ABC da terra

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Alunos de assentamentos e acampamentos do MST aprendem a ler e a escrever a história da reforma agrária

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ESTAMOS EM OBRASEnsaio fotográfico produzido no canteiro de obras da

Faculdade de Comunicação da UnB, Brasília, maio de 2009

Fotógrafa: Flora Egécia

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Carta da Editora

No semestre em que as reformas, para receber o curso noturno e a nova estrutura curricular, elevam os decibéis em nossa faculdade, buscamos o diálogo para produzir esta edição. Todos contribuíram com elementos para as reportagens uns dos outros, o que resultou em mais harmonia entre tex-to, fotos e texturas, lapidados em um processo cuidadoso de edição.

A reportagem de capa, sobre as escolas de assentamentos e acampamen-tos rurais, investigou a didática em sala de aula. Paulo Freire foi literatura básica. Nos dez dias pelo interior do Paraná, as repórteres encontraram diálogos peculiares: “Faz cara de que o Paraguai ganhou a guerra”, diz o menino de 11 anos para fazer o colega, paraguaio, sorrir para a fotógrafa.

Foucault e Lima Barreto foram alguns dos autores lidos para a re-portagem sobre o manicômio de Barbacena (MG), comparado a campo de concentração e contraponto importante para a reforma antimanicomial. A identidade visual veio dos quadrinhos (de Asilo Arkham, de Dave McKean), e da fonte Aierbazzi, que brota em pequenas flores no canto das páginas.

Para a viagem entre Vitória (ES) e Belo Horizonte (MG), um conto de Clarice Lispector, A partida do trem, serviu de primeiro contato com o as-sunto. A realidade colorida e cotidiana do meio de transporte contrastou com o imaginário Maria-Fumaça das repórteres. Venceram o desafio: es-crever sobre algo tão comum para aquelas pessoas, mas que não existe no restante do país. Um criminoso que tentou enganar a polícia com técnicas de filmes tipo CSI (Crime Scene Investigation) é o mote da reportagem que por duas semanas acompanhou os peritos de Brasília. Em alguns momen-tos, ficção e realidade se cruzam.

A biografia de Carmen Miranda foi roteiro para o perfil de seu Cunha, radialista de Anápolis (GO), que aposentado mantém um acervo musical invejável. O entrevistado da edição é Reynaldo Jardim, o poeta que mudou o jornalismo brasileiro, com a criação, entre outros, do segundo caderno no Jornal do Brasil, e do jornal O Sol, uma experiência revolucionária, em meio à ditadura, que agora completa 40 anos.

Ampliamos o espaço dedicado à literatura para abrigar outras artes. So-nia Paiva traz os labirintos do coração, fruto da pesquisa que desenvolve a partir da pós-graduação na Universidade de Brasília.

Márcia Marques

6 14 20Que trem é esse? Uma vida no rádio Cicatrizes da loucura Educação Itinerante

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38 44 51Educação Itinerante Caçadores de vestígios

Labirintos do coraçãode Sonia Paiva

Entrevista com Reynaldo Jardim

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que treme esse?

que trem

O trem de passageiros da Estrada de Ferro Vitória-Minas (EFVM) se modernizou e, movido a biodiesel, deixou para trás a maria-fumaça com seu apito e bancos de madeira que permanecem na cabeça de muitas pessoas. Mas uma coisa não mudou: a ferrovia ainda transporta uma gente que tem os trilhos incorporados à sua história. Texto Yvna SousaFotos Patrícia BanuthDiagramação Andressa Anholete

A EFVM tem 105 anos, 664 quilô-metros de extensão (no trecho em que opera o trem de passageiros)

e 30 estações em 25 cidades (veja mapa nas páginas 10 e 11). É a última ferrovia do Bra-sil com um trem de passageiros de longa distância diário. Às 07h30, parte um com-boio de Belo Horizonte com destino a Ca-riacica, cidade na região metropolitana de Vitória - apesar do nome, o trem não pára exatamente na capital do Espírito Santo. Mas basta atravessar uma ponte bem próxi-ma à estação para se chegar a ela. No senti-do contrário, o horário de saída é às 07h.

Em 2008, 1,2 milhão de pessoas usaram a ferrovia, uma média de mais de 3,2 mil passageiros por dia. E ao contrário das 22 linhas turísticas à moda antiga que existem pelo país, quem viaja pela Vitória-Minas não quer apenas apreciar a paisagem ou ter a emoção de viajar de trem, uma experiência cada vez mais rara. São pessoas que usam

esse meio de transporte por ser barato, se-guro e confortável. Pelos trilhos, vão à esco-la, ao trabalho, à casa dos familiares, à praia. Se para a maioria dos brasileiros o trem é uma realidade distante, para os capixabas e mineiros ele está na memória e faz parte da rotina. Por essa região, todo mundo ou tem um parente ferroviário ou vê o trem passar perto de sua casa desde a infância.

Com 76 anos, Anita Schimelbfnig se en-caixa nos dois casos. Viaja pela EFVM desde pequena e suas filhas casaram com ferroviá-rios. Por isso, é dona de um baú de histórias sobre a ferrovia. Em 1979, quando a bacia do Rio Doce teve uma de suas piores en-chentes, dona Anita precisou viajar de trem. Mas próximo à cidade de Desembargador Drummond (MG) um barranco deslizou e fechou a entrada de um túnel, impedindo a continuação da viagem. “Ficamos vinte a quatro horas dentro do trem, esperando a água baixar pra gente poder voltar”, recor-

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da. “Como todo mundo levava lanche, um dava um biscoito, o outro tinha água. Divi-dimos tudo para conseguir sobreviver.”

Trabalho, moradia e transporteA EFVM está sob responsabilidade da

Vale. Em 1997, o governo federal privati-zou a malha ferroviária do país e a empresa recebeu o direito de operar a Vitória-Minas por trinta anos, renováveis por mais trinta. A empresa não divulga a receita do trem de passageiros, pois de acordo com Regivan Silva, gerente responsável pelo setor, o ob-jetivo da Vale não é obter lucro. “Nós man-temos isso por causa do relacionamento com as comunidades ao longo da ferrovia. Esse é o principal meio de transporte dessa gente: são estudantes, trabalhadores, comercian-tes”, explica.

O trem pode operar com até 19 vagões, divididos em classe econômica e executiva (com ar-condicionado). Além disso, tem o

carro-restaurante, onde pode-se comprar de lanches rápidos, como salgadinhos e sanduí-ches, até pratos mais elaborados, como filé à parmegiana, e o carro-refeitório, com mesas e cadeiras para se comer com tranquilidade. Para manter essa estrutura, são cerca de 22 funcionários, que normalmente trabalham em pequenos trechos, e não no percurso completo da EFVM. Além dos profissionais diretamente ligados ao funcionamento da ferrovia, como os chefes de trem e maqui-nistas, ainda tem os seguranças, auxiliares de serviços gerais e a equipe do restaurante.

Luiz Cláudio Araújo é inspetor-geral de tração. Entre suas atividades, está viajar para avaliar se os vagões não estão balan-çando muito. Antes disso, foi maquinista do trem de minérios. Trabalha há 29 anos na Vale e, como bom mineiro, sua relação com o trem vem de longa data. Para ele, a EFVM é sinônimo de trabalho, moradia e transporte. “Meu pai era ferroviário, meu tio

Com a economia voltada para a mineração e a indústria siderúrgica, João Monlevade (MG) recebe muitos de seus trabalhadores pela ferrovia

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O trem da EFVM não é exatamente um passeio turístico, mas a paisagem e as cidades ao longo da ferrovia têm seus atrativos. percorreu os trilhos nos dois sentidos e indica o que se destaca neste percurso.

JoAo MoNlevadePróximo à estação fica a Igreja São José Operário, um dos principais pontos turísti-cos da cidade. Com mais de 60 anos, a igreja foi construída por uma companhia siderúr-gica e doada à comunidade. Sua arquite-tura em “V” seria uma alusão à vitória dos aliados na II Guerra Mundial.

TimOteo - Governador Valadares Aqui o Rio Piracicaba corre para o Rio Doce e os dois se encontram à beira da ferrovia. Até Governador Valadares, o rio reina absoluto na paisagem e é o principal companheiro dos passageiros.

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Tumiritinga, SAo Tome do Rio Doce e Barra do CuieteéO trem para um minuto na estação, tempo suficiente para os moradores da região venderem água, “geladinho” e frutas da época. Comprar uma cocada das doceiras de Tu-miritinga é quase obrigatório. Mas é preciso agili-dade e dinheiro trocado.

Resplendor - AimorEs Neste trecho está o lago da represa da Usina de Aimorés, inaugurada em 2006. Quando o rio está baixo, as pedras ficam à mostra, enriquecendo a paisagem. Próximo à barragem, fica a Pedra Lorena. O nome é uma homenagem à índia que se apaixonou por um branco, mas como o amor deles não foi aceito, ela se suicidou jogando-se do paredão.

Governador Valadares É uma das melhores cida-des do mundo para a prática

do voo livre, pelas suas características climáticas. Um dos pontos preferidos dos adeptos do esporte é o Pico do Ibituruna, com 1.127 m de altura.

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também. Minha vida inteira foi ao lado do trem”, conta. E isso não é modo de falar. Luiz Cláudio nasceu em Conselheiro Pena (MG) e vive em Governador Valadares (MG), que ficam à beira da ferrovia. E por causa do trabalho, já morou em várias cidades da região, sempre acompanhando a extensão dos trilhos: Nova Era e Piracicaba (MG) e Krenak (ES), onde está a reserva indígena da tribo de mesmo nome. “Lá, até um tempo atrás, os índios vendiam arco e flecha na beira da estrada”, lembra.

Para Abdo Assis, a Vitória-Minas é também realização profissional. Há quinze anos na Vale, viu uma chance de mudança na carreira quando fez uma auto-avaliação com uma psi-cóloga da empresa. Ela lhe perguntou o que ele pretendia ser ali dentro. “Meu sonho é traba-lhar no trem de passageiros”, respondeu rapidamente. Há cinco anos passou de controlador de pátio e terminal a chefe do trem. É ele quem fiscaliza o serviço prestado aos passageiros, além de controlar o embarque e o desembarque nas estações, que deve durar, no máximo, três minutos. “Mas chefe de trem é de tudo um pouco: médico, enfermeiro, psicólogo, poli-cial, segurança”, completa, contando nos dedos a diversidade da sua profissão.

