Ações Culturais e Meios Digitais

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO SÃO CARLOS 2013 EM CONJUNTO: AÇÕES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS MSc. MAYARA DIAS DE SOUZA Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Área de concentração: Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo Orientador: Prof. Associado Dr. Marcelo Tramontano Versão corrigida.

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Ações Culturais e Meios Digitais - artigo digital, memoria

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULOINSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO

    SO CARLOS 2013

    EM CONJUNTO:

    AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    MSc. MAYARA DIAS DE SOUZA

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Doutor em Arquitetura e Urbanismo.

    rea de concentrao: Teoria e Histria da Arquitetura e Urbanismo

    Orientador: Prof. Associado Dr. Marcelo Tramontano

    Verso corrigida.

  • AUTORIZO A REPRODUO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO,POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINSDE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    DIAS DE SOUZA, MAYARA De EM CONJUNTO: AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS /

    MAYARA DIAS DE SOUZA; orientador MARCELO TRAMONTANO.So Carlos, 2013.

    Tese (Doutorado) - Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo e rea de Concentrao emTeoria e Histria da Arquitetura e do Urbanismo --Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade deSo Paulo, 2013.

    1. AES CULTURAIS. 2. MEIOS DIGITAIS. 3. CONJUNTOS HABITACIONAIS. I. Ttulo.

  • Ao Marcos, que ao longo da realizao deste

    trabalho sempre foi companheiro, no me deixou

    desistir mesmo quando tudo parecia to dificil, me

    fez rir nos dias mais tensos, comemorou comigo

    cada conquista, e sempre foi um super pai. voc,

    dedico esta tese, com todo meu amor.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao Professor Associado Dr. Marcelo Tramontano, meu orientador, com quem

    aprendi a arte de fazer pesquisa e de trabalhar em grupo. Agradeo especialmente

    a oportunidade que me foi dada de participar de um projeto to grandioso e

    rico como foi o Territrios Hbridos.

    Aos pesquisadores do Nomads.usp, em especial Denise Mnaco pela parceria

    exitosa que construmos; Cynthia Nojimoto, Sandra Soster, Luciana Roa e

    Felipe Anitelli, pela amizade e por serem sempre to solcitos.

    todos os participantes do projeto Territrios Hbridos.

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP), pela

    concesso da bolsa de Doutorado.

    Aos Professores e Funcionrios do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da

    Universidade de So Paulo.

    Lilia Hermes, amiga e terapeuta, sempre to cuidadosa e preocupada. Se este

    trabalho pde ser concludo devo muito a ela.

    E com muito carinho, agradeo Luma, minha filha querida; minha me, sempre

    meu porto seguro e exemplo de vida; ao meu pai, pelo incentivo; aos meus

    irmos, a quem tenho enorme admirao; toda a minha familia e amigos, de

    Belm e de So Carlos, que me acompanham e torceram junto; e a todas as

    pessoas queridas que me deram suporte com os cuidados com a Luma.

    Agradeo especialmente Deus, por ter me abenoado, me dado foras e

    sabedoria nas horas que eu mais precisei.

  • RESUMO

    SOUZA, M. D. de. (2013). Em conjunto: aes culturais e meios digitais. 2013.

    Tese (Doutorado). Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de So

    Paulo, So Carlos, 2013.

    Essa tese parte da hiptese que uma pesquisa na rea da cultura, envolvendo

    o mtodo de pesquisa-ao e que faz uso de meios digitais, pode estruturar-

    se como uma ao cultural em si ou um conjunto de aes culturais capazes

    de produzir alguns resultados, tanto para os pesquisadores quanto para os

    pesquisados, concomitantes sua implementao, instaurando um processo

    contnuo de retroalimentao crtico-reflexivo para ambos os grupos. A tese

    tambm examina os procedimentos metodolgicos adotados no mbito do

    projeto de polticas pblicas Territrios Hbridos: meios digitais, comunidades

    e aes culturais, em especial nas aes realizadas no conjunto habitacional

    Waldomiro Lobbe Sobrinho, em So Carlos, objetivando sistematizar o

    conhecimento produzido na realizao de aes culturais com meios digitais

    que envolvam atores pblicos e privados, instituies acadmicas e organizaes

    do terceiro setor, em uma perspectiva de instruir futuras aplicaes no escopo

    de polticas culturais, em especial em conjuntos habitacionais de interesse social.

    Palavras-chave: 1. Aes culturais. 2. Meios Digitais. 3. Conjuntos Habitacionais.

  • ABSTRACT

    SOUZA, M. D. de. Together: cultural activities and digital media. 2013. Thesis

    (Doctoral). Institute of Architecture and Urbanism, University of So Paulo, So

    Carlos, 2013.

    The Thesis hypothesis is that research in cultural fields which embrace Action-

    Research methods and digital media resources can be structured as a cultural

    action or a set of cultural activities able to produce results concomitantly ot

    their implementation both for researchers and for the community or group

    of people who participate the research, establishing a continuous process of

    critical and reflexive feedback for both groups. The Thesis also examines the

    methodological procedures adopted in the public policies research called

    Territories Hybrids: digital media, communities and cultural activities,

    especially in the actions performed in public housing complex Waldomiro Lobbe

    Sobrinho in So Carlos, in order to systematize the knowledge produced during

    the performance of cultural activities with digital media involving public and

    private stakeholders, academic institutions and nonprofit organizations, with the

    perspective of instructing future applications in the scope of cultural policies,

    especially in public housing context.

    Keywords: 1. Cultural activities. 2. Digital media. 3. Public Housing Complex.

  • LISTA DE FIGURASAs imagens utilizadas para ilustrar essa tese fazem parte de uma base de dados construda pelo projeto de Polticas Pblicas Territrios Hbridos: meios digitais, comunidades e aes culturais, desenvolvido pelo Nomads.usp..

    Figura 1. O LAGEAR - Laboratrio Grfico para Experimentao Arquitetnica - da UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais - foi um dos parceiros de instituies acadmicas a colaborar no projeto Territrios Hbridos. Participou da ao envolvendo graffiti digital. Fonte: Nomads.usp. 57

    Figura 2. O Instituto Pombas Urbanas uma organizao do terceiro setor atuante no bairro Cidade Tiradentes na cidade de So Paulo. Fonte Nomads.usp 60

    Figura 3. Interface grfica para comentrios utilizada em aes do projeto Territrios Hbridos. Fonte: Nomads.usp. 64

    Figura 4. Performers vestindo as Captas, uma interface tangvel vestvel desenvolvida pelos artistas Fbio FON e Soraya Braz. As Captas foram utilizadas em ao do projeto Terrtrios Hbridos. Fonte: Nomads.usp 66

    Figura 5. Projeo do graffiti digital realizado pelo pblico durante o Contato, Festival Multimdia Colaborativo, na cidade de So Carlos. O graffiti digital foi promovido pelo Nomads.usp e uma das possibilidades do uso de meios digitais em aes culturais. Fonte: Nomads.usp.. 69

    Figura 6. Estao tecnolgica montada para o CDHU Cultura Fest, evento organizado pelo Nomads.usp em colaborao com moradores do conjunto habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho. Fonte: Nomads.usp. 91

    Figura 7. Na ao Captas do projeto Territrios Hbridos a parceria foi feita com os artistas Fbio FON e Soraya Braz. Na foto, a artista Soraya Braz prepara o performer para a ao. Fonte: Nomads.usp. 96

    Figura 8. Rdio de rua realizada no bairro Cidade Tiradentes na cidade de So Paulo em parceria com o Instituto Pombas Urbanas. Fonte: Nomads.usp 102

    Figura 9. Urnas instaladas nos blocos dos condomnios do conjunto habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho. Uma das estratgias adotadas para coletar dados no conjunto. Fonte: Nomads.usp. 104

    Figura 10. Registro por vdeos e fotos da rdio de rua realizada no Conjunto Habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho. Fonte: Nomads.usp. 106

    Figura 11. Reunio entre parceiros para avaliao e reflexo da ao Captas do projeto Territrios Hbridos. Fonte: Nomads.usp.. 108

  • Figura 12. Reunio ps-evento entre pesquisadores e parceiros da ao Dilogos Interculturais do projeto Territrios Hbridos. Fonte: Nomads.usp. 108

    Figura 13. Performance das Captas na ao. Fonte: Nomads.usp. 117

    Figura 14. Graffiti digital no Grito Rock de 2012. Fonte: Nomads.usp. 119

    Figura 15. Grupo Aquarpa em So Carlos na ao Dilogos Interculturais. Fonte: Nomads.usp. 122

    Figura 16. Banda Parashurama em Lneburg na ao Dilogos Interculturais. Fonte: Nomads.usp. 122

    Figura 17. Performance realizada no conjunto Waldomiro Lobbe Sobrinho na ao Conjuntos. Fonte: Nomads.usp. 124

    Figura 18. Alunos em So Carlos durante sesso de fotografia. Fonte: Nomads.usp. 126

    Figura 19. Aluno postando fotos e comentrios no Faceboook. Fonte: Nomads.usp. 126

    Figura 20. Evento Cenas Urbanas realizado na cidade de So Carlos. Fonte: Nomads.usp. 128

    Figura 21. Sesso de capacitao da ao Cross. Fonte: Nomads.usp. 130

    Figura 22. Participantes da ao Cross manuseando os equipamentos para filmagem. Fonte: Nomads.usp. 130

    Figura 23. Workshop 1 da ao Fabricao Digital. Fonte: Nomads.usp. 132

    Figura 24. Montagem do Slice 2. Fonte: Nomads.usp. 132

    Figura 25. Slice 01 montado Instituto de Arquitetura e Urbanismo - USP. Fonte: Nomads.usp. 133

    Figura 26. Slice 02 montado no Instituto de Arquitetura e Urbanismo - USP. Fonte: Nomads.usp. 133

    Figura 27. Banda Topsturvy tocando em So Paulo na ao Backstage com interface de comentrios ao fundo. Fonte: Nomads.usp. 136

    Figura 28. Projeo da interface de comentrios em edifcio na cidade de Pelotas. Fonte: Nomads.usp. 136

    Figura 29. Perfil no Facebook chamado Fotos T-Hbridos. Os participantes da ao Cenas Urbanas utilizaram a rede social para compartilhar as fotos feitas por cada um. Fonte: autora. 153

    Figura 30. Grupo criado no Facebook para a discusso do projeto do pavilho durante os workshops. Fonte: autora. 153

  • Figura 31. Bloco de apartamentos do conjunto habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho. Fonte: Nomads.usp. 163

    Figura 32. A figura mostra a foto area do Conjunto Habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho e a localizao de cada condomnio e seus blocos de apartamentos. Fonte: autora. 164

