veis. Um dos ensaios, por exem-plo, versa sobre a moldura do qua-dro; outro é um prefácio a um li-vro não escrito ... No que toca aonúmero de temas debatidos nãoparece haver limite. Ortega escre-veu sobre as fontículas de Nurem-berg, sobre a língua francesa, so-bre a Gioconda, sobre o balé rus-so, sobre a etnologia africana e,evidentemente, sobre a história, oamor e a metafísica"(6). E equi-voca-se quem concluir que tantose tão variados assuntos só pode-riam ser tratados superficialmen-te. O que ocorre é que quantomais se lê Ortega, mais se crê queele próprio se ultrapassa, tal a flui-dez de sua linguagem e coerênciade suas idéias.

Mas podemos entender melhorcomo chegou a este ponto se per-corrermos a trajetória intelectualde Ortega. Após sua licenciaturaem Filosofia e Letras na Universi-dade de Madrid, onde se douto-rou com a tese Os Terrores doAno Mil (Crítica de Urrul lenda),em 1904, viajou para a Alemanha,estudando nas Universidades deLeipzig, Berlim e Marburgo, ondenesta última "foi díscipulo dogrande neo-kantiano HermannCohen" (7). De 1910 até 1936 foiprofessor e catedrático da Univer-sidade de Madrid lecionando Me-

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tafísica. Sua atividade literária ini-ciou-se em 1902, colaborando pararevistas e jornais. Em 1914, entre-tanto, é que as atenções se con-centrarão em Ortega, quando dapublicação de "Meditações doQuixote", obra que acentuada-mente reflete as preocupações doautor sobre os destinos de seu paísa par de toda a tradição espanho-la. Sua obra encontra-se reunidanas "Obras Completas", em 6 vo-lumes, publicados originariamenteem Madrid nos anos de 1946/47.

Contudo as "Obras Completas"não são completas, em virtude desua produção posterior, inclusiveas publicações póstumas que tota-lizam mais doze livros. Em 1923funda a Revista do Ocidente (quepublicou até 1936), que atualmen-te está sob a responsabilidade deum díscipulo seu, Paulino Cara-gorri, editando a obra orteguiana.Deixa de escrever, em 1917 para operiódico "EI Imparcial"depois dehaver colaborado durante váriosanos e começa a ter seus ensaiospublicados no "El Sol" e somenteem 1931terminará sua participaçãoneste periódico, iniciando suas ati-vidades no "Crisol" e "Luz". De-vido à Revolução Civil Espanhola,Ortega reside entre os anos de1936 a 1945 na França, Holanda,Argentina e Portugal, sempre pro-ferindo cursos e conferências. Jun-to com Julíán Marías funda, em1948, o Instituto de Humanidades,uma instituição privada de estudose pesquisas. Em 1949 inicia um in-tenso ciclo de conferências nos Es-tados Unidos, Alemanha e Suiça,retomando em 1955 a Madrid, on-de vem a falecer no mês de outu-bro.

Apesar da variedade de temas a-bordados, desde as suas primeiraspublicações (principalmente a par-tir de "Meditações do Quixote"),delineará paulatinamente seu mé-todo, ou melhor, sua postura filo-sófica com tal coerência, que mui-

THOT

ORTEGA DIRÃQUE O EU EXISTE,

COM EFEITO,MAS QUE AS COISAS

EXISTEM IGUALMENTE,JA QUE A VIDA,

A ISTO QUE CHAMAMOSVIDA ~ SEMPRE

O EMBATE DO EUCOM AS COISAS.

tos de seus seguidores quererão a·tribuir-lhe um sistema filosófico,mas com o qual, nitidamente, Or-tega jamais se preocupou. O quese pode afirmar é que houveramintenções proeminentes em perío-dos de sua produção, intençõesbem claras e como que necessáriaspara se ir conformando o arcabou-ço central de sua cosmovisão. En-fim, Ortega bem sabia (como sa-bem os artistas, antenas da raça,segundo Ezra Pound), já em 1914,apesar de sua formação neo-kan-tiana, que nem o idealismo nem orealismo - as duas posições filosó-ficas que perduraram através dosséculos -, concluem o enigma hu-mano.

