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12 Crocodilomorfos: a maior diversidade de répteis fósseis do Brasil Douglas Riff Univ. Fed. Uberlândia, Lab. Paleontologia, Inst. Biologia, Uberlândia,MG. [email protected] Rafael Gomes de Souza Univ. Fed. Uberlândia, Lab. Paleontologia, Inst. Biologia, Uberlândia,MG. Giovanne Mendes Cidade Univ. São Paulo, Lab. Paleontologia, Fac. Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, SP. Agustín Guillermo Martinelli Centro de Pesquisas Paleontológicas L.I. Price, Complexo Cultural e Científico Peirópolis (CCCP/ UFTM), Uberaba, MG. Jonas Pereira de Souza-Filho Univ. Fed. Acre, Museu de Paleontologia, Campus Univ. Áulio Gélio Alves de Souza, Rio Branco, AC. ABSTRACT Most textbooks and divulgation medias devoted to the teaching of Geosciences and Biosciences explore the apparent familiarity of readers concerning dinosaurs to illustrate the process of fossilization, the paleontological heritage and the geological history of life. However, another lineage of reptiles, the crocodylomorphs, stands out when compared to other iconic fossil groups, and presents a remarkable species diversity, morphological disparity and ecological variety. With about 50 fossil species known in Brazil (almost three times the dinosaur record) and other under study, this group is particularly representative in the country, which also has six living species of caimans. Here we present a contextualized overview of the accumulated knowledge about these remarkable animals and their implications for understanding preterite biota and ecosystems, as well as demonstrating the inadequacy of considering the group as unchanged, or as “living fossils”. Citation: Riff D., Souza R.G.de, Cidade G.M., Martinelli A.G., Souza-Filho J.P.de. 2012. Crocodilomorfos: A maior diversidade de répteis fósseis do Brasil. Terræ, 9(1-2):12-40. <http://www.ige.unicamp.br/terrae/>. KEYWORDS: Crocodilians, Geology, Paleontology, Historical Geology, teaching of Evolution. RESUMO A maior parte dos livros-texto e mídias de divulgação dedicados ao ensino de Geociências e Biociências vale-se da aparente familiaridade dos leitores com dinossauros quando pretende exemplificar o processo de fossilização, o patrimônio paleontológico e a história geológica da vida. No entanto, outra linhagem de répteis, os crocodilomorfos, destaca- se quando comparado a outros grupos fósseis emblemáticos, e apresenta uma notável diversidade de espécies, disparidade de formas e variedade de hábitos de vida. Com cerca de 50 espécies fósseis conhecidas no Brasil (aproximadamente o triplo do registro de dinossauros) e outras em fase de estudo, este grupo é particularmente representativo no país, que inclui ainda seis espécies viventes de jacarés. Neste trabalho apresentamos um panorama contextualizado do conhecimento já acumulado sobre estes notáveis animais, com ênfase no Brasil, e suas implicações para o entendimento das biotas e ecossistemas pretéritos, assim como demonstramos a inapropriedade de considerá-los como formas inalteradas, ou “fósseis-vivos”. PALAVRAS-CHAVE: Crocodilianos, Geologia, Paleontologia, Geologia Histórica, Ensino de Evolução ARTIGO

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    Crocodilomorfos: A maior diversidade de rpteis fsseis do Brasil TERR 9:12-40, 2012

    Crocodilomorfos: a maior diversidade de rpteis fsseis do Brasil

    Douglas RiffUniv. Fed. Uberlndia, Lab. Paleontologia, Inst. Biologia, Uberlndia,[email protected] Gomes de SouzaUniv. Fed. Uberlndia, Lab. Paleontologia, Inst. Biologia, Uberlndia,MG.Giovanne Mendes CidadeUniv. So Paulo, Lab. Paleontologia, Fac. Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto, Ribeiro Preto, SP.Agustn Guillermo MartinelliCentro de Pesquisas Paleontolgicas L.I. Price, Complexo Cultural e Cientfico Peirpolis (CCCP/UFTM), Uberaba, MG. Jonas Pereira de Souza-FilhoUniv. Fed. Acre, Museu de Paleontologia, Campus Univ. ulio Glio Alves de Souza, Rio Branco, AC.

    ABSTRACT Most textbooks and divulgation medias devoted to the teaching of Geosciences and Biosciences explore the apparent familiarity of readers concerning dinosaurs to illustrate the process of fossilization, the paleontological heritage and the geological history of life. However, another lineage of reptiles, the crocodylomorphs, stands out when compared to other iconic fossil groups, and presents a remarkable species diversity, morphological disparity and ecological variety. With about 50 fossil species known in Brazil (almost three times the dinosaur record) and other under study, this group is particularly representative in the country, which also has six living species of caimans. Here we present a contextualized overview of the accumulated knowledge about these remarkable animals and their implications for understanding preterite biota and ecosystems, as well as demonstrating the inadequacy of considering the group as unchanged, or as living fossils. Citation: Riff D., Souza R.G.de, Cidade G.M., Martinelli A.G., Souza-Filho J.P.de. 2012. Crocodilomorfos: A maior diversidade de rpteis fsseis do Brasil. Terr, 9(1-2):12-40. .

    KEYWORDS: Crocodilians, Geology, Paleontology, Historical Geology, teaching of Evolution.

    RESUMO A maior parte dos livros-texto e mdias de divulgao dedicados ao ensino de Geocincias e Biocincias vale-se da aparente familiaridade dos leitores com dinossauros quando pretende exemplificar o processo de fossilizao, o patrimnio paleontolgico e a histria geolgica da vida. No entanto, outra linhagem de rpteis, os crocodilomorfos, destaca-se quando comparado a outros grupos fsseis emblemticos, e apresenta uma notvel diversidade de espcies, disparidade de formas e variedade de hbitos de vida. Com cerca de 50 espcies fsseis conhecidas no Brasil (aproximadamente o triplo do registro de dinossauros) e outras em fase de estudo, este grupo particularmente representativo no pas, que inclui ainda seis espcies viventes de jacars. Neste trabalho apresentamos um panorama contextualizado do conhecimento j acumulado sobre estes notveis animais, com nfase no Brasil, e suas implicaes para o entendimento das biotas e ecossistemas pretritos, assim como demonstramos a inapropriedade de consider-los como formas inalteradas, ou fsseis-vivos.

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    dos Crocodylomorpha, permitem uma apreciao mais completa da evoluo do grupo, capacitando--o, assim, a servir de modelo complementar muito til a outras linhas de pesquisa, como a biogeogra-fia, a sistemtica e a tafonomia.

    Os crocodilomorfos viventes formam um grupo monofiltico, natural, denominado Cro-codylia, coloquialmente conhecidos tambm como crocodilianos. Os crocodilianos compem atualmente um grupo restrito a 23 espcies de rpteis arcossauros de mdio a grande porte distribudos ao longo da faixa intertropical do globo. Ocorrem em todos os continentes, exce-to a Antrtica e a Europa, com a Amrica do Sul apresentando a maior diversidade relativa, pos-suindo oito espcies em quatro gneros: Caiman, Melanosuchus, Paleosuchus e Crocodylus. De hbitos semi-aquticos, os crocodilianos viventes ocor-rem sempre em localidades costeiras, pantanosas e/ou ribeirinhas. No entanto, a diversidade atual corresponde apenas a uma frao da diversidade de espcies, de hbitos, habitats, tamanho e dis-paridade morfolgica que esta linhagem apresen-tou ao longo de toda a histria geolgica (Fig. 1). Como dito acima, os crocodilianos correspondem apenas a um ramo do grupo monofiltico maior, mais inclusivo, denominado Crocodylomor-pha (Fig. 2). A histria deste grupo inicia-se h cerca de 225 milhes de anos, entre o Trissico

    IntroduoAo considerarmos o registro fssil dos verte-

    brados, usualmente os dinossauros so o grupo de organismos que mais capturam a ateno pblica e tambm acadmica. No Brasil, no entanto, ao consideramos o registro fssil da grande maioria dos depsitos ps-paleozoicos um outro grupo de rpteis fsseis destaca-se, seja pelo nmero de espcies conhecidas (sua diversidade), as adaptaes morfolgicas apresentadas (sua disparidade), seus hbitos e hbitats (sua paleoecologia) ou se consi- se consi-derarmos simplesmente a quantidade de espcimes conhecidos e qualidade de sua preservao. Este grupo denomina-se Crocodylomorpha (ou cro-codilomorfos, no vernculo) e, apesar de incluir linhagens extintas bastante peculiares, possui ain-da representantes vivos muito bem conhecidos: os crocodilos, os jacars e os gaviais. Tal como ocorre com outros grupos de animais com bom registro fssil e com linhagens sobreviventes, tais como os quelnios ou os lagartos, o conhecimento acumulado a seu respeito amplifica-se pelo fato de dispormos de evidncias diretas, observadas in vivo, sobre muitos aspectos que dificilmente podem ser extrados diretamente das rochas e fsseis, incluin-do a dados sobre sua fisiologia, ecologia, e tambm informaes advindas de molculas, como o DNA. Esses dados, contextualizados sob o panorama his-trico-geolgico oferecido pelo rico registro fssil

    Figura 1. Ilustraes de esqueletos de espcies de diversas linhagens de Crocodylomorpha, representando a disparidade de formas e diversidade de hbitos que este grupo apresentou desde sua origem no perodo Trissico at os dias atuais. A) o crocodilomorfo basal, esfenossquio, Pseudhesperosuchus jachaleri Bonaparte, 1969, do Trissico Superior da Argentina, B) o notossquio basal Simosuchus clarki Buckley et al., 2000, do Cretceo Superior de Madagascar, C) uma forma marinha, o talatossquio Metriorhynchus superciliosus (de Blainville, 1853), do Jurssico Mdio a Superior da Europa, D) o baurussuqudeo Stratiotosuchus maxhechti Campos et al., 2001, do Cretceo Superior do Brasil, E) uma espcie vivente, o caimanneo vivente Melanosuchus niger, ou jacar-au, ocorrente no Brasil e pases amaznicos. Silhuetas em escala (barra = 50 cm) produzidas por Caio Bernardes (D) e Karen Carr (E) e extradas de Parrish 1986 (A), Krause et al. 2010 (B) e Motani 2009 (C).

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    Figura 2. Cladograma com os principais grupos de Crocodylomorpha. Nomes dos clados (ns): 1, Crocodylomorpha. 2, Crocodyliformes. 3, Protosuchia. 4, Mesoeucrocodylia. 5, Notosuchia. 6, Neosuchia. 7, Eusuchia. 8, Crocodylia. 9, Thallatosuchia. Baseado em Riff e Kellner 2011.

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    Progresso do conhecimento acerca dos crocodilomorfos

    Qualquer tentativa de discutir a histria da construo do conhecimento existente hoje, seja em qual rea for, invariavelmente acaba se subme-tendo preferncia do autor no que se refere ao enfoque principal. No caso do estudo de organis-mos (a Biologia), essa preferncia se d principal-mente entre as duas grandes divises desta cincia: o estudo das causas prximas, com abordagens na fisiologia, na bioqumica, no desenvolvimento e no comportamento, e o estudo das causas ltimas, histricas, com uma abordagem evolutiva (Mayr 1998). em funo da afinidade por uma dessas duas divises (que so marcadamente diferentes do ponto de vista metodolgico, muitas vezes julga-das como auto-suficientes e at conflitantes) que percebemos tendenciosidades em um relato da histria da Biologia. Esse fato se repete de maneira fractal em todas as subdivises que se pode fazer dessa cincia. No estudo de um grupo animal, isto no diferente, e aqui cabe poro da Biologia que trata das causas ltimas (onde se incluem a Paleontologia e a Sistemtica) a apresentao do conhecimento deste grupo.

