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Resenhando o Festival of Britain em 1951, oarquiteto Lionel Brett escreveu: “É fácil per-ceber que o estilo dos anos 50 vai ser con-siderado frágil e efeminado pela próximageração, mas não devemos perder o sonopor causa disso”.1

“Efeminado”? O que Brett teria querido di-zer? Um século antes, tal observação pode-ria ter passado sem comentários, mas em1951 era tão pouco usual conectar arquite-tura a gênero ou sexualidade, que ela cau-sou verdadeiro alvoroço. Gênero, outroratermo freqüente do vocabulário dos arqui-tetos e dos críticos, tinha virtualmente desa-parecido durante o século 20. Nos dias dehoje, falando de maneira geral, as pessoassó utilizam as metáforas de gênero comoarcaísmo consciente, quando desejam des-crever a arquitetura antiga na linguagem deseu próprio tempo: por exemplo, Pevsner eCherry consideram a galeria de esculturasde Dance e Smirke na Lansdowne House,em Berkeley Square, “bastante masculina, noestilo de um Adão”.2 Como instrumentopara caracterizar a arquitetura do presente,todavia, as metáforas de gênero se extingui-ram quase completamente no curso desseséculo. Entretanto, se as pessoas não maislançam mão das metáforas de gênero, issosignifica que as distinções antes conotadaspela diferença entre ‘masculino’ e ‘feminino’,

Masculino, feminino ou neutro?

ou entre ‘viril’ e ‘efeminado’, não mais exis-tem? Podem essas distinções, que eram nopassado um componente rotineiro do dis-curso arquitetônico, realmente desaparecersem deixar traços de nossa maneira de pen-sar sobre arquitetura? Teria a arquitetura per-dido seus gêneros? Teríamos, hoje em dia,apenas uma arquitetura neutra?

As razões por que os termos relacionadosao gênero foram extirpados da linguagem dacrítica arquitetônica no início do século 20são evidentes – o modernismo requeria quea arquitetura afirmasse sua singularidade esua independência com relação às outrasartes, e, portanto, a linguagem descritiva ti-nha que evitar toda referência a práticas ex-ternas à arquitetura; as metáforas de gêneropertenciam a uma convenção crítica comuma todas as artes – literatura, drama, música,pintura – e, portanto, eram completamenteinadequadas para definir o que havia de es-pecífico e único com relação à arquitetura.No entanto, a terminologia referente aos gê-neros havia fornecido importante metáforade distinção para os críticos da arquiteturapor boa parte dos dois últimos milênios, eparece pouco provável que essas distinçõesmentais tenham cessado de existir simples-mente porque as metáforas que outrora asexprimiam se tenham tornado inadequadas.O que aconteceu, então, no século 20 à

Arquitetos: Robert eJames AdamThe Register HouseThe Register HouseThe Register HouseThe Register HouseThe Register House(Public Records Office)Edimburgo, Escócia,1775imagem em domínio público

Arquiteto: HenryHobson RichardsonMarshall Field StoreMarshall Field StoreMarshall Field StoreMarshall Field StoreMarshall Field StoreChicago, Illinois (1887)(demolido em 1930)imagem em domínio público

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Investigando os discursos sobre arquitetura desde a tradição clássica até a década de1990, o autor afirma que as distinções de gênero, embora tenham caído em desusodurante o século 20, fundamentam nossas maneiras de pensar sobre a arquitetura.Ressalta ainda que a melhor arquitetura foi associada a características masculinas.

Arquitetura; crítica; gênero.

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distinção expressa pela linguagem do gêne-ro, outrora tão efetiva? Será que essa distin-ção foi deslocada para algum outro local? Essaé a questão que pretendo investigar.

