PECORARO, Rossano. Niilismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ...
A voluptuosidade do nada: o Niilismo na prosa de Machado de Assis
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A UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS LITERRIOS
VITOR CEI SANTOS
A VOLUPTUOSIDADE DO NADA:
O NIILISMO NA PROSA DE MACHADO DE ASSIS
Belo Horizonte
2015
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Vitor Cei Santos
A VOLUPTUOSIDADE DO NADA:
O NIILISMO NA PROSA DE MACHADO DE ASSIS
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Estudos Literrios da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a
obteno do ttulo de Doutor em Estudos Literrios.
rea de concentrao: Teoria da Literatura e Literatura
Comparada.
Linha de pesquisa: Literatura, Histria e Memria
Cultural.
Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius de Freitas.
Belo Horizonte
2015
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Em memria de Krishnamurti Jareski
a vida inteira que podia ter sido e que no foi.
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AGRADECIMENTOS
Quem leu Humano, demasiado humano talvez reconhea estas palavras que
Nietzsche escreveu no 180 sobre o esprito coletivo: Um bom escritor no tem apenas o seu
prprio esprito, mas tambm o esprito de seus amigos. Durante o tempo lento da leitura e
da escrita participaram de minha formao multidisciplinar e pluri-institucional muitos
amigos, colegas, professores e alunos, a quem agradeo de corao. Na origem de tudo, o
parente como melhor amigo agradeo aos meus pais pela educao e pelo apoio
incondicional que eu recebi; minha irm, pela tarefa do tradutor e pela presena virtual em
minhas ausncias.
Uma palavra especial de apreo deve ser endereada ao Marcus Vinicius de
Freitas, muito mais que orientador, amigo de sempre, que generosamente me acolheu como
orientando, me propiciando desfrutar de um estimulante e rigoroso debate de ideias, o que me
ajudou a ser mais claro e consciente nos meus argumentos.
Agradeo Ligia Chiappini, minha coorientadora no Instituto de Estudos Latino-
Americanos da Freie Universitt Berlin, pela valiosa superviso durante o Programa de
Doutorado Sanduche no Exterior, quando parte importante da pesquisa para este trabalho foi
feita. E, em seu nome, agradeo tambm ao grupo de pesquisadores por ela coordenado, com
os quais eu tive a oportunidade de debater resultados parciais desta pesquisa.
Agradeo a Marcos Rogrio Cordeiro e Olmpio Pimenta, que me privilegiaram
com uma atenciosa e valiosa interlocuo iniciada quando esta tese ainda estava na fase dos
projetos e esboos, me ofereceram leituras minuciosas no momento da qualificao e
aceitaram participar da banca de defesa. Tambm agradeo a Fabola Padilha, Georg Otte,
Jacyntho Lins Brando e Wilberth Salgueiro, interlocutores em fases distintas desta pesquisa,
por aceitarem o convite para compor a banca examinadora.
Minha gratido ao Jos Pedro Luchi, que generosamente me ofereceu um lar em
meu primeiro ano de residncia em Belo Horizonte; sem essa inestimvel gentileza do
apartamento emprestado o meu primeiro semestre na condio de doutorando sem-bolsa teria
sido penoso.
com alegria que agradeo aos meus bravos companheiros dos anos de
experimento em BH: Andr Tessaro Pelinser, Maria Lopes, Daniel Filipe Carvalho, Eduardo
Lima, Francigelda Ribeiro, Herlany Siqueira, Joo B. Botton, Leandro Lelis, Leticia Malloy,
Rizzia Rocha, Roberta Bandeira, Sarah Forte e Sthefanny Gozze o acervo de experincias
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que compartilhamos em nossas interaes, acadmicas ou extra-acadmicas, direta ou
indiretamente deixaram marcas nesta tese. Agradeo tambm a Gil Porto, Ana Cludia Silva e
Maria Auxiliadora Eleuterio, pela parceria na temporada de Barroso Jnior.
Agradeo aos professores e colegas do Ps-Lit e da Faculdade de Letras da
UFMG, pela aprendizagem e estmulo permanente: a Claudia Campos Soares, Jos Amrico
Miranda, Lucia Castello Branco, Luciane Correa, Marli Fantini e Reinaldo Marques, pelas
aulas estimulantes; a Maria Ceclia Boechat e Roberto Said, pela interlocuo pontual em
eventos; ao Alex Sander Luiz Campos, meu consultor para assuntos machadianos; Renata
Moreira, pelas dicas preciosas; a Leda Maria Martins, Graciela Ravetti e Myriam vila,
coordenadoras do Ps-Lit; a Eliete Pinto, Letcia Magalhes e Norival Luiz, da secretaria.
Schopenhauer assevera que uma reunio de filsofos uma contradictio in
adijecto, tendo em vista que filsofos nunca estariam em grupos. Pois o Programa de Ps-
Graduao em Filosofia da UFMG, onde eu encontrei um exemplar ambiente de debate
intelectual e desfrutei de rigorosa e estimulante interlocuo filosfica, prova o contrrio.
Agradeo aos professores Ivan Domingues, Jos Raimundo Maia Neto e Rodrigo Duarte, com
quem fiz disciplinas e pude discutir alguns dos tpicos desta tese; um agradecimento especial
a todos os membros do Grupo Nietzsche da UFMG, coordenado por Rogrio Lopes:
Alexandra Lopes, Alice Medrado, Alice Melo, Ana Marta Lobosque, Bruno Vignoli, Daniel
Carvalho, Olmpio Pimenta, Oscar Rocha, Renan Cortez, Silvia Lage, Vagner Acacio,
Wander de Paula e William Mattioli; agradeo tambm aos colegas do conselho editorial da
Outramargem: revista de filosofia Giorgia Cecchinato, Hugo Prado, Meline Costa Souza e
os j mencionados Daniel, Joo e Leandro.
O ano de experimento em Berlim, que me ensinou o quanto pode ser frtil estar
fora do nosso pas, me encheu de orgulho e de saudades principalmente de saudades.
Agradeo Suzanne Klengel, coordenadora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da
Freie Universitt Berlin, por sua hospitalidade e comentrios ao projeto; ao Helmut Heit, pelo
simpaticssimo acolhimento no Berliner Nietzsche-Colloquium, da Technische Universitt
Berlin; ao Radouane Belakhdar, pelas estimulantes aulas de alemo; ao Joo Claudio Arendt,
pelo pontap inicial; Sarita Brandt, pelas lies de traduo; a Gustavo de S, Pedro Lima,
Slvia Nauroski de Irrgang e Teresa Bueno Schn, pelos colquios; e a todos que tornaram o
meu PDSE mais caloroso e multicultural: Annette Prfer, Daniel e Herlany, Franziska
Brendel, Lorenzo de Donato, Magdalena Panas, Nikol Nagy, Marco Schlaegel, Patricia
Dvalos, Rizzia e a todos os colegas do Schlachtensee.