    O incio dos estudos sistematizados dos animais hoje inclusos no grupo monofiltico Crocodylo-morpha deu-se no sculo XVIII (Mook 1934). Neste perodo os zologos, por influncia de Lineu (Carolus Linnaeus), centravam-se na classificao e na nomenclatura, a ponto de quase obliterar outros aspectos da histria natural (Mayr 1998). E os estu-dos sobre os crocodilianos dedicavam-se apenas s formas viventes, ainda referidas como sendo esp-cies de grandes lagartos e classificados inicialmente como tais, sendo includos no gnero Lacerta, esp-cie L. crocodylus, por Lineu em 1758. Blumenbach, em 1779, descreveu mais duas espcies: Lacerta alligator e L. gangetica. Laurenti, em 1768 realocou a espcie de Lineu no novo gnero Crocodylus, incluindo neste mais trs espcies: C. americanus, C. africanus e C. terrestris, que foram rearranjadas por autores subsequentes (C. americanus = C. acutus e as demais foram consideradas no-identificveis). Estas foram agrupadas na ordem Crocodylia, defi-nida por Gmelin na 13 edio do Systema Naturae de Lineu, em 1789. A partir da uma mirade de nomes (na maioria das vezes sem designao de espcimes-tipos) foi proposta por diversos auto-res ao longo dos sculos XVIII, XIX e XX (Mook & Mook 1940), chegando ao ponto de Schmidt

    Mdio (Ladiniano) e o Trissico Tardio (Carnia-no), e muito desta histria, includas a origem e diversificao de vrias de suas linhagens, alm da origem do prprio grupo Crocodylomorpha como um todo, teve como palco as terras dos atuais continentes africano e sul-americano, terras estas que at o incio do Cretceo Mdio--Superior, h aproximadamente 100 milhes de anos, compunham a parte do supercontinente Gondwana denominada Gondwana Ocidental. De fato, muito da histria dos crocodilomorfos no s se deu nesta regio, como em grande medida foi influenciada pela prpria histria geolgica desta. Os crocodilomorfos mostram-se, assim, muito teis para estudos biogeogrficos, pois so um grupo diversificado, com bom registro fssil, ampla distribuio geogrfica, crescente acmulo de informaes filogenticas e, excetuando-se os sub-grupos francamente marinhos (Teleosau-ridae, Metriorhynchidae e Dyrosauridae), so animais essencialmente terrestres, cujos padres de distribuio so ento susceptveis aos eventos geolgicos envolvidos na fragmentao regional e continental. Hoje os crocodilomorfos (espe-cialmente alguns grupos especializados a hbitos terrestres, como Notosuchia e Peirosauridae) tm sido apontados como valorosos para o entendi-mento geral da fragmentao final do Gondwana durante o Cretceo Superior (p. ex. Turner 2004), e a descoberta e estudo de uma fauna de croco-dilomorfos em Madagascar muito similar, ainda que menos diversa, ocorrente na Amrica do Sul durante o Cretceo Superior, estimulou muitos biogegrafos a se atentarem para esses animais (Krause et al. 2006). No entanto, mesmo antes de tais descobertas e mesmo antes da dissemina-o de estudos evolutivos (cladsticos) focando o grupo, crocodilomorfos j eram apontados como exemplo de evidncias de biotas ancestrais transatlnticas (ou afro-sul-americanas). Buffe-taut & Taquet (1977) e Buffetaut (1981, 1985) ressaltaram o compartilhamento entre as bacias do Recncavo (no estado da Bahia) e do Araripe (no Cear) e a Bacia Tegama (no Nger, frica), de dois gneros: Sarcosuchus e Araripesuchus (Fig. 2). Estes gneros tornaram-se ento exemplos clssicos do compartilhamento de faunas entre os dois continentes durante o Cretceo. Novas descobertas e novos estudos de fsseis j conheci-dos tm ampliado este cenrio (para mais detalhes biogeogrficos do grupo ver Pinheiro et al. 2012).

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    tes, e incluiu trs ordens em Crocodylia: Opistho-coelia, incluindo formas mesozicas com vrtebras pr-sacrais opistoclicas; Amphicoelia, formas mesozicas com vrtebras pr-sacrais anficlicas ou anfiplticas; e Procoelia, formas principalmente cenozicas com vrtebras pr-sacrais proclicas. Posteriormente notou-se que os restos associados aos chamados Opisthocoelia correspondiam, na verdade, a dinossauros saurpodes titanossauros (Mook 1934). Essas trs categorias foram ento redefinidas sob uma primeira perspectiva genui-namente evolucionista por Thomas Henry Hux-ley, em 1875, que dividiu os Crocodylia em trs sub-ordens: Parasuchia, Mesosuchia e Eusuchia. A primeira inclua os fitossauros, formas trissicas cujo aspecto geral superficialmente similar aos crocodilianos, mas que atualmente so conside-, mas que atualmente so conside-rados como um grupo distinto de rpteis, muito distantes da ancestralidade dos crocodilomorfos. O segundo grupo de Huxley, Mesosuchia, essen-cialmente no difere dos Amphicoelia de Owen e foi por muito tempo o rtulo dado maioria dos crocodilomorfos fsseis conhecidos, identificados como tal por detalhes osteolgicos consagrados como caractersticas tpicas de formas primi-tivas de crocodilianos. Hoje sabemos que os Mesosuchia no constituam um grupo natural, mas uma coleo de linhagens dspares muitas vezes no diretamente aparentadas. Por sua vez, os Eusuchia, representando os Procoelia de Owen e tidos hoje como a nica categoria clssica a refletir uma linhagem natural de crocodilomorfos, foram caracterizados pela presena de determinadas fei-es anatmicas presentes nas espcies viventes, e por isso consideradas mais avanadas. Algumas dessas caractersticas tidas como fundamentais para este arranjo taxonmico eram a posio das nari-nas internas (coanas) e a forma como as vrtebras articulavam-se entre si. Com o acmulo de novas descobertas fsseis e, principalmente, com a aplica- fsseis e, principalmente, com a aplica- e, principalmente, com a aplica-o da filosofia e metodologia cladsticas, percebeu--se que a preferncia por caractersticas chaves, valorizada pela escola tradicional de sistemtica (a Escola Lineana), bem como pela posterior Escola Gradista, levava a uma grande confuso taxon-mica, quando o que se visa obter a genealogia do grupo. A escola gradista, que teve Huxley como um inspirador, deriva seu nome do termo ingls grade, ou grau, e organiza a diversidade sob os grados, ou graus evolutivos, que tentava reconhecer nos organismos. Esta maneira de organizar a biodiver-sidade influenciou por um sculo a maneira como

    (1928) propor a suspenso das regras do Cdigo Internacional de Nomenclatura Zoolgica neste caso para normalizar a situao. A normalizao s aconteceria nos fins do sculo XX, para estabilizar de modo consensual a nomenclatura das espcies viventes para fins de conservao (Groombridge 1987) e, principalmente, com o uso da metodologia cladstica, incluindo as formas fsseis (p.ex. Benton & Clark 1988, Norell 1989, Clark 1994).

    O impacto da descoberta dos fsseisAs discordncias a respeito da sistemtica de

    Crocodylia aumentaram em muito com a descrio de formas fsseis, que foram includas neste grupo inicialmente por Cuvier em 1824, com sua anlise do holtipo de Lacerta gigantea, espcie descrita por Von Smmerring, em 1816. Cuvier a renomeou como Geosaurus giganteus e a reconheceu como um rptil fssil marinho do Jurssico Superior da Alemanha e Cretceo Inferior da Frana, e um intermedirio entre os crocodilos e os lagartos. medida que mais fsseis foram descritos, eram includos ou excludos do grupo baseando-se em quo semelhantes s espcies recentes fossem, refletindo ento apenas uma medida intuitiva de similaridade. A postura absolutamente normal para a poca, uma vez que a principal preocupao daqueles nomenclatores era a correta identifica-o e uma classificao prtica, e no as relaes de parentesco, principalmente porque a maioria no aceitava as idias evolutivas j correntes na poca, como as de Erasmus Darwin e Lamarck (Mayr 1998). Devido ao subjetivo critrio de similaridade adotado, baseado em caractersticas consideradas chaves, eram muito distintas as opinies dos autores a respeito do contedo de Crocodylia. Este nome e o vernculo correspondente, crocodilia-nos, foram usados de maneira indiscriminada e varivel at fins do sculo XX, tanto para as formas viventes quanto para formas fsseis que posterior-mente mostraram-se no serem proximamente relacionadas a elas. A confuso na sistemtica do grupo no se restringia definio da categoria taxonmica lineana mais abrangente aceita na po-ca (Crocodylia), que correspondia inicialmente a uma Ordem (mas foi referida por muitos autores - p. ex., Richard Owen - como uma Sub-Classe) ou apenas s espcies, mas em todas as categorias intermedirias.

    Owen (1860) reconheceu que algumas formas fsseis eram distintas de outras e das formas viven-

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    vernculo, crocodilianos, restringe-se agora a um grupo monofiltico especfico formado apenas pelo ancestral comum exclusivo das espcies viventes (includas nas famlias Crocodylidae, Alligatoridae e Gavialidae), e todos seus descendentes (n 8 do cladograma apresentado na Fig. 2). Dizemos ento que Crocodylia o grupo-coronal (ou crown-group) dos Crocodylomorpha.

    Ao adotar um programa de pesquisas baseado na metodologia cladstica, Benton & Clark (1988) reconheceram que alguns pequenos arcossauros terrestres trissicos ento considerados como parte do grado parafiltico conhecido como tecodontes (ver abaixo), mais algumas formas descritas nas dcadas de 1970 e 80, compartilhavam um ancestral comum mais recente com os modernos crocodilia-nos do que com outros tecodontes do Trissico, representando ento os mais antigos e primitivos Crocodylomorpha. Estes animais, conhecidos cole-tivamente como Sphenosuchia, ou Hallopoda, assemelham-se muito pouco s formas viventes, por seu pequeno porte (em geral com no mais que um metro de comprimento total), crnios altos e dotados de uma grande fenestra antorbital (caracte-rstica dos arcossauros, mas reduzida at ser perdida secundariamente nos crocodilianos modernos), e principalmente pela presena de membros grceis e relativamente alongados e posicionados sob o corpo, o que conferia grande agilidade e capacidade cursorial a estes animais (Fig. 1-A). Estudos suces-sivos tm demonstrado que estes crocodilomorfos mais primitivos no formam por si s um grupo monofiltico (p. ex. Clark et al. 2004), e por isso so referidos aqui de maneira coletiva e informal como esfenossquios. A presena de vrias carac-tersticas em seu estado mais primitivo quando comparadas quelas dos modernos crocodilianos, e mesmo em relao a todos os Crocodylomorpha no-esfenossquios (grupo monofiltico menos inclusivo denominado Crocodyliformes, represen-tado pelo n 2 da Fig. 2) causou o relativamente tardio reconhecimento dos esfenossquios como afins aos crocodilos. Como exemplo pode-se citar a presena do dgito V do p ainda funcional (os crocodiliformes, mais derivados, mantm apenas 4 dgitos funcionais nos ps), pbis firmemente articulado ao leo e bordejando o acetbulo (em formas mais derivadas o pbis no contata o leo, mvel e no bordeia o acetbulo), e algumas formas apresentam os ossos parietais do teto craniano pare-os ossos parietais do teto craniano pare-ados, sendo fundidos em um nico osso em todos os Crocodyliformes.

    as descobertas dos fsseis foram contextualizadas taxonmica e evolutivamente.