Os gêneros da arquitetura no contexto datradição clássica são suficientemente conhe-cidos, de maneira que não precisamosdescrevê-los aqui detalhadamente. A metá-fora nasce com a origem mítica das ordens,segundo a qual, como Bernini pontuou noséculo 17, “a variedade das ordens procededa diferença entre os corpos do homem eda mulher”.3 Bernini, é óbvio, referia-se àsconsiderações de Vitrúvio a respeito das di-ferentes ordens, ao modo como os gregos“consideraram a invenção das colunas deduas maneiras; uma [dórica], de aparênciamasculina, despida de ornamentos; a outra[jônica] feminina (...) Mas a terceira ordem,chamada coríntia, imita a delicada figura deuma donzela”.4 Os gêneros das ordens pro-postos por Vitrúvio tornaram-se lugar-co-mum na Renascença italiana e onde quer quea arquitetura clássica tenha sido adotada. Àsvezes, a classificação era elaborada ainda mais:sir Henry Wotton, por exemplo, escreveuem 1624: “A ordem dórica é a mais gravedas que foram adotadas no uso civil, preser-vando, em comparação com as que se se-guem, aspecto mais masculino (...) A ordemjônica apresenta certa esbelteza feminina,mas não, de acordo com Vitrúvio, como umadelicada dona-de-casa, e sim como umamatrona, discretamente vestida (...) A coríntiaé uma columne, enfeitada, com a sensualida-de de uma cortesã (...).5 Wotton distinguianão apenas entre masculino e feminino, mastambém entre tipos de feminilidade, entre adecência da matrona e a luxúria da cortesã.Percebemos aqui o rico potencial das metá-foras de gênero, com sua capacidade deconotar não apenas a diferença sexual, mastambém a orientação sexual – e, obviamen-te, foi isso que tornou o uso de “efeminado”feito por Brett tão chocante, porque ele não

estava dizendo apenas que o Festival ofBritain era ‘feminino’, mas sim que ele erauma perversão do caráter normal, masculi-no, da arquitetura. Dos dias de Wotton emdiante, termos designando desvio sexual fo-ram tão valiosos para os críticos quanto asmais simples distinções de gênero.

O gênero das ordens foi convenção quedurou tanto quanto a tradição clássica e foiusado igualmente por arquitetos e não-ar-quitetos. Mais interessante para nossas con-siderações é a caracterização de edifícios in-teiros em termos de diferença sexual. Porexemplo, em 1825, o arquiteto ThomasHardwick escreveu a respeito da obra deseu antigo mestre, sir William Chambers: “Osexteriores de seus prédios são marcados edistinguidos por um estilo ousado e mascu-lino, nem grave em demasia nem tampoucomesquinho”.6 Diante disso, pode parecer queHardwick não disse muito a respeito do es-tilo de Chambers ao descrevê-lo como “mas-culino”, mas qualquer um que estivesse a parda arquitetura francesa do século 18 – comoambos, Hardwick e Chambers, estavam –certamente pensaria de outra maneira.

Na França, de meados do século 18 em di-ante, ‘masculino’ (o termo usual era mâle)foi muito empregado, especialmente no ata-que ao rococó: J.-F. Blondel, por exemplo,escrevendo em 1752, contrastou o rococócom “aquela masculina simplicidade” dosedifícios que ele aprovava.7 E, um ano de-pois, Laugier escreveu no mesmo sentido:“Em uma igreja não deve haver nada quenão seja simples, masculino, grave e sério”.8

Os críticos mais sistemáticos encontravamalguns problemas para definir o termo ‘mas-culino’ – um exemplo claro é o próprio J.-F.Blondel (cuja academia em Paris foi freqüen-tada por Chambers). Em seu Coursd’Architecture, Blondel assim fazia a distinçãoentre três termos: o ‘masculino’ (mâle), o‘firme’ (ferme) e o ‘viril’ (virile):

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Uma arquitetura masculina pode ser en-tendida como aquela que, sem ser pesa-da, retém em sua composição a firmezaadequada à grandeza do local e ao tipodo edifício. É simples em suas formasgerais e desprovida de muitos detalhesornamentais; exibe planos retilíneos, ân-gulos retos e projeções que produzemsombras profundas. Uma arquiteturamasculina é adequada aos mercadospúblicos, feiras, hospitais e, sobretudo, aosedifícios militares, em que se deve evitarcom empenho as composições pequenas– o débil e o grande não devem cami-nhar lado a lado. Freqüentemente, pro-curando criar uma arquitetura masculina,se faz algo pesado, massivo e rude – apalavra confunde-se com a coisa.

Os exemplos de Blondel incluem os traba-lhos de Michelangelo e, na França, o Palaisde Luxembourg, os estábulos e orangerie deVersailles, e a Porte de Saint Denis. Ele pros-segue:

Uma arquitetura firme difere de uma ar-quitetura masculina por suas massas; aarquitetura firme tem menos peso, nãoobstante apresente em sua composiçãoe divisão formas definidas com superfíci-es planas e ângulos retos; em toda suaextensão, mostra segurança e articulação,impondo-se e impressionando o olhar daspessoas inteligentes.