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Meus cumprimentos de boa amizade aos professores e colegas da Universidade
Federal do Esprito Santo, onde tudo comeou: Adolfo Oleare, Bernardo Barros Coelho de
Oliveira, Claudia Murta, Fernando Mendes Pessoa, Hudson Ribeiro, Lino Machado, Srgio da
Fonseca Amaral e especialmente a Fabola Padilha e Wilberth Salgueiro, que aceitaram o
convite para participar da banca examinadora.
Agradeo a todos os professores e colegas que conversaram ou debateram comigo
os esboos, recortes e insights desta tese que apresentei em inmeras conversas informais,
aulas e eventos acadmicos ao longo desses anos. Comunicaes e palestras sobre o tema
desta tese foram apresentadas nos seguintes locais: Universidade Federal do Esprito Santo,
em Vitria-ES; Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte-MG; Instituto
Federal do Esprito Santo, em Linhares-ES; Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em So
Leopoldo-RS; Apoena: grupo de estudos Schopenhauer-Nietzsche, em Fortaleza-CE; Freie
Universitt Berlin e Technische Universitt Berlin, na capital alem; Universit de Paris-
Sorbonne (Paris IV), na capital francesa; Universidade de Atenas, na Grcia; Sociedad
Filosfica del Uruguay, em Montevidu. Daqueles com quem pude discutir, em diferentes
ocasies formais, algumas das ideias que integram esta tese, recordo especialmente de Andrea
Werkema, Clademir Araldi, Marcio Seligmann-Silva, Paulo Margutti, Paul van Tongeren,
Roberto Barros, Ruy de Carvalho e Thas Castro.
Agradeo s instituies sem as quais esta pesquisa no seria possvel: ao
Programa de Ps-Graduao em Estudos Literrios da UFMG (Ps-Lit), pelo apoio
institucional; Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pela
concesso da bolsa que me permitiu estabelecer residncia em Belo Horizonte e me dedicar
exclusivamente s atividades acadmicas; Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de
Nvel Superior (CAPES), pelo apoio financeiro e institucional ao meu estgio na Freie
Universitt Berlin, atravs da concesso de bolsa do Programa de Doutorado Sanduche no
Exterior (PDSE), entre maro de 2013 e fevereiro de 2014; ao Lateinamerika-Institut da FU-
Berlin, que me recebeu como pesquisador visitante.
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Murchas,
As rosas j no surtem
seus efeitos de rosas.
Tudo tem seu tempo de florescer,
as revolues
os poemas,
as palavras,
as crianas,
tudo tem seu tempo de apodrecer.
Miguel Marvilla, Ordem natural das coisas. Lio de labirinto.
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RESUMO
O niilismo na obra de Machado de Assis permanecia um tema no estudado. O objetivo geral
desta tese argumentar que o niilismo um dos Leitmotive da prosa machadiana, aparecendo
como perspectiva a ser galhofada. As principais reivindicaes do presente estudo so: a
prosa de Machado de Assis, com a pena da galhofa, conjuga filosofia e literatura de tal modo
que contedo filosfico e forma literria tornam-se indissociveis; o niilismo a dominante
cultural do Ocidente no sculo XIX; Machado de Assis teve uma aguda conscincia do carter
complexo e multifacetado da presena do niilismo em seu tempo.
Palavras-chave: Machado de Assis. Nietzsche. Niilismo. Morte de Deus. Galhofa.
ABSTRACT
Machado de Assis on nihilism remained an unstudied subject. The main purpose of this thesis
is to argue that nihilism is a leitmotif of Machados prose, presented as a perspective to be
mocked. The fundamental claims of the present thesis are: Machado de Assis prose, with a
playful pen, combines philosophy and literature in such a way that philosophical content and
literary form become inseparable; nihilism is the cultural dominant in the West in the
nineteenth century; Machado de Assis had an acute awareness of the complex and
multifaceted nature of the presence of nihilism in his time.
Keywords: Machado de Assis. Nietzsche. Nihilism. Death of God. Mockery.
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SUMRIO
INTRODUO.......................................................................................................................12
1. COMO SE FILOSOFA COM O MACHADO.................................................................23
1.1. Olhares da crtica machadiana sobre o problema do niilismo.....................................24
1.2. Nenhuma filosofia?..........................................................................................................36
1.3. A tinta da melancolia e a pena da galhofa.....................................................................47
1.4. A histria como loureira..................................................................................................61
1.5. O perspectivismo machadiano........................................................................................65
2. A EMERGNCIA DO NIILISMO..................................................................................68
2.1. O pessimismo como protoforma do niilismo.................................................................69
2.1.1. O cristianismo como instituio promotora de niilismo.................................................70
2.1.2. O desconsolo do Eclesiastes...........................................................................................76
2.1.3. Machado leitor de Pascal...............................................................................................81
2.1.4. Pascal e a condio miservel da existncia humana....................................................85
2.1.5. Schopenhauer, o filsofo dos niilistas.............................................................................88
2.1.6. Machado leitor de Schopenhauer...................................................................................93
2.2. Um sculo fatigado e esfalfado........................................................................................98
2.3. O louco e a viva de Deus..............................................................................................105
2.4. O niilismo e a Rssia......................................................................................................116
2.5. Resistncia ao niilismo...................................................................................................132
2.5.1. A arte como contramovimento ao niilismo...................................................................134
2.5.2. O humor como resposta ao niilismo.............................................................................140
3. ARQUITETURA DE RUNAS........................................................................................145
3.1. O naufrgio da existncia: niilismo e modernidade capenga em Quincas Borba.....146
3.1.1. Modernidade capenga...................................................................................................147
3.1.2. Nufragos da existncia, arquitetos de runas..............................................................151
3.1.3. Humanitismo e niilismo................................................................................................165
3.2. Nada em cima de invisvel: niilismo e modernidade de caranguejo em Esa e
Jac.........................................................................................................................................172
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3.2.1. Do ttulo: intertexto.......................................................................................................174
3.2.2. Modernidade de caranguejo.........................................................................................178
3.2.3. O niilismo poltico de Pedro e Paulo............................................................................180
3.2.4. O niilismo poltico de Batista........................................................................................184
3.2.5. Filosofia das Tabuletas: niilismo poltico e desvalorizao dos valores.....................187
3.2.6. A paralisia da vontade de Flora: radical rejeio de valor e desejo...........................193
4. O CANSAO QUE OLHA PARA TRS.......................................................................198
4.1. Narradores do tempo perdido.......................................................................................199
4.2. Brs Cubas e a voluptuosidade do nada......................................................................203
4.2.1. A terra e o estrume........................................................................................................206
4.2.2. As rabugens de pessimismo e o enxurro da vida..........................................................211
4.2.3. O delrio........................................................................................................................216
4.2.4. Das negativas................................................................................................................225
4.3. A condio casmurra de Bento Santiago: o prazer das dores velhas........................229
4.3.1. A condio casmurra: o bicho-homem interiorizado...................................................231
4.3.2. O cime como protoforma do ressentimento................................................................238
4.3.3. Ressentimento: a crueldade que se volta para trs......................................................244
4.4. Conselheiro Aires e a vida como um ofcio cansativo.................................................252
4.4.1. Esse Aires......................................................................................................................255
4.4.2. Filosofia do compasso: o tdio controvrsia.............................................................261
4.4.3. Fadiga geral da vontade de viver: os ideais ascticos.................................................266
4.4.4. Asceta gamenho............................................................................................................272
EPLOGO..............................................................................................................................282
Em que se explica o explicado..............................................................................................283
Tentativa de autocrtica........................................................................................................285
REFERNCIAS....................................................................................................................288
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INTRODUO
O objetivo geral desta tese argumentar que o niilismo um dos Leitmotive da
prosa de Joaquim Maria Machado de Assis, aparecendo como perspectiva a ser galhofada.
