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Sobre a universidade

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  • 6 | cinciahoje | 312 | vol. 52

    Man

    uela

    Fant

    inat

    o

    correto afirmar que no Brasil, como em muitos pases em desenvolvimento, ainda somos intelectualmente colonizados? Essa colonizao intelectual e acadmica que vivemos no uma conversa nova. Sua denncia sistemtica vem dos anos 1960. Mas, agora, a ideia est sendo desenvolvida com muito mais substncia e continuidade. Dois anos atrs, veio ao Brasil uma das grandes intelectuais que debate a ideia de Sul: a antroploga australiana Raewyn Connell. Sabe o que ela disse? No evento acadmico do qual participei aqui, as bancas de livros vendiam o mesmo que eu encontraria em um evento acadmico na Austrlia: Pierre Bourdieu, Jrgen Habermas, enfim, os autores clssicos europeus. Mas eu gostaria de ler, na verdade, autores clssicos brasileiros! E tambm os africanos, os indianos...

    entrevista

    Cludio Pinheiro

    desColonizao do PensaMentosejamos honestos: ns, brasileiros, tornamo-nos praticantes passivos de alguma espcie de mimetismo ps-colonial. imitamos padres europeus e estadunidenses em quase tudo desde detalhes aparentemente banais, como vestimentas que usamos ou msicas que ouvimos; at estruturas polticas ou intelectuais reproduzidas a partir de matrizes do norte. e a academia no foge regra. os autores que lemos, afinal, so quase sempre os clssicos do velho Mundo.

    nos ventos do sculo 21, porm, as periferias geopolticas pedem um mundo multipolari zado e, cada vez mais, esse movimento configura a nova realidade global. ainda perdura, no en - tanto, a clivagem do cenrio internacional em dicotomias datadas que reforam a segre gao do mundo em dois hemisfrios simblicos. sobre esse instigante tema, Cincia Hoje ouviu o his toriador e antroplogo Cludio Pinheiro, diretor da sephis, agncia holandesa de di ca da for - ma o de quadros intelectuais de pases do sul, agora sediada no Frum de Cincia e Cultura da universidade Federal do rio de Janeiro. Pinheiro denuncia o colonialismo tar dio do qual ape -

    nas comeamos a nos libertar. e, dono de um papo to per tinente quanto sofisticado, aposta suas fichas nos pases austrais como promissores espaos de enun - cia o poltica, cultural e intelectual.

    henrique Kugler | CinCia Hoje | rJ

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    Se o debate j tem quatro dcadas, por que essa colonizao permanece? As agendas de pensamento esto muito profundamente ancoradas em conjuntos de teorias, temas, categorias de anlise e agendas de financiamento produo cientfica que se referem a uma ex perincia histrica particular, que a do Atlntico Norte tanto europeia, quanto norteamericana. nessas experincias que ns, da periferia, acabamos basean do nosso discurso intelectual sociolgico, antropol gico, poltico e historiogrfico.

    Um dos grandes autores a denunciar isso, nos anos 1990, foi o indiano Dipesh Chakrabarty, da Universi da de de Chicago. Ele escreveu um livro, em 2000, cha mado Provincializando a Europa [Provincializing Eu rope, editado pela Princeton University Press, sem traduo para o portugus]. O argumento bsico es t no ttulo: a Europa uma parquia. S que essa parquia se mundializou, a partir de um longo processo histri co associado ao colonialismo. E passamos a acreditar que nela estaria alguma espcie de grande verdade.

    Pense em um estudante de ensino mdio. O que ele estuda em histria? Histria europeia. Estudos sobre frica entraram para o nosso currculo apenas recentemente, em 2003, por uma medida governamental. Certo: o estudante sabe ento sobre Europa e frica. O que falta? Falta tudo. Conhecemos mais detalhes sobre a queda da Bastilha do que sobre grandes revolu es africanas. Estas passam completamente ao largo de nosso conhecimento. Como estudar histria mundial sem estudar a histria da frica? Como entender o impacto que teve a dispora de africanos nas Amricas e na prpria frica? Como isso interferiu, por geraes e sculos, na capacidade africana de recuperar sua economia? Nossa prpria forma de datao do tempo marcada pela experincia europeia. Compreende mos o mundo em termos de histria antiga, medieval, moderna e contempornea. E nesse trem que nos localiza mos: o Brasil passa a existir no mundo a partir da histria moderna durante a expanso europeia.