Exemplos incluem os chateaux em Maisons,Vincennes e Richelieu. Blondel continua:

Embora possa parecer que uma arquite-tura viril pouco difere dos dois caracteresprecedentes, o termo é reservado paratrabalhos em que predomina a ordemdórica. Masculinidade e firmeza em ar-quitetura freqüentemente necessitam serexpressas pela rusticidade e solidez, e nãoexigem a presença dessa ordem.9

Quando Blondel se detém no caráter femi-nino, assim como faz com relação ao viril,ele o identifica pelo uso de uma ordem par-ticular, mas prossegue acrescentando algu-mas considerações:

Chamamos de feminina uma arquiteturacuja expressão é derivada das proporçõesda ordem jônica. O caráter expresso pelaordem jônica é mais ingênuo, delicado emenos robusto do que o da dórica, e poressa razão ela deve ser usada apropria-damente e com discrição na decoraçãodos edifícios. Seria fazer mal uso da ar-quitetura feminina aplicar a ordem jônicaa um edifício cujo propósito particularparecesse requerer tratamento viril. As-sim como poderíamos julgar mal uso daarquitetura feminina aplicar às projeçõesda fachada de um edifício, sólido em es-tilo, membros curvilíneos e não retilíneos.Outra má aplicação da arquitetura po-deria ter o efeito de transmitir inseguran-ça às massas, assim como aos detalhesde um edifício cuja intenção fosse, ao con-trário, suscitar admiração. Esse estilo deve,portanto, ser evitado em todos os monu-mentos militares, nos edifícios erigidos àglória dos heróis e nas moradas dos prín-cipes. Por outro lado, a arquitetura femi-nina pode ser apropriadamente empre-gada na decoração exterior de um belavilla rural, em um Petit Trianon, no interi-or dos apartamentos de uma rainha ouimperatriz, nos banhos, fontes, e outrosedifícios dedicados a divindades do marou da terra.10

No esquema crítico de Blondel, o masculinoera inquestionavelmente superior ao femi-nino; a arquitetura masculina era resoluta,expressava seu propósito claramente, semse valer da ornamentação para além do ab-

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solutamente necessário, e transmitia solideze permanência estrutural; por outro lado, àarquitetura feminina, feita para encantar, erapermitida certa dose de confusão e ambi-güidade. Como veremos, a tese de Blondelde que o feminino era sempre necessaria-mente inferior atravessou toda a história dosgêneros na arquitetura.

O conceito de Blondel a respeito da arqui-tetura masculina continuou em uso na Fran-ça pelo resto do século 18. Uma idéia decomo ele poderia ser aplicado na práticaarquitetônica pode ser deduzido, por exem-plo, das declarações de Boulée, na décadade 1790, a respeito de seu projeto para umaprefeitura – um partido que, segundo os cri-térios de Blondel, era preeminentementemasculino:

Refletindo sobre os métodos para criaruma forma de decoração orgulhosa emasculina e, simultaneamente, sobre anecessidade de várias aberturas, você deveimaginar que fui rapidamente freado earremessado na maior das confusões;uma casa aberta a todos deve necessa-riamente parecer uma espécie de cor-tiço; e, sem dúvida, uma prefeitura éum cortiço humano; pois qualquer umque entende de arquitetura sabe comoa multiplicidade de aberturas distribuídasao longo de uma fachada produz aquiloque podemos descrever como magreza[maigreur]. Na decoração, são as mas-sas planas que produzem os efeitos mas-culinos...11

A linguagem de gêneros estava tão relacio-nada à tradição clássica da arquitetura, quese poderia esperar que morresse junto comessa tradição. Ao contrário, porém, com orevival gótico, ela foi levada adiante e, tantona Inglaterra quanto nos EUA, foi usada pe-los críticos ainda mais do que antes. Porexemplo, The Ecclesiologist, ao resenhar a All