    Um (a)grado a mais para Huxley: ProtosuchiaOs Protosuchia englobam espcies de peque-

    no porte e hbitos terrestres que foram agrupados como outra sub-ordem de Crocodylia no esquema classificatrio de Huxley. Por algum tempo foram considerados os representantes mais primitivos do grupo, com suas caractersticas chaves conside-radas prximas das de rpteis mais antigos, como a exposio completa das coanas primrias (anterio-res) devido inexistncia de um palato secund-rio, j completamente fechado nas espcies atuais. Compunham essa sub-ordem formas trissicas e jurssicas dos Estados Unidos, Argentina, Lesoto, China e Monglia. O primeiro exemplar deste sub-grupo s foi encontrado em 1931 e descrito posteriormente com o nome Protosuchus richardsoni Brown 1933, encontrado em rochas do Trissico Superior do Arizona, EUA. Por sua constituio ssea grcil e esguia, bem como por uma srie de detalhes anatmicos, Protosuchus e as linhagens afins so consideradas formas plenamente terres-tres e geis. Sob a perspectiva do gradismo (escola defendida essa poca por, entre outros, Julian Huxley, neto de T. Huxley) os hbitos terrestres de vida revelados pela anatomia desses fsseis levou a uma considerao das formas aquticas, atuais, como um grado superior e distinto na evoluo dos Crocodylomorpha. Assim os Protosuchia foram encaixados confortavelmente no esquema de clas-sificao original de Huxley e considerados como o grado ancestral dos crocodilomorfos posteriores, os Mesosuchia e os Eusuchia.

    A classificao tradicional sob a viso do cladismo

    Com os trabalhos de Benton & Clark (1988), Clark (1994) e outros, a sistemtica dos crocodi-lianos e dos fsseis afins estabeleceu-se de manei-ra muito razovel, de modo que as modificaes posteriores tm sido feitas principalmente no mbito de grupos internos, mais especficos. Na proposta de Benton & Clark (1988), o termo Cro-codylomorpha, originalmente proposto por Walker (1970), resgatado para nomear o grupo mono-filtico total, mais inclusivo destes animais (n 1 do cladograma apresentado na Fig. 2). O termo clssico Crocodylia, e em consequncia seu par

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    astrgalo que se articula a uma profunda concavi-dade no calcneo. Esta condio, conhecida como crocodilo-normal, difere daquela vista em dinos-sauros, por exemplo, nos quais a mesma articulao mostra-se invertida (uma semiesfera no calcneo articulando-se a uma concavidade no astrgalo), e conhecida como articulao crocodilo-reversa (Cruickshank 1979, Chatterjje 1982). Esta feio, no entanto, rene um conjunto de modificaes na morfologia desses ossos tarsais proximais que no podem ser reduzidas a um s carter (Sereno 1991). Dentre os Crurotarsi, um sub-grupo inclui carnvoros quadrpedes de mdio porte como Rauisuchidae e Poposauridae, herbvoros quadr-pedes de mdio porte como os Aetosauria, e peque-nos e grceis carnvoros que foram posteriormente percebidos como mais afins aos crocodilomorfos, todos terrrestres e cursoriais. Todos estes animais formam, junto com todos os Crocodylomorpha, um clado dentre os Crurotarsi denominado Suchia, definido originalmente por Krebs (1974) e poste-riormente refinado por vrios autores (Gauthier 1986, Benton & Clark 1988, Sereno 1991). Assim, a ancestralidade dos crocodilomorfos encontra-se na diversificao de um sub-grupo de arcossauros Suchia que manteve seus primitivos hbitos ali-mentares carnvoros, mas especializaram-se em hbitos locomotores cursoriais, ressaltados pela construo grcil de seus corpos e relativo alon-gamento de seus membros. Considerando-se que os nicos remanescentes vivos dessa linhagem, os modernos crocodilianos, afastaram-se bastante deste plano corporal geral, o reconhecimento de sua ancestralidade dentre arcossauros grceis e geis no foi, de fato, uma tarefa intuitiva.

    O grupo monofiltico situado um n acima no cladograma (n 2 da Fig. 2) foi nomeado como Cro- (n 2 da Fig. 2) foi nomeado como Cro-codyliformes (Crocodylomorpha exceto Sphenosu-chia) e incorpora os grupos clssicos Protosuchia, Mesosuchia e Eusuchia, no com seus contedos tradicionais, mas em grupos que refletem as suas relaes de parentesco como so at ento conheci-das. O termo Crocodyliformes, portanto, substitui o termo Crocodylia como este era tradicionalmente usado (e crocodiliformes substitui o termo croco-diliano no uso vernculo, este usado agora apenas para as formas afins s espcies viventes). Dos grupos clssicos, Mesosuchia, que inclua a maior parte dos crocodiliformes descritos, mostrou-se claramente parafiltico (artificial) e foi o que teve seu contedo mais modificado, inclusive com o abandono desse nome (Clark 1994). Whetstone & Whybrow (1983)

    Apesar disto, os esfenossquios compar-tilham com os crocodilianos e demais crocodili-formes vrias caractersticas derivadas e exclusivas (sinapomorfias), as nicas de valor informativo na reconstituio do parentesco. Entre as sinapomor-fias mais evidentes, que compem com outras a diagnose de todo o grupo Crocodylomorpha, esto o tpico alongamento dos elementos carpais proxi-mais (ossos radial e ulnar, no pulso), que acrescen-tam um quarto segmento ao membro anterior; a perda do osso ps-frontal no crnio (presente nos arcossauros mais basais, ou tecodontes); uma expanso lateral do osso esquamosal em relao ao quadrado e o desenvolvimento de um extenso sistema pneumtico na regio do basicrnio.

    Os tecodontes, animais entre os quais foram notados estes que so os mais primitivos Crocodylomorpha, compunham uma assemblia heterognea de arcossauros predadores, em sua maioria quadrpedes terrestres de mdio porte, e que foram relativamente diversificados durante o perodo Trissico em todo o mundo, mas com um registro fssil particularmente rico na frica, Amrica do Sul, ndia e Rssia. Tradicionalmente, ainda sob num contexto gradista de classificao, tal conjunto de animais foi considerado o estoque basal a partir do qual todos os outros arcossauros (como crocodilos, pterossauros e dinossauros - incluindo as Aves) teriam derivado (Chatterjee 1982). Hoje temos clareza que os tecodontes, conforme clas-sicamente reconhecidos, no formam um grupo monofiltico, mas alguns dos animais que ali eram includos mostraram-se como mais relacionados aos crocodilomorfos do que a outros grupos de arcossauros pela presena de vrias sinapomorfias, especialmente nos membros. Entre estas esto a presena de um robusto tubrculo no osso calcneo (do calcanhar) direcionado para trs (tuber calcanei) e a presena de um cndilo semicilndrico no calc-neo contra o qual se articula a fbula. Estes animais foram includos, juntamente com os Crocodylo-morpha, num clado que tem sido mais usualmente denominado como Crurotarsi (Sereno & Arcucci 1990), mas que, com poucas alteraes em seu contedo tambm foi denominado, por diferentes autores, como Pseudosuchia e Crocodylotarsi (p. ex. Sereno 1991, Brochu 1997). A mais clssica feio morfolgica distintiva entre esses animais e os demais arcossauros (como, por exemplo, os dinossauros e pterossauros) a presena de uma articulao entre os ossos tarsais proximais, o cal-cneo e o astrgalo, na forma de uma semiesfera no

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    grupos-irmos, e a maior parte dos tradicionais Mesosuchia. De fato, dentre os agrupamentos tradicionais, apenas Eusuchia se mostrou monofi-ltico sem maiores discordncias. Em linhas gerais este clado abrange formas basais, como a espcie Hylaeochampsa vectiana Owen, 1874 (do Cretceo Inferior da Inglaterra), mais os Crocodylia, que por sua vez inclui as famlias viventes (Gavialidae, Crocodylidae e Alligatoridae), e os fsseis includos de famlias proximamente aparentadas, inseridos juntamente s viventes nos respectivos grupos Gavialoidea, Crocodyloidea e Alligatoroidea. A origem destes grupos viventes pode ser rastreada ao menos at o Cretceo Inferior, com as formas mais basais conhecidas sendo provenientes de depsitos norte-americanos e europeus. No entanto, no Cre-tceo do Brasil encontramos morftipos que, apesar de no serem estritamente aparentados s formas viventes, nem mesmo includos em Eusuchia, nos auxiliam a calibrar esta histria e melhor compre-ender a evoluo de suas caractersticas, atravs de fsseis que j apresentam a tpica condio croco-diliana atual, de hbitos anfbios, ressaltados por sua anatomia craniana com olhos e narinas voltadas para cima, tal como a espcie Susisuchus anatocetops Salisbury et al. 2003, proveniente da Formao Crato da Bacia do Araripe no estado do Cear, ou Pepesuchus deiseae Campos et al. 2011, proveniente da Formao Adamantina da Bacia Bauru no estado de So Paulo (Fig. 3).

    Dentre os Mesoeucrocodylia extintos, um

    erigiram o txon Mesoeucrocodylia (n 4 da Fig. 2) abarcando Mesosuchia mais Eusuchia, formando agora um grupo monofiltico por incluir todos os descendentes de um ancestral comum exclusivo. A proposta original de Benton & Clark (1988) para este grupo implica que os crocodiliformes mais adaptados vida aqutica, os marinhos Thalattosuchia, formam o clado basal de Mesoeucrocodylia. Os Thalattosu-chia incluem os primeiros crocodiliformes fsseis conhecidos, tais como Geosaurus giganteus e outros, descritos em sua maioria em meados do sculo XIX e encontrados em rochas jurssicas e cretcicas da Europa. Destacam-se por serem os arcossauros mais especializados vida aqutica, com linhagens que inclusive modificam seus membros a nadadeiras em forma de remo, e at mesmo desenvolveram uma nadadeira caudal (Fig. 1-C), semelhana de outros rpteis aquticos mesozoicos, como os ictiossauros, ou aos modernos cetceos. Sua posio como o grupo mais basal de Crocodyliformes sustentada por vrias anlises filogenticas recentes (Young & Andrade 2009). No entanto, esse resultado vem sendo constantemente desafiado por outras anlises, que os situam em posio muito mais derivada na histria evolutiva do grupo, e mais aparentados aos atuais crocodilianos do que anteriormente se supu-nha (Pol & Gasparini 2009, Bronzati et al. 2012), em um posicionamento representado pelo n 9 do cladograma ilustrado na Fig. 2.

    Os Mesoeucrocodylia incluem tambm formas anfbias e terrestres numa seqncia de

    Figura 3. Reconstruo artstica de Pepesuchus deiseae, crocodiliforme de hbitos aquticos da Bacia Bauru, Cretceo do Brasil. Desenho de Maurlio Oliveira (Museu Nacional, Rio de Janeiro).

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    Crocodilomorfos: A maior diversidade de rpteis fsseis do Brasil TERR 9:12-40, 2012

    Os primeiros fsseis de crocodilomorfos encontrados constituem-se de dentes isolados e uma vrtebra provindos de rochas cretcicas da Bacia do Recncavo, documentados por Allport em 1859, sendo estes tambm o primeiro registro de rpteis fsseis do Brasil (Kellner 1998). A vr-tebra, porm, foi inicialmente considerada como pertencente a Megalosaurus (dinossauro Theropoda europeu) pelo ingls Richard Owen.