    Figura 33. Planta da unidade habitacional da CDHU So Carlos. Fonte: autora. 164

    Figura 34. Estacionamento e centro comunitrio de um dos condomnios do conjunto habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho. Fonte: Nomads.usp. 166

    Figura 35. Estacionamento do conjunto habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho. Fonte: Nomads.usp. 166

    Figura 36. Bloco de apartamentos - acesso para as unidades. Fonte: Nomads.usp. 167

    Figura 37. Praa da Mangueira - rotatria que se tornou local de encontro dos moradores do conjunto. Fonte: Nomads.usp. 169

    Figura 38. Rdio de rua realizada no conjunto Waldomiro Lobbe Sobrinho. Fonte: Nomads.usp. 174

    Figura 39. Atividade Performance. Crianas circulando pelo conjunto aps confeco de fantasias. Fonte: Nomads.usp. 177

    Figura 40. Projeo de imagens geradas pelo pblico participante do CDHU Cultura Fest, evento organizado pelo Nomads.usp em conjunto com moradores do Conjunto Habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho. Fonte: Nomads.usp. 180

    Figura 41. Projeo do graffiti digital por touchtag e da interface de comnetrios. Fonte: Nomads.usp. 181

    Figura 42. Apresentao de dana de rua durante o CDHU Cultura Fest. Fonte: Nomads.usp. 181

    Figura 43. Atividade realizada durante o OCUPA!. Fonte: Nomads.usp. 185

    Figura 44. Oficina de pipa realizada durante OCUPA!. Fonte: Nomads.usp. 185

    Figura 45. Pblico participando do OCUPA!. manipulando software para visualizao do pavilho em modelo digital. Fonte: Nomads.usp. 186

    Figura 46. Plantio de rvores durante o OCUPA!. Fonte: Nomads.usp. 186

    Figura 47. Pgina CDHU Sanca no Facebook. Fonte: autora. 190

  • SUMRIO

    INTRODUO 23

    CAPTULO 1Aes culturais e meios digitais 311.1 Discusses sobre Cultura 341.2 Polticas Culturais no Brasil 391.3 Aes culturais 47

    1.3.1 Atores das aes culturais 511.3.2 Interfaces digitais em aes culturais 61

    CAPTULO 2Procedimentos metodolgicos em aes culturais 732.1 A pesquisa-ao 762.2 Procedimentos metodolgicos utilizados no projeto Territrios Hbridos 89

    2.2.1 Recursos humanos e tecnolgicos 902.2.2 Tipos de parcerias 952.2.3 Aproximaes, coletas de informaes e avaliaes de resultados 99

    CAPTULO 3Exame das aes culturais do projeto Territrios Hbridos 1133.1 Panorama das aes culturais do projeto Territrios Hbridos 116

    3.1.1 Captas 1163.1.2 Graffiti 1183.1.3 Dilogos Interculturais 121`3.1.4 Conjuntos 123`3.1.5 Cenas Urbanas 1253.1.6 Cross 1293.1.7 Fabricao Digital 1293.1.8 Backstage 134

    3.2 Exame Crtico: categorias analticas 1373.2.1 Formas de aproximao 1383.2.2 Estabelecimento de parcerias 1413.2.3 Uso de interfaces digitais 1503.2.4 Condicionantes locais 154

  • CAPTULO 4Exame das aes culturais realizadas no conjunto habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho

    159

    4.1 Caracterizao do conjunto 1624.1.1 Espao fsico 162

    4.1.2 Moradores 1704.2 Aes culturais realizadas no conjunto habitacional 171

    4.2.1 Ao Conjuntos 1734.2.2 Ao Fabricao digital 182

    4.3 Anlises 1844.3.1 Sobre os moradores 1874.3.2 Sobre as aproximaes e participaes 1884.3.3 Sobre a formao de grupos culturais 1894.3.4 Sobre espaos para realizao de aes culturais 1914.3.5 Sobre a comparao de aes culturais realizadas no conjunto e aes culturais realizadas no espao pblico urbano

    192

    4.3.6 Sobre polticas culturais em conjuntos habitacionais 193

    CONCLUSES 195

    REFERNCIAS 203

    APNDICE 231

  • INTRODUO

  • 25INTRODUO

    As aes culturais esto inseridas no mbito de discusses da atualidade, em

    especial, por abordarem diretamente questes relacionadas s diversidades

    culturais na cidade. Aes dessa natureza podem configurar-se desde uma

    interveno pontual e especfica, at intervenes maiores com o envolvimento

    de pessoas ou grupos trabalhando em conjunto. Interessam a esta pesquisa,

    aes culturais com meios digitais que tm em seu escopo a preocupao em

    se pensar os espaos pblicos da cidade como espao habitado, que envolvem

    conflitos, negociaes e comunicaes entre diferenas. Nesse sentido, entende-

    se que profissionais da rea de Arquitetura e o Urbanismo deveriam, ao desenhar

    a cidade, entend-la como a reunio de mltiplos espaos de coexistncia entre

    indivduos de grupos culturalmente diversos, e pens-la de modo a estabelecer

    novas e outras posturas no sentido de contribuir para a formao e vivncia de

    uma cidade que configure um loci de comunicao entre pessoas.

    Neste contexto, Em conjunto: aes culturais e meios digitais

    uma tese de Doutorado desenvolvida junto ao Programa de Ps-Graduao

    do Instituto de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade do Estado de So

    Paulo, no Ncleo de Estudos de Habitares Interativos_Nomads.usp, que tem

    como objetivo principal, sistematizar o conhecimento produzido na realizao

    de aes culturais com meios digitais que envolvam atores pblicos e privados,

    instituies acadmicas e organizaes do terceiro setor, em uma perspectiva

    de instruir futuras aplicaes no escopo de polticas culturais, em especial em

    conjuntos habitacionais de interesse social. Como objetivos especficos busca-

    se: 1) Aprofundar reflexes em relao utilizao de procedimentos derivados

    do mtodo de pesquisa-ao em aes culturais com meios digitais; 2) Examinar

    os procedimentos metodolgicos utilizados pelo projeto Territrios Hbridos

    a partir do mtodo de pesquisa-ao; 3) Examinar aes culturais realizadas

    no mbito do projeto Territrios Hbridos, com nfase para as realizadas no

  • 26

    conjunto habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho.

    Esta pesquisa fruto de uma linha de estudo que foi construda pela pesquisadora

    ao longo de vrios anos no Nomads.usp, apoiado, principalmente, em trs

    grandes experincias: o desenvolvimento da pesquisa de Mestrado; a

    participao no Projeto de Polticas Pblicas Comunidades online; e, ao

    longo da pesquisa de Doutorado, a participao no Projeto de Polticas Pblicas

    Territrios Hbridos: meios digitais, comunidades e aes

    culturais1.

    A pesquisa de Mestrado, realizada entre os anos de 2004 e 2007, junto ao Programa

    de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo, da Escola de Engenharia de

    So Carlos (EESC_USP), teve como produto a dissertao intitulada [DES]

    Interesse social: procedimentos metodolgicos para anlise

    de peas grficas de apartamentos de interesse social em que se

    analisou unidades de apartamentos de interesse social produzidos na cidade de

    So Paulo, ao longo do sculo XX. Os procedimentos metodolgicos propostos

    nesta pesquisa foram elaborados a partir do estudo de outras metodologias

    j existentes. As peas grficas analisadas faziam parte de uma base de dados

    composta por 3.724 unidades habitacionais paulistanas coletadas. Tal base de

    dados foi ampliada ao longo da pesquisa de doutorado com informaes sobre

    o Conjunto habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho, em So Carlos.

    O Projeto de Polticas Pblicas Comunidades online, financiado pela FAPESP

    e coordenado pelo Nomads.usp, foi realizado entre 2003 e 2008 e estudou

    as implicaes da introduo das TIC na vida cotidiana de uma comunidade e

    suas relaes com os espaos de morar, implantando comunicao mediada por

    computadores na comunidade de Cidade Tiradentes, em So Paulo, atravs de

    1. Ao longo da tese o projeto ser tratado como projeto Territrios Hbridos.

  • 27INTRODUO

    interface colaborativa especialmente desenhada para o projeto. Avaliaram-se,

    entre outros, os efeitos nas relaes sociais dentro e fora da comunidade, no

    espao fsico desse fragmento urbano e nas habitaes. Alm disso, foi possvel

    visualizar a ocupao dos apartamentos de interesse social desta localidade e

    perceber os hbitos da populao residente.

    O Projeto de Polticas Pblicas Territrios Hbridos: meios digitais,

    comunidades e aes culturais, tambm financiado pela FAPESP, foi

    realizado entre os anos de 2011 e 2013. Seu objetivo principal foi formular

    diretrizes para polticas pblicas capazes de estimular o reconhecimento e a

    valorizao de diversidades culturais, sociais, econmicas, tnicas e regionais

    entre diferentes grupos ou comunidades de fragmentos urbanos. Para atingir

    tal objetivo, o projeto utilizou como estratgia a promoo de aes culturais

    auxiliadas pelo uso de diversos meios digitais, e realizadas em parceria com o

    poder pblico e com agentes culturais. O principal parceiro do projeto foi a

    Coordenadoria de Artes e Cultura da Prefeitura Municipal de So Carlos.

    As relaes deste ltimo projeto com a pesquisa de Doutorado perpassam

    questes como a construo conjunta de aes culturais com meios digitais.

    A pesquisadora trabalhou na equipe de coordenao do projeto, o que, se por

    um lado, demandou dedicao e habilidade para tratar de questes de mbito

    organizacional, operacional e de contato direto com pesquisadores e parceiros,

    por outro, possibilitou a participao engajada nas diferentes instncias das aes

    culturais, desde suas concepes, planejamentos, execues, at as avaliaes.

    Vale destacar tambm que a posio que a pesquisadora ocupou no projeto

    estava relacionada, principalmente, ao carter prtico. Essa atuao refletiu-se

    ao longo da produo desta tese, conforme poder ser visto na redao dos

    textos. Foi muito difcil, por exemplo, manter certo distanciamento das aes

  • 28

    desenvolvidas visto tamanho envolvimento da pesquisadora com o projeto. Alm

    disso, a quantidade e a variedade de material produzido ao longo do projeto

    foram enormes. Para esta tese foi necessrio o estabelecimento de recortes a

    fim de selecionar e sistematizar materiais dentro de seus limites.

    O ttulo desta tese reflete o foco do estudo pretendido. Ao analisarmos a

    etimologia da palavra conjunto, encontramos que o significado de com

    reunio ou convergncia, e junto remete a unio. A juno dos dois que

    resulta na palavra conjunto reafirma o propsito de aes culturais enquanto

    instncias colaborativas e participativas de todos os envolvidos. Nessa

    pesquisa, consideramos ao cultural como um conjunto de procedimentos

    inerentes a determinadas atividades culturais, utilizando-se ou no de fazeres

    artsticos, proposto para uma comunidade ou para um conjunto de pessoas,

    que se estabelece a partir de quatro instncias principais: concepo, produo,

    realizao e avaliao.