A rigorosa disciplina intelectualque lhe havia propiciado o profun-do e exaustivo estudo de Kant im-buirarn-no da perspectiva idealista,que, entretanto, logo a seguir, em"Meditações do Quixote", ele seafirmaria na frase que sintetiza to-da a sua filosofia, eu sou eu e mi-nha circunstância.

Por um lado, o realismo (a pala-vra latina que designa coisas é res)diz que as coisas existem, e o serreal, o ser que não se compõe denenhuma outra coisa além de simesmo, independe do homem, a-firmando a realidade das coisas edo mundo. Em contraposição a is-to, Descartes vai afirmar que a ú-nica coisa segura sou eu mesmo enão as coisas. A meta deste filóso-fo é reduzir à primeira realidadeconcreta, a uma posição primáriae irredutível de evidência e partir

dela, já absolutamente seguro, pa-ra compreender o mundo. Con-cluiu que o mundo não lhe pro-porcionava esta segurança, pois e-xistem os sonhos, as alucinações,o engano dos sentidos. Assim, nãopoderia confiar no mundo. Maspercebeu que havia um agente emtudo isso, quer dizer, ele próprio.Se ele cometesse um erro, por ób-vio que foi ele quem o cometeu."Mas, logo depois, observei que,enquanto eu desejava considerarassim tudo como sendo falso, eraobrigatório que eu, ao pensar, fos-se alguma coisa. Percebi, então,que a verdade penso, logo existoera tão sólida e tão exata que se-quer as mais extravagantes suposi-ções dos céticos conseguiriam aba-lá-Ia. E, assim crendo, concluí quenão deveria ter escrúpulo em acei-tá-Ia como sendo o primeiro prin-cípio da filosofia que eu procura-va". (8)

Será especialmente contra estaúltima posição, o idealismo (poisé a que se encontrava em pleno vi-gor) que Ortega dirá, peremptoria-mente, que o eu existe, com efei-to, mas que as coisas existemigualmente, já que a vida, a istoque chamamos vida é sempre oembate do eu com as coisas. Acondição primária e irredutívelque Descartes descobriu ser o eu,em Ortega será o eu e as circuns-tâncias. A tese idealista sustentaque eu posso existir sem o mundo,que o eu é independente, e. aí,segundo Ortega é onde erra Des-cartes, porque eu não posso viversem as coisas, sem o mundo, comoda mesma forma, não posso falardas coisas sem um eu. Fundamen-tado nesta descoberta - a realida-de radical -, Ortega prosseguirá,com acentuações específicas nasfases de seu desenvolvimento, atéatingir a maturidade de seu pensa-mento, que foi a razão vital, ápicee síntese de sua filosofia.

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o OlÜETIVISMO

Esta expressão, o objetivismo,é de José Ferrater Mora, que a a-dotou para nomear o que se pode-ria chamar de um primeiro mo-mento da filosofia orteguiana, queintentava antes de mais nada, im-plantar um clima filosófico na Es-panha, desbastando todo subjeti-vismo que acaso encontrasse pe-la frente.

Na Alemanha havia se entregadoOrtega à filosofia kantiana, queele próprio declararia depois "tervivido durante anos dentro deuma atmosfera kantiana, um pou-co como o prisioneiro vive em suacela". Entretanto, Ortega difundiumuito mais o rigor intelectual queas proposições do filósofo alemão.Importava-lhe combater a apatiareflexiva, deitar por terra, em de-fínitívo, as opiniões disformes einfundadas, alertar - ao estilo deum cruzado da filosofia, como opróprio Quixote - para o sonam-bulismo em que se encontrava oseu povo, elevã-lo, como diz emuma de suas frases favoritas, "à al-tura dos tempos". Absorver a tra-dicão, e não esquecê-Ia, forjaridéias e não copiar, estas deveriamser as metas espanholas. Mas Orte-ga não se limitará a falar apenas daEspanha, e sim de toda a Europa,e sua mais extensa exposição pare-ce encontrar-se no "Rebelião dasMassas", em que procede a duracrítica ao liberalismo político doséc. XIX, permitindo que o man-do do mundo se esvaisse da Euro-pa e fosse ficar com duas naçõesimaturas e sem tradição suficientepara abaliza-las de líderes. A Euro-pa, cedendo aos impulsos de umaclamação de liberdade, clamor deigualdade que teve origem na Re-volução Francesa, havia provoca-do o desequilíbrio, e ainda pior,descalabros característicos de jo-vens que se vêem, repentinamente,donos de si mesmos, sem saberem

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ABSORVER A TRADiÇÃO,E NÃO ESQUECE-LA,

FORJAR IDt:IAS ENÃO COPIAR,

ESTAS DEVERIAM SERAS METAS,

NAO SO ESPANHOLAS,MAS DE TODA A EUROPA.

o que fazer, por carecerem de umplano prévio de vida.