Embora o niilismo na obra do escritor brasileiro apresente vrias afinidades eletivas com o
niilismo europeu, ele estrutura-se a partir de questes machadianas especficas que percorrem
toda a sua obra.
Leitmotiv uma tcnica de composio musical caracterizada por um tema
meldico ou harmnico destinado a caracterizar um personagem, uma situao ou um estado
de esprito e que, na forma original ou por meio de transformaes, acompanha os seus
mltiplos reaparecimentos ao longo de uma obra. Por analogia, refere-se ideia ou frmula
que reaparece de modo constante em uma obra literria, expressando uma preocupao
dominante ou um tema fundamental. Embora seja possvel uma traduo literal motivo
condutor o termo alemo consensualmente mantido e registrado em dicionrios de lngua
portuguesa1.
As principais reivindicaes desta tese so: (1) a prosa de Machado de Assis, com
a pena da galhofa, conjuga filosofia e literatura de tal modo que contedo filosfico e forma
literria tornam-se indissociveis; (2) o niilismo a dominante cultural do Ocidente no sculo
XIX; (3) Machado de Assis teve uma aguda conscincia do carter complexo e multifacetado
da presena do niilismo em seu tempo.
O conceito de dominante cultural, que tomo emprestado de Fredric Jameson, parte
do princpio de que de tempos em tempos ocorrem modificaes sistmicas na histria da
civilizao, ou ao menos alteraes fundamentais na esfera da cultura, que geram uma nova
concepo de mundo predominante. O que no significa afirmar a constituio de uma ordem
social totalmente nova, mas apenas o surgimento de um novo paradigma, ou viso de mundo
(Weltanschauung), que permite a presena e coexistncia de uma gama de caractersticas
muito distintas, ainda que subordinadas dominante: Descrev-la em termos de hegemonia
cultural no significa sugerir uma homogeneidade cultural massificada e uniforme do campo
social, mas exatamente levar em conta sua coexistncia com outras foras resistentes e
heterogneas que ele tem tendncia a dominar e a incorporar2. Nesse sentido, o niilismo deve
1 LEITMOTIV. In: Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa 3.0, s. p.
2 JAMESON. Ps-modernismo, p. 176. Grifo original.
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13
ser compreendido como categoria maior para a anlise das dinmicas culturais em operao
nas mltiplas esferas de interao sociocultural no sculo XIX.
O ttulo A voluptuosidade do nada surge a partir de uma expresso utilizada pela
personagem Pandora no captulo VII, O delrio, de Memrias pstumas de Brs Cubas:
Creio; eu no sou somente a vida; sou tambm a morte, e tu ests prestes a devolver-me o
que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada3. Esta metfora
determina o ponto de partida do caminho desta tese, na medida em que cunha um horizonte
prprio de discusso do problema filosfico do niilismo.
O conceito de niilismo, que no tem uma definio unvoca, provm do francs
nihilisme e do latim nihil, nada, significando reduo ao nada, no-existncia. Sendo uma
palavra polissmica, mesmo em seu significado mais comum, dicionarizado, recebe distintas
acepes:
1 reduo ao nada; aniquilamento; no existncia
2 ponto de vista que considera que as crenas e os valores tradicionais so
infundados e que no h qualquer sentido ou utilidade na existncia
3 total e absoluto esprito destrutivo, em relao ao mundo circundante e ao
prprio eu
4 Rubrica: filosofia.
no nietzschianismo, negao, declnio ou recusa, em curso na histria
humana e esp. na modernidade ocidental, de crenas e convices com seus respectivos valores morais, estticos ou polticos que ofeream um sentido consistente e positivo para a experincia imediata da vida
5 rejeio radical s leis e s instituies formais
6 Rubrica: histria, poltica.
ideologia de um grupo revolucionrio russo da segunda metade do sXIX,
que pregava a destruio das instituies polticas e sociais para abrir
caminho a uma nova sociedade, mesmo empregando medidas extremas
7 ao anarquista, terrorista ou revolucionria4.
O problema do niilismo alcanou grande importncia no sculo XX, a ponto de
despertar o esprito de investigao de pensadores to heterogneos quanto Martin Heidegger,
Theodor Adorno, Gilles Deleuze, Vilm Flusser, Marshall Berman e Benedito Nunes,
incluindo autores ainda em atividade como Jrgen Habermas, Daniel Bell e Gianni Vattimo,
para no citar em demasia. As obras desses pensadores assinalam que o conceito de niilismo,
alm de fazer parte da histria do pensamento ocidental, exerce forte influncia no debate
filosfico contemporneo, constituindo um dos grandes desafios do terceiro milnio.
3 ASSIS. Memrias pstumas de Brs Cubas, VII, p. 634. Para as citaes em portugus feitas nesta tese, optei
por manter a grafia original dos textos, sendo que, alguns deles, no esto atualizados conforme o ltimo acordo
ortogrfico brasileiro vigente desde 2009. 4 NIILISMO. In: Dicionrio eletrnico Houaiss da lngua portuguesa 3.0, s. p.
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14
Sintomas contemporneos do niilismo seriam: os arcaicos ideais ascticos de
renncia de si, mortificao do ego e do corpo, jejum voluntrio, castidade autoimposta5; a
reduo de tudo, inclusive do valor humano, aos termos do mercado e do consumo6; o
skinhead destruindo o patrimnio pblico de seu bairro, enquanto os vizinhos, indiferentes,
observam a cena como se no fosse com eles7; o niilismo poltico, segundo o qual a poltica
no vale nada e no leva a nada; o sujeito-demiurgo, que acredita poder tudo, sem qualquer
parmetro tico a presidir a escala de valores e a orientar as suas aes8; a desenfreada
explorao da natureza e a submisso do ser humano dinmica dos processos tcnicos de
produo e circulao9.
A discusso sobre essa problemtica remonta ao sculo XIX, quando niilismo
comeou a ser um termo de frequente circulao entre escritores, crticos e filsofos europeus.