    Neste contexto, a hiptese da pesquisa seria considerar que uma pesquisa,

    na rea da cultura, envolvendo mtodos de pesquisa-ao e que faz uso

    de meios digitais, pode estruturar-se como uma ao cultural em si ou um

    conjunto de aes culturais capazes de produzir alguns resultados, tanto para os

    pesquisadores quanto para os pesquisados, concomitantes sua implementao,

    instaurando um processo contnuo de retroalimentao crtico-reflexivo para

    ambos os grupos.

    A tese estrutura-se em quatro captulos, alm da introduo e da concluso.

    Nesta introduo busca-se delinear a pesquisa, seus objetivos, hiptese,

    motivaes que deram origem pesquisa abordando aspectos principais do

    seu percurso de desenvolvimento, e o detalhamento da estrutura da tese.

    No Captulo 1, reflete-se acerca da questo das aes culturais e meios

  • 29INTRODUO

    digitais, abordando questes relacionadas cultura, s polticas culturais, e s

    aes culturais com meios digitais. Enquanto isso, no Captulo 2 so feitas

    uma reflexes crticas sobre os procedimentos metodolgicos utilizados no

    mtodo da pesquisa-ao e a utilizao que foi feita deles no mbito do projeto

    Territrios Hbridos. O Captulo 3 examina as aes culturais realizadas

    no projeto Territrios Hbridos a partir de categorias analticas derivadas dos

    conceitos trabalhados nos captulos 1 e 2. Tais categorias tambm se derivam da

    experincia prtica adquirida pela autora durante o desenvolvimento do projeto

    atravs de participao no apenas como observadora, mas como participante

    em todas as aes culturais realizadas. J no Captulo 4 feito um exame

    das aes realizadas no conjunto habitacional Waldomiro Lobbe Sobrinho, em

    So Carlos. Nas Concluses desta tese, ser confirmada a hiptese desta

    pesquisa, bem como sero respondidas outras questes que surgiram ao longo

    do processo de pesquisa. Ser feita uma retomada procurando relacionar os

    objetivos inicialmente almejados e os resultados obtidos, explicitando os xitos

    e as dificuldades e realizando uma avaliao do processo.

  • CAPTULO 1Aes culturais e meios digitais

  • 33AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    As questes que viesam a construo desse captulo buscam uma reflexo mais

    apurada em torno do universo das aes culturais com uso de meios digitais.

    Mais do que explor-las, procura-se caracterizar uma ao cultural fazendo uso

    de diferentes aportes que possibilitem a complexizao desse termo. Interessa

    abordar neste captulo, principalmente, aspectos que envolvem aes culturais

    a partir dos insumos trazidos pelo projeto Territrios Hbridos. O objetivo

    aqui construir uma base terica que fornea subsdios para que se possa,

    nos captulos 3 e 4 desta tese, examinar algumas das aes desenvolvidas pelo

    projeto em questo e avaliar sua atuao com mais propriedade.

    Para tanto, acredita-se que, para entender melhor, faz-se necessrio voltar um

    pouco no tempo e examinar o entendimento da noo de cultura e como ele

    foi proposto, em especial, em perodos que influenciaram de certo modo

    aspectos importantes das polticas culturais hoje vigentes no pas. A breve

    abordagem sobre cultura ser feita ento a partir da compreenso da filsofa

    Marilena Chau2. Complementarmente a abordagem de cultura, sero discutidos

    alguns momentos relevantes da poltica cultural no Brasil, a partir de recortes

    estabelecidos por esta pesquisa, procurando entender as principais premissas

    dessas polticas implementadas.

    A seguir, trabalha-se a questo de aes culturais, procurando defini-la no

    mbito desta tese. Alm disso, so identificadas suas caractersticas e seus

    principais aspectos, dando nfase abordagem dos tipos de atores envolvidos. E,

    finalmente, sero abordadas questes relacionadas ao uso de interfaces digitais

    que esto inerentes em aes culturais com meios digitais.

    2. Marilena Chau, alm de extensa produo acadmica, foi Secretria Municipal de Cultura de So Paulo entre os anos de 1989 a 1992 durante a administrao da Prefeita Luiza Erundina, e sempre esteve ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT)

  • 34

    1.1 Discusses sobre Cultura

    Por dcadas, ou at mesmo sculos, a preocupao em se definir cultura, dada

    sua complexidade e uma srie de elementos envolvidos, tornou-se foco de

    reflexes de tericos consagrados de inmeros campos do conhecimento, em

    especial das cincias sociais e reas afins3. Se, por um lado, rgos das esferas

    Federal, Estadual e Municipal ainda no a consideram efetivamente como um

    bem essencial e prioritrio que deve ser levado populao, se comparada com

    a sade, educao e habitao, por exemplo, por outro, a cultura vem ganhando

    espao nas reivindicaes e contestaes nas diversas instncias da sociedade,

    desencadeando certo clamor pela valorizao de prticas dessa natureza e pelo

    desenvolvimento e implementao de polticas especficas mais direcionadas.

    Vale destacar os trabalhos que vm sendo produzidos nas instituies acadmicas

    que abordam o tema e o colocam na pauta das discusses. Esses trabalhos4 vo

    desde reflexes tericas at propostas prticas que envolvem a formulao e a

    execuo de projetos, em especial com abordagens experimentais. Concordamos

    com Rubim (2006, p. 58) quando afirma que o valor e o espao conquistado pela

    cultura nos ltimos tempos so definidos pela proliferao de estudos, polticas

    e prticas culturais que articulam cultura e identidade, cultura e desenvolvimento,

    cultura e uma diversidade de dispositivos e reas sociais. fato que o

    investimento em cultura, seja no mbito da academia, que procura contribuir

    com o aparato terico e conceitual, seja no mbito do poder pblico, atravs de

    formulao de legislaes especficas, aquelas relacionadas s questes de

    3. Autores como Cuche (2002), Cunha (2010), Durand (2001, 2013), Felix e Fernandes (2011), tambm trabalham questes que relacionam cultura e o desenvolvimento de aes culturais.

    4. Borelli e Oliveira (2010) realizaram um estudo sobre os acontecimentos estticos e culturais e a produo acadmica brasileira entre os anos 1960 e 2000, abordando questes relacionadas aos jovens, cultura e as prticas polticas realizadas no pas.

  • 35AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    financiamentos, mas tambm direcionando aes efetivas, promove o

    desenvolvimento poltico e econmico fortalecendo, o que Ydice (2006, p. 14)

    chama de a fibra da sociedade civil. Alm disso, cabe ressaltar a participao da

    sociedade civil com diferentes arranjos e formalizaes que tambm efetivam

    determinadas prticas nesse campo.

    De forma ampla, a compreenso que se deve ter de democratizao da cultura

    vai alm da que est associada s discrepncias entre os que tm e os que no

    tm acesso s atividades culturais, em funo especialmente do entendimento

    j mencionado de que rgos municipais, estaduais e federais, deveriam ser

    responsveis por incentivar e disseminar tais atividades. Autores como Fleury

    (2009), Botelho (2010), Lacerda (2010) e Rubim (2011) utilizam a expresso

    democratizao da cultura para reafirmar e discorrer acerca da importncia

    de se facilitar o acesso cultura em todas as instncias da sociedade. Dessa

    forma, seria possvel ampliar a compreenso das prprias aes culturais e

    estabelecer parmetros para sua anlise. As anlises, por sua vez, proporcionariam

    uma reavaliao das aes culturais anteriormente realizadas, desencadeando

    possveis reestruturaes, reformulaes ou at novas propostas de aes.

    Partindo da ideia de democratizao da cultura, pode-se enfatizar que a cultura

    tem a propriedade de se estabelecer enquanto ao poltica e transformadora

    de uma comunidade. Incentivar, motivar e viabilizar manifestaes culturais

    capazes de propiciar o envolvimento das mais diversas camadas da populao

    so formas que proporcionam no somente de ampliar o acesso cultura, mas

    tambm de fazer com que ela emerja da prpria sociedade, alm de valorizar

    a atuao de grupos culturais consolidados no mbito de uma comunidade.

    Acrescenta-se ainda a necessidade de se estender o espectro de atuao

    das atividades de cunho cultural. Ou seja, acreditamos que proporcionar e

    incentivar alternativas culturais variadas para pessoas ou grupo de pessoas que

  • 36

    ainda no foram contemplados ou no tiveram a oportunidade de participar

    desse tipo de dinmica em determinado contexto, pode ajudar a minimizar

    as desigualdades socioculturais existentes, pensando a mdio ou longo prazo,

    alm de contribuir para a formao de uma conscincia crtica da populao.

    Fleury (2009, p. 10) destaca que o acesso democratizado associado a um

    processo de institucionalizao das prticas culturais. Da a importncia dada

    s polticas culturais estabelecidas na estruturao dessas prticas. O autor

    complementa que as instituies culturais, governamentais ou no, tm o papel

    de vetores na democratizao da cultura por serem lugares de estruturao

    de comportamentos sociais e de modos de representar. A democratizao

    pode, portanto, difundir os benefcios da cultura entre a populao a partir

    dessas instituies culturais.

    vlido destacar que a diversidade sociocultural existente Brasil, pode ser

    reconhecida no mbito da cidade. Isso implica ponderar que, para se entender

    a concepo da prpria cidade, no se pode mais pensar em considerar

    exclusivamente o desenho de espaos fsicos, mas, principalmente, entender

    a cidade enquanto loci de contatos, convvios e conflitos de diferenas. Nesse

    contexto de cidade encontramos diversos atores que interagem na rea cultural

    que possuem muitos desafios, tanto na fase de concepo e planejamento, mas

    em especial no mbito prtico, cuja viabilidade depende, de certa forma, de

    aspectos relacionados s polticas culturais. A transversalidade do campo cultural,

    como enfatiza Rubim (2006, p. 89), perpassa todas as reas da vida social, sejam

    elas relativas economia, comunicao, ao comportamento ou poltica. Exige

    que polticas culturais sejam implementadas, portanto, de forma articulada e que

    possam ser capazes de romper as fronteiras da dimenso sociolgica da cultura.