    com a emergncia de novas foras geopolticas, a exemplo dos Brics (Brasil, rssia, ndia, china e frica do Sul), essas categorias de anlise podem ser remodeladas? No obstante pases como os BRICs sejam mais e mais importantes no cenrio poltico internacional, continuam no sendo donos do prprio arcabouo que define a maneira pela qual se conhece o conhecimento: a for ma de datar o tempo, a forma de classificar sociedades, as categorias de compreenso do mundo. Exemplo: se falamos em famlia, um aluno do ensino mdio pensa em pai, me, avs, tios, filhos, netos. Em muitas sociedades assim. Mas em muitas outras, no. Para >>>

    povos nativos brasileiros ou sociedades asiticas, por exemplo, a noo de famlia engloba relaes mais amplas, que podem incluir at animais.

    O conceito ocidental baseado na experincia europeia no d conta de toda a realidade. Acontece que os demais modelos so invisibilizados por outros que nos fazem compreender o mundo de forma engessa da. Isso vale no s para a ideia de famlia como tam bm de Estado, poltica, democracia. Para alguns autores, no o dinheiro que faz uma sociedade ser classificada como perifrica. Mas sim o no domnio sobre as categorias que organizam o pensamento, a poltica e a sociedade.

    essa imitao subalterna muito perceptvel na academia... Quase todo aluno de graduao no Brasil (desde enfermagem a agronomia, passando pela engenharia) estuda cincias sociais como disciplina obrigatria. Em mui tos casos isso envolve a leitura dos clssicos: Karl Marx [18181883], Max Weber [18641920], mile Durkheim [18581917]. Eles so interessantssimos, no h dvida. Mas parece uma igreja com seus santos principais. Cad os santos da periferia? Que autores pensaram as sociedades que hoje so perifricas? um desafio contemporneo incluir outros clssicos no ensi no e no debate. Muito se perde diante do fato de que as estruturas para conhecer o outro esto marcadas pela experincia de uma provncia, de uma parquia especfica, que a Europa. preciso universalizar o vocabulrio de categorias de anlise de modo que o mundo seja mais polifnico.

    Meia dzia de editoras sediadas no hemisfrio norte concentra a imensa maioria dos peridicos cientficos considerados importantes no mundo. qual o impacto disso? Essa concentrao acontece em praticamente todas as reas do conhecimento: medicina, astronomia, cincias sociais. Os padres pelos quais se mede a relevncia dessas publicaes so definidos por esse contexto que estvamos discutindo. Os grandes ndices que medem produo de conhecimento continuam marcados por estruturas que reforam essa clivagem NorteSul, ou centroperiferia. Isso renova a marginalidade da periferia; e refora a centralidade do centro. Emerge a

    Que autores PensaraM as soCiedades Que hoJe so PeriFriCas? uM desaFio

    ConteMPorneo inCluir outros ClssiCos no ensino e no debate

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    uma questo: como qualificar a circulao de conhecimento fora da estrutura majoritariamente centralizadora que est na Europa e nos Estados Unidos? um desafio importante. Envolve a sensibilidade das agncias de fomento pesquisa em acompanhar esses desdobramentos polticos. Envolve as agendas de divulgao cientfica tambm.

    nesse movimento, quo avanada est a academia brasileira? Mudando, mas ainda muito timidamente. Entre os 20 pases com os quais o Brasil mais desenvolve cooperao internacional, nenhum do Sul. Nenhum! Curioso: em nossa agenda poltica internacional, a tendncia realmente valorizarmos dilogos e iniciati vas SulSul. No entanto, a capilaridade dessas deci ses nas instncias operacionais bem menor. Vejamos o exemplo do programa Cincia sem fronteiras: os intercmbios se concentram quase exclusivamente em pases do Atlntico Norte, isto , Europa e Estados Unidos. Detalhe: as cincias humanas esto fora do programa, mas essa outra discusso. A cincia , majoritariamente, reconhecida a partir de padres do Norte. Pesquisase; publicase. Sim. Mas seriam bemvindas alternativas ao mecanismo acachapante de pu blicaes como forma de indexar trajetrias inte lec tuais. Cientistas e intelectuais realizam outras inicia tivas. Eles so agentes polticos e o impacto disso para nossa sociedade , certamente, muito relevante, ainda que difcil de ser quantificado.