Contumazmente associado a Arthur Schopenhauer10
, o conceito ganhou destaque na literatura
russa, em obras de autores como Fidor Dostoievski, Nikolai Leskov e Ivan Turguniev. O
autor de Pais e Filhos ficou clebre por ter popularizado a palavra e equivocadamente
costuma receber sua paternidade.
O primeiro filsofo que se dedicou a pensar o niilismo como um dos conceitos
centrais de sua obra foi um contemporneo de Machado de Assis, Friedrich Wilhelm
Nietzsche, autor que, no primeiro quinqunio do sculo XX, comeou a se tornar uma
verdadeira moda na cena intelectual brasileira11
, mas que no foi citado por Machado,
tampouco consta na sua biblioteca.
Nietzsche, ainda que no tenha feito nenhum estudo sistemtico sobre o niilismo,
apresentando suas reflexes sobre o problema em trechos esparsos de suas obras e
manuscritos, consagrou-se como o autor oitocentista a partir do qual a reflexo sobre o
niilismo alcanou seu mais alto grau12
. Aps Nietzsche, segundo Theodor Adorno, a
filosofia no pde mais renunciar a esse termo13.
5 Cf. PIMENTA. Nietzsche, Thomas Mann e a superao do niilismo, p. 170.
6 Cf. BERMAN. Tudo o que slido desmancha no ar, p. 107.
7 Cf. FEITOSA. No-nada. Formas brasileiras do niilismo, p. 4.
8 Cf. DOMINGUES. A filosofia no terceiro milnio, p. 37-39.
9 Cf. ARALDI. Nietzsche: do niilismo ao naturalismo moral, p. 59.
10 Por ora, necessrio apenas deixar claro que o termo Nihilismus, ao contrrio de nihil, no aparece sequer
uma vez na filosofia do autor. Trata-se de uma interpretao tardia, sobretudo devido influncia nietzscheana,
descrever a filosofia schopenhaueriana como niilista . DE PAULA. Nietzsche e a transfigurao do pessimismo schopenhaueriano, p. 73. 11
Cf. VERSSIMO. Um Nietzsche diferente, p. 125-126. 12
A fecundidade da bibliografia crtica e terica sobre o niilismo na obra de Nietzsche inversamente
proporcional que se refere obra de Machado de Assis. A fortuna crtica do filsofo tem destacado, nas ltimas
dcadas, o niilismo como um dos seus conceitos fundamentais. 13
ADORNO. Dialtica Negativa, p. 314.
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15
Identificado por Nietzsche como o esgotamento da capacidade humana de criao
de sentido e de valor, o niilismo ganhou repercusso a partir da situao de crise dos valores
da segunda metade do sculo XIX, no contexto do problema axiolgico gerado pela imagem
cientfica de um mundo mecanicista e essencialmente desprovido de sentido14.
O niilismo, radical rejeio de valor, sentido, desejo15, designado como o
fenmeno descomunal do esgotamento dos valores e dos ideais que sustentavam as esferas
valorativas do mundo ocidental moderno: artes, poltica, economia, metafsica, esttica,
cincia, moral, religio e at mesmo o chamado senso comum, que orienta os hbitos
cotidianos das pessoas.
Ao longo de suas reflexes fragmentrias, em estilo aforismtico e perspectivista,
Nietzsche analisa o problema do niilismo em suas nuances, apresentando segmentaes do
conceito, com destaque para as seguintes acepes: incompleto (unvollstndige), ativo
(aktiver), passivo (passiver) e completo (vollkommener). Quando o lugar e a funo outrora
ocupados por Deus e pelos ideais suprassensveis passam a ser ocupados por novos ideais
(racionalidade, ordem e progresso, liberdade, igualdade e fraternidade), isto , quando o
homem moderno quebra os dolos religiosos em nome da autonomia da razo, mas continua
desvalorizando a vida em nome de valores pretensamente eternos e absolutos, porm, vazios
(bem, mal, progresso, verdade) tem-se o niilismo incompleto. Nada o nome dessas figuras
difanas do ideal. Alimentado pelos autores que criticam o projeto moderno com o intuito de
rejuvenesc-lo, aprimor-lo ou reform-lo, o niilismo incompleto se manifesta nas reas das
cincias naturais e da histria como mecanicismo, darwinismo ou positivismo, nas esferas da
poltica e da economia como nacionalismo ou anarquismo, e no campo das artes como
esteticismo ou naturalismo.
Dentro do contexto descrito acima, o niilismo torna-se uma condio normal,
com duplo sentido: niilismo ativo e passivo. O primeiro aparece como a violenta radicalizao
da vontade de destruir, de ir alm do mundo esvaziado de valores, tal como observvel nos
niilistas e anarquistas russos do sculo XIX, que exprimem o sinal de uma fora insuficiente
para, produtivamente, instituir novamente uma finalidade, um porqu, uma crena. O niilismo
passivo, cujo maior exemplo o budismo, pe em cena um estado patolgico intermedirio:
as suas foras produtivas ainda no so suficientemente fortes e a decadncia ainda hesita. Ele
surge em sociedades que se encontram desestruturadas, caracterizando a perda do sentido dos
14
NIETZSCHE. A Gaia Cincia, 373, p. 277. 15
NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1885-1887, p. 125. Todas as referncias em lngua estrangeira
citadas na tese tm traduo minha.
-
16
valores estabelecidos. Motivo de ressentimento, regresso e declnio, incapaz de criar novos
valores:
Niilismo como decadncia e diminuio do poder do esprito: o niilismo
passivo como um sinal de fraqueza: a fora do esprito pode estar cansada,
esgotada, de modo que as metas e valores at agora so inadequados e
indignos de f de modo que a sntese de valores e metas (alicerce sob o qual se baseia toda cultura forte) se dissolve, de modo que os valores
individuais fazem guerra entre si: decomposio que tudo refresca, cura,
tranquiliza, aturde, em primeiro plano, sob diferentes disfarces, religioso ou
moral, poltico ou esttico, etc16
.
Nietzsche quer superar o niilismo passivo a partir de uma transvalorao de todos
os valores, instituindo o niilismo completo, aquele que promove e acelera o processo do
crepsculo dos dolos. O que significa no apenas destruir os antigos valores, mas tambm o
prprio espao que ocupavam o do mundo ideal, pretensamente verdadeiro. Assim, alcana-
se a possibilidade de se completar o niilismo e ganhar a condio necessria instaurao de
novas maneiras de avaliar17
.
O filsofo do martelo se considerava o primeiro a ser capaz de levar s ltimas
consequncias a transvalorao de todos os valores, abolindo a distino entre mundo sensvel
e suprassensvel, preparando terreno para a criao de novos valores afirmadores da vida.
Contudo, ele ainda no seria capaz de criar valores afirmativos, o que seria uma tarefa
destinada aos filsofos do futuro.