Atualmente, Abdo está reunindo “causos” sobre a EFVM para contá-los em um livro. E um dos principais personagens da obra certamente não vai ser nem passageiro, nem fer-roviário, mas o sistema de som usado para avisar da proximidade das estações e dar outros recados. Ele é o maior pregador de peças por ali. Como da vez em que o chefe do trem foi falar aos passageiros qual era a próxima estação e só o que eles ouviram foi: “Ai! Esse trem tá dando choque!”. O trem, no caso, era o microfone, não o trem veículo. Mas sabe como é, mania de mineiro de chamar toda e qualquer coisa de trem. Resultado: era gente desespera-da, gritando, se atirando pela janela. É o que contam pela Vitória-Minas.

Dona Anita (direita) e sua filha Míriam Melo, que gostava de dar “tchauzinho” para os maquinistas quando o trem passava perto de sua casa

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Intimidade, férias e precariedadeHá oito anos, Maria de Lourdes mora em

Contagem, na grande Belo Horizonte, e co-meçou a usar a ferrovia quando trabalhava em Ipatinga (MG). Já é íntima da estrada, da paisagem, mas, principalmente, dos fun-cionários. De sorriso fácil e bom papo, não demorou a virar amiga da equipe do trem. É comum eles saírem juntos e ela já até na-morou um ferroviário. “Ela é a nossa ma-drinha”, brinca seriamente André Ricardo, auxiliar de serviços gerais. Ultimamente, Lurdinha viaja pela EFVM para visitar sua cidade natal, João Monlevade (MG). “Eu prefiro porque é confortável, o preço com-pensa e as estradas daqui são muito peri-gosas”, argumenta, referindo-se à paisagem montanhosa e cheia de vales típica do estado de Minas Gerais.

A passagem de Belo Horizonte a Vitória, ou vice-versa, custa R$ 46 na classe econô-mica e R$ 75 na executiva. A viagem dura cerca de treze horas. De ônibus, o mesmo trecho sai em média R$ 71 e demora ape-nas 08h40. Mas o perigo é maior. Em mais de cem anos de atividade, o trem de passa-geiros não registra nenhum acidente grave, como descarrilamentos. Já as rodovias da região são conhecidas pela sinuosidade, má sinalização e pistas estreitas. Só em 2008, a BR-381, que liga Belo Horizonte a Vitória, contabilizou 277 vítimas fatais. Não é à toa que é chamada de Rodovia da Morte.

“É bom, sim, mas podia ser muito me-lhor. O banheiro ainda precisa ser melhora-do. E no verão, o pessoal da econômica qua-se morre com o calor e o pó do minério que vem do trem de carga”, observa a advoga-da Maria de Fátima Mendonça. Para ela, a EFVM também é sinônimo de precariedade. “Mas o governo não ta nem aí pra isso aqui.

Afinal, estamos no Brasil, né?”, lamenta. O Brasil a que se refere Maria de Fátima é um país que não dá atenção ao transporte ferro-viário de pessoas.

“Com a privatização, o transporte de carga cresceu e continua crescendo. Mas o de passageiros não foi concessionado para a iniciativa privada”, explica Victor José Ferreira, presidente do Movimento de Pre-servação Ferroviária. Ou seja, manter ou não as linhas se tornou uma opção para as empresas e, pouco a pouco, as que existiam foram sendo desativadas. Além da EFVM, somente a Estrada de Ferro Carajás, tam-bém operada pela Vale, possui um trem de passageiros de longo percurso (Carajás/PA – São Luís/ MA). Mas lá, o trem sai dia sim, dia não. O restante são pequenos trechos en-tre cidades do mesmo estado ou dentro das grandes metrópoles.

A simpática Maria de Lourdes: para ela, o trem é sinônimo de amizade

UmaUma

RadioRadiovidavidanono

ste é o santuário de José da Cu-nha, o popular Seu Cunha, um dos mais ilustres moradores da

próspera e pacata Anápolis, a 150 Km de Brasília. A cidade não possui mu-seus, o santuário assume um pouco essa função. Nele, os discos dividem espaço com uma mesa onde dona Vera serve o café com biscoitos para os visi-tantes vindos de longe.

Hoje, afastado da rádio Imprensa AM, onde entrou ainda menino e trabalhou por 50 anos, Cunha, como é chamado pelos amigos íntimos, se dedica a preservar fragmentos da vida

da cidade guardados em seu santuário. “Quem precisa de alguma grava-ção antiga, de algum acontecimento importante, vem procurar co migo”, conta orgulhoso, com uma voz ainda possante de homem do rá dio.

“Não são só fatos históricos que ele guarda aqui, muitas vezes pes soas que perderam algum paren te e querem relembrar da maneira de falar dessa pessoa, vêm aqui ver se ele tem algo guardado”, conta Mau ro Gonzaga, o Pastinha, amigo próximo, de décadas, que chega para tomar um café na ma-nhã de sábado.

É uma casa confortável. Fotos dos filhos, netos, amigos e da família estão por toda parte. Mas uma sala com janela para a calçada chama atenção. As fotos são substituídas por discos, CDs e fitas. São milhares, por toda a parte, desde o chão até o teto, de todos os estilos, épocas e gostos. Clássicos de Beethoven e o último lançamento de Roberto Carlos dividem espaço com vitrolas e uma infinidade de aparelhos para executar gravações.

Texto Max MeloFotos Patrícia BanuthDiagramação Fábio Tito

Radio E

Cunha relembra agora, aos 63 anos, co mo começou a paixão pela vida em Am-plitude Modulada, quando, moleque de tre-ze anos, viu ser inaugurada a Rádio Impren-sa AM. O fascínio pelos programas que a família ouvia em volta do rádio passou a ter endereço certo. Uma sa linha onde o enviado do Rio de Janeiro pa ra ad ministrar a emissora dormia e dividia com o estúdio. O menino, que a mãe ain da vestia com as calças cortadas dos mais ve lhos, sonhava em ser um dos ídolos da cidade que acor-dava e dormia ao som do rádio.

Em julho de 1958 um anúncio busca-va um jovem auxiliar de escritório pa ra a Rádio Imprensa e José foi um dos primeiros na fila para disputar o emprego. O teste foi

simples: os seis candidatos teriam que dati-lografar um texto à maquina. José estava com sorte, parecia que o curso de datilogra-fia finalmente lhe seria útil. Não deu outra, no dia seguinte começaria a trabalhar. “Não sei se foi a rapidez nos dedos, ou a secre-tária que foi com a minha cara, só sei que quando o chefe perguntou a ela quem escol-heria, foi pra mim que ela apontou”, relem-bra com um olhar de quem já viveu muito, mas ainda guarda na lembrança aquele dia em que o moleque de calça cur ta, começou a realizar seu sonho. “Me u único registro na Carteira de Tra balho, é o da rádio. É difícil encontrar alguém com um só emprego por tanto tempo”, afirma Cunha, ao lembrar que só não trabalhou na Imprensa quando seu

Cunha em foto de 1962, operando o microfone - e o telefone - durante apresentação do programa Peça

Arq

uivo

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soal

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Uma voz na cidade“Um dia o diretor da emissora me

chamou: Zé, você vai ser locutor. Com medo, disse que não sabia falar no rádio. ”Você não sabe conversar? Então senta aí e conversa com o povo”. Era o nascimento do “Peça e Ouça”, o primeiro programa apresentado por José Cunha. “Foi por causa desse pro-grama que eu conheci a Vera”, contou ele, chamando a esposa para a conversa.

“Quando eu falei que queria conhecer o Zé, mamãe ficou muito brava e me falou: - Homem do rádio não presta, se afasta desse povo minha filha,” relembra Vera Lúcia. Na época, tinha 13 anos e queria conhecer o homem que falava na rádio. Todo dia era a mesma ladainha, ouvido colado no aparelho e vontade de usar o telefone. O programa era um dos mais populares da cidade.

Era 1965, Anápolis seguia o progresso trazido pela construção de Brasília logo ali do lado. Alheia a isso, Vera Lúcia queria

pai o mandou para internato de padres em Silvânia, ci dade a 60 km de Anápolis, pois, para seu Gabriel, antes de tudo vi nham os es tudos. Tudo ia bem até que o garoto repetiu duas vezes de ano na escola. A ra-zão? Com tanto por fazer na rádio não so-brou muito tempo para estudar. A solução foi drástica e, por pelo menos um ano, ele teria de ir para um lugar onde os discos do Roberto Carlos, então febre entre a moçada, não poderiam chegar.

Sem ter como exercer a profissão que tanto o fascinava, e sabendo que por um bom tempo não poderia mais ir para a rá-dio, criou a própria “emissora”, em Silvânia. Com o alto fa lante que dava para o pátio, todos os dias no intervalo entre as aulas apresentava pro gramas e lia textos. Aquele ano, 1961, seria o único em que Cunha fi-caria fora da Rádio Imprensa, mas não. “Nas fé rias eu dava um jeito de escapulir do meu pai e ir trabalhar lá o dia todo”.

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mesmo era conhecer o tal locutor José. Um dia, no passeio em frente a rádio, deu de cara com seu locutor preferido. A moça imagi-nava que aquela voz possante viria acom-panhada de um homem alto, forte, bonito. O rapaz não era nada dis so. “Magricela, es-tatura media na, e nenhu ma beleza especial, não era nada do que eu esperava”, relembra Vera, entre risos.

O primeiro encontro aconteceu. José Cu nha, o locutor da rádio Imprensa, de 20

anos, e Vera Lúcia, moça bonita com seus 13 anos. O diálogo ainda en-

cabulado foi cur to e terminou com uma promessa de José: “Amanhã o pro-

grama será todinho pra você”. Cerca de uma hora de músicas em sua homenagem foi mais que sufici ente. Vera já se esquecera do desapontamento do dia anterior e suspirava de amor pelo apresentador Cunha.