É também nesta fase, em que oafã da disciplina intelectual o as-sediava fortemente, que Ortega vaideclarar a necessidade da clarezade objetivos e onde pela mesmaforma discemirá acerca da razãona vida (pois chegaram a qualificá-10 de racionalista e intelectualis-ta): "limitadas a si mesmas, a ra-zão ou a vida. são mutiladas e quedeve evitar-se tanto interpretaruma sem a outra como reduziruma à outra". (9)

Este é já um vislumbre da sua ra-zão vital, em que basicamente arazão não é a valência da vida, en-tendido isto pelo "penso, logo e-xisto", mas ao contrário deste ra-cionalismo, Ortega dirá "pensoporque existo", sendo a razão umcomponente da vida.

o PERSPECIIVISMO

É ainda em "Meditações do Qui-xote" que Ortega apresentará estesegundo e importante conceito.Entretanto somente em 1923, emo "Tema de Nosso Tempo", vaidar-lhe forma definitiva. O pers-pectivismo desempenharia um pa-pel de ligação entre sua inicia-ção devastadora da época chama-da objetivista até a teoria da razãovital. Esta "doutrina do ponto devista" não se constitui em nenhu-ma novidade filosófica, uma vezque foi tema de inúmeros pensa:dores que o antecederam. Porém- mesmo porque a questão da ori-ginalidade tampouco é de fácil es-clarecimento -, Ortega a insere no

contexto de seu pensamento, oudito de outra forma, ela não se a-presenta isolada, mas sim compos-ta de elementos como o vitalismo,sua tese sobre as impressões sensí-veis e os conceitos, e por último, esempre, amalgamada às circuns-tâncias.

O começo de nosso século foimarcado de maneira indelével porfilósofos pregando o retomo àconcretitude, e uma das mais níti-das manifestações deste fato emOrtega, está em que inicia o "Me-ditações do Quixote" praticamen-te declarando guerra ao empenhode se fazer da filosofia um univer-so fechado. Insistiu no sentido deque a filosofia não deveria abster-se de questões frequentemente es-quecidas pelos filósofos, pois O de-sentranhar a vida é a atividadeprópria da filosofia, quaisquer quesejam os temas. Para isso adotouuma atitude metódica, uma postu-ra intelectual sem discriminaçõessobre o quê filosofar, daí sua va-riedade de interesses, antes propo-sital do que resultado de algumaespécie de instabilidade. E isto,devemos convir, está bem de acor-do com sua afirmação de que ohomem é um ser circunstancial econseqüentemente a necessidadede uma filosofia aberta, mais pró-

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xima e tangível, uma vez que, co-mo veremos em seguida, Ortega a-firma - algo semelhante à fórmulade Kant: as impressões sem con-ceitos são cegas e os conceitos semimpressões são vazios - que "osconceitos são órgãos da percepçãono mesmo sentido que os olhossão órgãos da visão". (10)

Entretanto, a percepção enten-dida como "conexão de realida-des". Caminhando nesta direção,Ortega constrói um corpo deidéias considerável, sendo as cita-das aqui algo como suas principaisresultantes. Não foi, portanto, poracaso que alguns de seus seguido-res quiseram atribuir-lhe um siste-ma ao modo de outros filosófosque o precederam na história. E sequisermos admitir tal sistema, se-ria pelo menos um sistema abertoe jamais uni conjunto que encerra-se sobre si mesmo.