    Durante a expedio americana ao Brasil denominada Expedio Thayer (1864-65), da qual participaram o gelogo Charles Frederik Hartt e o paleontlogo especialista em peixes Louis Agassiz, uma grande quantidade de fsseis, incluindo mate-rial reptiliano, foi encontrada ao longo de diversos trabalhos de coleta no territrio nacional, espe-cialmente no Nordeste (Freitas 2002). A partir do material coletado por Hartt na Bacia do Recncavo (BA), foi feita a primeira descrio formal de rpteis fsseis brasileiros, tratando-se de Crocodilus hartti (baseado em dentes grandes, finamente sulcados) e Thoracosaurus bahiensis (baseado em dentes meno-res, grosseiramente sulcados), descritos por Marsh (1869) e consideradas por Mawson & Woodward (1907) como sendo do gnero europeu Goniopho-lis. Neste mesmo trabalho, Mawson & Woodward descrevem restos mais completos de um grande crocodilomorfo, compreendendo parte da snfise mandibular, um osteodermo dorsal e dois dentes, considerando-o tambm como da espcie Gonio-pholis hartii. Este material, depositado no Museu Britnico de Histria Natural, em Londres, foi revisto por Buffettaut & Taquet (1977) e comparado com um outro espcime, o holtipo de Sarcosuchus imperator Broin & Taquet, 1966, este provindo de rochas cretcicas da Bacia do Tegama, na Nigria. Esses autores mostraram que o espcime baiano classificado como Goniopholis hartii trata-se de uma espcie sul-americana de Sarcosuchus, sendo reclas-sificado, pela ltima vez, como S. hartii. A vrtebra ilustrada por Allport (1859) e tratada como um Megalosaurus mostrou-se pertencer a esta espcie de crocodiliforme (Campos & Kellner 1991). Sar-cosuchus hartti, um dos maiores crocodiliformes j encontrados, media at 10 metros de comprimen-to, e sua espcie-irm, africana, foi recentemente popularizada atravs do documentrio intitulado SuperCroc (produo de National Geographic Society).

    A segunda espcie descrita por Marsh, Tho-racosaurus bahiensis, foi revisada por Roxo (1935), sugerindo revalid-la, baseando-se em dentes e em uma vrtebra caudal proclica de origem incerta.

    sub-grupo notabilizou-se por suas especializaes ao ambiente terrestre e sua disparidade de hbitos neste ambiente. Os Notosuchia, ou crocodilos do sul (n 5 da Fig. 2) formaram um importante componente nas biotas cretcicas no Gondwana, com particular nfase na Amrica do Sul, onde irradiaram desde espcies insetvoras e herbvoras com um metro ou menos de comprimento, at grandes predadores de topo de cadeia, com cerca de cinco metros. Enquanto em reas ao norte do planeta, na Laursia, esses nichos foram ocupados respectivamente por mamferos e por dinossau-ros Theropoda durante o Cretceo, em diversas regies do Gondwana os Notosuchia foram os protagonistas nestes nichos, como em Mada-gascar, na Argentina e especialmente no Brasil. Dotados de membros desenvolvidos e que se posicionavam de maneira ereta sob o corpo (mas de modo quadrpede), e narinas e rbitas dire-cionadas para frente, e no para cima como nas formas viventes, destacam-se como exemplos os pequenos Simosuchus (Fig. 1-B), Pakasuchus, Arma-dillosuchus, Notosuchus e Mariliasuchus (Fig. 2), que apresentavam dentio especializada muito simi-lar a mamferos, incluindo a presena de dentes molariformes multicuspidados (OConnor et al. 2010), e os avantajados Baurusuchidae (Fig. 1-D), um grupo especializado como grandes predadores, com dentio, membros posteriores e outros atri-butos muito similares aos de dinossauros Thero-poda (Riff & Kellner 2011).

    Tem-se assim um panorama da importncia dos Crocodylomorpha em qualquer reconstituio paleoambiental, estudo biogeogrfico ou paleoeco-lgico que considere desde o Trissico at os dias atuais, tanto nos ambientes marinhos quanto con-tinentais (terrestres ou aquticos), bem como da necessidade de contextualiz-los evolutivamente, por meio da sistemtica filogentica, para uma mais acurada apreciao de sua diversidade.

    As pesquisas com crocodilomorfos fsseis no Brasil

    A histria das descobertas e pesquisas com cro-codilomorfos no Brasil confunde-se com o incio da histria da paleontologia no pas, uma vez que as pri-meiras descobertas de rpteis fsseis realizadas aqui foram de crocodilomorfos, graas a coletas efetuadas em numerosas expedies (principalmente estran-geiras) que percorreram o Brasil no sculo XIX.

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    do Sul. Este registro, o nico pr-Cretceo para o Brasil, representa tambm o mais antigo registro de Crocodylomorpha (Sphenosuchia) do mundo. Outros esfenossqudeos e tambm o protosu-qudeo Hemiprotosuchus leali, que foram encontra-dos em rochas de idade trissica na Argentina (p. ex. Bonaparte 1971), complementam o registro de crocodilomorfos trissicos sul-americanos.

    At o presente, o registro de Crocodylomor-pha do Jurssico desconhecido para o Brasil, mas este perodo conta com representantes taxonomi-camente dspares, tais como os primitivos esfe-nossqudeos de hbitos terrestres e os marinhos Thalattosuchia, altamente especializados vida aqutica, no Jurssico do Chile e Argentina (p. ex. Gasparini et al. 2006).

    A grande maioria das linhagens cretceas conhecidas no mundo inclui-se no grande grupo Mesoeucrocodylia, havendo poucos remanescen-tes de linhagens mais basais (protossquios) no Cretceo da Monglia, China, Europa e Argentina (Fiorelli & Calvo 2007). No Cretceo do Brasil, apesar de apenas Mesoeucrocodylia serem conhe-cidos, a grande diversidade e disparidade de formas conhecidas deste grupo e a abundncia de ocorrn-cias os destaca em relao a outros grupos fsseis. Essas ocorrncias esto concentradas em bacias das regies Nordeste e Sudeste do Brasil (vide Tabela 1) e os grupos reconhecidos at o presente so: Susisuchidae, Pholidosauridae, Trematochampsi-dae, Peirosauridae e Notosuchia, alm do gnero Araripesuchus, de posicionamento ainda no total-mente resolvido.

    Apesar deste esforo, a presena deste gnero (um gavialideo encontrado inicialmente em rochas marinhas do Cretceo Superior dos EUA) na Bacia do Recncavo, por sua vez formada por rochas fluviais do Cretceo Inferior, duvidosa (Antunes 1964). Como nenhuma outra proposta foi forma-lizada na literatura, o nome Thoracosaurus bahiensis permanece vlido at o presente, mas aps uma reavaliao do material-tipo de T. bahiensis, que est depositado no Museu Nacional do Rio de Janeiro, suspeita-se que este conjunto de fsseis pertena a mais de uma espcie distinta (Riff 2003).

    Alm desses achados pioneiros, fsseis de cro-codilomorfos vm sendo encontrados com relativa abundncia no Brasil. Esqueletos, fragmentos, ovos e at coprlitos j foram encontrados em prati- j foram encontrados em prati- prati-camente todas as principais bacias sedimentares brasileiras, e muitos achados se destacam por sua singularidade. Atualmente cerca de 50 espcies diferentes pertencentes aos principais sub-grupos so conhecidas no pas, do Trissico ao Quatern- do Trissico ao Quatern-rio (Tabela 1).

    Crocodilomorfos do Mesozoico BrasileiroA diversidade de Crocodylomorpha no Meso-

    zoico do Brasil extraordinria, com inmeras espcies descritas que apresentam uma varieda-de taxonmica e morfolgica notria na historia evolutiva deste grupo. Aqui esta histria inicia-se com Barberenasuchus brasiliensis Mattar, 1987, pro-veniente de rochas do Trissico Mdio (Ladiniano, Formao Santa Maria) do estado do Rio Grande

    Crocodylomorpha Basal (Sphenosuchia)Barberenasuchus brasiliensis Mattar 1987 Fm. Santa Maria, Trissico Mdio da Bacia

    do Paran em Novos Cabrais (RS)Mesoeucrocodylia

    Araripesuchus gomesi Price 1959 Fm. Romualdo, Cretceo Inferior da Bacia do Araripe em Campos Sales (CE)

    NotosuchiaCandidodon itapecuruense Carvalho &

    Campos 1988Fm. Itapecuru, Cretceo Mdio da Bacia de So Lus em Itapecuru-Mirim (MA)

    Mariliasuchus amarali Carvalho & Bertini 1999

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Marlia (SP)

    Mariliasuchus robustus Nobre et al. 2007 Fm. Adamantina, Cretceo da Bacia Bauru em Marlia (SP)

    Morrinhosuchus luziae Iori & Carvalho 2009

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Monte Alto (SP)

    Tabela 1. Espcies formalmente descritas e demais ocorrncias de Crocodylomorpha no Brasil, incluindo nome, principais referncias e depsitos e localidades de origem.

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    Crocodilomorfos: A maior diversidade de rpteis fsseis do Brasil TERR 9:12-40, 2012

    Coringasuchus anisodontis Kellner et al. 2009 Fm. Alcntara, Cretceo Superior da Bacia de So Luis-Graja em So Lus (MA)

    Labidiosuchus amicum Kellner et al. 2011a

    Fm. Marlia, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Uberaba (MG)

    Notosuchia : BaurusuchidaeBaurusuchus pachecoi Price 1945 Fm. Adamantina, Cretceo Superior da

    Bacia Bauru em Riolndia (SP)Stratiotosuchus maxhechti Campos et al.

    2001Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Irapuru e Monte Alto (SP)

    Baurusuchus salgadoensis Carvalho et al. 2005

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em General Salgado (SP)

    Baurusuchus albertoi Nascimento & Zaher 2010

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em General Salgado (SP)

    Pissarrachampsa sera Montefeltro, Larsson & Langer 2011

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Campina Verde (MG)

    Campinasuchus dinizi Carvalho et al. 2011

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Campina Verde (MG)

    Gondwanasuchus scabrosus Marinho et al. 2013

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em General Salgado (SP)

    Notosuchia : SphagesauridaeSphagesaurus huenei Price 1950, Pol

    2003Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Presidente Prudente (SP) e Cravinhos (SP)

    Adamantinasuchus navae Nobre & Carvalho 2006

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Marlia (SP)

    Sphagesaurus montealtensis Andrade & Bertini 2008

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Monte Alto (SP)

    Armadillosuchus arrudai Marinho & Carvalho 2009

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em General Salgado (SP)

    Caipirasuchus paulistanus Iori & Carvalho 2011

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Monte Alto (SP)

    Caryonosuchus pricei Kellner et al. 2011b

    Fm. Presidente Prudente, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Presidente Prudente (SP)

    Neosuchia (incluindo Trematochampsidae, Peirosauridae e afins)Itasuchus jesuinoi Price 1955 Fm. Marlia, Cretceo Superior da Bacia

    Bauru em Uberaba (MG)Peirosaurus tormini Price 1955 Fm. Marlia, Cretceo Superior da Bacia

    Bauru em Uberaba (MG)Caririsuchus camposi Kellner 1987 Fm. Romualdo, Cretceo Inferior da Bacia

    do Araripe em Santana do Cariri (CE)Uberabasuchus terrificus Carvalho, Ribeiro

    & Avilla 2004Fm. Marlia, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Uberaba (MG)

    Susisuchus anatoceps Salisbury et al. 2003, Figueiredo & Kellner 2009

    Fm. Crato, Cretceo Inferior da Bacia do Araripe em Nova Olinda e Santana do Cariri (CE)

    Montealtosuchus arrudacamposi Carvalho, Vasconcellos & Tavares 2007

    Fm. Adamantina, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Monte Alto (SP)

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    Riff D., Souza R. G., Cidade G. M., Martinelli A. G., Souza Filho J. P. TERR 9:12-40, 2012

    Susisuchus jaguaribensis Fortier & Schultz 2009

    Bacia de Lima Campos, Cretceo Inferior em Ic (CE)

    Pepesuchus deiseae Campos et al. 2011; Iori et al. 2011

    Fm. Presidente Prudente, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Presidente Prudente e Catanduva (SP)

    Barreirosuchus franciscoi Iori & Garcia 2012 Fm. Presidente Prudente, Cretceo Superior da Bacia Bauru em Monte Alto (SP)

    Neosuchia : PholidosauridaeSarcosuchus hartti Marsh 1869 Grupo Bahia, Cretceo Inferior da Bacia do

    Recncavo em Salvador (BA) Neosuchia : Dyrosauridae

    Hyposaurus derbianus Cope 1886 Bacia da Paraba. Obs.: Inicialmente dito como cretcica, esta ocorrncia considerada paleocnica (ver texto). Localidade desconhecida.