Depois de vencer a família que achava que gente do rádio “não prestava”, eles con -seguiram autorização para namorar. Foi o primeiro namoro dos dois, que nun ca mais se separaram. 43 anos depois, três filhos

adultos e netos para mimar, entre uma xícara e outra do café preparado por dona Vera, eles contam como o rádio foi o responsável pela união, pela família e pe la vida que cons-truíram depois daquele encontro na calçada em frente a rádio.

De locutor a diretorEm 1972, já casado e com filhos, Cunha

ti nha feito quase tudo na emissora. “Fui dis-cotecário, técnico de som, operador de áudio e locutor. A gente fazia as coisas por amor, ficava no lugar do colega, mesmo que não fosse nossa função”, relembra ele de uma época em que o rádio ainda era qua se artesa-nal e a programação local. Muitas transfor-mações aconteceram desde então.

Um dia o diretor da rádio foi para ou tro estado.“Ele foi ver se dava certo no novo em-prego, eu fiquei no cargo tempora ria men te”. Mas durou 36 anos. Nesse tempo, José Cu-nha tratou de cuidar da rádio e moderni zá-la. “Quando o Zé assumiu, até o carpete era cheio de rasgados” relembra Vera, com ar de dona-de-casa zelosa.

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O amigo Pastinha, Vera e seu Cunha ao fundo

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Não foi só da parte física que José mo-der nizou. Um contrato com a Rede LC de São Paulo pôs de vez Anápolis na rota da in tegração nacional. “A gente exibia rá dio-no velas feitas por grandes atores do Rio, pro gramas esotéricos, programação de al to nível”. Nesse tempo virou prefe rên cia abso-luta entre as emissoras da cidade. “A gente chegou a ter 75% da audiência”. Era um tem-po em que a televisão não ti nha ga nhado o gosto dos anapolinos, a internet só chegaria mais de duas décadas depois e o rádio, junto com o cinema, eram as principais formas de divertimen to. “Quando exi bí amos a rádio-novela ‘O Direito de Nas cer’ a cidade parava. Bares não abriam e as sessões do cinema só co me çavam depois que o capítulo acabava”, rememora Cunha saudosamente.

Mesmo com a programação de rede na-cio nal, a Imprensa AM não perdeu o seu ca-ráter local. “Nós tínhamos janelas na pro-gramação para falarmos de assun tos da qui. Mostrar nossos talentos sem pre foi um compromisso que eu tive”. Se rein ven tando a cada ano, mostrando o povo da cidade, os debates nas eleições locais, e dando uma visão que a pequena mídia local não tinha estrutura para ofe recer o tempo foi passan-do. “Quando a mo da era Axé, nós tocáva-mos, quando o povo queria era jor nalismo, a gente também exibia. Nossa rá dio tinha essa fun ção de ser o porta voz dos moradores de Anápolis”. Ficaram famo sos na cidade os programas especiais reunin do música, cul-tura, cinema e artes, entre outros, produzi-dos pelo pessoal da rádio e amigos de Cunha, como Pastinha.

Com o tempo, a emissora não suportou a concorrência com a TV e a internet, ca da vez mais populares, e teve o mesmo fim que todas as outras rádios da cidade, foi com-

prada por uma igreja evangélica. No caso da Imprensa AM, foi a Igreja In ter na cional da Graça de Deus, que ad quiriu seu controle. A utilidade pública deu lugar a religião e a equipe montada com primor foi desfeita. “Antes de sair, ajudamos os funcio ná rios a conseguir ou tras colocações e indi ca mos muitos para continuar lá. Vender a rá dio era nossa última opção e todos que es tavam lá sabiam disso”, relembra.

Ao falar do fim do sonho que começou ain da criança, não notamos no olhar de José Cu nha abatimento, ou mesmo nostalgia, e sim serenidade. O que Cunha transmite é a sensação de que cumpriu o seu dever, viveu intensamente cada um dos dias de meio século. A definição pa ra todo esse tempo, José Cunha tem na pon ta da língua. “Não sei se o rádio foi a me lhor ou a pior coisa que eu fiz, mas com cer teza foi a maior”.

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CICATRIZES DA

CICATRIZES DAMemórias do manicômio tanto marcaram quanto insistem em silenciar os que viveram no Complexo Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena nos idos da década de 60. O cenário de então já foi equiparado a campos de concentração. Mas o novo modo de funcionamento do hospital, com internações breves que incentivam o convívio familiar, ao lado das residências-terapêuticas, apontam para perspectivas mais autônomas para os doentes mentais, antes tratados como seres sem direitos.

Texto Marcus V. F. LacerdaFotos Janine MoraesIlustração Gabriel BragaDiagramação Fábio Tito

LOUCURAEm Barbacena, marcas da história manicomial

arco Antônio Oliveira foi in ter-nado aos 16 anos no Hos pital de Oliveira em Be lo Ho rizonte, Minas Gerais. Sem an dar depois

de uma queda, ho je, aos 40 anos, vive no Complexo Hos pitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB), no interior de Minas Gerais, e os funcio ná rios do hos-pital ainda o chamam de “Marquinho”.

Em 1969, os internos do CHPB ti-nham sua humanidade quase extirpa-da. Naquele ano, a superintendência da Fun dação Hospitalar do Estado de Mi-nas Gerais (FHEMIG) constatou que ha via quatro mil internos para dois mil leitos. Chegou a ter cinco mil. Cerca de 70% dos pacientes não tinham proble-mas psiquiátricos. Eram indigentes, bê bados ou arruaceiros levados pela po-lícia, além de filhos ou idosos deixados lá pelas famílias.

Entre cem a 200 pacientes, vítimas de maus tratos, morriam por mês. Os corpos eram cozidos em latões para retirar os esque letos inteiros que eram então vendidos a escolas de medicina. Todas cifras devidamente re gistradas em ca der nos de bro chura.

A cidade de Barbacena fica nas ter-ras que foram dadas a Joaquim Silvério dos Reis pela traição aos inconfidentes mi neiros. Já o manicômio, foi o prêmio a Barbacena na disputa com Belo Ho -rizonte pela a ca pi tal do es tado. A ci-dade abrigaria um hos pital psi qui á tri co nos moldes dos me lhores do país.

Às terças-feiras, o hospital-colônia re cebia novos pacientes vindos de trem des de a Bahia e desembarcados numa

es tação dentro da propriedade. Os sem documentos recebiam como so bre nome o nome do lugar de onde em bar ca ram no trem. Às quintas-feiras, chegaram à gare os poucos egressos que re cebiam alta e tinham regis tro de algum respon-sável. Alheios aos cos tumes externos ao manicômio, mui tos acabavam urinando e defecando nas pró prias roupas, ali na estação du rante a espera do trem. Eram man dados de volta para a instituição de on de mui tos acabaram transformando-se de paci entes em moradores.

Outros fugiam. “O ho mem foge do inferno que rendo viver”, argumenta Jai ro Toledo, que foi diretor do CHPB por 11 anos, sobre o caráter salutar da fu ga. Pe dro Joaquim dos Reis foi um dos

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fugitivos. Foi encon trado em meados de 60 por Antônio Pon ciano, proprietário de terra em Fa ria, povoado próximo a Bar bacena. Ele resolveu dar abrigo e cui da do a Pedro que vive na propriedade des de en tão. Foi criado junto com os filhos de Pon ciano. “Meu mari-do era severo com Pe dro, mas deu muito amor para ele”, lembra Maria Teresi-nha, viúva do tutor.

Levado ao hospital co-lô nia pela polícia, Pedro tem medo de pessoas far-da das. Hoje, vive num cô-modo contíguo à casa de Ponciano. Acha a casa dei-xada para ele pela esposa de Ponciano de-masiado grande.

Pedro pas sa os dias cuidando da horta e do gado, uma vida simples. Sobre sua sa í da

do manicômio, desconversa minei ra mente. Alguns dedos de prosa depois se abre: “Eu fugi. Mas foi na vista dos to ma dor de con-ta!”, confessa sorridente.

Fiúca, seus filhos e seu genroMaria José Morei-

ra co me çou a traba lhar no CHPB em 1960. Era o que cha mavam de “toma-dor-de-conta” e todos a co nhe ciam por Fiúca. “A gente dava ba nho, cor ta va o ca be lo, as unhas”, conta Fiúca na vivacidade dos se us 80 anos. Fa zia de tu-

do. De varrer os pavilhões com vassouras de cipreste a pro curar no mato por broto de goi a ba para con ter os recorren tes sur tos de diarréia dos pa cientes.

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“Eu fugi. Mas foi na vista dos tomador de conta!” - Pedro Joaquim

Pedro foi acolhido por Antônio Ponciano que quando morreu pediu aos filhos: “Cuida dele como se fosse irmão de vocês.” À esquerda, Adelino, interno que fazia empréstimos a funcionários

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Assim como Fiúca, Pedro e Francisca tam bém trabalharam no manicômio. Ao con trá rio do que ocorria quando a mãe en trou, os antigos “tomadores de conta” foram substitu í dos por enfermeiros e pro -fis sionais con cursados. Apro vados, os novos funcionários passavam por um trei namento. “Eu larguei quando chegou no eletrocho-que”, conta Francisca.

Pedro Vitorino fez o curso até o fim. Imo bilizava pacientes maiores que ele e apli cava eletrochoques em pacientes se guin do ordens dos psiquiatras. “Às ve zes eu perguntava pro paci en te ‘você vai se comportar?’. Daí eu não aplica va”, re lembra

Pedro. Não gostava daquela ta re fa. “Era mui ta judiação aquilo.”

Os garfos enferrujados e as camas dei -xadas no almoxarifado, que apareci am ma-gicamente em dia de fiscalização, revoltavam o casal. “Eu vi paciente ten do o dente tira-do com martelo. Que nem faz com ca valo”,

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“Eu fui fazer o treinamen to, mas

larguei quando chegou no eletrochoque” - Francisca, filha de Fiúca

Com os bolsos cheios de comprimidos, Fi úca fi ca va de olho nos in-ternos. No caso de um sur to pe rigo so dava a injeção “en tortadei ra”, um an ti-psicótico que provocava contrações. De pois aplicava um an ti-parkinsoniano, a injeção “desentortadeira”. Fi úca não possuía nenhu ma for mação médica. Ape -nas as diretrizes que lhe foram dadas.