    Em virtude dessas e de outras inmeras concepes tericas e conceituais que

    esto nos entremeios desse termo, destacamos que no nosso objetivo definir

  • 37AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    o que cultura, nem tampouco esmiuar ou esgotar o tema, mas interessa-nos

    discutir aqui acerca de algumas questes especficas que envolvem cultura e

    que nos auxiliaro a entender as polticas culturais implantadas atualmente no

    pas. Para isso, utilizaremos especialmente a definio de cultura proposta por

    Chau porque entendemos que as questes colocadas pela autora viesam as

    discusses sobre polticas culturais atuais. Chau (1988, p. 122) considera cultura

    como a ordem simblica que exprime o modo pelo qual homens determinados

    estabelecem relaes determinadas com a natureza, e entre si, e o modo pelo

    qual interpretam e representam essas relaes. A cultura pode, desse ponto de

    vista, ser entendida como o conjunto de manifestaes e prticas espontneas

    que caracterizam um determinado grupo social. Essas prticas no se referem

    somente s atividades realizadas nos campos das expresses artsticas, como

    as Artes, a Literatura, a Msica, o Teatro e a Dana, por exemplo, mas tambm

    englobam crenas, vocabulrios e outras manifestaes humanas que possibilitam

    a comunicao e a interao social. Cultura, portanto, no significa to somente

    esses momentos de espetculo, conforme aborda Chau (1988, p. 122),

    cultura no simplesmente a arte ou o evento, no rea ou departamento, no s definida pela economia de mercado, na verdade e sobretudo criao individual e coletiva das obras de arte, do pensamento, dos valores, dos comportamentos e do imaginrio.

    Complementando, a autora defende que toda pessoa um sujeito cultural, ainda

    que no sejam todos criadores de obras de arte e de pensamento (Chau, 1995,

    p. 84). A partir dessa reflexo, Chau traou um diagnstico sobre as principais

    modalidades de relao do Estado com a cultura, no Brasil, em que identifica:

    1. A liberal, que identifica cultura e belas-artes, estas ltimas consideradas a partir da diferena clssica entre artes liberais e servis. Na qualidade de artes liberais, as belas-artes so vistas

  • 38

    como privilgio de uma elite escolarizada e consumidora de produtos culturais;

    2. A do Estado autoritrio, na qual o Estado se apresenta como produtor oficial de cultura e censor da produo cultural da sociedade civil;

    3. A populista, que manipula uma abstrao genericamente denominada cultura popular, entendida como produo cultural do povo e identificada com o pequeno artesanato e o folclore, isto , com a verso popular das belas-artes e da indstria cultural;

    4. A neoliberal, que identifica cultura e evento de massa, consagra todas as manifestaes do narcisismo desenvolvidas pela mass midia, e tende a privatizar as instituies pblicas de cultura deixando-as sob a responsabilidade de empresrios culturais (CHAU, 1995, p. 81)

    Atravs desse diagnstico, Chau no seu mandato na Secretaria de Cultura de

    So Paulo, de 1989 a 1992, enxergou um limite dentro do pensamento cultural

    da populao e tentou ampli-lo, considerando os seguintes aspectos:

    Contra a viso liberal, propusemos alagar o conceito de cultura para alm do campo das belas-artes, tomando-o no sentido antropolgico mais amplo de inveno coletiva de smbolos, valores, ideias e comportamentos, de modo a afirmar que todos os indivduos e grupos so seres culturais e sujeitos culturais.

    Contra a viso autoritria, negamos que o Estado deva ser produtor de cultura, procurando, para isso, diferenciar entre estadismo cultural (cultura oficial) e dimenso pblica da cultura (o Estado estimula a criao cultural da sociedade).

    Contra a viso populista, recusamos a reduo da cultura polaridade entre popular e de elite, enfatizando que a diferena na criao cultural passa por outro lugar, qual seja,

  • 39AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    entre a experimentao inovadora e crtica e a repetio conservadora, pois tanto uma quanto outra podem estar presentes tanto na produo dita de elite quanto na chamada popular.

    Contra a viso neoliberal, procuramos enfatizar o carter pblico da ao cultural do Estado, a abertura de campos de atividade no submetidos ao poderio dos padres fixados pela mass midia recusando, portanto, a fashion culture, e definir o papel do poder pblico na prestao de servios culturais (como bibliotecas e escolas de arte) e no financiamento de produes culturais propostas pela sociedade (CHAU, 1995, p. 81-82).

    Nesse perodo, a autora salienta que era uma nova proposta de poltica em

    que a cultura era pensada como um direito do cidado e a poltica cultural, por

    consequncia, visava a cidadania cultural (CHAU, 1995, p. 81-82).

    1.2 Polticas Culturais no Brasil

    As discusses em torno das polticas pblicas culturais no Brasil tm sido

    acolhidas, nos ltimos anos, por diversos setores da sociedade. Tambm tm sido

    objeto de estudos acadmicos de diversas reas, como a Sociologia, a Economia,

    a Antropologia e as Cincias Polticas, que tentam discutir aspectos relacionados

    sua origem, seu percurso e abordagem, principais atores envolvidos, bem

    como frmulas e estratgias especficas para sua implementao. A defesa

    por uma atuao maior e focada dos diferentes agentes protagonistas dessa

    poltica tambm tem sido cada vez mais cobrada e exigida pela sociedade.

    Simis (2007, s.p) destaca que a poltica cultural no Brasil refere-se escolha

    de diretrizes gerais e esto direcionadas para o futuro, cuja responsabilidade

    dos rgos governamentais que agem a fim de alcanar o interesse do pblico,

    principalmente pelo campo da difuso e do acesso cultura. As polticas culturais

  • 40

    caracterizam-se, portanto, pela formulao de propostas que visam, a grosso

    modo, a promoo do desenvolvimento cultural de uma sociedade ou de um

    grupo social.

    Sabe-se que, para que uma poltica cultural se realize, existe uma srie de elementos

    necessrios de diferentes instncias que vo desde a formao profissional de

    agentes culturais, o estabelecimento de parcerias diversas, a definio de formas

    de financiamentos, entre outros. A formao de agentes culturais implica em

    uma capacitao de profissionais para atuar em aes de natureza cultural.

    Esses profissionais poderiam se tornar um elo entre os demais atores das aes

    culturais, como vimos anteriormente. Teriam, possivelmente, a capacidade de

    mediar negociaes entre o poder pblico e a comunidade, por exemplo, ou

    atuar como um porta-voz das necessidades e anseios de determinado grupo

    junto aos provedores, financiadores ou viabilizadores das aes culturais. Os

    agentes poderiam, ainda, atuar como mediadores das discusses, indicando

    caminhos de acordo com sua rea de atuao e experincias adquiridas, podendo

    fornecer subsdios para que a comunidade se organizasse e se estruturasse de

    forma independente.

    Outro aspecto importante no desenvolvimento de aes culturais o

    estabelecimento de parcerias. A ideia de parcerias pode ser sugerida, por exemplo,

    pela conexo de programas que j esto em curso, de forma a configur-los de

    uma nova maneira e buscando efetivar produes conjuntas entre os parceiros.

    Podem acontecer em diferentes mbitos, como por exemplo, no poder pblico,

    setor privado, instituies acadmicas ou organizaes do terceiro setor. Essas

    parcerias devem ser capazes tambm de envolver a comunidade em todas, ou

    pelo menos algumas das instncias das aes culturais, visto que isso articularia

    todos os atores envolvidos no processo.

  • 41AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    No mbito do poder pblico esperado que se disponibilizem editais prprios

    ou de terceiros, pensados para grupos culturais que esto em fase inicial ou

    que j desenvolvem atividades culturais em comunidades, para que eles possam

    se fixar e se consolidar e, consequentemente, serem capazes de organizar e

    implementar aes culturais continuamente.

    Outra forma de viabilizar financeiramente o desenvolvimento de aes culturais

    atravs da Lei Rouanet5 que possibilita que grupos culturais sejam propositores

    de aes junto s empresas do setor privado. Essa lei possibilitou a criao de

    novos projetos e estratgias de atuao das polticas culturais, alm do avano

    nas possibilidades de financiamento das aes. Entretanto, sabido que, na

    prtica, as empresas que acabam por selecionar os projetos submetidos, quais

    sero contemplados com parte do valor do imposto que seria pago ao Governo

    por essas empresas. Esse processo restringe a possibilidade de financiamento s

    propostas de projetos que, de certa forma, garantam a elevao do nome das

    empresas e aumentem sua visibilidade, configurando o marketing cultural. Vale

    destacar que projetos que no obedecem essas caractersticas ou que no

    explorem temas pertinentes do ponto de vista da empresa, mesmo que j

    tenham sido autorizados pelo poder pblico a fazer a captao de recursos, no

    so atendidos porque no se enquadram nas exigncias das empresas.

    As instituies acadmicas, com seu aporte terico, podem indicar caminhos

    atravs de seus conhecimentos e propor usos de metodologias especficas

    teoricamente embasadas. Alm disso, a posteriori, ela capaz de auxiliar ou

    mesmo realizar avaliaes sobre os efeitos da realizao de aes culturais,

    em que um dos objetivos a serem atingidos pode ser, por exemplo, de formar

    5. O Ministrio da cultura disponibiliza em seu site uma srie de documentos que explicam detalhadamente a Lei Rouanet e tambm sobre as polticas culturais no Brasil de uma forma geral. Ver: Brasil (2007a, 2007b, 2007c).

  • 42

    multiplicadores nas comunidades. A Universidade poderia se tornar uma

    incubadora de produtores culturais auxiliando na elaborao de projetos, ou

    ainda prestando assessorias peridicas nos diversos temas relacionados s

    aes propostas pelos produtores.

    Do ponto de vista da participao de pessoas ou grupos de pessoas da

    comunidade nas diferentes instncias das aes culturais possibilita que eles

    tomem conhecimento de todo o processo de realizao de uma ao e,

    consequentemente, tendam a se tornar multiplicadores dentro da prpria

    comunidade. Isso permite a continuidade das aes, pois, uma vez implementadas,

    em geral, ocorre a retirada dos rgos envolvidos durante o processo. Essa

    forma bottom-up de interveno em uma comunidade possibilita tambm

    que os prprios moradores sejam propositores, produtores e executores de

    aes culturais. Esse tipo de ao com participao de moradores ou mesmo

    propostas por eles, em geral, repercute de maneira positiva na comunidade e

    acarreta comsequncias em aes dessa natureza.

    De fato, para o desenvolvimento de aes culturais da qual se esperam boas

    reverberaes na comunidade, faz-se necessria realizaes de discusses

    coletivas que podem acontecer entre poder pblico e comunidade, instituies

    acadmicas e comunidade, organizaes do terceiro setor e comunidade, ou

    ainda essas trs instncias combinadas entre si junto com a comunidade, e que

    serviriam como aporte para que a prpria comunidade refletisse acerca de

    suas condies. As aes culturais so, portanto, capazes de iniciar processos

    de reflexo muito amplos, de mdio e longo prazo inclusive. Podem fazer com

    que a comunidade amplie seus horizontes e consiga, assim, enxergar alm da

    realidade atual. Almeida (2012, p. 75) tambm destaca que as polticas culturais

    no se constituem de forma isolada ou fragmentada.