Saints, em Margaret Street, de Butterfield,quando de sua conclusão em 1859, se refe-riu a “nossa admiração geral pelo projeto virile austero”,12 e alguns anos depois, em 1874,Robert Kerr se referiu às “maneiras por ve-zes muito masculinas do revival gótico”.13 ‘Fe-minino’ era o termo favorito para designar aarquitetura que os críticos não aprovavam.Por exemplo, o crítico Beresford Hope dis-criminava diversos tipos de gótico compa-rando as “poderosas e masculinas qualida-des do gótico francês original (...) ao fluxofebril de decorações efeminadas”,14 ou no-vamente Robert Kerr:

apesar de admirar imensamente toda a artefrancesa, nunca posso desviar minha men-te da sensação de que estou admirandoalgo cujos encantos são femininos. Digo, por-tanto, que a Inglaterra, a terra por excelên-cia da musculosidade nua e crua, prova-velmente nunca vai seguir precisamenteas fórmulas do gosto francês.15

Na América, todavia, a terminologia dos gê-neros emergiu em um contexto um tantodiferente. A partir de 1830, o fracasso daAmérica em desenvolver nas artes um estilonacional distintivo era preocupação recor-rente entre os arquitetos e críticos america-nos. O filósofo Ralph Waldo Emerson, re-fletindo em 1836 sobre aquilo que ele con-siderava a superioridade européia nas artes,comentou que o trabalho dos artistas, escri-tores e arquitetos americanos era “em tudofeminino, sem caráter”.16 Seguindo Emerson,conscientemente ou não, arquitetos e críti-cos de finais do século 19 repetidamenteapresentavam o tema da relação culturalentre América e Europa em termos de gê-nero. Só quando a arte americana se tornas-se masculina ela provaria seu valor. O arqui-teto H. H. Richardson era grandemente es-timado justamente por ter atingido esse re-quisito: seu trabalho foi descrito pelo arqui-

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teto e crítico Henry van Brunt, por exem-plo, como tendo “grande, másculo vigor”.17

Mas isso certamente não era nada compa-rado ao elogio feito por Louis Sullivan, em1901, ao Marshall Field Store, em Chicago,de Richardson, que deve ser a maior cele-bração da masculinidade arquitetônica detodos os tempos:

Digo, aqui está um homem para vocêolhar. Um homem que anda sobre duaspernas, em vez de quatro, que tem mús-culos ativos, coração, pulmões e outrasvísceras; um homem que vive e respira,que tem sangue vermelho; um homemreal, um homem másculo; uma força viril– ousada, vigorosa e transbordando deenergia – um completo macho.18

A arquitetura de Sullivan, por sua vez, foilouvada por sua masculinidade: ouçamos oArchitectural Record em 1904, a respeito doGuaranty Building em Buffalo:

(...) o elemento essencial é a masculini-dade. Esse é um edifício de escritóriosamericano, dominado por homens e de-votado à transação de seus negóciosem todas as suas múltiplas formas –os elementos de atividade, ambição efranqueza de propósitos se encontramassim, portanto, exibidos nas formasarquitetônicas.19

Mas a terminologia da diferença sexual de-sapareceu com Sullivan. Por volta de 1924,quando ele morreu, os gêneros tinham dei-xado de ser aquela metáfora comum,organizadora de toda uma variedade de dis-tinções hierárquicas, ‘forte/débil’, ‘resoluto/equívoco’ e assim por diante – a metáforaque Blondel havia delineado e que haviaestruturado o pensamento dos arquitetos ecríticos por aproximadamente dois séculos.Uma razão para o desaparecimento da me-

táfora tinha relação, como já adiantei, com anecessidade do modernismo de desenvol-ver um vocabulário crítico que afirmasse aindependência da arquitetura com relaçãoàs outras práticas artísticas. Entretanto, o quetalvez tenha dado o golpe de misericórdiaàs metáforas de gênero foi a tendênciada cultura fascista, com seu pronunciadohomoerotismo, a se caracterizar como mas-culina; às vezes essa tendência invadiu a ar-quitetura, como quando, por exemplo naItália, o manifesto do RacionalismoArquitetônico proclamava “A arquitetura daera de Mussolini deve responder ao caráterde masculinidade, de força, de orgulho darevolução”.20 Nessas circunstâncias, erainaceitável para qualquer um que se consi-derasse politicamente liberal, antifascista, usarmetáforas de gênero, e depois de 1945 elasvirtualmente desapareceram. Mas a ausên-cia da terminologia de gêneros em nossostempos significa que a arquitetura realmen-te se tornou neutra? Tenho dois exemplosque podem ajudar-nos a refletir sobre oquanto realmente renunciamos às metáfo-ras da diferença sexual.