Ainda de acordo com Nietzsche, o niilismo parte destrutivo, parte irnico18. E
Machado de Assis retrata o niilista de forma irnica. Exemplar o conto ltimo Captulo,
narrado pelo suicida Matias Deodato de Castro e Melo. Cansado e aborrecido, aceitando a
insignificncia da vida e da morte, o narrador entendia que no podia achar a felicidade em
parte alguma, at se deparar com um homem que, apesar de vtima de grandes reveses,
caminhava risonho e aparentemente feliz, contemplando os sapatos novos. Motivado por esse
encontro, o narrador determina em seu testamento que o valor de sua modesta herana seja
empregado em sapatos e botas novas, que se distribuiro por um modo indicado, fazendo
certo nmero de venturosos:
16
NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1885-1887, p. 351. 17
Foge ao escopo desta tese uma discusso sobre a tentativa de uma transvalorao de todos os valores (Ein Versuch der Umwerthung aller Werte), expresso cunhada por Nietzsche em uma anotao de 1884. Cf.
NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1884-1885, p. 218; BROBJER. The Origin and Early Context of the
Revaluation Theme in Nietzsches Thinking. 18
NIETZSCHE. Nachgelassene Fragmente 1885-1887, p. 353.
-
17
No fim de dez minutos, vi passar um homem bem trajado, fitando a mido
os ps. Conhecia-o de vista; era uma vtima de grandes reveses, mas ia
risonho, e contemplava os ps, digo mal, os sapatos. Estes eram novos, de
verniz, muito bem talhados, e provavelmente cosidos a primor. Ele levantava
os olhos para as janelas, para as pessoas, mas tornava-os aos sapatos, como
por uma lei de atrao, anterior e superior vontade. Ia alegre; via-se-lhe no
rosto a expresso da bem-aventurana. Evidentemente era feliz; e, talvez,
no tivesse almoado; talvez mesmo no levasse um vintm no bolso. Mas ia
feliz, e contemplava as botas. A felicidade ser um par de botas? Esse
homem, to esbofeteado pela vida, achou finalmente um riso da fortuna.
Nada vale nada. Nenhuma preocupao deste sculo, nenhum problema
social ou moral, nem as alegrias da gerao que comea, nem as tristezas da
que termina, misria ou guerra de classes; crises da arte e da poltica, nada
vale, para ele, um par de botas. Ele fita-as, ele respira-as, ele reluz com elas,
ele calca com elas o cho de um globo que lhe pertence. Da o orgulho das
atitudes, a rigidez dos passos, e um certo ar de tranquilidade olmpica... Sim,
a felicidade um par de botas19
.
A mxima nada vale nada, ao mesmo tempo em que aponta para o niilismo
enquanto experincia histrica da ausncia de fundamento e da negatividade radical, mostra a
ironia com a qual o escritor brasileiro repetidamente aponta que os conceitos importados da
Europa sofrem deslocamentos no Brasil, muitos deles risveis.
Inegavelmente a expresso do niilismo no Brasil diferente da sua expresso na
Europa. Nietzsche tambm j alertava para a intrnseca relao entre conceito e contexto e os
riscos da descontextualizao. Se costumeiramente a comunidade cientfica compreende os
termos europeu e ocidental como sinnimos20
, enquadrando maquinalmente as ex-colnias
europeias no mundo ocidental, o filsofo alemo distinguia o niilismo europeu do niilismo
budista e do niilismo russo, admitindo que o fenmeno no possui uma histria universal.
Pensemos, pois, o niilismo tal qual aparece como Leitmotiv na obra do escritor brasileiro
Machado de Assis, dando fisionomia prpria ao pensamento nacional21.
O niilismo europeu, a despeito de sua inteno de abrangncia universal, qui
fizesse no Brasil oitocentista efeito de ideologia estrangeira, localizada e relativa uma ideia
fora do lugar: uma roupa entre outras, muito da poca, mas desnecessariamente apertada22,
como diria Roberto Schwarz. Por isso, se o niilismo ocupa espao importante na obra de
Machado, como reivindica esta tese, o tratamento galhofeiro, como tambm pode-se atestar
19
ASSIS. Histrias sem data, p. 363. Grifo meu. 20
Sobre as acepes das palavras Europa e Ocidente ao longo da histria cf. DUSSEL. 1492. El encubrimiento
del otro, p. 169-173. 21
ASSIS. Notcia da atual literatura brasileira, p. 1203. Existe um niilismo brasileira? Ou o niilismo teria se
globalizado de tal forma que as diferenas regionais acabaram sendo absorvidas e anuladas? O tema abordado
de forma introdutria por Feitosa (Cf. No-nada. Formas brasileiras do niilismo) e Domingues (Cf. A filosofia no
3 milnio). 22
SCHWARZ. Ao vencedor as batatas, p. 27.
-
18
em crnica da srie A Semana, publicada no jornal Gazeta de Notcias em 26 de junho de
1892:
O niilismo possui a vantagem de matar logo. E depois misterioso,
dramtico, pico, lrico, todas as formas da poesia. Um homem est jantando
tranquilo, entre uma senhora e uma pilhria, deita a pilhria senhora, e,
quando vai a erguer um brinde... estala uma bomba de dinamite. Adeus,
homem tranqilo; adeus, pilhria; adeus, senhora23
.
A conscincia do carter historicamente complexo do niilismo, rara em um
escritor brasileiro da poca, confere ao estudo do niilismo na obra de Machado de Assis um
valor que eu suponho ser no apenas literrio, mas tambm histrico e filosfico. Se o valor
histrico da obra machadiana j foi apontado por crticos renomados como Raimundo Faoro,
Roberto Schwarz, John Gledson e Sidney Chalhoub, a densidade filosfica de Machado,
essencial compreenso de sua obra, parece ser um consenso na fortuna crtica, como
observou Miguel Reale24
. Esse autor, como bem definiu Jacyntho Lins Brando, no foi
apenas escritor, mas igualmente pensador e, sobretudo, pensador da cultura brasileira25.
preciso reconhecer, pois, que a fico tambm um modo de pensamento26,
compreendendo a literatura machadiana como ela mesma pensante, como repositrio de
conceitos.
A despeito de Machado ser o primeiro autor brasileiro a abordar o problema do
niilismo de forma consistente, o assunto recebeu pouca e superficial ateno da crtica,
permanecendo um terreno ainda no suficientemente explorado. Verdade que,
esporadicamente, alguns poucos intrpretes ocuparam-se da questo, mas apenas como um
interesse subsidirio (conforme ser visto na primeira seo do captulo I). O presente estudo
tem o intuito de preencher esta lacuna e argumentar a favor da relevncia do tema em questo.