  • 43AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    Podemos considerar as polticas culturais como uma sinergia de ideias, valores, normas, instrumentos de ao, operaes, atores sociais, dispositivos institucionais, oramentos, instituies e etc. Uma poltica organiza uma reunio de medidas concretas, compreendendo decises de natureza diversa e se inscrevendo no quadro de conjunto dado pelas representaes dos problemas que entram na agenda.

    Partindo do pressuposto da importncia da considerao dessas questes para

    as polticas culturais brasileiras, Calabre (2007, s.p) destaca que uma poltica

    cultural atualizada deve reconhecer a existncia da diversidade de pblicos,

    com as vises e interesses diferenciados que compem a contemporaneidade.

    No caso brasileiro, a autora considera que temos a premncia de reverter

    o processo de excluso, da maior parcela do pblico, das oportunidades de

    consumo e de criao culturais. Entretanto, sabe-se que no Brasil, dificilmente a

    populao chamada a discutir poltica pblica, tampouco questes relativas s

    polticas pblicas culturais. As indagaes possveis soam muito estranho para a

    populao que no est acostumada a discutir sobre esses assuntos com rgos

    competentes, nem entre elas prprias.

    Fazendo um breve panorama dos aspectos relacionados cultura no Brasil,

    um dos principais elementos de diferenciao do final do sculo XX e incio

    do sculo XXI, foi a percepo da poltica cultural num contexto global por

    meio de articulaes de aes que antes eram desenvolvidas de forma isolada.

    A poltica cultural passou a configurar-se mais que a soma de polticas setoriais,

    estabelecendo um esforo no sentido de articulao dos atores que intervm

    no campo cultural, tanto na rea pblica como no setor privado (CALABRE,

    2009, p. 11).

    Vale enfatizar que nos primeiros anos do sculo XX as polticas culturais no

    Brasil passaram por reformulaes, atingindo uma nova estrutura administrativa

  • 44

    que deu suporte elaborao de novos projetos e aes6. Foram criadas, por

    exemplo, as secretarias de Polticas Culturais, de Articulao Institucional, da

    Identidade e da Diversidade Cultural, de Programas e Projetos Culturais e a de

    Fomento Cultura (CALABRE, 2007, p. 11). Entretanto, como ressalta Calabre,

    nem sempre o pas teve um olhar do Estado sobre a cultura como uma rea

    que deva ser tratada sob a tica das polticas pblicas.

    Para entender melhor as caractersticas das polticas culturais do perodo

    atual, em especial a institucionalizao dessas polticas, faz-se necessrio

    retroceder um pouco at o sculo XX, em que podem ser destacados alguns

    momentos marcantes na cena cultural do pas e, consequentemente, uma

    variada configurao das polticas culturais que, se por um lado, obedeceu certo

    carter de valorizao das elites, por outro, defendeu a participao popular nas

    instncias culturais.

    Nos anos compreendidos entre 1930 e 1945, o pas passou por uma srie

    de transformaes polticas, econmicas, urbanas e administrativas. Na esfera

    federal, no primeiro governo de Getlio Vargas, houve um grupo de aes

    articuladas no campo da cultura que tomaram forma de polticas culturais.

    Nesse mesmo perodo, ocorreu uma experincia mpar na cidade de So Paulo,

    liderada por Mrio de Andrade, e estreitamente ligada aos ideais presentes no

    Movimento Moderno Brasileiro, que foi a criao do Departamento de Cultura

    de So Paulo (CALABRE, 1999, p. 11).

    No perodo seguinte, de 1946 a 1960, foi o momento ureo do crescimento da

    indstria cultural no Brasil, no qual a presena direta do Estado como elaborador

    6. Autores como Andrade (2010), Barbalho (2007), Botelho (2001), Brasil (2007c), Coelho (2004), Rubim (2006, 2008, 2011), tambm trabalham sobre o tema das polticas culturais brasileiras abordando seu histrico e refletindo sobre seus principais aspectos e influncias nas polticas culturais vigentes.

  • 45AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    e fomentador de polticas era bastante restrita (CALABRE, 1999, p. 11). Na

    dcada de 1960, antes do golpe de 1964, o governo federal instaurou algumas

    aes visando estruturar uma poltica para o setor. Calabre (1999, p. 11) divide as

    polticas culturais empreendidas ao longo do perodo militar em trs momentos:

    de 1966 a 1973, com forte presena do conselho Federal de Cultura; de 1974

    a 1979, com a criao e reformulao da estrutura pblica contribuindo para a

    institucionalizao da rea; e, de 1979-1985, em que houve efetiva presena, em

    escala nacional, das instituies criadas nos perodos anteriores.

    Vale destacar que o perodo da ditadura foi marcado pela ausncia de

    investimentos e preocupaes no mbito da cultura, e a presena e a atuao

    do Estado nos processos de elaborao e financiamento de polticas culturais

    era particularmente reduzida. Em contraposio, o perodo seguinte, entre os

    anos de 1980 e 1990, foi marcado pela participao popular na cultura, que foi

    possvel, segundo Chau (1995), graas democratizao brasileira. Nos anos

    1990, por sua vez, retoma-se o iderio do perodo da ditadura com a valorizao

    de uma politica cultural neoliberal em que eram privilegiadas as questes que

    envolviam as elites brasileiras.

    Em anos mais recentes, na dcada de 2000, essa caracterstica foi se transfigurando,

    em especial a partir de 2003, no primeiro governo do Presidente Lula, com a

    atuao de Gilberto Gil a frente do Ministrio da Cultura, em que ocorreu um

    novo esforo no sentido de recompor e ampliar a institucionalidade da rea da

    cultura, que havia sido perdida nas dcadas anteriores. Botelho (2006, 47-49)

    destaca que esse perodo constituiu-se em um intenso processo de discusso e

    reorganizao do papel do Estado na rea cultural. Para a autora,

    mais importante ainda o fato de o Ministrio da Cultura vir investindo na recuperao de um conceito abrangente de cultura, o que o leva a considerar como fundamental

  • 46

    a articulao entre cultura e cidadania, cumprindo um importante papel de divulgador que termina por influenciar polticas em nveis regionais e municipais.

    No perodo de 2003 a 2010, vale enfatizar a atuao do ministro Gilberto Gil

    em que foi retomada a postura de valorizao das pessoas enquanto sujeitos

    culturais, conforme colocada por Chau em anos anteriores. Vrios programas

    foram propostos pelo governo Federal que buscavam valorizar os grupos que

    j desempenhavam trabalhos relacionados cultura nas comunidades, como

    o Programa Cultura Viva, por exemplo. A lgica desse e de outros programas

    semelhantes do Governo Federal, por meio do Ministrio da Cultura, a de

    apoiar projetos dos chamados Pontos de Cultura, que tenham passado por

    um processo de seleo atravs de editais pblicos. Os Pontos de Cultura

    envolvem iniciativas relacionadas a expresses artsticas e culturais, em geral

    idealizadas e desenvolvidas por organizaes no governamentais, de carter

    cultural e social, legalmente constitudas. Para receber o apoio do Ministrio da

    Cultura, os Pontos de Cultura precisam ter pelo menos dois anos de atuao e

    os recursos so concedidos por um perodo de aproximadamente trs anos, em

    parceria com as prefeituras, visando impulsionar as atuaes nas comunidades. A

    caracterizao dos Pontos de Cultura muito diversa justamente porque a lgica

    do Programa Cultura Viva opera com base no apoio a associaes socioculturais

    que j desempenhavam um papel na sociedade ou em comunidades locais e

    especficas. O propsito dos Pontos de Cultura era definir aes e prticas a

    partir do contato com a comunidade, ao invs de levar aes culturais prontas.

    Esse e outros programas tinham como prerrogativa ampliar as possibilidades de

    reverberaes das expresses culturais atravs do encorajamento de discusses,

    debates, prticas de compartilhamento, articulaes e trabalhos colaborativos.

  • 47AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    1.3 Aes culturais

    No mbito dessa tese, consideramos ao cultural como um conjunto de

    procedimentos inerentes a determinadas atividades culturais, utilizando-

    se ou no de fazeres artsticos, proposto para uma comunidade ou para um

    conjunto de pessoas, que se estabelece a partir de quatro instncias principais:

    concepo, produo, realizao e avaliao. Na etapa de concepo, englobam-

    se as discusses vinculadas criao e planejamento da ao cultural. Na etapa

    de produo, destacam-se os procedimentos iniciais de uma ao cultural em

    que esto envolvidas atividades de formao de equipes, contato com possveis

    parceiros, elaborao das estratgias e planejamento das atividades a serem

    desenvolvidas. A seguir, a fase de realizao que est relacionada s prticas

    de desenvolvimento de tudo que foi programado na instncia anterior. Nessa

    fase, tambm podem ser detectadas eventuais lacunas no percebidas na etapa

    de produo. E, finalmente, a etapa de avaliao, em que so realizadas anlises

    todo o processo e onde possvel constatar se todos os objetivos especficos

    almejados foram atingidos.

    Para Teixeira Coelho (2004, p. 32) ao cultural um conjunto de procedimentos,

    envolvendo recursos humanos e materiais que visam pr em prtica objetivos

    de uma determinada poltica cultural. O autor coloca a preocupao social

    envolvida em uma ao cultural, evidenciando a importncia do desenvolvimento

    de atividades coletivas de um grupo ou comunidade ao invs da promoo de

    procedimentos de carter individual. Vaz (2010, p. 3), em seus estudos realizados

    sobre aes culturais no Complexo da Mar, no Rio de Janeiro, destaca que esse

    tipo de ao cultural surgiu nos anos 1980 e teve grande desenvolvimento nas

    duas ltimas dcadas. A autora salienta a importncia desse tipo de ao que, no

    caso do seu estudo na Mar, configurou-se como

  • 48

    iniciativas populares participativas de grupos comunitrios, em geral jovens, que mantinham forte relao com o espao urbano onde se inserem, que se expressam atravs das mais diferentes expresses artsticas e culturais, procurando atuar em direo transformao e ao desenvolvimento coletivo do grupo.