O primeiro exemplo diz respeito àquilo quese poderia chamar de linguagem da ‘forma’.Como uma palavra-chave do vocabuláriocrítico modernista, ‘forma’ tem longa e com-plexa história, ao menos em parte derivada

Arquiteto: Louis SullivanGuaranty BuildingGuaranty BuildingGuaranty BuildingGuaranty BuildingGuaranty BuildingBuffalo, NYFoto: Jack E. Boucher

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da tradição filosófica alemã de Kant e Hegel.Para Hegel, a forma da obra de arte era aconfiguração externa, material, através daqual a idéia se dava a conhecer aos sentidos.Essa teoria da arte baseava-se na correspon-dência direta entre a forma e a idéia ou temainterno, subjacente; a obra cuja aparênciaexterna falhasse em comunicar a idéia falha-va no cumprimento do mais elementar re-quisito da arte. No final do século 19, parce-la considerável de esforço intelectual foiinvestida com o fim de determinar a nature-za precisa dos meios que a arte possuía paracomunicar a idéia, e quais eram os aspectosparticulares da idéia que a arte estava maisbem equipada para revelar. Uma linha influ-ente de argumentação era aquela que defen-dia que as formas de arte podiam e deviamrepresentar movimento: nas palavras doesteta-filósofo, Robert Vischer, escrevendoem 1873, “a arte encontra seu mais altoobjetivo na descrição do conflito dinâmicode forças”.21 Nesse sentido, o interesse e asingularidade da arquitetura eram percebi-dos na maneira particular como essa arterepresentava as forças estáticas de resistên-cia do edifício com relação à gravidade. Aanálise de Heinrich Wölfflin da arquiteturamaneirista romana se baseava essencialmentena maneira como as formas estáticas comu-nicavam uma espécie de movimento frus-trado: “o barroco [termo pelo qual Wölfflindesignava o maneirismo] nunca nos oferecea perfeição e o acabamento, ou a calma es-tática do ‘ser’, apenas a inquietação da mu-dança e a tensão da transitoriedade. Isso pro-duz novamente uma sensação de movimen-to”; e “o ideal da ausência de tensão foi pro-movido por formas que eram incompletas aponto de ser desconfortáveis” – que Wölfflinexemplificava com o agrupamento de colu-nas.22 A noção de que a arquitetura repre-senta o movimento implícito através de for-mas que não estão elas mesmas em movi-mento fazia parte das convenções do pen-

samento modernista e parece ainda hojeestar sendo levada em consideração.

O que quero sugerir é que toda essa idéiade forma como representação estática doconflito de forças internas se baseia no idealda anatomia masculina, pois é no corpomasculino que se pode encontrar a corres-pondência mais próxima entre a forma ex-terna e o esforço muscular. A concepção de‘forma’ de Wölfflin devia muito às análisesda escultura figurativa clássica, feitas no con-texto da tradição alemã de historiografia ar-tística, originada com Winckelmann.23 Nasesculturas antigas representando a figuramasculina, qualidade especialmente admira-da era a representação, na forma estática,da concentração combinada de esforçomuscular e físico. Em nenhum lugar ela po-deria ser mais bem admirada do que na escul-tura helenística do sacerdote troianoLaocoonte lutando com as duas serpentesenviadas pelos deuses para matá-lo. Ao idealda anatomia feminina, por outro lado, falta-va essa correspondência entre a estruturamuscular interna e a forma exterior e visível;portanto, a figura feminina nunca poderiaexpressar essa qualidade de energia conge-lada – e, convencionalmente, as esculturasclássicas representando o nu feminino mos-travam figuras sem movimento, recorrente-mente em repouso. Teria sido impossívelpara Wölfflin conceber a teoria do movimentoem termos do corpo feminino porque elesimplesmente possuía a configuração errada.