Fiúca conhecia os in ternos pe los no mes, apelidos e manias. “Às ve zes a gente tinha que esticar o plantão porque tinha um que não queria co mer. Só comia se fos se comi-go”, relembra. Fiúca levava pa cientes para aniversários e casamentos de sua família. “Se eles tão lá dentro é porque Deus quis. A gente tem é que cuidar deles.”

Uma das internas que tinha uma relação muito próxima com Fiúca era Se-lita. Um dia, a filha de Fiúca, Francisca realizou um de sejo de Selita, que estava grávida: levou-lhe uma marmita de angu com qui abo. Satisfeita, Se li ta retribui: “Esse ne ném aqui é seu”.

O processo de adoção foi atribulado, mas o bebê aca bou indo para a casa de Fran cisca e Pedro Vitorino, seu marido e ex-ca bo da Aeronáutica. Simo ne, hoje uma mulher de 38 anos, ajuda os pais a pon to de ser da da como “o braço direito da casa”.

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Francisca, Pedro Vitorino, Fiúca, Raimundo e Simone: uma família com uma história intimamente ligada ao CHPB

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relembra Pedro. Tan to ele quanto a mu -lher engajaram-se na luta sindical e no mo vimento an ti ma nicomial. Nas greves, da vam al ta pa ra os pacientes agudos, suspendiam os am bulatórios e impediam as entradas de novos internos.

Reformando o infernoEm 1979, jovens pro fis sionais

coloca ram a questão no III Con gresso Mi neiro de Psiquiatria. O psi quiatra ita liano Ba sa glia, grande no me da luta an timanicomial, esteve no CHPB e com parou o lugar aos campos de con-centração. “A noção de humanização dos antigos di re tores era dar farinha e fumo”, relata o psiquiatra Jai ro Toledo.

Hoje, a função do manicômio não é mais de isolar o doente. As internações, que antes beiravam a eternidade, são limitadas a 30 dias, em casos de cri se. “À medida que os pacientes mais ve lhos morrem ou recebem alta, os lei tos se ex-tinguem”, explica o Dr. Mau ro Bor go, neurologista e atual diretor do hospital. Atualmente a instituição possui pou co mais de 300 internos.

A estrutura atual do CHPB é uma amo s tra da mudança. O Hospital Re gio-nal de Barbacena e o Museu da Lou cura substituem espaços antigos do manicô-mio. E, no atual centro de convivência, os pacientes realizam trabalhos ma-nuais. A terapeuta Lina Ladeira afirma que a in ternação prolongada gera um quadro de demência nos internos, mar-cas que podem ser percebidas nos tra-balhos artísticos de agora: formas igno-tas e sem expressão.

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Atualmente, dentro do hospital tam bém há a réplica de uma casa. Ali, os pa cientes aprendem a levar a vida autonôma que lhes foi privada durante os anos de internação no manicômio. Acender um fogão, cuidar de uma casa, tomar banho sozinho, se alimen-tar, pequenos gestos de resgate. Preparam-se para sair da ins tituição e viver em uma residência-te rapêutica com outros egressos.

Residências-terapêuticas Grimalda de Jesus não queria sair do

manicômio. Escolhida com outras cin co pa-cientes para morar na primeira re si dên cia-terapêutica de Bar bacena, ela se fez de louca - pintou-se exageradamente, despente ou o cabelo e, apesar do calor, vestiu moleton. “Fiquei com medo de ser jogada na rua”, confessa Grimalda, sor rindo. Hoje vive em uma mo radia arrumada e decorada, que di-vide apenas com outra ex-paciente. Efusiva, Grimalda ciceroneia pesquisadoras, carto-mantes e re pórteres que visitam a cidade.

As residências-terapêuticas são casas onde moram ex-internos dos mani cô mios da cidade. “São escolhidos os pa cientes mais dotados de autonomia”, ex plica Le andra Vidal, da coordenação de Saúde Mental da cidade. Barbacena tem 26 das 59 residên-cias-terapêuticas de Minas Ge rais. As casas são muito organizadas. Va silhas com os me-dicamentos de cada mo rador são discrimi-nadas com nome e fo to dos donos.

No mural da residência-terapêutica ficam os telefones úteis e os PTI (Plano Terapêutico In dividual). “O sentido aqui é dar ao mo rador a oportunidade de melhorar na quilo que ele quer melhorar”, conta Le-andra. “O grau de falta de autonomia por

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conta de fazerem tudo para eles no hos-pício era tal que eles não sa biam mais nem co mo apagar a luz.”

Com o auxílio que recebem do pro-grama “De volta para casa”, do Mi-nistério da Saúde, os moradores das residências-te ra pêu ticas se sustentam e fazem planos. Na casa de Maria de Lour des, Raimunda Vieira e Maria Go -mes, as três senhoras mostram, com uma alegria juvenil, fotos de viagens. “A gente só não foi ainda para o Japão”, brin ca Maria de Lourdes.

Mesmo tendo sido agiota no mani-cô mio, Adelino Rodrigues teve que rea-prender a lidar com dinheiro em sua vi-da fora do manicômio. “Eu paguei mi nha pro messa para Nossa Senhora, com prei meus móveis”, conta e mostra o sorriso pontilhado de obturações dou radas.

Em outra residência-terapêutica moram Geraldinho, Ca bo e mais quatro ex-pacientes. Geraldo An tônio da Silva tem 53 anos. “As me ninas não acreditam quando eu falo a i dade”, ga ba-se ele que marca encontros pela in ternet mas aca-ba por deixar as “meninas”, como cos-tuma falar, a ver navios.

Cabo, outro morador, é um ti po taci-turno. Tido como mudo em seu tempo de manicômio, certa vez foi chamado junto com outros internos para ajudar no des carregamento de telhas para a casa de Jairo Toledo. Aos poucos, pas-sou a assinar e a conversar, ainda que só o mí nimo necessário. Perguntado pelo motivo de permanecer mudo durante tantos anos, respondeu sem pestanejar: “Ué, ninguém me perguntava nada!”

Jair Arantes, que vive coma irmã: “Sou presidente do Brasil desde quando eucriei o MinistérioPresidencial”.

À esquerda: Grimalda, Maria Gomes e Lourdes. Moradoras de residências-terapêuticas.

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Para crianças acampadas, que esperam com suas famílias um lugar para

plantar, o hino do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é

cantiga diária. Entre as assentadas, que já vivem com os pais em uma

área definitiva, o símbolo do MST no uniforme gera tanto orgulho

quanto vergonha. Aos 25 anos de existência, o movimento conseguiu

construir uma base educacional do ensino básico ao profissionalizante

e procura despertar o desejo de luta entre crianças acampadas e a

memória da conquista da terra naquelas que estão nos assentamentos.

Texto Flávia MaiaFotos Janine MoraesDiagramação Talita Ferreira

O s desenhos das crianças mostram plantações, flores, colheitadeiras, caixas d’água e postes de energia

elétrica. Nos textos, o sonho do pedaço de terra. Nas palavras, toda a história de luta de crianças que estão começando suas tra-jetórias. Laís, de nove anos, escreve em sua redação “Um passarinho verde deu a notícia que iremos para o nosso pedaço de chão, vai começar a minha história de novo, vou ter galinha, porco, carneirinhos, vou plantar fei-jão, milho, batata. E amendoim?”

Sonhos como o de Laís e de 171 crianças e jovens da Escola Itinerante Zumbi dos Pal-mares, acampamento 1º de Agosto, área ru-ral de Cascavel, Paraná, são cultivados pelo lema “aprender com a terra e com a vida”.

As escolas itinerantes surgiram para acompanhar famílias acampadas. Segundo o MST, existem mais de cem mil famílias em acampamentos no Brasil, porém, só quatro estados têm esse tipo de escola.

O projeto funciona em parceria com as secretarias de educação dos estados. “O convênio precisa ser firmado com o estado porque se os acampamentos assinam com o município, terão que negociar com todas as prefeituras por onde passarem”, comen-ta Maria Cristina Vargas, responsável pela edu cação do MST nacional.

ao gasto com material escolar e de limpeza -R$ 1,43 por estudante do ciclo básico e R$ 2,86 para os de ensino médio e fundamental. Anualmente, o estado do Paraná repassa à Associação Agrícola da Reforma Agrária (ACAP), responsável legal pelo convênio, quase um R$ 1 milhão para o custeio das despesas dessas escolas.

Além do Paraná, os estados de Santa Catarina, Alagoas e Piauí também são par-ceiros da ideia e partilham sistemas pareci-dos. “Não queremos ficar só com os acam-pados do MST, mas também com outras comunidades itinerantes, como ciganos, lavradores, etc”, propõe Miria Medeiros, su-pervisora de educação no campo do Piauí.

O MST atua ainda no ensino profissio-nalizante em parcerias com o governo fede-ral, porém a maior autonomia na condução do processo de ensino-aprendizagem acon-tece nas escolas itinerantes.

Em estados onde não há o convênio, os alunos acampados ficam matriculados nas escolas mais próximas e utilizam o trans-porte escolar. É o caso de Gustavo Reis, de oito anos, acampado em Brazlândia, no Dis-trito Federal. Ele e outras crianças da região lotam a capacidade do ônibus velho e com os pneus carecas. A estrada de chão cheia de buracos faz com que o trajeto até a Es-cola do Rodeador demore quase meia hora. “Quando o ônibus não passa, não dá pra ir pra aula”, conta.

Pedagogia diferenciada

Duas metodologias introduzidas nas es-colas itinerantes exemplificam a interferên-cia do MST. O parecer, um relatório geral sobre o desenvolvimento do aluno, substitui o convencional sistema de notas. Já o tema

Atualmente, o MST atende mais de três mil alunos em escolas itinerantes. Só no es-tado do Paraná são 965 alunos e 155 profes-sores. A Secretaria de Educação do Estado paga os professores, a merenda e o fundo ro-tativo, isto é, uma quantia mensal referente

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gerador, modelo do educador brasileiro Paulo Freire, trabalha, de modo interdisci-plinar, a realidade do aluno.

Para desenvolver os temas geradores, o livro didático é usado como apoio para os professores e não como guia de conteúdo, como ocorre nas escolas tradicionais.

“Temos um dialógo importante com os movimentos sociais. Eles têm nos ajudado na construção de uma política de educação do campo, não só no campo”, destaca Wa-nessa Sechim, secretária de educação do campo do Ministério da Educação.

