AA|EXTRA
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Olá, bem-vinda à sua nova vida. O PEC das domésticas, como era esperado, foi
aprovado. Um super avanço social para o Brasil. É óbvio que isso vai afetar a sua vida. Mas você
não vai ficar aí se fazendo de vítima, vai?
AGENDA AMIGA EXTRA! SÃO PAULO, 5 DE ABRIL 2013
Nº1
Não sejamos ingênuas de
achar que o impacto das
novas medidas não vai , a
medio prazo, influenciar
c o m p o r t a m e n t o s e
modificar hábitos de
consumo em mais setores
da economia brasileira do
que supõem nossas vãs
lideranças. E, a partir de
agora, o que temos que
perder tempo discutindo,
não é se os salários vão
ficar altos , inviáveis.
Temos que pensar em
c o m o v a m o s n o s
organizar como sociedade
p a r a a c o l h e r e s s a
transformação e cobrar de
f o r m a a r t i c u l a d a e
produtiva as mudanças
que devem se seguir a
esta nova realidade. Sua
empregada não vai mais
querer dormir no emprego
e você também não vai
poder ficar para as horas
e x t r a s e p i z z a s d o
e s c r i t ó r i o . S e u s
eletrodomésticos vão ter
q u e s e r i m p e c áve i s ,
f u n c i o n a i s , b a r a t o s .
(continua)
Boletins extraordinários, sobre assuntos úteis
Colaboração de luciana Cani
por Tetê Pacheco
Nº1
AGENDA AMIGA NEWS:) -1
As roupas vão precisar ser feitas de tecidos
geniais que dispensam o ferro de passar. O
mesmo para lençois e toalhas. Os produtos de
limpeza vão ter que ser de alta performance, vão
ter que ocupar menos espaço, porque na sua
nova vida, você vai querer viver num espaço
menor e mais controlável. Quem vai ser o louco a
querer viver num casarão sem ajuda para
limpeza?
E o transporte, as creches e escolas publicas? A
demanda vai crescer, ah vai. A partir das 18hs de
todos os dias, você vai precisar estar em casa com
as crianças. E essa conversa toda ainda é só a
pontinha da imensa transformação que vem por
aí. Prepare o espírito de colaboração da sua
família, ensine seus filhos desde pequenos a
arrumar a cama, levantar o prato da mesa. Trocar
o pedir pelo fazer. E se tiver tempo ainda, escolha
bem o parceiro da sua vida, porque você não vai
mais, minha querida, dar conta de tudo. E isso é
certo.
AGENDA AMIGA NEWS:) -3
X
“A medida da inteligência é a habilidade
de mudar.” Albert Einstein
AGENDA AMIGA NEWS:) -4
Vanda vinha do interior da Bahia e de dentro de um livro de Charles Dickens. Caçula de nove filhos, aos sete anos foi dada pela mãe, incapaz de sustentá-la, a uma conhecida. Trabalhou de graça na casa da mulher até os 15, então pegou um ônibus e fugiu para São Paulo. Quando eu ou minhas irmãs a importunávamos com nossas demandas de criança mimada, nos contava histórias da infância de gata borralheira, fazia-nos apertar seu nariz, quebrado por uma das filhas da "patroa" com um rolo de amassar pão e nos expulsava da cozinha: "Sai pra lá, peste, e me deixa acabar essa janta!".
Vanda cozinhava, limpava, lavava roupa e passava. Morava num quartinho nos fundos da casa, ao lado do tanque e da máquina de lavar roupa, aonde era vedada a minha entrada. Às vezes, a via pela porta entreaberta: de bobes na cabeça, falando ao telefone ou pintando as unhas dos pés, sob o lusco-fusco da TV preto e branco.
Nos fins de semana, arrumava-se toda e ia para a casa de umas primas, na periferia. Um domingo, levou-me junto, para um churrasco. Lembro de ter me saído estranhamente bem no futebol com os meninos da rua, lembro de mulheres curiosas pegando no meu cabelo loiro, lembro das gargalhadas que explodiram quando apontei a carne na grelha e perguntei se era picanha.
Levei muitos anos para entender a graça da minha pergunta. Levei muitos anos, também, para entender por que não nos referíamos à Vanda como "nossa empregada", mas como "a moça que trabalha lá em casa" --tentativa inútil de contornar o incômodo daquela anacrônica e persistente relação.
Vanda viveu e trabalhou conosco por 15 anos. Depois que crescemos e saímos de casa, minha mãe e meu padrasto resolveram não ter mais uma empregada morando lá. Falaram com amigos e arrumaram outra família para Vanda trabalhar. A patroa nova foi pegá-la uma noite, depois do jantar --a mudança da Vanda coube no porta-malas do carro.
Fiquei dez anos sem vê-la. Em 2011, caminhando por uma praia do litoral norte, ouvi um grito: "Tunim!". Ali estava ela, fazendo um castelo de areia, com os filhos da patroa. "Meu menino, meu menino!", ela repetia, me abraçando e chorando --eu fiquei tocado, mas não chorei. Naquela tarde, contou-me que ia se aposentar e voltar pra Bahia, onde estava terminando de construir uma casa, com suas economias. Ano passado, ela voltou: aos 60 e tantos anos, pela primeira vez desde os sete, dormiu num quarto que não pertencia a seus patrões.
Estranha sensação ao escrever esta crônica. Parece que falo da minha infância de menino de engenho, no interior de Pernambuco, no século 19, não da infância de um filho de jornalistas, numa casa geminada no Itaim Bibi, no final do século 20. Estranheza que confirma a profecia de Joaquim Nabuco (relembrada por Caetano Veloso, em "Noites do Norte"): "A escravidão permanecerá por muitos anos como a característica nacional do Brasil".
Característica que, lentamente, vamos deixando para trás, no início do século 21. Lentamente, pois ser empregada com FGTS, caixa de supermercado ou atendente de telemarketing ainda é muito pouco diante do que a vida pode oferecer -mesmo comendo picanha ou tomando banho com sabonete Dove.
por Antonio Prata
PEC E PAGUE
Antonio Prata é escritor. Publicou livros de contos e crônicas, entre eles "Meio Intelectual, Meio de Esquerda" (editora 34). Escreve às quartas na versão impressa de "Cotidiano" da Folha de SPaulo, onde foi, originalmente, publicado esse textom em 03/04/2013