    J Paulo Freire (1982), um dos estudiosos e pensadores mais notveis na rea

    da Educao no Brasil e no mundo, destaca-se por sua preocupao com o

    desenvolvimento de aes culturais como caminho para a transformao social

    do indivduo. Seus estudos, em especial os relacionados educao popular,

    so voltados tanto para a escolarizao, como para a formao da conscincia

    poltica do aluno. O mtodo de alfabetizao desenvolvido por ele fundamenta-

    se na crena de que o aluno assimila o objeto de estudo fazendo uso de uma

    prtica dialtica com a realidade. Esse aluno participaria da construo de sua

    prpria educao atravs da escolha de seus prprios caminhos. A partir dessa

    experincia adquirida ao longo de dcadas de trabalho, o autor defendeu o

    dilogo com as pessoas simples, nas palavras do prprio autor, no s como

    mtodo, mas como um modo de ser realmente democrtico. Ele acreditava

    que uma ao cultural deve ter seu ponto de partida na investigao temtica

    ou dos temas geradores por meio dos quais os sujeitos iniciam uma reflexo

    crtica sobre si mesmos, percebendo-se como so ou esto sendo. Destaca

    ainda que uma ao cultural no pode sobrepor-se viso de mundo de um

    sujeito e invadi-lo culturalmente, mas tampouco adaptar-se a ela. Pelo contrrio,

    ela precisa, a partir daquela viso, tomada como um problema, exercer, com o

    sujeito, uma volta crtica sobre ela, para ter, como resultado, a insero do sujeito

    na realidade em transformao. Freire (2002, p. 35-41), discutindo sobre ao

    cultural e reforma agrria, em especial as aes desenvolvidas com camponeses,

    ressalta que

  • 49AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    A ao cultural que se orienta no sentido da sntese tem seu ponto de partida na investigao temtica ou dos temas geradores, por meio da qual os camponeses iniciam uma reflexo crtica sobre si mesmos, percebendo como esto sendo. Ao apresentar-se aos camponeses, sua realidade objetiva, na qual e com a qual esto, como um problema, atravs de situaes codificadas, refazem sua percepo anterior realidade. Alcanam, assim, o conhecimento do conhecimento anterior, que os leva ao reconhecimento de erros e equvocos no antigo conhecimento. Desta forma ampliam o marco do conhecer, percebendo, em sua viso de fundo, dimenses at ento no percebidas e que, agora se lhes apresentam como percebidos destacados em si. Esse tipo de ao cultural, reinsistamos, s tem sentido quando tenta constituir-se como um momento de teorizao da prtica social de que participam os camponeses. Se se aliena desta prtica, se perde, esvaziada, num puro blblbl (FREIRE, 2002, p. 40)

    Essa abordagem de Paulo Freire reafirma a importncia de uma reflexo apurada

    no momento de elaborao e desenvolvimento de aes culturais, pois os

    caminhos pautados podem ou devem estabelecer, ou ainda, indicar parmetros

    para a transformao social de uma comunidade. Complementarmente ao

    pensamento de Freire, Teixeira Coelho (2004) enfatiza que a ao cultural trata

    tambm do desejo de fazer da arte e da cultura instrumentos deliberados de

    mudana do homem e do mundo, de forma a possibilitar mais interaes entre

    o homem e a sociedade. Considerando as colocaes desses dois autores,

    podemos destacar ainda que os objetivos de uma ao cultural podem ser

    muito diversos e dependem muito do foco de atuao, do nvel de abrangncia,

    da populao envolvida, do recorte estabelecido, do tempo programado para

    seu desenvolvimento, e dos profissionais envolvidos, ou seja, eles podem chegar

    a nveis muito amplos, com diferentes graus de dificuldade de ser atingidos e

    variveis perodos de durao.

  • 50

    fato que uma ao cultural possui um incio definido, mas seu desenvolvimento

    nem sempre previsvel, tampouco seus desdobramentos. Teixeira Coelho

    (2004, p. 32-35) enfatiza que a ao cultural no um programa de materializao

    de objetivos previamente determinados em todos os seus aspectos por uma

    poltica cultural anterior, mas um processo que, tendo incio claro, no tem um

    fim determinado, nem etapas intermedirias previamente estabelecidas. Portanto,

    o que se espera como possveis reverberaes de uma ao cultural pode ser

    gestado por longo perodo at que seja perceptvel. Essa a grande diferena

    entre ao cultural e animao cultural7, pois enquanto a primeira possui um

    carter de imprevisibilidade de resultados, com um incio claro, mas um fim no

    necessariamente definido, a animao cultural8 pode ser claramente localizada

    temporal e espacialmente e minuciosamente planejada.

    Podemos observar que a desigualdade no acesso cultura pode originar vrias

    aes culturais, em especial nas reas perifricas ou marginalizadas da cidade.

    Essas iniciativas locais, em geral, tm como idealizadores, pessoas da prpria

    comunidade ou que tem alguma ligao com ela. Apesar de apoiados na falta de

    infraestrutura e equipamentos culturais, essas pessoas tm vontade de

    manifestar-se, por exemplo artisticamente. O Instituto Pombas Urbanas9 que

    desenvolve um trabalho social ligado cultura no complexo de Cidade Tiradentes,

    na zona Leste de So Paulo, um bom exemplo desse tipo de iniciativa. So

    pessoas que desenvolvem atividades de teatro, dana e artes com os moradores

    7. Autores como Augustin e Gillet (2006) realizam um estudo sobre metodologias de animao sociocultural como garantias de responsabilidades e importncias de participao da comunidade nessas iniciativas e projetos. Os autores fazem um panorama histrico da animao sociocultural e detalham o papel dos diferentes atores que fazem parte das animaes socioculturais. Outros autores como Melo (2006) tambm trabalho sobre o tema de animaes socioculturais, abordando conceitos e sugerindo propostas.

    8. Lopes (2006) faz um estudo sobre a animao cultural em Portugal.

    9. Ver mais sobre Instituto Pombas Urbanas em http://www.pombasurbanas.org.br/.

  • 51AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    e que, muitas vezes, esses moradores atendidos tornam-se multiplicadores de

    conhecimento e passam a fazer parte desse ou de outros grupos culturais. O

    fato que esse tipo de iniciativa pode gerar uma cadeia na proliferao cultural

    de uma comunidade local que perpassa alm dos limites da prpria comunidade,

    formando redes e dialogando com outras comunidades.

    Cabe ressaltar, entretanto, que para o desenvolvimento desse tipo de ao

    cultural ou de outras de carter mais amplo, faz-se necessrio o envolvimento,

    no necessariamente concomitante, de diferentes esferas, entre elas o poder

    pblico, a iniciativa privada, as instituies acadmicas, as organizaes do

    terceiro setor, artistas e pblico.

    1.3.1 Atores das aes culturais

    As aes culturais podem ser entendidas de diversas formas que vo desde uma

    interveno pontual e especfica at intervenes maiores, com o envolvimento

    de uma gama variada de profissionais trabalhando em conjunto. Quase sempre

    se estruturam de forma a abranger vrios atores e, consequentemente, parcerias,

    principalmente na sua fase de realizao. Esses atores so diferentes agentes

    envolvidos nas instncias de concepo, produo, realizao e avaliao de uma

    ao. Eles tm funes especficas dentro dessas estruturas, ou tambm podem

    participar de atividades paralelas, sozinhos ou em conjunto com outros agentes.

    A participao dos atores proporciona o enriquecimento das aes culturais

    pela diversidade de profissionais envolvidos advindos de diferentes campos de

    atuao e formao. Rubim (2011, p. 70) destaca a importncia de se debater

    acerca dos atores das polticas culturais, seus limites e caractersticas, e tambm

    sobre os procedimentos envolvidos na confeco de tais polticas pblicas.

    Para o autor, uma pluralidade de agentes passa a se inserir na configurao da

    esfera da cultura.

  • 52

    Ainda que uma ao cultural seja fruto de aes e financiamentos de vrios

    agentes ou de uma instituio ou organizao em particular, suas fases quase

    sempre so realizadas em conjunto. O agente que prope ou mesmo financia

    quase sempre busca parcerias em outras instncias para melhor por em prtica

    o que idealizou. Mesmo assim, as dificuldades encontradas pelos agentes para

    o desenvolvimento das aes culturais so inmeras e em vrios nveis. Elas

    vo desde a dificuldade na aprovao de projetos a nvel governamental ou

    privado, passando pela implementao propriamente dita desses projetos

    nas comunidades, at chegar possibilidade de continuidade desses projetos.

    Em alguns casos, os gestores, coordenadores e financiadores so os prprios

    propositores e, em muitos outros, o desenvolvimento futuro transferido, direta

    ou indiretamente, a um comit gestor ou a outra instituio ou organizao, nas

    instncias governamentais, em mbito federal, estadual e municipal, ligadas ao

    planejamento e a gesto, ou at mesmo a nveis de associaes comunitrias.

    1.3.1.1. O poder pblico

    O papel do Estado e das polticas governamentais na rea cultural tem

    sido bastante discutido no Brasil. H quem defenda que cabe ao governo

    responsabilizar-se pela proposio e execuo das aes culturais. Por outro

    lado, h quem acredite que os governos no so os atores principais e que

    devem atuar em parceria com outros tipos de instituies. Em casos particulares,

    h quem defenda que o poder pblico no deve assumir postura alguma em

    relao a essa questo. Para Rubim (2011, p. 68), tem-se hoje um conjunto de

    atores estatais e civis ao lado do Estado-nao. Segundo o autor, o Estado no

    o nico ator e as polticas pblicas de cultura so o resultado da complexa

    interao entre agncias estatais e no-estatais.

    No caso de uma ao cultural como parte de uma poltica pblica, importante

  • 53AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    frisar que, nos casos em que o Estado o propositor, por exemplo, h o risco

    iminente de que a realizao e a continuidade dessas aes estejam vinculadas a

    regimes partidrios responsveis por cada administrao pblica em determinado

    perodo. Muda-se a gesto, corre-se o risco de mudar toda a estrutura concebida

    na gesto anterior para o desenvolvimento das aes. No se tem uma garantia

    de continuidade e expanso das aes, apesar de que, cabe aqui ressaltar, que

    isso no ocorre apenas quando o Estado o propositor. fato que o ideal seria

    que as aes culturais fossem trabalhadas enquanto instrumentos institucionais

    no passveis de excluso pelas mudanas polticas. Entretanto, cabe salientar

    que a participao do Estado pode ser decisiva em muitas aes culturais. Sem

    ele torna-se difcil sua execuo, pois s o Estado pode viabilizar procedimentos

    necessrios, como por exemplo, a disponibilizao de editais, a liberao de

    espaos pblicos, entre outros.

    As aes governamentais na rea de cultura podem tambm estar aliadas

    s iniciativas da sociedade civil organizada e tambm a projetos da iniciativa

    privada. As polticas pblicas em curso, entretanto, tambm esto sujeitas

    a entraves burocrticos, falta de coordenao, administrao, articulao e

    operacionalizao. As aes culturais propostas por governos quase sempre

    so pensadas como aes de grande abrangncia quantitativa, o que dificulta

    o trabalho dos vrios agentes envolvidos. Esses agentes muitas vezes so

    responsveis, alm da coordenao das aes, pelo direcionamento dos recursos

    materiais e financeiros.