O conceito de forma que Wölfflin desen-volveu em sua tese de doutorado era base-ado na projeção empática das sensações dopróprio corpo do espectador na formaarquitetônica. “Formas físicas só possuemcaráter porque possuímos corpo”.24 É pormeio da “mais íntima experiência de nossopróprio corpo” e de sua projeção “sobre anatureza inanimada” que a percepção esté-tica ocorre.25 O que parece evidente, toda-

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via, é que Wölfflin não está falando a respei-to de corpos em geral, mas de seu própriocorpo, o corpo masculino, como aquele queconfere à forma seu significado.

Quero sugerir que o conceito de ‘forma’, damaneira como foi empregado pela maioriados modernistas, é masculino, um ideal mas-culino. Se isso soa deslocado do contexto,apreciemos, por exemplo, o que VincentScully diz a respeito de Chandigarh, de LeCorbusier:

O pátio é uma enorme massa de concre-to, vazada. Sua superfície de vidro é maisuma vez mascarada, no lado da entrada,por um brise-soleil que mantém a escalaintacta e avança para cima e para foracom força ameaçadora. Através dessaprojeção, prolongada ainda mais pelasabóbadas da cobertura, emergem asgrandes pilastras como forças puras, im-pulsionadas para cima. Entre elas, homensentram, e rampas de uma violência qua-se piranesiana se elevam atrás deles. Suapotência física pode ser intuída se as com-pararmos com uma obra de Paul Rudolph,a entrada de sua segunda High School emSarasota, Flórida, que foi, como Rudolphfrancamente admitiu, inspirada nas de LeCorbusier. O projeto americano tornou-sedelgado, planar e linear. Está tensamen-te estendido como um guarda-chuva con-tra o sol, e não pode ser interpretado comoanálogo ao corpo humano confiante,marcando sua posição em algum lugar,como o projeto de Le Corbusier exige.26

Bastaria alguém substituir o ideal femininode beleza pelo ideal masculino, e toda a aná-lise fracassaria. Aparentemente neutra, ‘for-ma’ é, na maneira como geralmente conce-bida e discutida na arquitetura do século 20,um ideal masculino.

A segunda área em que podemos detectarindícios de gênero é na chamada Machine

Architecture desenvolvida na Califórnia. Ca-racterizada por exteriores duros, metálicos,e por interiores macios, uma palavra recor-rente nas discussões a respeito dessa arqui-tetura é ‘perigosa’, ‘perigosa e inerentemen-te imprevisível’ – presumivelmente significan-do que, se você se aproximar em demasia,ela pode decepá-lo – e essa periculosidadeparece ser uma das causas do fascínio exer-cido por tal arquitetura. O trabalho de NeilDenari dela representa versão mais sutil:Denari procurou desvencilhar-se da estéticada máquina do começo do século 20, ca-racterizada pela repetição e pela rigidez –traços essencialmente masculinos –, substi-tuindo-a por uma estética que fosse macia,inteligente, receptiva e flexível ao infinito –em uma palavra, feminina. Curiosamente, en-tretanto, os críticos não quiseram aceitar essainterpretação de seu trabalho. Consideremoso que Lebbeus Woods diz a respeito:

A arquitetura histórica está para ele muitocarregada de associações conhecidas (ouassim deve parecer), enquanto a máquinaé ubíqua, inestética, amoral, neutra, indife-rente, filosófica. A máquina está além dapolítica e da topicalidade. É o instrumentoinevitável de uma inteligência que procuradominar as forças naturais e anônimas, eao mesmo tempo a elas se submete, comoum amante ou cúmplice condescendente,assim como um ser humano...27

Arquiteto: Richard RogersLoyd’s BuildingLoyd’s BuildingLoyd’s BuildingLoyd’s BuildingLoyd’s BuildingLondresFoto: Andrew Dunn

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Bem, isso soa para mim exatamente comouma descrição da sexualidade masculina –indiferente, dominando a natureza de talmaneira, que é mesmo capaz de se subme-ter a suas seduções. Parte da fascinação queas pessoas sentem com relação a Denari eoutros machine architects californianos pare-ce relacionar-se com o fato de seus traba-lhos poderem ser tão facilmente vistos comoa concretização de um ideal masculino.

Mesmo se as metáforas de gênero já nãosão parte usual da linguagem dos críticos, asdistinções de gênero ainda parecemestruturar nossas maneiras de pensar.28 Aausência das metáforas não significa que adistinção cessou de existir.