    Guarinisuchus munizi Barbosa et al. 2008

    Fm. Maria farinha, Paleoceno Inferior da Bacia da Paraba em Recife (PE).

    Neosuchia : SebecidaeSebecdeo nov. sp. Gasparini et al.

    1993, Pinheiro et al. 2011a, 2011b

    Bacia de So Jos de Itabora, Paleoceno Superior em Itabora (RJ)

    Crocodylia : CrocodyloideaCharactosuchus fieldsi Langston 1965;

    Souza-Filho 1993Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre em Senador Guiomard (AC)

    Charactosuchus mendesi Souza-Filho & Bocquentin-Villanueva 1989, Souza-Filho et al. 1993

    Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre em Senador Guiomard (AC)

    Charactosuchus sansaoi Souza-Filho 1991 Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre em Senador Giomard (AC)

    Crocodylia : AlligatoridaePurussaurus brasiliensis Rodrigues 1892 Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do

    Acre em todo o estado do Acre e regies limtrofes do Amazonas e Bolvia.

    Mourasuchus amazonensis Price 1964 Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre em Cruzeiro do Sul (AC)

    Mourasuchus arendsi Bocquentin-Villanueva, 1984, Souza-Filho & Guilherme 2011

    Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre em Feij (AC)

    Mourasuchus nativus Gasparini 1985, Bocquentin-Villanueva & Souza-Filho 1990

    Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre em Senador Guiomard (AC)

    Caiman brevirostris Souza-Filho 1987 Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre em Sena Madureira e Manuel Urbano (AC)

    Caiman tremembensis Chiappe 1988 Fm. Trememb, Oligoceno da Bacia de Taubat em Taubat (SP)

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    Crocodilomorfos: A maior diversidade de rpteis fsseis do Brasil TERR 9:12-40, 2012

    Caiman niteroiensis Souza-Filho & Bocquentin-Villanueva 1991

    Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre em Senador Guiomard (AC)

    Eocaiman itaboraiensis Pinheiro et al. 2013

    Bacia de So Jos de Itabora, Paleoceno Superior em Itabora (RJ)

    Crocodylia : GavialoideaGryposuchus jessei Grich 1912 Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre

    em localidade desconhecida junto ao Rio Pauini no estado do Amazonas

    Hesperogavialis nov. sp. Bocquentin-Villanueva & Buffetaut 1981, Souza-Filho 1998

    Fm. Solimes, Mioceno da Bacia do Acre em Senador Giomard (AC)

    Espcies baseadas em material fragmentrio e de validade e afinidade duvidosasThoracosaurus bahiensis Marsh 1869 Grupo Bahia, Cretceo Inferior da Bacia do

    Recncavo em Salvador (BA)Brasileosaurus pachecoi Huene 1931 Fm. Adamantina, Cretceo Superior da

    Bacia Bauru em Presidente Bernardes (SP)Goniopholis paulistanus Roxo 1936 Fm. Adamantina, Cretceo Superior da

    Bacia Bauru em diversas localidades do estado de So Paulo

    Os folidossaurdeos (Pholidosauridae) so um grupo de neossquios longirrostros extintos de grande tamanho e hbito principalmente aqutico continental (Sereno et al. 2001). Analises filogenti-cas tem demonstrado, no entanto, que a integridade taxonmica deste grupo (seu monofiletismo) garantida apenas se uma outra linhagem de cro-codiliformes aquticos, mas de hbitos marinhos costeiros (os dirossaurdeos), for includa neste grupo (Fig. 2). Os folidossaurdeos esto represen-tados no Brasil pelo gigantesco Sarcosuchus hartii, do Cretceo Inferior da Bacia do Recncavo, no estado da Bahia (ver acima e Fig. 2). Seu holtipo e nica ocorrncia constitui-se de um rostro parcial, dentes e osteodermas. Roxo (1929) prope o nome Pholidosaurus milwardi para uma coleo de dentes cnicos provenientes de diversas localidades do interior de So Paulo que expem os sedimentos cretcicos Bacia Bauru sem, entretanto, oferecer uma diagnose, descrio ou figur-los, o que torna este nome invlido, de modo que Sarcosuchus hartii o nico testemunho vlido para os folidossaurdeos no Brasil.

    Os susisuqudeos (Susisuchidae) foram neos-squios de pequeno tamanho, hbitos aquticos e rostro largo e relativamente longo. Filogeneti-camente so formas muito importantes, j que se posicionam bem prximas origem dos Eusuchia. No Brasil foram encontradas duas espcies no Cre-

    No Brasil, Araripesuchus est representado pela espcie A. gomesii Price, 1959 do Cretceo Inferior da Formao Romualdo da Bacia do Araripe. Na Argentina, so reconhecidas as espcies A. patagoni-cus Ortega et al., 2000 e A. buitreraensis Pol & Apeste-gua, 2005, do Cretceo Superior. Na frica foram descritas as espcies A. wegeneri Buffetaut, 1981 do Cretceo Inferior do Nigr, A. rattoides Sereno & Larsson, 2009, proveniente do Marrocos, e A. tsangatsangana Turner, 2006, de Madagascar, sendo as duas ltimas do Cretceo Superior. Todas essas espcies tem porte pequeno, com crnios com 10 a 15 cm de comprimento, e apresentam caracters-ticas morfolgicas que apontam terem hbitos de predadores oportunistas nos ambientes terrestres. Apesar das incertezas filogenticas entre as espcies do gnero e seu posicionamento junto aos demais Mesoeucrocodylia, o monofiletismo do gnero consensual e sua grande amplitude temporal e geogrfica o torna um importante representante do Cretceo de todo o Gondwana. Originalmen-te o gnero Araripesuchus foi embutido na famlia Uruguaysuchidae por Price (1959), juntamente com Uruguaysuchus, do Cretceo Inferior do Uru-guai, proposta que obteve respaldo filogentico em algumas anlises recentes (Soto et al. 2011). Vrios autores indicaram, no entanto, uma posio como mais afim aos Neosuchia (Ortega et al. 2000) ou aos Notosuchia (Fig. 2).

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    Riff D., Souza R. G., Cidade G. M., Martinelli A. G., Souza Filho J. P. TERR 9:12-40, 2012

    Minas Gerais e So Paulo (vide Tabela 1). Membros desta famlia foram descritos tambm no Cretceo da Argentina (Gasparini et al. 1991, Leardi & Pol 2009, Martinelli et al. 2012) e da frica (Larsson & Sues 2007).

    Os notosquios (Notosuchia) so o grupo mais diversificado do Cretceo Superior da Amrica do Sul. Dentro deste grupo so includos inmeros gneros de posicionamento varivel (ex. Notosuchus, Candidodon, Mariliasuchus, Adamantinasuchus) alm das famlias Sphagesauridae e Baurusuchidae. Os gneros citados so animais de pequeno porte (com crnios medindo de cerca de 10 a 25 cm) e que se destacam por sua dentio especializada, com dentes posteriores dotados de cspides mltiplas e mandbulas capazes de movimento propalinal (antero-posterior), ou seja, de uma mastigao mais eficaz. Estas feies levam a tratar estes ani-mais como formas onvoras ou mesmo herbvoras, com capacidade de processamento do alimento mais similar a um mamfero do que aos modernos crocodilianos (Pol 2003).

    Os Notosuchia incluem tambm os esfagessau-rdeos (Sphagesauridae), um grupo endmico do Cretceo Superior do Sudeste do Brasil, unicamen-te conhecidos na Formao Adamantina da Bacia Bauru (vide Tabela 1). Com morfologia corporal similar aos demais notossquios de pequeno porte, os esfagessaurdeos destacam-se pela robustez de seu crnio, bem como por sua peculiar dentio. Dotados de relativamente longos dentes canini-formes na parte anterior do crnio (pr-maxila e mandbula), os dentes posteriores so baixos, orna-mentados com grossos dentculos, espesso esmalte e dispostos num padro oblquo, de modo que a borda anterior dos dentes volta-se para fora (lateral-mente) e a borda posterior direciona-se para dentro da cavidade oral (medialmente). As caractersticas dentrias deste grupo, convergentemente muito similares a alguns cinodontes, sugerem tratar-se de um grupo com hbitos carniceiros.

    Os baurussuqudeos (Baurusuchidae) so formas especializadas a hbitos predadores, de mdio a grande porte, abundantes no registro fs-sil do Cretceo Superior da Bacia Bauru, tanto em So Paulo quanto em Minas Gerais, e tal como os esfagessaurdeos, nesta Bacia so conhecidos ape-nas na Formao Adamantina. Outros integrantes dos baurussuqudeos foram descritos para o Cre-tceo Superior da Argentina: Cynodontosuchus rothi Woodward, 1896 e Wargosuchus australis Martinelli & Paes, 2008. Espcies provenientes do Cretceo

    tceo Inferior: Susisuchus anatoceps, representada por dois espcimes provenientes da Formao Crato da Bacia do Araripe (Figueiredo & Kellner 2009) e S. jaguaribensis Fortier & Schultz, 2009, da Bacia de Lima Campos, ambas no estado do Cear.

    Os trematocampsdeos (Trematochampsidae) so crocodiliformes gondwnicos aquticos que se caracterizam por possuir uma extensa armadu-ra drmica, a qual cobre toda a cauda e parte dos membros. Ainda possuem relaes filogenticas incertas, j que os exemplares sobre os quais foi baseada a famlia so muito incompletos (Buffetaut 1985, Simons & Buckley 2002). Nela foram inclu-das duas espcies do Brasil: Caririsuchus camposi Kellner, 1987, proveniente do Cretceo Inferior da Formao Romualdo da Bacia de Araripe, e Itasuchus jesuinoi Price, 1955, do Cretceo Superior da Formao Marlia da Bacia Bauru no estado de Minas Gerais. Caririsuchus camposi foi reclassificado por Buffetaut (1991) para o gnero Itasuchus, que manteve ambos na famlia Trematochampsidae, mas Kellner (1994) levantou alguns caracteres reva-lidando a diferenciao genrica entre estas duas formas trematocampsdeas brasileiras. A relao dessas espcies com outros trematocampsdeos no conclusiva e ultimamente tm sido relacionados famlia Peirosauridae (Campos et al. 2011, Mar-tinelli et al. 2012).

    Os peirosaurdeos (Peirosauridae) so um gru-po de crocodiliformes de porte mdio, similares aos trematocampsdeos, mas de construo muito mais grcil, cujos representantes sul-americanos apresentam uma morfologia craniana bastante con-servadora (Gasparini et al. 1991). Algumas espcies, porm, apresentam caractersticas ps-cranianas que sugerem que este grupo contenha ao menos alguns representantes mais aptos a ocuparem os ambientes terrestres, ainda que apresentem menos especializaes para isso do que outras formas predadoras terrestres, como os Baurusuchidae. As relaes filogenticas dos peirosaurdeos so ainda muito incertas, pois nenhuma anlise incluindo concomitantemente todas as espcies atribudas ao grupo foi conduzida, e seus representantes tem variavelmente sido relacionados aos Neosuchia, aos terrestres sebecdeos, ou prximos a Notosu-chia (Carvalho et al. 2004, Larsson & Sues 2007, Turner & Buckley 2008, Leardi & Pol 2009). No Brasil esto representados por vrios esqueletos quase completos, embora ainda apenas parcial-mente estudados, todos sendo provenientes do Cretceo Superior da Bacia Bauru nos estados de

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    mdio porte (Abelisauridae e Maniraptora) foram encontrados (Bertini et al. 1993, Novas et al. 2005, Machado et al. 2008, Bittencourt & Langer, 2011), e apenas trs registros de Theropoda de grande porte foram reconhecidos at o momento, incluin-do apenas uma forma descrita, Pycnonemosaurus nevesi Kellner & Campos, 2002, proveniente de uma unidade indiferenciada do Grupo Bauru no estado de Mato Grosso, alm de ossos isolados de um abelissaurdeo na Formao Marlia em Minas Gerais (Novas et al. 2008) e uma vrtebra atribuda a Megaraptora na Formao Adamantina em So Paulo (Mndez et al. 2012). Por outro lado, registra-se uma relativa abundncia de espcies e espcimes de Sauropoda Titanosauridae, com sete txons descritos at o momento (Aeolosaurus, Gondwanatitan, Maxakalisaurus, Baurutitan, Adaman-tisaurus, Trigonosaurus e Uberabatitan), representados por ossos isolados a esqueletos parciais encontrados em muitas localidades do Grupo Bauru (Kellner & Azevedo 1999, Kellner & Campos 2000, Santucci & Bertini 2001, Kellner et al. 2005, 2006, Salgado e Carvalho 2008, Santucci & Arruda-Campos, 2011, Costa et al. 2012).