Como muitas famílias deixam o acam-pamento durante o período de colheita para trabalharem nas fazendas, a Escola Zumbi

autoriza que, a cada 20 dias seguidos de aula, os alunos possam tirar 12 para acom-panhar os pais. “A gente consegue cumprir os 200 dias letivos; temos feriados que não importam. Sete de setembro, por exemplo, independência de quê?”, questiona Cleide Aparecida Ferreira, de 27 anos, educadora da Zumbi desde 2003.

Cleide faz parte do movimento desde 1991, exigência para os professores dos ciclos iniciais. “Os professores têm que ser do MST, os que não são do movimento não vão querer acompanhar esses estudantes quando o acampamento mudar de lugar”, diz Marciane Mendes, coordenadora de edu cação no campo do Paraná.

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Para ingressar na escola, a pessoa deve ter escolaridade superior à da turma para a qual ministrará as aulas. “A partir do mo-mento que o nome de uma pessoa entra na discussão para entrar na escola como edu-cadora, ela é vigiada a todo o tempo, as pes-soas passam a olhar ela”, conta Cleide.

A baixa escolaridade dos educadores preocupa a coordenadora da escola, Marga-rete Paza Machado. “Hoje, o ensino básico é a nossa parte mais sensível. O MST e a secre taria de educação investem na forma-ção desses educadores, mas ainda precisa-mos de mais.” A Zumbi reflete uma realidade do campo brasileiro. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, no meio rural 61% dos docentes não têm for-mação superior.

Mas nem sempre todos os educadores são do MST. Acampamentos como o 1º de agos to, que vai completar cinco anos em 2009, acabam aumentando sua oferta de séries. Para formar sua primeira turma de

ensino médio, a Escola Itinerante Zumbi dos Palmares teve que contratar profes-sores. Entre os dois grupos de docentes há uma diferença salarial. Enquanto os do mo-vimento recebem o salário mínimo (R$ 465), aqueles contratados pelo estado ganham, em média, R$ 1.600 reais.

“Não existe diferença entre nós, os con-tratados, e os do MST. O professor, quando vem de fora, geralmente tem que se intei-rar do assunto. Aqui, se ensina o socialismo, não o capitalismo. Então temos que cuidar para não pecar pelo excesso em nenhum dos lados. Conhecer os ideais e trabalhar o conteúdo não impondo nada”, analisa Flávia Cassol, professora de química, biologia e física da Zumbi dos Palmares.

O retrato da ZumbiCasinhas de madeira. Um desenho e

uma frase de Che Guevara logo na entrada do colégio. Bandeiras do movimento com o rosto de Che personalizam o local. O ícone

Em acampamentos sem escola itinerante, como em Brazlândia - DF, os alunos usam transporte escolar

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socialista sul-americano também está no boné de Leandro Moraes Santana, de 12 anos, mas ele não sabe quem é. “Tenho muita vontade de conhecer a história dele”, diz.

As salas de aula são iluminadas pela luz do sol. Energia elétrica só com o gerador a diesel em dias espe-ciais. A Zumbi faz parte dos 23% de escolas do campo que não possuem energia elétrica e dos 90% de esco-las que não possuem laboratório de informática. O único computador da escola ainda não foi instalado. O chão é batido. A água, de poço. Para que a poeira não se espalhe tanto durante a seca, um regador joga água pelas salas de aula, biblioteca, re-feitório e secretaria. Mesmo assim, os pés guardam sinais de poeira ou lama.

Os livros e cadernos com marcas de terra identificam a escola e são orgulho de quem estuda ali. “Olha o meu! Olha o meu!”. Todas as crianças querem

mostrar seu material, sua letra, o que apren-deram. “Eu passo canetão vermelho nas bordas dos livros para eles não ficarem tão sujos”, conta a educadora Cleide.

Um dos principais argumentos do mo-vimento para que a escola funcione dentro do acampamento é a discriminação. “As cri-anças sofrem preconceito porque são sem terra, porque estão sujas, porque cheiram fumaça. A maioria não queria mais nem ir para a escola”, explica a educadora Vander-léia Alves Fortes, de 21 anos.

Gislaine Martins, 12 anos, faz o sexto ano. A paranaense estuda na escola Zumbi dos Palmares há dois anos e com voz baixa responde que prefere estudar no acampa-mento. “Aqui não tem ladrão, na cidade tem; roubaram as nossas coisas”, desabafa.

“Eu acho importante a escola estar aqui, facilita muito. Quero proteger minha filha”, responde Jerônima Ferreira, de 28 anos, mãe de Andréia, de seis. Desde que chegou ao Brasil, a paraguaia se engajou no MST com o marido brasileiro. “Gosto da minha

filha ser educada com os princípios do movi-mento”, orgulha-se.

Assim como as outras 300 famílias do acampamento 1º de Agosto, para receber os benefícios do governo, como Bolsa Famí-lia, e matricular a filha na escola, Jerônima teve que tirar documentos brasileiros. A documentação é outro problema encontra-do nesse tipo de escola. No caso da Zumbi, além das crianças brasileiras não registra-das em cartório, ainda tem a questão dos “brasiguaios” – paraguaios ou brasileiros que migraram do Paraguai para o Brasil.

Para garantir a integridade dos docu-mentos dos estudantes – como o histórico escolar - a secretaria de educação exige uma escola-base que arquive os documentos. A Zumbi dos Palmares está vinculada à escola Iraci Salete Strozak, assentamento Marcos Freire, no município de Rio Bonito do Igua-çu, a 151 km de Cascavel. “São dois lugares de acesso difícil, aí qualquer documento demora muito para chegar”, conta Márcia Gunkelschzzren, secretária da Zumbi.

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Tempo de formaturaNa lousa, os escritos: “vem, teçamos

nossa liberdade/ braços fortes que rasgam o chão/ sob a sombra de nossa valentia/ desfraldemos a nossa rebeldia/ e plantemos nessa terra como irmãos.” Na voz das cri-anças, a melodia. O 3º ano do ciclo básico aprendia as primeiras notas e estrofes do hino do MST para cantarem junto dos cole-gas em uma reunião dos alunos chamada “tempo de formatura”.

Esse ritual acontece duas vezes por se-mana: na segunda, os estudantes levantam o braço esquerdo, entoam o hino do movi-mento e cantos de ordem como: “não vou sair do campo/ para ir à escola/ educação no campo é direito e não esmola.” Às quar-tas, eles cantam o hino nacional brasileiro. Nesses momentos de formação, algum aluno recita um poema ou uma peça teatral é apre-sentada para os colegas.

Nas salas de aulas, os alunos preparavam material para um concurso que o MST está realizando em comemoração aos seus 25

anos. “A professora falou que tinha que ser alguma coisa relacionada com o movimento e com o Brasil, então resolvi fazer esse de-senho misturando os dois”, conta, um pouco tímido, Paulo Henrique Ferreira da Rosa, de 12 anos, estudante do 7º ano.

Trabalhando desde março deste ano na escola, Gilson Gonçalves ainda estranha a forma diferenciada de educação. “Aqui se educa muito para o movimento e às vezes esquece que tem que educar para o mundo também”, conta o coordenador pedagógico.

Para Mônica Molina, coordenadora da licenciatura de educação no campo na Uni-versidade de Brasília, a valorização do MST no sistema de ensino é uma maneira não só de as crianças se sentirem pertencentes ao movimento, mas também se verem como sujeitos sociais. “Não acredito que haja doutrinação. Não podemos ter o argumento hipócrita que a sociedade é neutra. O que eu vejo que o MST faz é selecionar valores que ele quer passar para as crianças”, defende.

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Sem o berçoNo Rio Grande do Sul, estado que

abrigou a primeira escola itinerante do Bra-sil, em 1996, o Ministério Público suspen-deu, desde feve reiro de 2009, o convênio da Secretaria de Educação com o Instituto Preservar. O repasse de R$ 16 mil, para sete escolas, atendia 550 estudantes.

O promotor do processo, Gilberto Thums, alegou pregação ideológica, finan-ciamento do MST com dinheiro público, funcionários não concursados e falta de con-trole da frequência escolar. Para as assesso-rias de comunicação do Ministério Público e da Secretaria, as declarações do promotor Gilberto Thums são pessoais.

A Secretaria garantiu que há transporte e vagas para os estudantes na rede estadual. Em relatório divulgado pela própria secre-taria, dos 207 transferidos, apenas 59 fre-quentam as escolas convencionais.

No assentamento tudo muda...Além da escola itinerante Zumbi dos

Palmares, o Colégio Estadual Iraci Salete Strozak é base de mais quatro. Dessa forma, a escola é responsável por 1.055 alunos, in-cluindo os que estudam na sede. A escola é uma entre as dez do maior assentamento em terra contínua da América Latina. Juntando o assentamento de Ireno Alves dos Santos e Marcos Freire, a extensão chega a 28 mil hectares divididos entre 1.600 famílias.

O cenário é bem diferente da Zumbi dos Palmares. As paredes são de concreto, o muro separa a escola das propriedades, os alunos vestem uniforme e todos os profes-sores são concursados. Mas nem sempre foi assim. No início, as escolas funcionavam de-baixo de lona, em destroços de cons-truções e em um galpão que guardava as máquinas da madeireira Giacomet Marodin, antiga proprietária das terras.

Mesmo não sendo inaugurada legal-mente, a Iraci funciona a pleno vapor, rece-bendo, inclusive, alunos e recursos estaduais. Segundo a ex-diretora Ritamar Andretta, a inauguração ainda não aconteceu porque a vistoria do estado detectou vários proble-mas na estrutura física da escola. “Os alunos não podiam ficar sem estudar, aí resolvemos entrar e dar aula nessa estrutura que é muito melhor que as antigas”, afirma a professora de matemática que trabalha no assentamen-to desde a ocupação em 1996.

Das dez escolas do assentamento, ne-nhuma chegou a ser itinerante e atual-mente, a Iraci é a única que ainda mantém vínculo forte com o MST, por isso a sua es-colha como sede das itinerantes. O colégio procura manter o tempo de formatura e o símbolo do movimento estampado nos uni-

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formes. “Os alunos precisam entender que essa escola existe por causa de uma luta e te-mos que valorizá-la”, frisa Nilton José Costa Silva, professor de história que acompanha a saga do acampamento desde o início. “Eram quatro quilômetros de pessoas entrando na terra improdutiva”, recorda.