Um último ponto permanece. Convencio-nalmente, a melhor arquitetura sempre foimasculina. As características da arquiteturamasculina estavam disponíveis à visão geral:elas respondiam a um ideal; a arquiteturafeminina, por outro lado, não só era inferior,mas geralmente lhe faltavam qualidades es-pecíficas, fossem positivas ou negativas. Aarquitetura feminina, falando de maneira ge-ral, era muito simplesmente a alteridade nãoexplícita das qualidades apreciadas na arqui-tetura masculina. Nada disso nos deveriasurpreender, pois, como outros já aponta-ram, o feminino é mera invenção do discur-so masculino, e não uma categoria por direi-to próprio: “O discurso masculino inventouo feminino para seus próprios propósitos”.29

Mas, mesmo quando as pessoas pararam dese referir explicitamente à arquitetura comomasculina ou feminina, elas ainda pareciamtomar como certo o fato de que a melhorarquitetura era sempre inerentemente mas-culina. Seria isso irreversível? Um comentá-rio interessante de Mike Sorkin sugere quenão necessitaria ser. Resenhando em 1985o Patscenter Building, de Richard Rogers, emPrinceton, ele escreveu:

O conjunto participa deliberadamente deuma cultura histórica da máquina, domi-nantemente masculina. Se Lemos na pá-ginas da Architecture Review teorias dabritish high-tech que relacionam sua pro-eminência às vivências infantis de seuscriadores, a seus quartos de pré-adoles-centes repletos de brinquedos Meccano30

e réplicas em escala de Sopwith Camels.31

Mais diretamente relevante deve ser ahistória dos uniformes de homens que ad-ministram máquinas, desde o resplande-cente almirante engalanado na ponte doseu gigantesco navio de guerra (...) aoaprumado homem Malboro no convés devôo de um 747. O problema é simples-mente este: essa história da máquina éalheia à história da arquitetura e carregaconsigo preconceitos particulares com re-lação ao ambiente social.32

Na visão de Sorkin, a arquitetura high-techserve bem aos homens, mas as mulheres delase encontram alienadas. Do ponto de vistada história da ‘masculinidade’ no pensamen-to arquitetônico, o artigo de Sorkin poderiarepresentar a primeira vez em que um críti-co de destaque usou ‘masculino’ não paraconotar um ideal superior, mas, ao contrá-rio, para colocar em destaque a misoginiade mentes estreitas. Esse é um precedentecom o qual devemos aprender.

Texto original: Masculine, Feminine or Neuter? inMcCorquadale, Duncan (ed.). Desiring Practices –Architecture, Genres and the Interdisciplinary. Londres:Black Dog Publishing, 1996: 141-155.

Adrian Forty é professor de história da arquitetura emThe Bartlett – Faculty of the Built Environment naUniversity College, em Londres. Seu interesse pela arqui-tetura está ligado a suas pesquisas sobre a vida mentaldas sociedades. Dentre suas publicações destacam-seWords and Buildings. A Vocabulary of Modern Architecture,Londres: Thames and Hudson, 2000; e Objects of Desire.Design and Society since 1750. Londres: Thames andHudson, 1986. Este último foi publicado no Brasil pelaCosacnaify em 2007 com o título Objetos de desejo – designe sociedade desde 1750. Adrian Forty também foi co-

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organizador do livro Arquitetura Moderna Brasileira, publi-cado pela Phaidon em 2004.

Tradução: Arthur Valle

Revisão técnica: Milton Machado

NotasNotasNotasNotasNotas

1 Brett, L. Detail on the South Bank, Design, n. 32, ago. 1951:5-6.

2 Pevsner, N., e Cherry, B. The Buildings of England: London 1,3a. ed, Harmondsworth: Penguin Books, 1973: 559.

3 Fréart de Chantelou. Diary of the Cavaliere Bernini’s Visit toFrance, Blunt, A. (ed.), Corbett, M. (trad.), Princeton,:Princeton University Press, 1985: 9.

4 Vitrúvio. De Architectura. Granger, F. (trad.), 2 v., Londres:Loeb Classical Library, William Heinemann Ltd. eCambridge, Massachusetts: Harvard University Press,1970, Livro IV, Cap.1, §§7-8.