Para tratar desse assunto, tentarei colocar em evidncia uma caracterstica que no
foi ainda inteiramente reconhecida pela crtica machadiana, a saber, que o estatuto do termo
niilismo no somente de ordem filosfica ou psicolgica, mas tambm histrica, o que
quer dizer que a explicao de sua lgica no se esgota na crtica biogrfica ou no nvel do
discurso, seja literrio ou filosfico. enquanto factum que o niilismo deixa suas marcas na
literatura machadiana e nessa perspectiva que ser estudado: a realidade do mundo e do ser
se torna, na narrativa ficcional, componente de uma estrutura literria, permitindo que esta
23
ASSIS. A Semana, p. 899. 24
Cf. REALE. A filosofia na obra de Machado de Assis, p. 128. 25
BRANDO. A Grcia de Machado de Assis, p. 128. 26
NUNES. Machado de Assis e a filosofia, p. 9.
-
19
seja estudada em si mesma, como algo autnomo27. Isto posto, esta tese no adota uma
perspectiva sociolgica que visa interpretar a obra como documento de poca, a partir de uma
instncia verificvel e externa fico. Antes, proponho uma leitura que suspenda
preconceitos e no atribua um sentido unvoco obra de Machado de Assis, porque A
referncia ao social no deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para
dentro dela28.
Sigo o exemplo do mtodo crtico de Antonio Candido, caracterizado por uma
sntese integradora do trilema histria-teoria-crtica, para saber como que o niilismo,
fenmeno concreto, histrico, vem baila com insistncia na obra de Machado de Assis, com
valor simblico e para expressar uma preocupao dominante, e de que modo o niilismo que
est na sociedade se transforma no texto literrio:
Os estudos deste livro (cuja primeira edio de 1965) procuram focalizar
vrios nveis da correlao entre literatura e sociedade, evitando o ponto de
vista mais usual, que se pode qualificar de paralelstico, pois consiste
essencialmente em mostrar, de um lado, os aspectos sociais e, de outro, a sua
ocorrncia nas obras, sem chegar ao conhecimento de uma efetiva
interpenetrao. [...] Nestes est formulado, em planos cada vez mais
particularizados, o problema fundamental para a anlise literria de grande
nmero de obras, sobretudo de teatro e fico: averiguar como a realidade
social se transforma em componente de uma estrutura literria, a ponto dela
poder ser estudada em si mesma; e como s o conhecimento desta estrutura
permite compreender a funo que a obra exerce29
.
Candido o principal expoente brasileiro da linha de estudo comparatista que
compreende a linguagem literria em sua dimenso esttica, como algo carregado de sentido
histrico e cultural e no somente um meio de descrio ou representao da realidade. De
modo que procura compreender os textos em seus contextos e os contextos nos textos,
encontrando na linguagem a histria cultural, resultando no traspassamento das duas
estruturas, a literria e a histrica, de modo que a primeira manifeste em si mesma e por si
mesma a segunda30.
No mtodo integrador de Candido os trabalhos crtico e analtico so
indissociveis, porque a teoria brota dos textos sobre os quais e a partir dos quais se teoriza,
sem perder de vista a fora do concreto. Para dar conta de um texto e de suas relaes com
27
CANDIDO. O discurso e a cidade, p. 9. 28
ADORNO. Notas de literatura I, p. 66. 29
CANDIDO. Literatura e sociedade, p. 8. 30
CORDEIRO. Comparatismo brasileira, p. 18.
-
20
os seus vrios contextos, o crtico precisa ler, reler, refletir, repensar, entrar no texto e sair
dele atravs de outros textos, voltando a ele pelo filtro dos discursos a articulados31.
O mtodo crtico proposto por Candido influenciou a leitura que Roberto Schwarz
fez da obra de Machado de Assis. tese de Schwarz, de que o processo social toma forma na
obra machadiana, vale somar as de John Gledson e Sidney Chalhoub, para quem Machado
incorpora a histria brasileira oitocentista sua obra, fazendo referncias e stiras aos seus
principais eventos: Independncia, Abdicao, Maioridade, Conciliao, Guerra do Paraguai,
Lei do Ventre Livre, Abolio, Proclamao da Repblica e Guerra de Canudos, temas que
foram abordados por Machado e por seus principais crticos. A esses acontecimentos
acrescento o niilismo, importante fenmeno oitocentista que Machado incorpora sua obra,
mas permanece tema no estudado pelos crticos.
Para discutir essas questes, esta tese est estruturada em quatro captulos. O
primeiro, cujo ttulo uma pardia com o subttulo do ltimo livro editado por Nietzsche,
Crepsculo dos dolos, ou, como se filosofa com o martelo, tem cunho propedutico e serve
de prolegmenos tese, estabelecendo uma base de sustentao adequada para todas as
discusses posteriores. Primeiramente, apresenta uma reviso da fortuna crtica referente ao
tema do niilismo na obra de Machado de Assis; em seguida, discute a forma irnica como a
filosofia aparece na obra machadiana para, a seguir, analisar a pena da galhofa e a tinta da
melancolia com a qual o autor escreve sua prosa e, por fim, apresentar breves consideraes
sobre a concepo machadiana de histria e o perspectivismo machadiano.
O captulo II prope que o niilismo na prosa de Machado de Assis deve ser
investigado no mbito do estabelecimento de um dilogo com a tradio que o antecede,
porque o estudo do niilismo na obra do autor brasileiro no se concebe sem uma perspectiva
comparativa, no quadro mais amplo de suas relaes com as tradies locais e internacionais.
Assim, percorre as obras de Eclesiastes, Blaise Pascal, Arthur Schopenhauer, Ivan
Turguniev, Nikolai Leskov, Fidor Dostoievski e Friedrich Nietzsche, apresentando um
estudo do estado da questo. Desse modo, contextualiza a emergncia do niilismo como
dominante cultural do Ocidente no sculo XIX e discute o problema correlato da morte de
Deus. Concomitantemente, se debrua sobre algumas crnicas de Histrias de Quinze Dias
(1876-1878), Notas Semanais (1978), Balas de Estalo (1883-1886), Bons Dias! (1888-
1899) e A Semana (1892-1897), reputando que Machado no somente se configura como
31
CHIAPPINI; VEJMELKA. Antonio Candido na Alemanha, p. 247.
-
21
leitor irreverente da tradio, como tambm partiu do antigo e abriu espaos novos, criou
diferenas.
A crnica, considerada um gnero de classificao imprecisa, fronteirio entre o
jornalismo e a literatura, ocupa um lugar importante na obra de Machado. Ao longo de sua
vida o escritor-jornalista produziu um jornalismo literrio que conjugava fait divers (fatos
diversos, incidentes da atualidade, que interessam pelo pitoresco), acontecimentos histricos,
aluses literrias e reflexes filosficas, de carter ontolgico, tico e esttico. As crnicas
no sero lidas como se expressassem opinies pessoais do autor emprico, mas sim enquanto
expresses de narradores fictcios. Preserva-se, assim, a autonomia da obra em relao ao
autor emprico. Afinal, Histrias de Quinze Dias uma srie assinada por Manasss, que se
autorretrata como um velho; Notas Semanais por Eleazar, o protegido de Deus, autor da
famosa crtica ao Primo Baslio, de Ea de Queirs; Balas de Estalo por um irnico Llio
dos Anzis Carapua; Bons Dias! por Policarpo, ex-relojoeiro atormentado em um mundo
de relgios em descompasso, que assina Boas Noites; A Semana por um annimo escriba
de coisas midas, interessado e ao mesmo tempo enfastiado do homem e seus problemas32
.