    No caso de aes culturais com vnculo governamental, os agentes envolvidos

    deveriam ser, preferencialmente, pessoas com envolvimento direto nas

    comunidades que assumissem o papel de multiplicadores de aes culturais,

    atraindo, motivando e estimulando o envolvimento de outros moradores. Sabe-se

    que a participao de moradores em aes culturais locais bastante complexa

  • 54

    e uma funo difcil de ser desenvolvida por pessoas que no esto inseridas

    nas comunidades. H casos em que os moradores no sentem segurana em

    participar, ou no tem interesse na temtica proposta. Por conta disso, vrias

    aes culturais propostas e financiadas pelo poder pblico sugerem, nas suas

    estruturas organizacionais, parcerias de gesto com associaes comunitrias,

    organizaes no-governamentais e outras instncias locais, buscando estratgias

    para viabilizar as aes.

    A grande maioria das iniciativas culturais financiadas pelos governos agrega um

    conjunto de fundos que vem de contribuies variadas, como fundaes sem

    fins lucrativos, empresas privadas, doaes de entidades locais, entre outros.

    O fato das aes culturais serem sustentadas por parcerias faz com que cada

    parceiro contribua com a disponibilizao de algum tipo de recurso, seja

    material, imaterial ou humano. So as formas de contrapartida que viabilizam o

    desenvolvimento das aes culturais. Muitas vezes, as aes culturais propostas

    pelo poder pblico podem ter tido bom planejamento e execuo, mas seus

    desdobramentos ficaram muito aqum do esperado, graas a diversos fatores

    de ordem administrativa, tcnica, de recursos disponveis, entre outros. Uma

    possibilidade real para minimizar ou at mesmo solucionar tais resultados

    no satisfatrios, como j dito anteriormente, a realizao de parcerias com

    instituies ou rgos com atuaes diretas nas comunidades.

    1.3.1.2. O setor privado

    Por meio das grandes e mdias empresas, o setor privado possibilita que

    grupos e instituies realizem aes de cunho cultural atravs da destinao

    de verba do imposto que seria pago ao governo. Isso s possvel, atualmente,

    graas Lei Rouanet do governo federal que possibilita investimentos dessa

    natureza. A discusso em torno das polticas pblicas relativas ao incentivo

  • 55AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    cultura, impulsionada principalmente pelo debate nacional em torno da Lei

    Rouanet trazem questionamentos sobre a destinao dos recursos e o real

    comprometimento dos parceiros envolvidos em relao cultura e suas

    diferentes manifestaes, assim como quais so as reais demandas e prioridades

    no campo da cultura nacional. Os grupos culturais buscam recursos junto

    s grandes empresas privadas do setor para colocar em prtica suas aes.

    Essa prtica, muitas vezes, alm de necessria, se constitui como possibilidade

    quase nica de se estruturar projetos desta natureza. Para as empresas que

    iro financiar esses projetos o benefcio vem na ordem de marketing cultural.

    Segundo Durand (2001, p. 68), o marketing cultural acontece quando uma verba

    polpuda o autoriza a ambicionar uma grande repercusso de mdia para a marca

    que patrocina um evento. Rubim (2011, p. 69) tambm ressalta que a

    presena crescente do mercado, por meio dos gigantescos conglomerados empresariais, transnacionais e/ou locais, de produo e circulao culturais e da atuao de outras empresas, de qualquer rea, via dispositivos de marketing cultural, tem profunda incidncia na dinmica cultural contempornea e, por conseguinte, sobre as polticas culturais. Igualmente a profuso de organizaes no governamentais e a proliferao de entidades da sociedade civil, atuantes no setor, marcam o contemporneo.

    Essas empresas, em geral, possibilitam que aes dessa natureza realizem

    atividades cujas temticas no seriam possveis, ou talvez fossem mais difceis

    de serem concebidas por rgos do governo. Ou ainda, a burocracia desses

    rgos acabaria afastando ou desencorajando os propositores a investir. Por

    outro lado, os recursos advindos da esfera privada para esses investimentos

    perpassam certa seleo de interesses da empresa fornecedora, pois de acordo

    com Durand (2001, p.68), os recursos de origem empresarial visam o ganho

    simblico, ou de imagem, que a associao a um evento de prestgio pode

  • 56

    oferecer a uma corporao e suas marcas. As empresas escolhem e determinam

    quais projetos sero contemplados e beneficiados com a verba disponvel. Esse

    processo resulta na transferncia para a iniciativa privada da deciso de quais

    aspectos culturais sero desenvolvidos junto populao. Alm disso, d-se uma

    nfase ideia de ao cultural baseada em espetculos, com a valorizao do

    produto e no de processos.

    Outra forma de destinao desses valores a criao de fundaes ou institutos

    das prprias empresas, e mesmo como parceiros ou apoiadores, sempre tm

    recursos disponibilizados para implantao de iniciativas dessa natureza. Como

    em outros contextos, mas principalmente no setor privado, os investidores

    primam por resultados objetivos que devem ser traduzidos em nmeros e

    comprovados estatisticamente.

    1.3.1.3. Instituies acadmicas

    As avaliaes peridicas feitas por instituies acadmicas podem ajudar na

    boa continuidade das aes culturais, possibilitando a verificao do bom

    funcionamento das atividades, das aplicaes de recursos, da participao da

    populao, entre outros. As instituies acadmicas podem contribuir nesse

    mbito, prestando assessoria tcnica e de leitura sistemtica e constante, alm de

    estimular o debate em torno dos objetivos e implicaes das decises tomadas

    durante a implementao das aes, em suas diversas instncias. A participao

    da universidade deve ser entendida como uma possibilidade de atualizao

    do conhecimento por ela produzido na rea, constituindo um processo de

    aprendizado continuado, visando ao entendimento de realidades dos grupos

    sociais e a intercmbios possveis, a partir de programas de extenso.

    As instituies acadmicas que tm comprometimento com a pesquisa tambm

  • Figura 1. O LAGEAR - Laboratrio Grfico para Experimentao Arquitetnica - da UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais - foi um dos parceiros de instituies acadmicas a colaborar no projeto Territrios Hbridos. Participou da ao envolvendo graffiti digital. Fonte: Nomads.usp.

  • 58

    podem, em alguns casos, ser propositoras de aes culturais que, em geral, so

    concebidas como experincias-piloto. Trata-se de metodologias acadmicas

    em fase de teste que englobam desde sua fase de planejamento, implantao,

    desenvolvimento e avaliao. Alguns dos resultados possveis de iniciativas

    propostas pelas Universidades pautada na experimentao a possibilidade de

    se averiguar dados, testar aes especficas e verificar suposies. importante

    ressaltar que os estudos acadmicos nessa rea tambm podem e devem estar

    comprometidos com as avaliaes das aes culturais j desenvolvidas ou

    em curso, e, a partir dessas, traar proposies que possam orientar outras

    iniciativas, alimentando, assim, as polticas pblicas do setor. Dai a relevncia

    de proposies de novas formas de aes culturais que contemplem os

    mltiplos aspectos envolvidos, por exemplo, fazendo uso de meios digitais em

    seu desenvolvimento, possibilitando mudanas e transformaes de diferentes

    nveis nas comunidades envolvidas.

    A grande contribuio de aes vinculadas entre a comunidade acadmica

    e o poder pblico que a primeira preocupa-se com a disseminao de um

    saber desenvolvido e uma prtica que vo sendo sistematicamente construdos,

    estruturados e estabelecidos a partir de determinadas referncias tericas

    ou experimentais. instituio acadmica pblica competiria a transferncia

    de conhecimentos e a capacitao da comunidade para que, no futuro, elas

    mesmas possam ser planejadoras e executoras de suas prprias aes culturais.

    importante salientar que as aes culturais com origem acadmica tambm

    necessitam de parcerias, seja com o setor pblico, com o setor privado ou com

    as organizaes do terceiro setor, nos diferentes nveis de execuo, utilizao

    de infraestrutura e equipamentos e, principalmente, de financiamentos. Durand

    (2001, p. 69) ressalta que a comunidade acadmica tem papel-chave na definio

    dos princpios de fomento, na criao de programas setoriais e na composio

  • 59AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    de colegiados para avaliar projetos, grupos de pesquisa, programas de ps-

    graduao, etc.

    1.3.1.4. Organizaes do terceiro setor

    No mbito das organizaes do terceiro setor, h tambm a presena forte de

    aes oriundas das organizaes no governamentais, principalmente locais, nas

    atividades de gesto, alm dos interesses privados e parcerias com empresas de

    vrias reas. Pode-se dizer que uma caracterstica da grande maioria das aes

    culturais ser concretizada por um conjunto de aes realizadas por rgos de

    naturezas distintas e, neste sentido, que a diversidade de parcerias de grande

    importncia e riqueza para a implementao e continuao de projetos desta

    ordem.

    As organizaes do terceiro setor so organizaes no-governamentais,

    entidades comunitrias e associaes de naturezas diversas que se voltam

    criao, ao planejamento e ao desenvolvimento de aes. A priori essas aes

    podem assumir um carter experimental que, aos poucos, se transformam,

    atingindo patamares com boa repercusso e grandes possibilidades de ser

    replicados. Ou tambm j podem partir de aes culturais bem estruturadas,

    de grandes ou pequenas dimenses, mas que tambm evocam o carter

    multiplicador nas comunidades.

    No Brasil, h uma diversidade significativa no conjunto das organizaes

    da sociedade civil, em diferentes aspectos, que deve ser considerada,

    independentemente do marco legal que as regulamenta, sejam elas ONGs,

    OSCIPs, OSs, fundaes, organizaes privadas sem fins lucrativos, entidades

    filantrpicas, entidades assistencialistas, associaes comunitrias, entre outras.

    Rubim (2011, p. 69) ressalta as significativas performances de atores no-estatais,

  • Figura 2. O Instituto Pombas Urbanas uma organizao do terceiro setor atuante no bairro Cidade Tiradentes na cidade de So Paulo. Fonte: Nomads.usp.

  • 61AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    como o mercado e a sociedade civil, atravs das entidades associativas, das

    organizaes no-governamentais e das redes culturais.

    Alm dos agentes j citados anteriormente, destacamos que o envolvimento

    de moradores de comunidades comprometidos com a estruturao e o bom

    desempenho das aes faz com que eles se tornem tambm agentes decisivos

    de uma ao cultural, pois evocam estreitos laos participativos que tendem

    a resultar em suportes sociais envolvidos e consequentemente, com maiores

    chances de resultados positivos e no fiquem, como ressalta Fleury (2009,

    p. 49), como um pblico tradicionalmente concebido como um conjunto

    homogneo e unitrio dos leitores, ouvintes, espectadores de uma obra ou de

    um espetculo. O envolvimento mais direto e incisivo do pblico participante

    das aes culturais parece necessrio tanto para dar sustentao s aes

    propostas para as comunidades, como para potencializar e promover recursos

    sociais.