Cleidiane da Luz Vinski, 18 anos, aluna do 1º ano do ensino médio, recorda. “Nas es-colas de lona, quando tava calor não tinha aula, quando chovia também não”.

Porém, nesses 13 anos de ocupação e seis de escola, muitos assentados venderam suas terras e boa parte da população não tem vínculo com a luta do passado. É possível

encontrar jovens que recortam do uniforme o símbolo do MST. “Eu recortei por causa do calor”, justifica Edinéia Evangelista, 17 anos, moradora de Rio Bonito do Iguaçu, sem ligação com o movimento.

A professora Vilma Nantes conta que muitos alunos e professores não gostam de carregar a ideologia do movimento, seja porque não é a deles, seja para contestar mesmo, no caso dos adolescentes. “Eu acho natural a escola adotar uma filosofia; desde que o mundo é mundo é separado por ideo-logia e religião”, analisa. “Eu já trabalhei em colégio católico, depois em um adventista, hoje estou em uma do MST.”

REYNALDO JARDIM

“A vida é muito curta para se fazer uma coisa só.” Este é o lema de Reynaldo Jardim, referência do jornalismo nacional e inventor compulsivo. Com o olhar inquieto, faz poesia de tudo o que vê. Inventou o primeiro caderno de cultura do Brasil, o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, e o seu embrião, o sau-doso Caderno B. Em plena ditadura, criou o jornal-laboratório O Sol e cruzou o país - de ônibus porque tem medo de avião - reformando a imprensa. Aos 82 anos, produz como nunca e prepara o lançamento do livro Sangradas Es-crituras. Ao lado da esposa, a jornalista Elaina Daher, a quem chama carinho-samente de “assessora intelectual”, Reynaldo abriu as portas de sua casa em Brasília para a .

Texto Bruna Sensêve e Fernanda LoboFotos Fábio TitoDiagramação Flora Egécia

ENTREVISTA

Como começou no jornalismo?Na época que estava no ginásio, eu escrevi meu primeiro texto jornalístico sobre litera-

tura e mandei para uma revista chamada Letras. Para minha surpresa, a matéria foi publicada e eu fui correndo para a banca comprar a revista, na maior alegria. Passou um tempo, recebi uma carta da revista me convidando para trabalhar no jornal O Vigilante. Me mandaram fazer uma matéria metendo o pau em uma padaria da esquina. Eu perguntei o porquê e dis-seram que eles não queriam dar anúncio. Eu não fiz a matéria, fiz outra falando sobre os bairros de São Paulo.

Você reformou graficamente e inovou as linhas editoriais de grandes jornais de norte a sul do país. Você mudou a cara do jornalismo no Brasil?

Não, isso é muita pretensão, eu posso ter colaborado em alguma coisa. A diferença é que, em geral, quando alguém queria fazer um jornal copiava o modelo dos grandes jornais. Uma vez me chamaram em Belém pra fazer a reforma d’O Liberal e me pediram para fazer igualzi-nho ao JB. Eu respondi: “ainda bem que eu trouxe um exemplar, pode copiar, nem precisava me chamar até aqui.” Depois fui reformar o jornal A Crítica, em Manaus.

Era um ritmo alucinante...

Sabe porque eu fazia tudo isso? Eu não conseguia emprego no Rio de Janeiro por causa do golpe, eu estava na lista negra do DOPS. Fui chamado para dirigir a TV Curitiba, fui de ônibus, claro, não ando de avião. A TV tinha a câmera que inaugurou a televisão no Brasil, para ter uma ideia de como era velha. Eu fiquei em Curitiba por sete anos, fiz muita bagunça lá, tanto jornal, que entrei para a história do jornalismo da cidade.

REYNALDO JARDIM

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Sofreu perseguição direta do regime militar?Eu descobri há pouco tempo que sim. Há dois anos, fui na Abin, antigo SNI, para ver

minha ficha e me surpreendi com 80 páginas a meu respeito. Eles sabiam tudo o que eu fazia, fui seguido o tempo todo.

O que te inspirou a escrever o livro de poesia Maria Bethânia, Guerreira Guerrilha?Em 1965, a Bethânia chegou ao Rio para substituir a Nara Leão no show Opinião. A

Nara era ótima, super simpática, mas, na voz dela, Carcará era uma música qualquer. Quando Bethânia cantou Carcará foi um êxtase. Ela se transformou na musa da esquerda. Em um dos espetáculos, eu cheguei a ler uns poemas meus para ela. Como lancei o livro na véspera do AI 5, acabei tendo que comparecer ao DOPS, porque o livro era uma provocação. Mas tive a sorte de nunca ter sido preso. Infelizmente, até a própria Bethânia foi chamada ao DOPS. Mas ainda assim ela adorou o livro, fez uma festa e é minha amiga até hoje.

O Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), que você criou em 1956, é considera do a primeira revolução gráfica e jornalística da imprensa brasileira. Como aconteceu?

O Jornal do Brasil, no começo era praticamente um jornal de classificados, não tinha cobertura local e as notícias eram de agências internacionais. Eu fazia na época o Suplemen-to na rádio, que era um programa de cultura. Então a Condessa Pereira Carneiro, dona do JB, me convidou para fazer uma coluna de literatura no impresso aos domingos. Como sou expansionista, fui começando a tomar conta da página e progressivamente de todo cader no, que ganhou o mesmo nome do programa de rádio, SDJB. Tratávamos de ciência, tecnologia, poesia, literatura contemporânea e entrevistas. Nessa época ainda não tinha o concretismo, eu estava sozinho. Não tinha ainda um aspecto gráfico, a tipografia era péssima e a im-pressão era horrível. Depois de uma batalha dura, consegui tirar todos os classificados do caderno. A reforma gráfica do JB aconteceu quando o Odílio Costa Filho, convidado para dirigir o jornal trouxe uma equipe do Diário Carioca, entre eles Amílcar de Castro e Jânio de Freitas. Eles que fizeram a reforma da parte essencial do jornal. Eu fazia o SDJB, um caderno infantil e dirigia a rádio.

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Você fez parte do grupo liderado por Ferreira Gullar que redigiu o Manifesto Neoconcretista, no fim da década de 1950. O que pretendiam?

O grupo era eu, Ferreira Gullar, Amílcar de Castro, Lígia Pape, Lígia Clark, Franz Weiss-man e Theo Spanúdis. Era uma oposição à poesia concreta de São Paulo que era muito mais mecanicista, a nossa poesia, do Rio de Janeiro, que era mais intuitiva, transcendente. Isso por uma razão muito simples, as visões do mundo eram diferentes: São Paulo tinha a vista do Viaduto do Chá e nós tínhamos a das meninas de Copacabana. Mas o verdadeiro criador e teórico do movimento neoconcreto foi o Ferreira Gular, eu só participei por osmose.

Qual foi o peso do movimento neoconcretista para o su cesso do SDJB?

Quando o SDJB completou um ano, vários intelectuais da época elogiavam o suplemento, porque já era uma coisa totalmente diferente dos outros cadernos de cultura que tratavam apenas de literatura. O SDBJ foi primeiro suple-mento de cultura geral, tinha música, poesia, artes plásti-cas, filosofia. Era um caderno não só importante por ter sido o veículo que difundiu o Movimento Concreto e Neo-concreto, mas porque era muito influente, o Brasil todo lia. Manuel Bandeira fez questão de dizer que não só lia o suplemento como o colecionava. A grande vantagem dos jornais daquele tempo em relação aos de hoje é que tinha-se liberdade. Como não havia parâmetros, fazíamos tudo o que queríamos.

Apesar de ter durado apenas cinco meses, O Sol é conside r a do a mais revolucionária experiência jor-nalística do Brasil. A que atribui o sucesso do jornal?

Eu acho que tem a ver com eficiência e afetividade. Tem que saber fazer a coisa e fazer com carinho. O sociólogo Jorge Ferreira, dono de vários restaurantes aqui em Brasí-lia, inventou uma palavra ótima chamada ‘fazimento’, que significa fazer com sentimento.

Como O Sol acabou?O Sol era de oposição, muito crítico, acabou por causa

de boicotes sucessivos da repressão, ninguém a nun ciava e a direção do jornal estava sendo pressiona da. Mas não foi uma coisa que chegaram lá um dia e fecharam.

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Em 1968 você fazia comentários em versos ao vivo dos acontecimentos do dia, no Jornal de Vanguarda, exibido pela TV Rio. Como foi essa experiência?

A equipe era ótima – tinha o Sérgio Porto, Newton Carlos – o jornal era super moderno, durava só 15 minutos. Eu escrevia o poema meia hora antes de o jornal ir ao ar, de acordo com o tema do dia, como se fosse uma crônica.

Não existia teleprompter, nem videotape, pregava o papel na câmera com durex e eu lia. Falei sobre a passeata dos cem mil, matança dos estudantes... Isso na época da pauleira, com a censura em cima. No dia 13 de dezembro de 1968, data do meu aniversário, foi decretado o AI5. O CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu a televisão e quebrou tudo.

Você se sente mais poeta ou jornalista?Agora, eu sou só poeta. Eu descobri que sou poeta há pouco tempo, eu escrevia poesia

mas não me sentia poeta. Geralmente o poeta se envergonha de dizer que é poeta, assim como o carpinteiro se envergonha de dizer que é carpinteiro. Acho que para não parecer que está se elogiando... Mas na verdade, isso é só uma atividade que se desenvolve.

O que veio primeiro?A poesia, porque quando comecei a escrever não existia nem jornal. Comecei escrevendo

poemas para uma prima por quem era apaixonado, quando eu tinha 15 anos. Nessa época, eu comecei a comprar aquelas agendas grossas e escrevia três poemas por dia, obrigatoria-mente. Eu abria o dicionário, lia uma palavra qualquer e escrevia sobre aquela palavra. Para cada menina que namorava eu fazia um livrinho de poesias e dava de presente.