O perspectivismo é então umpasso que Ortega tem de dar, poisé uma conclusão. E suas frases, re-sumindo estas idéias, são isto mes-mo, conclusivas, mas não isoladasou carecendo de um amplo senti-do, desde que se acompanhe suapreparação subjacente. "O ser de-finitivo do mundo não é nem ma-téria nem é alma, não é coisa algu-ma determinada, mas uma pers-pectiva". (11)

Contrapondo-se às opiniões tra-dicionais diz que a realidade últi-ma não é matéria nem espíritomas uma perspectiva, e conformeseu andamento vemos a necessida-de que tem de afirmar o concreto.com evidentes vínculos com aidéia de circunstância. Mais tarde,contudo, o perspectivismo se as-sentará independentemente.

"Cada homem tem uma missãode verdade. Onde estão os meusolhos não estão outros. O que osmeus olhos vêem da realidade,mais nenhum outro vê. Somos in-substituíveis, somos necessários".(12)

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"O SER DEFINITIVODO MUNDO

NÃO E NEM MATERIANEM E ALMA,

NÃO E COISA ALGUMADETERMINADA,

MAS UMA PERSPECTIVA".

Nesta segunda etapa de seu de-senvolvírnento intelectual, Ortegacontinua a luta contra o distancia-mento que existe entre a vida (avida de agora, circunstancial, quepalpita neste instante) e a filoso-fia. Acentua o caráter temporal darealidade, o ser efêmera é o valorda vida, sua graça e espontaneida-de. Nota-se aqui já uma tangentedo problema da mutabilidade e fi-xidez, retomando Herác1ito e rele-gando Parmênides. Conseqüente-mente, o perspectivismo não querser uma visão material, mas aocontrário, reabsorvendo o que foiesquecido no 'conceito rígido doser do eleatismo, Ortega carregade valor o circunstancial porqueesta é a vida que nos coube viver,fazendo-a e refazendo-a a todomomento.

A RAZÃO VITAL

Diante de posições filosóficasbem defmidas, como o racionalis-mo, Ortega propõe o vitalismo,-que poderíamos entender comosendo o perspectivismo circuns-tancial, onde o homem se encon-tra a si mesmo e com o mundo, ea razão é "toda ação intelectualque nos põe em contato com arealidade, por meio da qual topa-mos com o transcendente".(13)

Não propõe desta forma, nenhu-ma teoria da razão, mas um sim-ples reconhecimento do fato deque não temos outra solução - di-zendo o que quisermos dela - se-não admitir que temos de convivercom ela, pois se encontra arraiga-da à vida. Neste raciocínio é que

podemos inverter a fórmula deDescartes, já que não existo por-que penso, e sim penso porque vi-vo. Porém a razão vital é tambémum método, do qual seu autor fezamplo uso em suas obras posterio-res, quando distingue, a título deexemplo, em seu. ensaio sobre"Idéias e Crenças", o pensar do es-tado de fé, e suas múltiplas for-mas. Julián Marías inclusive temum livro, "Introdução à Filosofia"feito pelo método da razão vital,que não se trata, efetivamente, deum conjunto de normas e regrasdispostas em determinada ordem,antes obedece à própria conceitua-ção de razão vital feita por Ortega,ou mesmo em seguir as complexascircunvoluções da vida.

A leitura de Ortega nos propor-ciona esta constatação, ao ir fa-zendo seu método (que é o "ir fa-zendo"), acompanhando o dina-mismo desta situação que é o estare ser no mundo.

JOSÉ CAR USO FILHO

NOTAS

1. Pignatari, D. :"Comunicação Poéti-ca", Cortez e Moraes Ltda., São Paulo,1977, p. 5.2. Idem.3. Ferrater Mora, J.: "Ensaio Introdu-tário às Etapas da Filosofia de Ortega yGasset", Livro Ibero-Amerícano, Riode Janeiro, 1963, p. 29.4. Marías, Julián:"História da Filoso-fia", Edições Souza e Almeida, Porto,5a. edição, p. 422.5. Idem.6. Ferrater Mora, 1., ob. cit., p.15.7. Marías, Julián, ob. cit., p. 423.8. Descartes, R.: "Discurso do Méto-do", Hemus-Liv. Editora Ltda., 4a.parte, p. 44.9. Ferrater Mora, J., ob. cito p. 42.10. Idem, p. 51.11. Marías, Julián, ob. cit., p. 426.12. Idem, p. 427.13. Idem, p. 429.

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