    Esta tafocenose no se apresenta, portanto, como um artefato preservacional em detrimento seletivo do registro de dinossauros Theropoda, mas uma condio paleoecolgica real da fauna do Cretceo Superior do Sudeste do Brasil, de modo que os nichos ecolgicos geralmente ocupados por dinossauros Theropoda na maioria do globo eram ocupados no Sudeste do Brasil principal-mente pelos crocodiliformes Baurusuchidae. No mesmo perodo, inclusive, o Grupo Neuqun, na Patagnia Argentina, tm fornecido um registro muito rico de dinossauros Theropoda de pequeno a mdio porte, bem como dinossauros Sauropoda, e diversos crocodiliformes. Estes ltimos, no entanto, raramente apresentam txons que possam ser considerados predadores de topo (Leanza et al. 2004). As duas nicas formas argentinas atri-buveis aos baurusuqudeos, Wargosuchus e Cyno-dontosuchus, so inclusive notavelmente distintas daquelas do Grupo Bauru, especialmente por seu tamanho diminuto (crnio com no mais que 15 cm de comprimento), certamente ocupando nichos especficos distintos das formas muito mais robustas ocorrentes no Grupo Bauru. A exemplo dessas tm-se Stratiotosuchus maxhechti Campos et al., 2001 (ver tambm Riff & Kellner, 2011) que com um crnio com 47 cm de comprimento e um corpo estimado entre 4 e 5 metros e dotado de

    Superior do Paquisto e da Europa tm sido ten-tativamente atribudas a este grupo (Wilson et al., 2001), mas o estado fragmentrio dos seus espci-mes impede uma anlise mais conclusiva.

    A partir da descrio de Baurusuchus pachecoi Price, 1945, baseado num crnio proveniente da Formao Adamantina (Cretceo Superior) no municpio de Riolndia (estado de So Paulo), os paleontlogos tm percebido neste txon a presena de vrias caractersticas especializadas convergentes s de dinossauros Theropoda, como um crnio alto e comprimido lateralmente, com narinas externas abrindo-se anteriormente, rbitas posicionadas latero-anteriormente e dentes tambm comprimi-dos, com carenas finamente serrilhadas. Durante dcadas o nico material representativo destes crocodilomorfos foi o holtipo de Baurusuchus, escassamente conhecido em funo da brevidade de sua descrio original. Dada a disparidade deste material em relao aos crocodilomorfos viventes e maioria das formas extintas, tal escassez de informaes no impediu que hipteses sobre seus hbitos de vida fossem levantadas. A posio das narinas e rbitas num crnio de rostro alto, alm da dentio similar de terpodes, sugerem que Baurusuchus ocupasse um nicho de predador ativo em ambiente terrestre, diferentemente dos atuais crocodilomorfos, de hbitos anfbios e de tocaia (Riff & Kellner 2001). Recentemente, a descrio do esqueleto do espcime-tipo de um segundo gnero deste grupo, Stratiotosuchus, mostrou que as convergentes caractersticas teropodomorfas dos Baurusuchidae estendem-se para alm do crnio, e sustentam mais solidamente as hipteses iniciais de seus hbitos de vida como predadores ativos e plenamente terrestres das paisagens do Cretceo sul-americano, especialmente do Sudeste do Brasil (Riff & Kellner 2011).

    Alm da morfologia dentria, craniana e ps--craniana, a relativa frequncia de espcimes de Baurusuchidae nos depsitos da Formao Ada-mantina do Grupo Bauru (com dezenas de espci-mes j resgatados), postula um papel preponderante deste grupo na ocupao de um nicho de preda-dores de topo, aliada a notria escassez de outros competidores neste mesmo depsito que pudes-sem ocupar tal nicho ecolgico, como dinossauros Theropoda de porte pequeno a mdio. Mesmo aps dcadas de esforos de coleta na Formao Adamantina, bem como na Formao Marlia, no mais que colees de dentes isolados e alguns ossos tambm isolados atribuveis a Theropoda de

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    ecossistemas, ocupando nichos de predadores nos ambientes continentais, tanto lacustres e fluviais, bem como nos mares. Tambm durante o Tercirio nenhum outro grupo de rpteis apresentou um registro fssil equivalentemente rico. Apesar dos depsitos marinhos mesozoicos brasileiros no registrarem os super-especializados Thalattosuchia (discutidos acima), o registro cenozoico inicia-se, no Paleoceno, com outra linhagem marinha de crocodiliformes: os dirossaurdeos (Dyrosauridae). Este foi um grupo de neossquios marinhos de crnios alongados e dentio numerosa, especiali-zados piscivoria, que surge no registro fssil no Cretceo Superior e extingue-se no Eoceno, tendo sido coletados em todo o mundo, exceto na Oceania e Antrtica. As regies atuais que representam as bordas da reminiscncia cenozica do Mar Tethys, especialmente o norte e oeste da frica, foram o principal palco de diversificao do grupo, e onde tambm as espcies mais antigas e mais basais foram encontradas.

    O primeiro registro do grupo no Brasil se deu com a descrio de Hyposaurus derbianus Cope, 1886. Como o material-tipo tratava-se de um esqueleto parcial com uma mandbula quase completa, esta foi a ocorrncia mais esclarecedora at ento conhe-cida para o entendimento deste gnero pois, desde sua proposio, feita pelo ingls Richard Owen (1849), os fsseis conhecidos limitavam-se a vr-tebras isoladas e fragmentos muito pouco informa-tivos. Em sua descrio resumida e sem ilustraes o autor, o americano Edward Cope, no especifica a procedncia do material, afirmando apenas pro-terial, afirmando apenas pro-vir do Cretceo do estado de Pernambuco. Este e

    foi caracterizada por uma profunda mudana na composio dos ecossistemas do globo que afetou profundamente muitos grupos de organismos. Alguns grupos no conseguiram transpassar o li-mite K-T e outros, embora tenham sobrevivido, mostraram uma decadncia posterior, o que levou a uma alterao na composio taxonmica dos nichos ecolgicos vacantes (Archibald & Fasto-vsky 2004). Neste complexo panorama bitico, os diferentes grupos de crocodilomorfos foram afetados distintivamente, embora detalhados es-tudos sejam ainda escassos. De todo modo, dentre os muitos grupos de Crocodylomorpha apenas os Dyrosauridae, os Sebecia e os Eusuchia podem ser encontrados em depsitos Cenozoicos, sendo que durante o Tercirio os dois primeiros grupos tambm se extinguiram. Os crocodilomorfos eus-squios tiveram uma radiao global notria no Cenozoico (Brochu 1999, 2001, 2003), com uma grande diversificao ocorrendo na Amrica do Sul durante o Negeno (Riff et al. 2010). Mas mesmo os eussquios declinaram em diversidade ao longo do Cenozoico para as 23 espcies vivas atualmente de Crocodylia, e abaixo apreciamos a ascenso e queda das linhagens cenozicas conhe-cidas no Brasil.

    Mesmo no contando mais com os grupos que se fizeram importantes durante o Cretceo, especialmente os Notosuchia e Peirosauridae, os crocodiliformes so ainda frequentes no Cenozoico do Brasil e da Amrica do Sul como um todo. O registo fssil nos mostra que o grupo continuou a ter um papel preponderante na dinmica dos

    Figura 4. Reconstruo artstica do baurusuqudeo Stratiotosuchus maxhechti, crocodiliforme de hbitos terrestres da Bacia Bauru, Cretceo do Brasil, predando um titanossauro juvenil. Desenho de Maurlio Oliveira (Museu Nacional, Rio de Janeiro).

    especializaes para uma postura ereta, capacidade cursorial e dentio similar dos dinossauros Theropoda e com dentes caniniformes muito desenvol-vidos, foi hbil a ocupar um nicho de predador de topo nas guildas ecolgi-cas do Cretceo Superior, competindo diretamente com dinossauros, e mes-mo os predando, revivendo naquele perodo a dominncia que previamente os arcossauros Crurotarsi tiveram nos ecossistemas terrestres apenas durante o Trissico (Fig. 4).

    Crocodilomorfos do Cenozoico A transio Cretceo-Tercirio (K-T)

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    munho que, apesar de escasso, relevante para o entendimento das biotas terrestres cenozicas sul--americanas: os sebecdeos. Este grupo (Sebecia) composto por animais de mdio a grande porte conhecidos principalmente a partir de esqueletos provenientes do Paleoceno e Eoceno da Argentina. A espcie-tipo, Sebecus icaeorhinus Simpson, 1937, proveniente de depsitos eocnicos de Chubut, Argentina (Formao Casamayor) e despertou muito interesse desde sua descrio feita pelo ame-ricano George G. Simpson, dada a peculiaridade de sua morfologia. At aquele momento, todos os crocodilomorfos fsseis conhecidos eram ao menos superficialmente similares aos crocodilianos modernos: formas aquticas com rostros alongados, largos ou tubulares e dotados de dentio simples, composta por dentes cnicos e lisos. Com um rostro alto e estreito e dentes muito comprimidos e dotados de serrilhas cortantes, bem como por outras particularidades (como a presena de uma dupla articulao mandibular), Sebecus mostrou-se to dissimilar do padro morfolgico familiar que Simpson considerou ento que uma nova sub--ordem da tradicional ordem Crocodylia deveria ser reservada para esse animal, chamando-a Sebe-cosuchia, sem descartar, no entanto, a possibilidade de Sebecus representar at mesmo um novo grupo de Archosauria. Em sua reviso da espcie, Colbert (1946) vinculou Sebecus a Baurusuchus, do Cretceo do Brasil (ver acima), inserindo tambm este gne-ro na ento sub-ordem Sebecosuchia especialmente por ambos apresentarem crnios altos e dentio teropodomorfa, ou seja, similares aos dentes dos dinossauros Theropoda (entre os crocodilomor-fos, esta dentio tambm denominada zifodonte). Outro fator interessante atrelado descoberta de Sebecus que este crocodiliforme mostrou-se ser o fornecedor dos dentes isolados que levaram o cle-bre paleontlogo argentino Florentino Ameghino (1906) a supor que dinossauros Theropoda ainda ocorriam no Tercirio da Patagnia Argentina, um dos problemas que estimularam a organizao da Scarritt Patagonian Expedition, do Museu Americano de Histria Natural de Nova York, e que percorreu vrias localidades fossilferas na Patagnia Argenti-na entre 1930 e 1931 (Simpson, 1932).