Como nasce o poema em você?O poema não nasce em mim, eu que nasço no poema (risos). A melhor análise da minha

poesia quem fez foi o Hélio Pellegrino - psicanalista e poeta que morreu há pouco tempo – ele entendeu mais do que escrevo que eu mesmo. Ele percebeu que minha poesia é muito mais imanente do que transcendente, quer dizer nasce dos objetos. Quer dizer, eu faço poesia de tudo que eu vejo: sobre moça, sobre pedra, sobre jacaré... Eu sempre enxerguei a coisa concreta, os objetos, se bem que hoje eu estou mais transcendente.

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É um poeta compulsivo? Com certeza, hoje mais do que nunca. Não

só poeta compulsivo, como namorador com-pulsivo, tudo compulsivo. Eu comecei a pro-duzir mais depois que fiz 80 anos, quando fiquei adulto. Eu escrevo todos os dias, eu não fico à espera da inspiração.

Já se envolveu com a música?No Rio de Janeiro, em 1958, no auge do

concretismo, um coreógrafo quis montar um espetáculo de balé concreto, ninguém nem tinha idéia do que seria isso. O meu poema chamado Olho-Alvo, que tinha um ritmo próprio, foi usado para a coreografia. Eu fiz uns cilindros e uns paralelepípedos, chamei a Lígia Pape pra me ajudar, e os bailarinos ficavam lá dentro. Mas faltava música. Então, cheguei em casa com um piano, sem nunca ter estudado música. Eu pensei: “As tribos africanas fazem música, os índios... E o piano nada mais é que um instrumento de percussão um pouco mais sofisticado.” Fiquei três dias tocando, fiz a música, gravei em um disco e levei. Eu disse que tinha recebido o disco de um compositor italiano de vanguarda, chamado Gabriel Artuz [inventou um nome]. Elas ouvi-ram e acharam ótimo. Ninguém do movimento sabia que a música era minha.

Faltou algo que gostaria de ter feito?Acho que não. Pouca gente sabe disso, mas já tive uma experiência teatral que adorei,

com o Paulo Autran. Foi no Teatro Brasileiro de Comédia, TBC, em São Paulo, no começo do teatro no Brasil, em 1949. A peça se chamava “A noite de 16 de janeiro.” Era uma peça muito interessante, o palco era um tribunal e a cada espetáculo 11 pessoas da platéia eram os jurados. Então, cada dia a peça terminava de um jeito, podiam condenar ou absolver.

Quais são seus próximos projetos?Eu acabei de inventar um jornal que vou lançar em todo Brasil, o Suprimento de Cultura.

Não é suplemento, é suprimento mesmo, porque não é para suplementar é para suprir, en-tende? Só vai tratar de assuntos de ponta: filosofia, ciência e artes. Serão distribuídos mais de 150 mil exemplares por meio dos jornais locais, algo como dez jornais. Eu já faço uma página semanal para o Diário da Manhã, de Goiânia, também chamada Suprimento de Cul-tura. Também vou lançar meu novo livro chamado Sangradas Escrituras. São dois volumes que reúnem muito do que já fiz até hoje, poesia abstrata e também poemas inéditos, como o “Caótica – A Epopéia Terminal”, que das últimas coisas que fiz é a que mais gosto.

Arquivo Pessoal

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“No momento em que estávamos no sofá assistindo televisão eu peguei um pedaço de mármore que tinha atrás da mesa e dei na nuca; ela não desmaiou. Peguei um vaso que estava na estante e bati na cabeça dela. E aí eu verifiquei que ela ainda estava viva, respirando muito forte. Peguei um arame e enrolei no pescoço dela”

Caçadores de vestígios

Texto Gabriel CastroFotos Flora Egécia (2, 3, 4)

Janine Moraes (1 e 5)Diagramação Flora Egécia

O assassino fala de forma serena e pausada, facilitando a transcrição do depoimento. Não demonstra qualquer

alteração emocional. O depoimento de Sérgio Casadio, algemado e disposto a contar o que fez, é o desfecho da operação mais complexa da qual participou o delegado Leandro Ritt, há dez anos na Polícia e integrante de uma das divisões de elite da Polícia Civil do Distrito Federal: a unidade de repressão a sequestros.

Aos 38 anos, divorciado e pai de três filhos, Sérgio trabalhava como vendedor autônomo de carros havia cerca de um ano. A ocupação acionou o gatilho que o impeliu a matar. As duas primeiras mortes foram causadas por desfalques sofridos por ele. Em vez de procurar o responsável pelo negócio, sequestrou e matou pessoas ligadas a eles. A terceira morte foi a da própria namorada, comparsa na organização dos crimes. A quarta vítima estava sendo seguida. A quinta seria uma nova namorada. O assassino admitiu que se baseava em seriados policiais para eliminar provas. Dizia que os crimes faziam parte da “Operação

O perito Maurel Balbo se prepara para examinar cadáver vítima de homicídio: rotina encarada com naturalidade

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Dexter”, em referência à série de televisão que retrata um perito justiceiro-mata bandidos, apaga as provas. O vendedor de carros – com características de um assassino em série – era metódico e sabia como eliminar vestígios. Desafiou os peritos.

Sérgio praticamente não deixou provas físicas para uma possível condenação. Mas cometeu um erro, detalhe que foi a brecha encontrada pelos investigadores para desmontar o jogo macabro do vendedor de carros. Mas qual seria a armadilha na qual caiu o assassino? O delegado não revela: “Eu prendo muito bandido com isso.”

O assassino seguia com detalhismo lições da TV para eliminar provas, como limpar o cenário com água sanitária, para dificultar o exame que detecta a presença de sangue; quei-mar o cadáver, e ter o cuidado de desfigurar totalmente o rosto e as digitais; não utilizar armas de fogo; atravessar uma divisa estadual para abandonar o corpo; livrar-se pouco a pouco dos pertences pessoais da vítima, em lixeiras de locais diferentes.

“Dizem que não há psicopatas no Brasil. Não há ou a Polícia é que não consegue descobrir?”. A indagação é de Celso Nenevê, diretor do Instituto de Criminalística do Distrito Federal. Ele lembra, por exemplo, que não há um banco de dados nacional de impressões digitais. Muito menos com informações sobre DNA. O questionamento de Nenevê parece bastante pertinente quando se analisa um outro caso de homicídio ocorrido na capital federal. José Cândido Filho, 48 anos, economista do Banco Central, confessou ter matado dois moradores de rua em de janeiro de 2009. Três meses depois da prisão, veio à tona o que pode ser um outro crime semelhante em Taguatinga.

Num local de furto, as digitais podem estar em qualquer objeto. O trabalho de coleta exige precisão

motivo claro para fazê-lo, e nor-malmente o assassino é alguém que se relacionava com a vítima. Sérgio e Cândido são exceção.

A Polícia Civil do Distrito Federal tem uma das equipes mais qualificadas do Brasil. O rendimento inicial dos peritos é superior a R$ 13 mil, mais do que ganham delegados no restante do país. Os novatos aprendem a ati-rar e a fotografar – função impor-tante para documentar o local do crime. Faltam 300 peritos à PCDF – são 200 na ativa.

“Às vezes, a gente vem apenas fazer a parte social, dar um retorno”, reconhece Marcos Costa, perito desde 1994. Sua equipe acaba de deixar um prédio em Taguatinga - DF, alvo de uma tentativa de roubo na noite anterior. O invasor nada levou, e deixou para trás algu-mas marcas – nenhuma aproveitável. A visita dos peritos passa à vítima a sensação de que o caso está sendo investigado. E isso é tudo.

A próxima parada é uma casa de onde foram levados R$ 8 mil em produtos eletrônicos. Perito e dono da casa conversam sobre os insucessos do Botafogo. O papiloscopista trabalha na mesa da sala e numa gaveta do quarto, com um pincel aplica o negro de fumo, semelhante ao grafite. Usa uma fita adesiva para colher as marcas deixadas na superfície. Caso haja um suspeito, as impressões são comparadas manualmente no Instituto de Identificação.

Marcos Costa integra a sessão de crimes contra o patrimônio. Aqui, a pressa é menor. Não porque falte serviço. Os chamados se acumulam. Em alguns casos, a perícia só vai ao local mais de 48 horas depois da ocorrência. As perdas de indícios mais frágeis é inevitável.

Se os agentes tivessem guardado uma cápsula encontrada no local, a identidade do au-tor poderia ser confirmada, pois a arma de propriedade do assassino foi encontrada. Nessas situações, o projétil é encaminhado ao laboratório da balística. O processo é simples: o perito municia a arma e realiza um ou dois disparos num tanque com pouco menos de 15 mil litros. A água preserva as características da bala. Com isso, é possível comparar as marcas deixadas pelo cano do revólver. Cada arma imprime um sinal único no projétil. Um sistema eletrônico diz se as duas cápsulas – a do crime e a do teste no tanque – saíram da mesma arma.

O trabalho da polícia científica é semelhante ao mostrado pelos seriados. Com duas dife-

renças importantes. Primeiro: é impossível uma mesma equipe ir ao local do crime, ouvir testemunhas, fazer a autópsia no corpo, conferir o DNA e ainda prender o bandido. Segundo: os crimes são mais simples do que os da ficção. Um homicídio, quase sempre, ocorre de for-ma direta: um tiro, uma paulada, um golpe de faca – um corpo no chão. Quem mata tem um

Frederico Carneiro visita local de acidente em Taguatinga. A formação de engenheiro auxilia a entender a dinâmica da colisão

“Eu sirvo ao Senhor de Deus e só tenho que falar a verdade”, proclama um idoso agricul-tor ao perito Frederico Carneiro. Há quatro horas, ele causou um acidente de trânsito ao fazer uma conversão proibida com sua Kombi. Não viu o motoqueiro que vinha no sentido oposto; pior para o veículo de duas rodas. Enquanto o motorista confessa o delito, Carneiro dá pouca atenção. Está compenetrado, em busca de marcas nos veículos e fragmentos no asfalto.

No caso em questão, o motoqueiro foi levado ao hospital com dores no abdômen. Na teoria, o produtor agrícola pode responder por lesão corporal. Mas dificilmente a vítima vai querer levar o processo adiante. O laudo serve, em boa parte dos casos, apenas às seguradoras.