5 Wotton, Sir H. The Elements of Architecture. Londres: JohnBill, 1624: 35-37.

6 Hardwick, T. A Memoir of the Life of Sir William Chambers,in Chambers, Sir, W. A Treatise on the Decorative Part ofCivil Architecture. Gwilt J. (ed.), Londres: Priestley andWeale, 1825: L.

7 Blondel, J.-R. Architecture Françoise ou Recueil des Plans,Elevations, Coupes et Profils..., vol.1. Paris, 1752: 116.

8 Laugier, M.-A. Essai Sur l’Architecture. Paris, 1753; Herrmann,W. e A. (trad.), Los Angeles: Hennessy & Ingalls, 1977:156.

9 Blondel, J.-R, Cours d’Architecture... contenant les LeçonsDonnées en 1750 et les années suivantes, vol.1, Paris,1771: 411-413.

10 Blondel, Cours, v. 1: 419 e 420.

11 Boullée, E.-L. Architecture, Essai sur l’Art, in Rosenau, H.Boullée and Visionary Architecture. Londres: AcademyEditions, 1976: 131.

12 The Ecclesiologist, v. XX, Cambridge, junho 1859: 184-189.

13 Kerr, R. [1884]. English Architecture Thirty Years Hence,reimpresso em Pevsner, N. Some Architectural Writers ofthe Nineteenth Century, Oxford: Clarendon Press, 1972:307.

14 Beresford Hope, A. J. B. The Common Sense of Art. Lon-dres, 1858: 19-20.

15 Kerr, English, op. cit.: 296.

16 Emerson, R. W. Journals, v. 4, Boston e Nova York:Houghton Mifflin Co., 1910: 108.

17 Van Brunt, H. [1880]. Henry Hobson Richardson,Architect, in Coles, W. A. (ed.). Architecture and Society,

Selected Essays of Henry van Brunt. Cambridge,Massachusetts: Belknap Press of Harvard University Press,1969: 176.

18 Sullivan, L. H. [1901-2]. Kindergarten chats, reimpressoNova York: Wittenborn Art Books, 1976: 29.

19 Smith, L. P. The Schlesinger & Mayer Building. ArchitecturatRecord, v. 16, n. 1, jul. 1904: 59.

20 Manifesto per l’Architettura Razionale [1931] in Pateta, L.L’Architettura in Itália 1919-1943. Le Polemiche. Milão:clup, 1972: 192.

21 Vischer, R. [1873]. On the Optical Sense of Form (trad.)in Mallgrave, H. F. e Ikonomou, E. Empathy, Form andSpace. Problems in German Aesthetics 1873-1893, SantaMonica: GettyCenter, 1994: 121.

22 Wölfflin, H. [1889]. Renaissance and Baroque. Simon, K.(trad.). Londres: Collins, 1984: 62-63.

23 Ver Potts, A. Flesh and the ideal, Winckelmann and theorigins of German Art History. New Haven e Londres:Yale University Press, 1994, especialmente o cap. IV, paraa discussão desse tópico.

24 Wölfflin, H. [1886]. Prolegomena to a Psychology ofArchitecture. Empathy, Form and Space, op. cit.: 151.

25 Id., ibid.: 159.

26 Scully, V. Modern Architecture. Londres: StudioVista,l968: 48.

27 Woods, L. Neil Denari’s Philosophical Machines. A+U,mar. 1991: 43-44.

28 Exemplo adicional do poder de tal distinção é sugeridopor Robin Evans ao propor que parte do interesse pelacapela de Le Corbusier em Ronchamp – “dedicada àsmulheres, obra-prima da subjetividade, renomadademolidora do ângulo reto e da linha reta” – é que asformas femininas que a distinguem são o resultado deum processo de criação afirmativamente masculino. VerEvans. R. The Projective Cast: Architecture and its ThreeGeometries. Cambridge, Massachusetts e Londres: TheMIT Press, 1995: 287 e 320.

29 Bergren, A. Dear Jennifer. ANY, v. 1, n.4, jan.-fev. 1994: 12.

30 Brinquedos de armar produzidos na Inglaterra entre 1908e 1980. Seus modelos de trens, caminhões, aeroplanose máquinas foram muito populares entre os meninos.(N.T.)

31 Avião de caça britânico usado na Primeira Guerra Mun-dial. (N.T.)

32 Sorkin, M. Exquisite Corpse, Writings on Buildings. Londrese Nova York: Verso, 1991: 134-135.

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