    Novas descobertas posteriores revelaram que o registro fssil dos Sebecia relativamente disseminado em toda a Amrica do Sul, com formas associadas ao grupo provenientes desde depsitos do Cretceo Superior da Patagnia ao Mioceno Mdio da Venezuela (p. ex. Langston, 1965, Gaspa-(p. ex. Langston, 1965, Gaspa-

    outros espcimes, originalmente depositados no Museu Nacional do Rio de Janeiro e enviados sob emprstimo a Cope nos Estados, Unidos acabaram por se perder ou se dispersar em outras colees aps seu falecimento. Dada a falta da procedncia precisa e ao fato de outros materiais de dirossaur-deos no ocorrerem no Cretceo, mas no Paleoceno do estado de Pernambuco (ver abaixo), Barbosa et al. (2008) sugerem que o espcime-tipo de H. derbianus deva advir de nveis mais recentes do que o aventado por Cope. Tm-se assim que o regis-tro brasileiro melhor conhecido atualmente deste grupo o exemplar-tipo da espcie Guarinisuchus munizi Barbosa et al. 2008 (Fig. 2), proveniente da Formao Maria Farinha da Bacia da Paraba, exposta no municpio de Recife (PE). Alm destas ocorrncias, duas outras espcies de dirossaurde-os so bem conhecidas em depsitos paleocni-cos da Colmbia e um espcime fragmentrio proveniente do Paleoceno da Bolvia. Como cada uma das espcies sul-americanas descritas apa-renta-se mais a espcies africanas do que entre si, sugere-se que os dirossaurdeos tenham alcanado a Amrica do Sul a partir de sucessivas migraes de estoques ancestrais africanos ocorridas durante o Paleoceno (Hastings et al. 2011).

    O exemplar-tipo da espcie Guarinisuchus muni-zi provm de uma camada bioestratigraficamente datada em cerca de 62 milhes de anos, situada pouco acima do contato entre a cretcica Formao Gramame e a paleocnica Formao Maria Farinha, contato este que representa o mais ntido registro do limite K-T no Brasil. Na Formao Gramame ocorrem fsseis que, apesar de fragmentrios, atestam a presena de ao menos quatro grupos de Mosasauria, uma linhagem de grandes lagartos marinhos predadores e que foram extintos ao fim do Cretceo. Isto posto, a presena de Guarini-suchus na Formao Maria Farinha, bem como a diversificao dos dirossaurdeos no Paleoceno nas demais regies do mundo, sugerem que estes crocodiliformes marinhos passaram a ocupar o nicho de predadores aquticos aberto pela extino dos mosassauros, pois durante cerca de 30 milhes de anos a partir do final do Cretceo estes croco-diliformes passaram a ser os mais comuns fsseis de vertebrados tetrpodes nos depsitos costeiros relacionados ao antigo mar Tethys.

    No ambiente continental o registro dos croco-diliformes palegenos muito mais modesto do que aquele do Cretceo, mas neste perodo outro grupo altamente especializado deixou um teste-

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    rini 1972, Turner & Calvo 2005, Paollilo & Linares 2007, Pol & Powell 2011). No Brasil, o registro de sebecdeos ainda restrito, com trs crnios ainda inditos provenientes do Paleoceno da Bacia de Itabora, no estado do Rio de Janeiro. Inicialmente reconhecido como afins espcie Bretesuchus bona-partei Gasparini et al., 1993, do Paleoceno do norte da Argentina, um detalhamento na descrio des-tes exemplares itaboraienses mostra que um deles aproxima-se mais a Sebecus icaeorhinus (Pinheiro et al. 2011a), enquanto os demais assemelham-se a Sebecus huilensis Langston, 1965, espcie do Mio-ceno Mdio da Colmbia (Pinheiro et al. 2011b). O posicionamento filogentico do grupo como um todo, no entanto, ainda muito debatido. Alguns estudos concluem que os sebecdeos constituem uma linhagem afim aos notossquios do Cretceo, ou mesmo que se tratam de notossquios deriva-dos, estreitamente aparentados aos baurussuqude-os (p. ex. Pol & Powell 2011), sustentando o grupo Sebecosuchia, e assim a classificao pioneira pro-posta por Colbert (1946). Outras anlises concluem terem os sebecdeos um posicionamento bem mais prximo s linhagens viventes do que anteriormen-te suposto, aproximando-os dos Peirosauridae e posicionando ambos mais proximamente aos Neo-suchia (p. ex. Larsson & Sues 2007, Riff & Kellner 2011. Note o posicionamento de Sebecus na Fig. 2). Tidos como crocodiliformes terrestres a partir de sua anatomia craniana (rostro alto e estreito, narinas posicionadas anteriormente), os sebecde-os so hoje compreendidos como crocodiliformes com um espectro morfolgico e ecolgico mais amplo do que o suposto anteriormente, panorama vislumbrado pela recente descoberta de formas primitivas do grupo em depsitos do Paleoceno da Argentina e que contam com rostros mais baixos, narinas externas abertas dorsalmente e dentes sem bordas serrilhadas (Pol & Powell, 2011), sugerindo terem ocupado tambm nichos aquticos similares s espcies modernas. Mas as formas eocnicas, como Sebecus, bem como aquelas do Mioceno Mdio do norte da Amrica do Sul (Colmbia, Peru e Venezuela) incluem animais com crnios altos e comprimidos tpicos de animais terrestres. Sua dentio zifodonte sugere fortemente tratar-se de predadores ativos, e seu tamanho considervel (crnios com 50 cm a 1 m de comprimento) habilita estes sebecdeos a competirem diretamente com os principais predadores terrestres do Tercirio, como os mamferos marsupiais predadores (Sparassodon-ta) ou as aves terrcolas de grande porte (Phorusrha-

    cidae). Interessante notar que no depsito no qual o maior dos sebecdeos conhecido (Barinasuchus arveloi Paollilo & Linares, 2007, da Formao Bari-nas, Mioceno Mdio da Venezuela), fsseis desses outros grupos de vertebrados predadores no foram encontrados at o momento. Os sebecdeos aparen-temente extinguem-se ao final do Mioceno Mdio (h cerca de 12 milhes de anos), coincidindo com drsticas mudanas paleoambientais impostas pelos ltimos pulsos de soerguimento da Cordilheira dos Andes, que ao longo do Mioceno drenaram as extensas reas alagadias que dominavam a paisa-gens da atual regio amaznica ocidental (Hoorn et al. 2010, Hoorn & Wesselingh 2010).

    Esse sistema lacustre amaznico que perdurou at o Mioceno Mdio era drenado por rios que rumavam para o norte, contando com uma ampla rea de contato com o mar do Caribe, e deixou um registro sedimentar conhecido como Sistema Pebas. Seu declnio, controlado pelo fechamento do contato caribenho atravs do rpido soerguimento dos Andes Venezuelanos (Cadeia de Mrida), bem como pela formao de imensos leques aluviais (mega-fans) resultantes do soerguimento das cadeias Central e Setentrional dos Andes (Colmbia e Equador), levou ao estabelecimento, no Mioceno Superior, de uma nova paisagem dominada por amplas reas alagadas sem qualquer contato impor-tante com o mar e drenada por rios que passaram a correr de leste para oeste, denominada Sistema Acre. Com o desaparecimento dos sebecdeos nos depsitos pan-amaznicos formados no contexto do Sistema Acre, e por estes animais aparentemente terem ocupado nichos de predadores de topo de cadeia (usualmente os animais mais ecologicamente susceptveis a drsticas mudanas ambientais), a associao da extino deste grupo com tal crise ambiental uma hiptese bastante plausvel, ain-da que suas causas mais prximas e precisas no sejam conhecidas (Riff, 2011). No entanto, essa extino pode ter sido apenas regional. Ainda que sebecdeos j no ocorram em depsitos mais aus-trais (na Argentina) desde o Oligoceno, um dente isolado e incompleto, mas com a forma tpica dos dentes dos sebecdeos, foi coletado em afloramento da Formao Guabirotuba, Mioceno/Plioceno da Bacia de Curitiba, no estado do Paran (Liccardo & Weinschtz, 2010). Se novos e mais completos fsseis confirmarem a presena deste grupo neste depsito datado do final do Negeno, seriam estes sebecdeos paranaenses os ltimos crocodilifor-mes no-Eusuchia do mundo, dado que todas as

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    sitos no contam mais com representantes dos terrestres sebecdeos. Estes depsitos do Mioceno Superior da Amaznia preservaram, no entanto, o mais prolfico registro de Crocodylia no Brasil, com formas que esto includas nos trs grupos viventes: Gavialoidea, Crocodyloidea e Alligatoroidea.

    O grupo dos Gavialoidea atualmente repre-sentada por apenas uma espcie vivente, Gavialis gangeticus (famlia Gavialidae), que ocorre apenas no sub-continente Indiano. Historicamente ocor-ria na ndia, Paquisto, Myanmar, Bangladesh, Buto e Nepal, nas bacias dos rios Indus, Ganges, Brahmaputra e Mahanadi. No entanto, devido ao humana populaes viveis so encontradas hoje apenas no Nepal e ndia, especialmente na bacia do Rio Chambal. Com apenas cerca de 200 adultos remanescentes fora de santurios e parques, a espcie considerada pela International Union for Conservation of Nature (IUCN) como criticamente ameaada de extino (Choudhury et al. 2007). Embora a sua distribuio atual seja restrita, a histria evolutiva do grupo ampla, com registros desde o Cretceo Superior dos Estados Unidos, Europa e Norte da frica. Os registros mais anti-gos na Amrica do Sul datam do Oligoceno, mas foi no Mioceno da Amaznia que os gavialideos experimentaram sua maior diversificao. Os prin-cipais registros no continente provm do Mioceno Mdio da Venezuela, Peru e Colmbia e do Mioce-no Superior da Argentina, Venezuela e Brasil (estes sendo comuns na Formao Solimes do estado do Acre), e no Plioceno do Peru, somando dez esp-cies descritas em seis gneros distintos (Riff et al. 2010). Registros mais esparsos so provenientes tambm de depsitos da Formao Solimes no estado do Amazonas, e em depsitos do Mioce-no Mdio do estado do Par (Formao Pirabas). Assim como a nica espcie vivente do grupo, todos os gavialideos caracterizam-se pela presena de um rostro tubular bastante alongado e crivado de dentes cnicos simples. Essa uma especializao que permite rpidos movimentos da cabea dentro dgua, tanto lateral quanto verticalmente, o que torna os gaviais piscvoros muito eficientes. De fato, G. gangeticus o mais aqutico dos crocodilianos viventes, sendo encontrado preferencialmente em trechos calmos e junto a bancos de areia em rios amplos e profundos, no sendo capazes de pre-dar em terra firme, e tambm no ocorrendo em lagos ou reas pantanosas (Whitaker & Basu 1983, Thorbjarnarson 1992). Esta preferncia de habitat da espcie vivente coerente com o incio de um

    demais ocorrncias mundiais de crocodiliformes conhecidos a partir do Mioceno Superior so de eussquios.

    exceo deste nico e fragmentrio registro atribudo aos sebecdeos, o registro de crocodi- registro de crocodi-liformes no Brasil a partir do fim do Paleoceno inclui apenas representantes dos Eusuchia, espe-cificamente dos Crocodylia (n 8 da Fig. 2). Mas entre o Paleoceno e o Mioceno Mdio esse regis-tro praticamente nulo, com apenas uma espcie descrita: Caimam tremembensis Chiappe, 1988. Baseada em material muito fragmentado prove-niente da Formao Trememb (Oligoceno Supe-rior) da Bacia de Taubat no estado de So Paulo, este fssil representaria o mais antigo registro do gnero Caiman, ,que ainda conta com as espcies viventes C. latirostris, C. yacare e C. crocodilus, todas ocorrentes no Brasil (veja abaixo mais sobre os cai-manneos) Esta atribuio taxonmica, no entanto, tentativa, dada a carncia de novos e melhores espcimes. Este hiato amostral no registro pale-geno brasileiro , no entanto, condizente com uma sub-amostragem no registro de Mesoeucrocodylia percebida em todo o mundo, controlada pela dis-ponibilidade e acessibilidade do registro geolgico continental. Hiatos temporais na amostragem de txons ocorrem tambm em outros perodos e podem ser ainda mais extensos, como os depsi-tos mesozoicos pr-Aptiano, nos quais o registro de crocodiliformes ainda mais rarefeito. Novas descobertas em depsitos desta idade acabam por ter grande potencial para modificar as hipteses correntes sobre a filogenia e biogeografia dos cro-codiliformes (Riff & Kellner 2008).