O captulo III, cujo ttulo faz referncia ao personagem Freitas, de Quincas Borba,
que se autodenominou um arquiteto de runas33, analisa de que modo o niilismo aparece
como um dos Leitmotive de Quincas Borba (1891) e Esa e Jac (1904). Partindo de uma
investigao da passagem brasileira modernidade, passagem desde sempre marcada pelo
signo das contradies34, argumento que os dois romances configuram o niilismo no
contexto de modernizao do Rio de Janeiro.
O captulo IV analisa de que modo o niilismo se torna um dos Leitmotive dos
romances narrados em primeira pessoa, aparecendo como perspectiva a ser galhofada. A
partir do conceito nietzschiano de o cansao que olha para trs35, argumento que, nas
narrativas de Memrias Pstumas de Brs Cubas (1881), Dom Casmurro (1900) e Memorial
de Aires (1908), o tempo um componente crucial, na medida em que tudo destri e devora.
Ao revolverem o passado, os trs memorialistas reagem cada um sua maneira: superao da
finitude e negatividade total (Brs Cubas), ressentimento (Bento Santiago) e ideal asctico
(Conselheiro Aires).
32
Sobre a crnica, seu lugar na obra de Machado de Assis e a pluralidade dos cronistas machadianos, cf.
CAMPOS. Machado de Assis contra a concepo de sujeito solar, p. 35-60. 33
ASSIS. Quincas Borba, XXX, p. 783. 34
FREITAS. Contradies da modernidade, p. 18. 35
NIETZSCHE. Genealogia da moral, prlogo, 5, p. 11.
-
22
Concluo que Machado percebe o niilismo com penetrao e constncia, mas em
lugar de represent-lo apenas superficialmente, como tema, em cenas e falas de personagens,
incorpora-o como elemento funcional da composio literria. Enquanto problema artstico,
linha de fora literria, o conceito filosfico de niilismo limado, ganhando algumas
caractersticas e perdendo outras. Caracteriza-se, nesse sentido, pela polissemia, abrangendo
manifestaes distintas vrios Leitmotive, ou variaes do Leitmotiv em questo.
-
23
1. COMO SE FILOSOFA COM O MACHADO
-
24
1.1. Olhares da crtica machadiana sobre o problema do niilismo
A fora potencializadora da tradio1, como indica Roberto Schwarz, ao
rejuvenescer questes longamente amadurecidas e nos alimentar com a experincia
acumulada pelas geraes passadas, a matriz de fora do trabalho intelectual. Tendo em
vista que devemos nos valer dos autores que nos precederam para avanar, o propsito desta
reviso de literatura o estabelecimento de um dilogo com a tradio crtica que me
antecede, ao qual devo muito do que digo aqui. Aponto, nas linhas a seguir, a contribuio de
vrios crticos para o debate que ora nos convida e rene a pensar. Dada a impossibilidade de
se ler tudo o que foi editado sobre Machado de Assis, o balano dever ser necessariamente
seletivo e parcial. As presenas reclamam as omisses, justificadas pelos limites do trabalho,
que, propondo-se como uma perspectiva possvel, no visa especificamente ao estudo
exaustivo da fortuna crtica machadiana.
Cabe considerar, inicialmente, que os prprios conceitos de niilismo ou de
obras literrias niilistas aparecem en passant nas obras de diversos crticos, algumas vezes
veiculados atravs de imprecises conceituais, como se estivessem dados a priori e no
necessitassem de maiores explicaes. Desse modo, encontramos uma tradio crtica que
parte do pressuposto de que a obra machadiana transmissora de uma filosofia melanclica,
pessimista, niilista, sem deixar bem clara a acepo de niilismo empregada.
Benedito Nunes indica que o enlace entre literatura e niilismo na obra de Machado
foi reconhecido pela tradio crtica, que, se do ponto de vista filosfico emitiu rtulos no
raras vezes apressados e taxativos, de um ponto de vista literrio, por natureza impreciso,
metafrico e, principalmente, machadiano, apresentaram uma boa caracterizao do
pensamento de Machado:
Pascaliano sem o consolo jansenista da Graa distribuda aos eleitos da
Salvao, schopenhaueriano que substituiu pelo dio vida a moral da
renncia da vontade de viver, e ctico radical, pirrnico, derivando para o
niilismo eis os traos fisionmico-doutrinrios, carregados nas tintas do negativismo, com os quais a tradio crtica revestiu o perfil filosfico de
Machado de Assis que fez chegar at ns, emoldurando-o na autoridade das
fontes principais em que o criador de Dom Casmurro teria abeberado o seu
pensamento2.
1 SCHWARZ. Que horas so?, p. 48.
2 NUNES. No tempo do niilismo e outros ensaios, p. 129. Grifo meu.
-
25
Apesar de essa caracterizao ser pertinente, h que se tomar cuidado com a
rotulao de Machado de Assis em uma tendncia de pensamento preestabelecida, pois ele
autor de obra vasta, que no enquadra facilmente em rtulos e bandeiras, seja de natureza
literria, poltica, filosfica ou religiosa.
Com razo, Jean-Michel Massa reconhece, na fortuna crtica do escritor publicada
at a primeira metade do sculo XX, uma controvrsia que envolveu a atribuio ou recusa do
niilismo ao escritor: descobriu-se o pessimismo do escritor, seu ceticismo, seu niilismo. Os
ataques surgiram de todos os lados. Joaquim Maria Machado de Assis, um novo Scrates,
passou a ser um mestre da perverso e sua obra uma escola da corrupo3.
Alguns estudos decisivos da tradio crtica postularam que a lgica de
composio e o estilo de Machado esto atrelados a uma viso de mundo pessimista.
Considero que muitos desses estudos, de Slvio Romero aos contemporneos, reforaram
alguns pressupostos, tais como a sua caracterizao de autor pessimista, niilista, ctico, sem
confrontar as categorias analticas ao conjunto de livros do autor4.
No me deterei na reconstruo dos argumentos apresentados por cada autor em
sua respectiva obra, justamente porque o tema do niilismo no o foco das obras a serem
avaliadas. Tampouco pretendo indicar eventuais insuficincias ou algo parecido. Meu breve
comentrio tem o intuito apenas de levantar algumas questes que as leituras dos textos
sugerem, mas que no so diretamente abordadas neles.