    na construo de um mundo multipolarizado, h algum exemplo bemsucedido de valorizao desse dilogo mais polifnico? O Brasil signatrio da ASPA [Cpula Amrica do SulPases rabes], que um mecanismo de cooperao interregional. O acordo desenvolve agendas comerciais e tambm culturais. Por exemplo, os pases rabes traduzem localmente clssicos de literatura brasileira (j h Guimares Rosa em rabe; Machado de Assis tambm). Isso faz parte da tentati va de enquadrar outras conformaes polticas nesse mundo multipolar. Os BRICs so a bola da vez, mas h outros arranjos tambm, como a ASEAN [Associao de Pases do Sudeste Asitico].

    esforos louvveis, mas, na prtica, as regras do jogo se mantm: naes perifricas, ainda que sob acrnimos amistosos ou parcerias diplomticas, continuam sendo concorrentes comerciais no mercado internacional. isso no pode fazer com que pases perifricos mais pujantes, como o Brasil, reproduzam as mesmas lgicas de explorao de que outrora foram vtimas? Perfeitamente. No estariam alguns BRICs reproduzindo uma velha gramtica com um novo vocabulrio? Deveriam sugerir novos mode los de desenvolvimento ou apenas reproduzir os ve

    entrevista

    lhos modelos de explorao? Ponto importante. Muitos dos BRICs tm sido severamente denunciados por trajetrias imperialistas sobre outras periferias. Como o Brasil, por exemplo, se relaciona com seus parcei ros comerciais na frica?

    no parece sensato crer que essa relao de bommocismo... H coisas muito interessantes acontecendo nesse terreno, que espelham tentativas de aes concretas. A Sephis foi convidada para um encontro anual da CUT [Central nica dos Trabalhadores], recentemente. Os sindicalistas brasileiros vivenciaram, nas dcadas de 1970 e 1980, a chegada do neoliberalismo e das multinacionais norteamericanas e europeias, que deterioraram as relaes trabalhistas no continente. E, segundo eles, estamos agora vendo a entrada desse mesmo capitalismo, renovado, na frica s que desta vez protagonizado, tambm, por empresas brasileiras! Para eles, a histria est se repetindo. O malestar est na ironia de que empresas brasileiras esto tendo esse tipo de prtica.

    acerca disso, o antroplogo gustavo ribeiro costuma dizer que o capitalismo continua sendo uma mquina de produo de desigualdades. uma estrutura exploratria. A est um dos grandes desafios dos BRICs: como pensar outros modelos de desenvolvimento? o debate da hora. Desigualdade um assunto pujante notoriamente nos pases do Sul, mas tambm nos do Norte. O prprio presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, vem sinalizando o crescimento da desigualdade no mundo desenvolvido.

    o senhor dirige a Sephis, que pela primeira vez mudou sua sede de amsterdam para outra cidade no caso, o rio de janeiro (rj). Por que exatamente os holandeses esto to engajados nesse debate acerca da relevncia do Sul? A Holanda tem larga tradio em se interessar por temas da periferia. Isso tem a ver com sua posio de pas excolonizador teve colnias na sia, na Amrica. E tambm com uma sensibilidade importante para a promoo da igualdade em agendas do desenvol vimento. uma reflexo sobre a condio pscolonial. O prprio conceito de Sul teve origem no debate in telectual e poltico holands dos anos 1960 e 1970. E a Sephis foi fundada com o compromisso de pensar agendas criativas de desenvolvimento a partir do Sul. Na prtica, a agncia financia pesquisas, eventos, fruns de debate polticointelectual, circulao de intelec tuais e, especialmente, a formao de quadros intelectuais e polticos do Sul. Ela reconhece que os pases do Sul tm uma base material de produo de conhecimento mais depauperada, e tenta colaborar na mini mizao desse tipo de circunstncia.