    Ao fim do Tercirio, mais especificamente no Mioceno Superior, o registro de crocodiliformes no Brasil volta a ser to numeroso e diversificado quanto aquele do Cretceo Superior, ainda que concentrado em quase sua totalidade nos nveis superiores da Formao Solimes da Bacia do Acre e conhecidos tambm em depsitos correlatos no Peru, Bolvia, Colmbia e Venezuela. Estes dep-sitos continentais do norte da Amrica do Sul, ou pan-amaznicos, possuem uma espantosa varieda-de e quantidade de fsseis de todos os principais grupos de vertebrados, sendo os crocodiliformes usualmente os mais frequentes nas centenas de stios paleontolgicos que, no caso do estado do Acre, so em sua maioria barrancas expostas pela ao erosiva dos rios e igaraps da regio. Como representam a deposio flvio-lacustre resultante do estabelecimento do Sistema Acre, esses dep-

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    Riff D., Souza R. G., Cidade G. M., Martinelli A. G., Souza Filho J. P. TERR 9:12-40, 2012

    uma diversidade ainda maior do que a conhecida para o grupo na Amrica do Sul.

    Crocodilianos longirrostros e de pequeno porte, mas distintos dos gavialideos, tambm ocorrem nos depsitos do Mioceno da Amaznia, representados pelo enigmtico gnero Characto-suchus. Originalmente proposto para a espcie C. fieldsi Langston, 1965 a partir de uma mandbula proveniente de depsitos do Mioceno Mdio da Colmbia, esta espcie foi posteriormente regis-trada no Brasil, em depsitos do Mioceno Superior do estado do Acre (Souza-Filho 1993), assim como dois outros morftipos reconhecidos preliminar-mente como espcies distintas e nomeadas como C. mendesi (Souza-Filho & Bocquentin-Villanueva 1989, Souza-Filho et al. 1993) e C. sansaoi (Souza Filho 1991). Todas as ocorrncias atribudas a este gnero baseiam-se apenas em mandbulas isoladas, que compartilham uma longa snfise e uma pecu-liar evaginao de seus alvolos dentrios. Apesar da escassez de material, Charactosuchus tem sido atribudo aos Crocodyloidea (Langston 1965, Riff et al. 2010).

    Os Alligatoroidea ocorrentes no registro fssil brasileiro pertencem a um grupo muito bem suce-dido e dotado de uma longa histria na Amrica do Sul: os Caimaninae (caimanneos). Esta linhagem inclui todas as seis espcies de jacars viventes no Brasil, e pode ser rastreada no continente desde o Paleoceno da Bacia de So Jos de Itabora, no estado do Rio de Janeiro, bem como da Argentina, de onde provm as mais antigas espcies descritas para o grupo: Necrosuchus ionensis Simpson, 1937 e Eocaiman palaeocenicus Bona, 2007. Os espcimes de Itabora, restritos a fragmentos mandibulares, foram associados a este ltimo gnero e reconhe-cidos como uma nova espcie e mais antigo caima-nneo do Brasil: E. itaboraiensis Pinheiro, Fortier, Pol, Campos e Bergqvist, 2013. O registro fssil dos caimanneos segue fragmentrio ao longo do Palegeno, havendo apenas uma espcie pouco conhecida de caimanneo de pequeno porte prove-niente do Oligoceno da Bacia de Taubat (Caiman tremembensis, ver acima). Entretanto, o znite da diversidade do grupo registrado nos depsitos miocnicos da Amaznia Ocidental associados ao Sistema Acre. De l so conhecidas trs espcies do gnero Caiman, sendo duas extintas e a espcie C. yacare, ainda vivente (Fortier et al. 2009). Uma das espcies extintas diferencia-se das atuais por possuir um rostro muito curto, enquanto a segun-da destaca-se pela presena de chifres formados

    sistema predominantemente fluvial que imperou no Mioceno Superior na Amaznia (Sistema Acre), quando os gavialideos prosperaram na regio. Mesmo sendo um dos maiores crocodilianos atuais, podendo medir seis a sete metros de comprimen-to, a espcie indiana vivente pode ser considerada mediana frente a formas gigantescas que ocorreram na Amaznia durante o Mioceno. Praticamente todos os espcimes conhecidos possuem crnios que se aproximam ou mesmo ultrapassam 1 m de comprimento. A maior espcie j descrita provm do Mioceno Superior da Venezuela e nomeada Gryposuchus croizati Riff & Aguilera, 2008. Com um dos espcimes conhecidos contando com 1,4 m de comprimento craniano (Fig. 5), estima-se um comprimento corporal total de cerca de 10 metros e uma massa de cerca de 1.700 Kg, fazendo desta espcie um dos maiores crocodiliformes de todos os tempos. Exemplares de uma espcie distinta do gnero Gryposuchus e com tamanho similar a G. croizati foram encontrados na Formao Solimes no estado do Acre, estando atualmente sob estudo. Mas nem todos os fsseis de gavialideos acreanos so gigantes. Uma pequena mandbula coletada prximo fronteira com a Bolvia, medindo cerca de 30 cm de comprimento e no aparentando tratar--se de um indivduo juvenil sugere a existncia de uma espcie de pequeno porte (Souza et al. 2012). Ainda que sejam necessrios exemplares mais com-pletospara atestar que este espcime corresponde a um indivduo adulto, a ocorrncia de outra man-dbula diminuta no Mioceno Mdio da Formao Pirabas (Moraes-Santos et al. 2011) aponta para

    Figura 5. Ilustrao do crnio de Gryposuchus croizati, do Mioceno Superior da Venezuela, maior gavialideo conhecido.

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    Crocodilomorfos: A maior diversidade de rpteis fsseis do Brasil TERR 9:12-40, 2012

    Riff & Aguilera 2008). Fsseis de P. brasiliensis so dos mais comumente encontrados nos depsitos da Formao Solimes no estado do Acre, com dezenas de espcimes conhecidos, incluindo restos que atestam a presena de indivduos ainda maiores, sendo o maior exemplar registrado representado por uma mandbula proveniente da regio do Alto Rio Juru, e que possui 1,7 m de comprimento (Price 1967). So conhecidos tambm crnios de indivduos juvenis, que j apresentam as caracte-rsticas diagnsticas da espcie (Souza et al. 2010). Contando com tais dimenses corpreas, e uma dentio avantajada, com dentes com at 10 cm de altura e contando com bordas serrilhadas cortantes, Purussaurus brasiliensis foi o maior predador do Mio-ceno, e um dos maiores de todos os tempos (Fig. 6).

    Aps apreciar tal diversidade de espcies, morfologias, tamanhos e estratgias ecolgicas no registro fssil dos Crocodylomorpha, com destaque para os representantes encontrados no Brasil, fica evidente que este grupo no deve ser considerado um exemplo de fssil-vivo, termo to inapropriadamente utilizado de um modo geral (Romano et al. 2009) e especialmente neste caso. No obstante os crocodilianos atuais serem repre-sentantes modernos de uma linhagem que pode ser remontada a depsitos do Cretceo de todo o mundo (os Crocodylia), ela representa apenas uma frao sobrevivente de um grupo muito maior, mais diverso e disseminado, sendo que apenas muito recentemente, no Quaternrio, as diversas faunas de crocodilomorfos passam a ser praticamente idnticas s atuais, tanto em nmero de espcies (diversidade) quanto em representatividade de gru-pos (disparidade). Este declnio muito claro tam-bm no territrio brasileiro, mesmo considerando--se apenas as trs famlias existentes de Crocodylia. Se os ltimos gaviais amaznicos foram extintos aps o estabelecimento da moderna bacia hidrogr-fica do Amazonas, ao fim da vigncia do Sistema Acre no fim do Mioceno (Riff et al. 2010), durante o Pleistoceno ainda ocorriam espcies da famlia Crocodylidae (e do gnero Crocodylus), encontrados em depsitos da Formao Rio Madeira, Pleisto-ceno do estado de Rondnia (Fortier et al., 2011). Esta famlia extinguiu-se no pas, aparentemente no Pleistoceno, e ocorre atualmente na Amrica do Sul apenas da bacia do Rio Orinoco, na Venezuela, costa da Colmbia. No entanto, o registro fssil no Quaternrio continuou significativo para os caimanneos, com fsseis associados aos gneros viventes Caiman, Melanosuchus e Paleosuchus sendo

    pelos ossos posteriores do crnio (Souza-Filho & Bocquentin-Villanueva 1991, Riff et al. 2010). Mas o maior acrscimo que os depsitos miocnicos amaznicos oferecem compreenso da diversida-de passada dos caimanneos so os fsseis de uma linhagem peculiarssima formada pelos extintos gneros Purussaurus e Mourasuchus. Este ltimo pos-sui quatro espcies distintas conhecidas a partir de crnios e outros ossos provenientes da Colmbia, Venezuela, Argentina e Brasil, onde h trs espcies registradas no estado do Acre: M. amazonensis Price, 1964, M. arendsi Bocquentin-Villanueva, 1984 e M. nativus (Gasparini, 1985). Estes so animais de grande porte, cujos crnios contam com cerca de 1 m de comprimento e se caracterizam por pos-surem um rostro muito alongado e alargado (Fig. 2), com a espcie M. nativus contando ainda com desenvolvidas tuberosidades cranianas similares a chifres arredondados (Bona et al. 2013, Cidade et al. 2011, Bocquentin e Souza-Filho 1990). Dotados de mandbulas frgeis e dentio numerosa mas diminuta, e sendo ainda incapazes de uma forte e rpida flexo do pescoo devido s suas curtas e peculiares vrtebras cervicais, as espcies de Mourasuchus parecem ento ter ocupado um nicho ecolgico bastante distinto para um crocodiliano, atuando possivelmente como um filtrador passivo, ao invs de um predador (Langston 2008).

    Contrastando com Mourasuchus, as espcies do gnero Purussaurus possuem o crnio e mandbula muito robustos. A presena de uma enorme narina externa a caracterstica mais conspcua na morfo-logia craniana das trs espcies conhecidas do gne-ro: P. neivensis Langston, 1965 (Mioceno Mdio da Colmbia), P. mirandai Aguilera, Riff e Bocquentin--Villanueva 2006 (Mioceno Superior da Venezuela) e P. brasiliensis Rodrigues, 1892 (Mioceno Superior do estado do Acre, no Brasil), sendo que nas duas ltimas espcies a narina externa ocupa cerca da metade do comprimento do rostro. Todas as trs espcies so agigantadas, com o crnio da espcie colombiana contando com 85 cm de comprimen-to e o crnio, da espcie venezuelana com 1,2 m (Aguilera et al. 2006). A espcie acreana, P. brasilien-sis, a maior conhecida, e tambm pode ser consi-derada o maior crocodilomorfo de todos os tempos, pois a partir do exemplar mais completo conhecido, que conta com 1,4 m de comprimento craniano e comparando-se com as propores dos crocodi-lianos viventes, possvel estimar o comprimento total de P. brasiliensis em cerca de 12 m, e uma massa corprea entre 8 e 10 toneladas (Aguilera et al. 2006,

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    AgradecimentosExpressamos nossos agradecimentos ao suporte

    editorial oferecido pelo Dr. Celso Dal R Carneiro. Este trabalho valeu-se de suporte financeiro pro-porcionado pela Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) a D.R. (APQ-00581-09) e a R.G.S (IC-2012-0150), pela Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP) a G.M.C (13/04516-1) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cient-fico e Tecnolgico (CNPq) a D.R. (401843/2010-6).Os autores agradecem aos colegas Daniel Fortier (UFPI) e Felipe Montefeltro (USP) pelas contri-buies a este manuscrito.

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    Figura 6. Reconstruo artstica de paisagem do Mioce