Domingo, 23h, Paranoá - DF. A equipe da MV – como os policiais da Criminalística chamam a sessão de crimes contra a vida, referência a Mortes Violentas – chega para vas-culhar mais um local de homicídio. O caso não é exatamente simples. Um desentendimento entre amigos, e um deles saca um revólver calibre 38. Mantém dois colegas reféns. A Polícia Militar chega e tenta, em vão, negociar. O operário já havia atirado em um dos compan-heiros. O outro conseguiu fugir quando a PM atingiu o criminoso no braço.

O cenário encontrado por Maurel Balbo e equipe requer atenção aos detalhes: há man-chas de sangue no piso da sala e do quarto, onde permanece o corpo. Cinco projéteis ao chão. O perito precisa reconstituir a trajetória de cada um deles. Há latas de merla no imóvel. Outros objetos são armazenados em sacos plásticos. A equipe recolhe objetos encontrados no cenário do crime. Tudo pode servir como prova.

O uniforme de Silvio Boçon é simples:

camiseta, colete, calça jeans, boné e botas. Engenheiro cartógrafo de formação, o para-naense trabalha na Sessão de Meio Ambi-ente e Engenharia Legal. Trata de uma vasta gama de casos como acidentes de trabalho, desmoronamentos e crimes contra a fauna.

O perito analisa o envenenamento de uma cerca viva em Vicente Pires - DF. Briga de vizinhos. Boçon faz o diagnóstico na hora: “Alguém usou uma bomba para espalhar um herbicida.” O vizinho encrenqueiro terá de se explicar à autoridade policial. Nesta sessão, além dos bandidos comuns, é preciso estar atento para se livrar de cobras e escorpões.

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Os disparos da Balística volta e meia assustam algum desavisado que passa perto do local de testes

O cadáver, rígido, é o último a ser anali-sado. Papiloscopista e agente dormem na vi-atura. A vítima, um homem de 39 anos, mor-reu ao pé da cama. Os braços permane cem na mesma posição quando o corpo é virado. São quatro horas sem corrente sanguínea.

O perito mais velho não toca o cadáver; a pe nas orienta. O novato, há um mês e meio na função, sua a camisa de manga comprida, em bora a temperatura esteja amena. Eles lim pam o sangue e anali sam possíveis entra-das de bala: o achatamento do projétil in di ca que a vítima foi atingida quando estava no chão. A constatação pode refletir no julga-mento. Não dar chance de defesa aumenta a pena. A análise dos peritos dura uma hora e meia. Já há outro corpo à espera.

Varjão - DF, 1h de segunda-feira. O cadáver está há seis horas em uma viela de terra, bloqueando a entrada de um barraco de madeira. Cerca de 20 pessoas fazem uma espécie de vigília silenciosa ao lado do corpo. A vítima tinha passagem pela polícia. Foi executada com um tiro na cabeça, provavelmente por um membro de algum grupo rival. A cena é comum na região. O caso não mereceu sequer uma nota curta nos jornais.Também não comoveu os peritos: “Ele está morto há seis horas: como é que você acha que vai estar a rigidez do corpo?”, questiona didaticamente Maurel Balbo em frente aos familiares, sem se incomodar em transformar o corpo do jovem num objeto de estudo para o perito aprendiz. O cenário externo deixa poucas pistas sobre o assassino, que disparou à distância e correu.

Seria importante encontrar o projétil do crime – com o exame na sessão de balística, pode-se chegar à arma e consequentemente ao assassino. Mas a cápsula não ficou alojada na cabeça do jovem. E o comandante da equipe não pretende buscá-la nas imediações: “Seria como procurar uma agulha no palheiro”, diz ao iniciante. Sem digitais, sem o projétil e sem qualquer marca do assassino, o caso vai depender da investigação da delegacia da área.

O material recolhido pela perícia segue para o laboratório da Criminalísitca. Lá chegam diariamente drogas de todo o tipo, armas brancas, fluidos corporais, bebidas falsificadas, produtos usados em envenenamentos e quaisquer outros indícios que careçam de compro-vação científica. A palavra final sobre a identidade da vítima – ou, em casos raros, do crimi-noso, já que suspeitos não são obrigados a ceder material biológico – é dada pelo laboratório vizinho, o IPDNA.

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Os disparos da Balística volta e meia assustam algum desavisado que passa perto do local de testes

Nenhum caso marcou mais o Instituto de DNA Forense do que o acidente com o avião da Gol, em outubro de 2006. Os 154 corpos foram identificados em Brasília. O legista que re-solveu o último caso da tragédia foi Hyung Pak, sul-coreano naturalizado brasileiro. Extrair DNA de cadáveres pode não ser tão simples, em caso de acidentes devastadores. É preciso colher várias amostras, isolar a molécula e torcer para que as bases nitrogenadas estejam identificáveis. A parte final, a comparação entre os materiais genéticos, é feita por aparelhos eletrônicos. De última geração, segundo Pak. Apesar do trabalho restrito ao laboratório, o legista se vê, antes de tudo, como policial. Embora nunca tenha sido obrigado a usar a arma que recebeu da corporação e que foi treinado para empunhar.

Uma jovem vítima de acidente de trabalho ocupa os legistas do IML numa manhã de quarta-feira. A mulher de 30 anos foi atingida pela lateral móvel de um caminhão usado como palco portátil. Uma estrutura de 250 quilos caiu sobre a funcionária de um super-mercado. Os médicos esquadrinham o corpo à procura de ferimentos externos. São três hematomas, mas nenhum sangramento. Eles cortam o couro cabeludo na parte de trás da cabeça, de orelha a orelha. Abrem o crânio, extraem o cérebro em busca de lesões. Fazem uma incisão na parte central do abdômen; reviram os órgãos internos. Quarenta minutos depois do início da necrópsia, o teor do laudo está decidido: aorta rompida, fígado lacerado, primeira vértebra luxada. Qualquer desses fatores, de forma isolada, levaria à morte. O ab-dômen é recosturado. O cérebro, colocado de volta no crânio. Quando há dúvidas, o legista colhe uma pequena amostra de algum órgão interno. O material é submetido a uma análise celular. No caso em questão, não foi preciso. O cheiro que impregna a sala de necrópsia é mais desagradável que a cena dos corpos sendo abertos. A decomposição começa pelas bac-térias da flora intestinal, o que deixa a sala com um odor repugnante.

E até os cadáveres mais recentes deixam marcas, mesmo com o uso de máscaras e luvas: “O cabelo acaba ficando impregnado com o cheiro”, conta o legista Volnei Mendes, diretor-adjunto do IML. Embora não gostem de casos envolvendo crianças, os peritos garantem que não se importam em lidar diariamente com os corpos. Mas há um medo presente – de passar a ver a morte de forma banalizada. Volnei confessa: “Já me peguei pensando nisso”.

Local de homicídio no Varjão - DF: na escuridão da madrugada, poucas pistas. Ao fundo, o cadáver

As próximas páginas trazem um trabalho feito exclusivamente para esta Campus Re . Ele faz parte da investigação de Sonia Paiva, artista e professora do Insti-tuto de Artes da Universidade de Brasília, sobre a encenação pictórica. Esta sequência de cenas está inserida na linha de estudos do caderno Labirintos do meu coração, onde os personagens que en-volvem o vocabulário de imagens da artista estão conectados por elementos vazados na página. A diferença está no formato. A re-vista é retangular, o caderno, quadrado.

Desenhos de nós labirínticos do Livro de Kells, dos monges celtas, são o mote deste trabalho de filigranas de emaranhados. O jogo de elementos pictóricos reúne 30 anos de experimentações de Sonia em diversas áreas: cenografia, figurino, iluminação, te-atro, televisão, animação. O roteiro vem de uma frase de um estudo sobre as visões de Deus. O original foi pro-duzido em ecoline, caneta pantone e tintas guache e acrílica, depois digitalizado, para marcar, com precisão, os cortes para o vaza-mento do olho.

Labirintos do coração de sonia Paiva Texto Márcia Marques

Foto Gabriela Freitas

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Espaço do leitor

“Agradecemos pelo envio do exemplar da Revista Campus Repórter parabenizamos a todos, que par-ticiparam da elaboração deste importante informa-tivo, pelo Prêmio Expocom 2008. Será um privilégio receber os próximos exemplares”. Reitor da Universidade Federal do

Tocantins, professor Alan Barbiero.

Relação das instituições que agradeceram o envio da e solicitaram continuar recebendo a publicação:

o Universidade Estadual de Santa Cruzo Universidade Estadual de Londrinao Universidade Estadual de Montes Claroso Instituto de Estudos Superiores da Amazôniao Universidade Federal do Tocantinso Universidade de Taubaté

FotógraFos

Fábio TitoFlora EgéciaJanine MoraesPatrícia Banuth

Ilustrador

Gabriel Braga

Projeto gráFIco

Andressa AnholeteFábio TitoFlora EgéciaTalita Ferreira

revIsor

José Luiz Silva

caPa e contra-caPa

Janine Moraes

agradecImentos

Claudismar ZupirolliDourival MoraisFelipe FreitasJuce Morais

ExpedienteedItora executIva

Márcia Marques

edItores

David RenaultDione MouraGabriela FreitasMárcia MarquesSolano Nascimento

edItores de FotograFIa

Marcelo FeijóPedro Ladeira

secretárIa de redação

Bruna Sensêve

rePórteres

Bruna SensêveFernanda LoboFlávia MaiaGabriel CastroMarcus V. F. LacerdaMax MeloYvna Sousa

PARABÉNS!

Luiz Alfredo de SouzaRaphaela MoraisRener MoraisThiago CampeloDecanato de Assuntos ComunitáriosInstituto de Criminalística do DFSecretaria da Faculdade de Comunicação

é uma revista de reportagem se-mestral, produzida por professores e alunos das disciplinas Laboratório Campus Repórter e Ofi-cina Avançada de Planejamento Gráfico.

Faculdade de Comunicação/UnB - ano 3, nº 4, 2009.Diretor David Renault

Campus Universitário Darcy Ribeiro, Faculdade de Comunicação, ICC Ala NorteCEP: 70.910-900. Brasília/DFCaixa Postal: 04660Telefone (61) 3307-2461E-mail: [email protected]

Impressão Athalaia Gráfica e EditoraTiragem 4 mil exemplares