    1.3.2 Interfaces digitais em aes culturais

    O objetivo de se trabalhar a questo das interfaces, sejam elas tangveis ou

    grficas, no mbito das aes culturais com meios digitais, consiste em entender

    como que suas possibilidades tcnicas podem ser usadas como elementos

    estruturantes de aes culturais. Johnson (2001, p. 17) coloca a relevncia

    cultural do design da interface, no contexto da interao humano-computador,

    destacando que o modo como escolhemos imaginar essas novas comunidades

    online obviamente uma grande significao social e poltica10. Para o autor, a

    interface possui uma caracterstica de conectora de instncias, como uma

    tradutora que possibilita que um lado seja entendido pelo outro. No contexto

    10. Vale lembrar que Johnson escreveu isso antes do conceito de redes sociais ganhar a internet, por isso ele fala em comunidades online.

  • 62

    do computador, Johnson (2001, p.19) afirma que a interface torna perceptvel a

    ns o mundo invisvel dos zeros e uns. Esse processo altamente significante,

    trazendo consequncias sociais amplas que, em uma leitura mais estendida, se

    reflete no somente no uso de computadores, mas no uso de meios digitais

    como um todo.

    sabido que o conceito de interfaces abrangente e pode permear variadas

    reas do conhecimento. Suas formas de aplicao podem ser diversas, conforme

    suas caractersticas especficas. Consideraremos, portanto, como base, a

    definio de Hiroshi Ishii (2008a, 2008b), coordenador do Tangible Media Group

    do MIT (Massachussetts Institute of Technology), para interfaces grficas e interfaces

    tangveis, teis para o presente estudo.

    Quanto s interfaces grficas (Graphical User Interfaces - GUI), o autor considera

    que promovem uma representao grfica e uma interao que consiste em ver,

    apontar e clicar.

    As interfaces grficas (GUI) representam informao (bits) com pixels em uma exibio bitmap. Essas representaes grficas podem ser manipuladas com controles remotos gerais, tais como mouse ou teclado. Atravs da dissociao entre representao (pixels) e controle (dispositivos de input) as interfaces grficas promovem a maleabilidade de emular uma variedade de mdias graficamente. [...] Interfaces grficas so fundamentalmente interfaces cuja proposta geral supostamente emular uma variedade de aplicaes utilizando visualmente a dinmica de pixels na tela e controles remotos genricos como o mouse e o teclado11 (ISHII, 2008a, p. XXII,

    11. No original em ingls: GUIs represent information (bits) with pixels on a bitmapped display. Those graphical representations can be manipulated with generic remote controllers such as mice and keyboards. By decoupling representation (pixels) from control (input devices) in this way, GUIs provide the malleability to emulate a variety of media graphically. () GUIs are fundamentally general purpose interfaces that are supposed to emulate a variety of applications visually using dynamic pixels on a screen and generic remote controllers such as the mouse and keyboard. (ISHII, 2008a, p. XXII,).

  • 63AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    traduo nossa).

    Apesar de sua maleabilidade e flexibilidade, Ishii (2008a, p.xv) afirma que existe

    uma descontinuidade espacial e uma inconsistncia modal quanto s interfaces

    grficas, considerando-as inconsistentes quando comparadas s relaes que

    possumos com o espao fsico. Dessa maneira, o autor (ISHII, 2008a, p.xvii)

    discorre que as interfaces grficas utilizam o mouse e o teclado como um

    controle genrico (input) para controlar a informao digital, e a tela como meio

    principal de output. Dessa forma, inscreve o toque como input principal e a viso

    como output predominante, o que gera uma descontinuidade espacial quanto

    aos inputs e outputs, de forma multimodal, por incluir o tato e a viso (Ibid., xxii).

    Contudo, como pode ser observado, o autor baseia seu pensamento sobre

    a interface grfica atravs da categoria classicamente proposta pelo campo

    disciplinar da interao humano-computador: mouse, teclado e tela.

    Entretanto, conforme ser exemplificado nos prximos captulos desta tese, a

    interface grfica, de maneira mais ampla, no se limita somente esfera do mouse,

    teclado e da tela em seu sentido tradicional, do usurio sozinho sentado frente

    do computador. Atravs do uso de meios e dispositivos digitais disponveis, a

    interface grfica pode reunir em si formas de input e output variadas, acarretando

    em outras formas de participao e de exibio. Ao invs do usurio sozinho,

    tais interfaces podem agregar mais usurios na sua participao e exibir

    sua atuao a um pblico diverso, seja ele remoto ou na mesma localidade

    geogrfica. No necessariamente tais interfaces grficas se restringem s formas

    de comunicaes textuais, mas tambm podem configurar outras formas no-

    verbais de comunicao. Bolter e Gromala (2003, p. 27) abordam a questo de

    que a interface grfica no se parece sempre como uma janela, mas s vezes

    torna-se como um espelho que reflete o prprio usurio e sua relao com

    o computador. A questo da janela se refere ao enquadramento dado para o

  • Figura 3. Interface grfica para comentrios utilizada em aes do projeto Territrios Hbridos. Fonte: Nomads.usp.

  • 65AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    usurio culminando na questo da transparncia. Para os autores, deve haver

    um equilbrio entre transparncia e reflexividade, visto que a transparncia

    total causa perda de experincia e que o usurio deve enxergar seu prprio

    contexto.

    No caso das interfaces tangveis, Ishii (2008a) considera que so relativamente

    especficas, pois so adaptadas a determinados tipos de aplicaes, considerando

    a praticidade e a intuio como qualidades derivadas do manuseio da interface

    tangvel.

    Interfaces tangveis fazem a informao digital ser diretamente manipulvel com nossas mos e perceptveis pelos nossos sentidos perifricos atravs de sua incorporao. [...] Como artefatos fsicos, interfaces tangveis so persistentes. Tangveis tambm possuem um estado fsico, com suas configuraes fsicas firmemente entrelaadas ao estado digital dos sistemas que elas representam. O estado fsico dos tangveis incorpora aspectos chave do estado digital de uma computao subjacente12 (ISHII, 2008a, p.XVI e p.XXI, traduo nossa).

    Para Ishii (2008a), enquanto as interfaces grficas promovem uma aplicao com

    proposta mais geral, as interfaces tangveis so utilizadas de forma mais especfica.

    Isso se reflete na questo da maleabilidade e flexibilidade de interfaces grficas,

    pois um processo mais simplificado alterar uma imagem, que j digital, do

    que alterar formas, cores e tamanho do objeto fsico da interface tangvel.

    Ainda assim, Ishii (2008a, 2008b) discorre que as representaes tangveis de

    informao como mecanismos de controle de informao digital, entrelaando

    12. No original em ingls. TUI makes digital information directly manipulatable with our hands, and perceptible through our peripheral senses by physically embodying it.() As physical artifacts, TUIs are persistent. Tangibles also carry physical state, with their physical configurations tightly coupled to the digital state of the systems they represent. The physical state of tangibles embodies key aspects of the digital state of an underlying computation (ISHII, 2008a, p.XVI e p.XXI).

  • Figura 4. Performers vestindo as Captas, uma interface tangvel vestvel desenvolvida pelos artistas Fbio FON e Soraya Braz. As Captas foram utilizadas em ao do projeto Terrtrios Hbridos. Fonte: Nomads.usp

  • 67AES CULTURAIS E MEIOS DIGITAIS

    informaes digitais a objetos fsicos, aproveitam a caracterstica das pessoas de

    terem habilidades sofisticadas quanto manipulao de objetos fsicos (ISHII,

    2008a, p. xv).

    A partir da abordagem acima, destaca-se que em relao a sua utilizao, as

    interfaces digitais em aes culturais trabalhadas nesta pesquisa poderiam ser

    de duas ordens: enquanto procedimento metodolgico ou enquanto elemento

    estruturante da ao cultural. O primeiro caso est relacionado diretamente

    ao mbito da pesquisa, abordando as diferentes formas que os pesquisadores

    podem se utilizar das interfaces digitais para auxiliar na coleta de informaes,

    fazer registros em campo, analisar resultados, entre outros. Tal abordagem ser

    contemplada no captulo 2 desta tese.

    O segundo caso a considerao da interface enquanto elemento estruturador

    da ao cultural. A interface no s possibilita, mas tambm favorece a

    aproximao de pessoas e de grupos distantes geograficamente; proporciona

    a publicizao de opinies dos envolvidos nas aes culturais, fomentando

    formas de expresso cultural; possibilita a emergncia de discusses em espaos

    pblicos e o adensamento de instncias virtuais ao espao fsico, de modo a

    transform-lo.

    Alm disso, as interfaces digitais podem tambm se tornar grandes aliadas dos

    propositores e executores dessas aes de diversas formas, atuando como

    facilitadoras de aproximaes com determinadas comunidades. Manovich (2003,

    p.69-70), realizando paralelos entre o cinema e materiais impressos e literrios

    para constituir o conceito de interfaces culturais, considera que formas de

    cultura tm sido digitalizadas. Tomando o computador como uma ferramenta

    que agrega em si mltiplos formatos digitais, o autor comenta a partir dessa

    perspectiva que a distribuio de variadas formas de cultura torna-se baseada

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    atravs do computador, sendo que estamos cada vez mais em contato com

    contedos culturais, do que com o prprio computador.

    H de se considerar que a utilizao de determinadas interfaces por parte

    dos envolvidos, em alguns casos, requerem maior dedicao e envolvimento,

    contatos mais demorados, enquanto que em outros casos a participao ocorre

    em perodos de curta durao. O uso de interfaces digitais em aes culturais

    cria condies para a participao, proporcionando a alimentao do pblico

    por ele mesmo e, consequentemente, abertura para posteriores reflexes.

    Qualquer artefato digital - uma ferramenta de produtividade, um web site, ou at mesmo um jogo de computador - destina-se a transformar algo na relao entre o usurio e seu ambiente fsico e cultural. De outro modo, absolutamente no haveria qualquer razo para produzir o artefato13 (BOLTER e GROMALA, p. 14, traduo nossa).

    Estendendo o discurso de Bolter e Gromala (2003) ao papel dos meios

    digitais em aes culturais, tem-se que os meios digitais desempenham funes

    fundamentais nessas aes, no se caracterizando como um rebuscamento ou

    complemento, e sim possuidores de uma atribuio ativa. As interfaces que

    estabelecem relaes entre o pblico de aes culturais e meios digitais podem

    promover o empoderamento do pblico frente a diversas questes, elencadas

    previamente nesse item, alm de incentivar a apropriao do espao pblico

    pelos envolvidos. Assim, interfaces e meios digitais aparecem como chaves para

    participao e para futuras reflexes do pblico de aes culturais, ocasionando

    transformaes entre o pblico e seu espao fsico, bem como contexto

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