O primeiro livro dedicado obra do presidente perptuo da Academia Brasileira
de Letras Machado de Assis: Estudo Comparativo de Literatura Brasileira, publicado por
Slvio Romero no outono de 1897. O pioneiro crtico tentou erigir sobre bases cientificistas
uma tipologia das variedades de pessimismo. Machado surge enquadrado nessa classificao:
O pessimismo entre ns tem tido at hoje trs feies principaes, ou, melhor,
costumamos chamar pessimistas a trs categorias de indivduos: os que
dizem mal de nossos desmantelos nacionaes, nomeadamente os desmantelos
de ordem politica e litteraria; os que praguejam mais ou menos
conscientemente contra os vicios e desarranjos da vida social em geral; os
que tm opinio sombria dogmaticamente feita sobre a essncia mesma da
existncia universal. No primeiro grupo tem-se-me dado um lugar que s
aceito com restrices; no segundo est o finado Braz Cubas ou Machado de
3 MASSA. A juventude de Machado de Assis, p. 21. Grifo meu.
4 Exceo o estudo do ceticismo, muito bem contemplado pelo livro de Jos Raimundo Maia Neto, O ceticismo
na obra de Machado de Assis. Tambm merecem meno Eunice Piazza Gai, com Sob o signo da incerteza,
Paulo Margutti, com Machado, o brasileiro pirrnico?, e Gustavo Bernardo Krause, autor de O Bruxo contra o Comunista, dentre outros artigos. Sem me opor a essas interpretaes do ceticismo na obra de Machado, gostaria, entretanto, de ressaltar que o fato de os narradores assumirem uma postura ctica no impede que o
niilismo aparea em sua obra.
-
26
Assis, se endossa os esconjuros do illustre namorado de Virgilia; no terceiro
tem posto, mais ou menos conspicuo meu saudoso Tobias Barreto, e digo
mais ou menos conspicuo, porque elle na escala do pessimismo no chegou
ao degrau em que se sentaram Schopenhauer, Byron, Leopardi e Hartmann.
Em todo caso, seu pessimismo de natureza muito mais grave do que o de
Machado de Assis. V-se, conhece-se que o philosopho sergipano, sobre os
mais rduos problemas da vida, da religio, da moral, chegou at ao solio
das negaes tremendas e absolutas. O sceptico e irreverente, que havia
nelle, levava-o at ahi; mas o que nelle havia de sentimental e potico
vedava-o de despenhar-se do alto no pelago sem fundo do nihilismo
materialistico e pessimista. Apezar disto, existem paginas suas que so
muito mais amargas do que todos os delrios de Cubas ou Borba ou Rubio
juntos5.
Slvio Romero, atento ao debate filosfico de seu tempo, um dos primeiros
pensadores brasileiros a empregar o conceito de niilismo. Para o crtico sergipano, a obra do
escritor carioca, a partir da publicao de Memrias pstumas de Brs Cubas, com seu tom
pessimista, desgostoso e humorista, seria documento do estado de penria real pelo qual
passava o Brasil: Machado de Assis , disse eu, um representante do esprito brasileiro, mas
num momento mrbido, indeciso, annuviado, e por um modo incompleto, indirecto, e como
que a medo6. Tal momento mrbido seria marcado pelo nihilismo materialistico,
desbragado e sandeu to em moda entre os tolos de todos os feitios7. E, ao referir-se aos
iniciados num certo pessimismo de pacotilha 8, Romero pontifica que o fecundo Machado
de Assis chefe de fila. Tobias Barreto, em contrapartida, ofereceria uma reao positiva ao
estado de misria intelectual do pas.
Alcides Maya, com suas notas sobre o humour, publicadas em 1912, renovou a
leitura da obra do escritor, ao abrir uma nova perspectiva crtica que viria fundamentar
reflexes posteriores. O crtico gacho, centrando-se na anlise do humor machadiano,
apontando e analisando os usos desse recurso em seus contos, romances e poemas, afirma que
Machado, partindo de um princpio de celebrao do nada, faz uma profisso de f s
avessas, manifesto platnico de niilismo9. Com uma dolorosa e spera sinceridade, Machado
teria dado ao seu desespero uma expresso esttica:
A tinta de Machado de Assis um violete de decadncia. Ele mais do que
um homem triste, do que um vulto de raa frustrada: representa uma
civilizao que de si prpria duvida [...] O desencanto a nota essencial do
5 ROMERO. Machado de Assis, p. 299-300. Grifo meu. Faz-se necessrio um estudo do niilismo na obra de
Tobias Barreto. 6 ROMERO. Machado de Assis, p. 121.
7 ROMERO. Machado de Assis, p. 127.
8 ROMERO. Machado de Assis, p. 307.
9 MAYA. Machado de Assis, p. 29.
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27
seu esprito; no tem iluses, nem as quer; deleita-se na incerteza e s a
morte ainda o fascina. H nas suas pginas uma vibrao, talvez derradeira,
de prazer quando verifica a vacuidade de tudo10
.
Maya assume uma posio crtica que se ope avaliao de Romero, com
relao ao emprego do humour, ao mesmo tempo em que reflete sobre o lugar do escritor na
histria da literatura brasileira. Enquanto o sergipano acusa o humor machadiano de
artificialismo, o crtico gacho explica que o dito pessimismo de Machado de Assis exprime a
sua viso tragicmica da vida. A prosa machadiana, ao mesmo tempo em que leva ao riso,
apresenta uma complicada trama de fatores morais, que, alm de apontar as misrias do ser
humano, revela a filosofia do autor, modelada com ironia e humour.
Em 1938 Peregrino Jnior inaugurou a tradio que tratou do niilismo na
perspectiva biogrfica. Em Doena e constituio de Machado de Assis, ele relacionou os
supostos sintomas e caractersticas mrbidas do escritor disfemia e epilepsia a seu estilo e
aos procedimentos literrios que lhe so prprios, tentando comprovar seu diagnstico com
episdios da vida de Machado, alm de citaes de sua correspondncia e de suas obras
ficcionais. O crtico-mdico conclui que
Depois de Brs Cubas, porm, vai perdendo a serenidade, a atitude
impassvel cede lugar a uma tendncia francamente niilista, e o masoquismo
e o sadismo [...] se delineiam e entremostram em todos os seus romances [...]
Duvidar e negar eis os verbos que ele conjuga em todos os livros da ltima fase
11.
Peregrino Jr. encontrou, na obra de Machado de Assis, nas formas de sua escrita,
no seu estilo e nos seus temas, a confirmao do diagnstico e da constituio mrbida que
ele havia imputado ao escritor. Fez exatamente aquilo que era o objetivo dos psicopatlogos
de ento, que pretendiam chegar ao diagnstico das diferentes doenas mentais utilizando as
produes de seus pacientes, buscando variedades especficas de formas visuais, escritas e
sonoras, para cada doena. A esse viviseccionista do esprito poderamos avisar que o melhor
, certamente, separar o artista da obra.
Entre as dcadas de 1930 e 1950 o crtico Augusto Meyer dedicou-se a fazer uma
sondagem moral da prosa madura de Machado e detectou a relao entre o humor corrosivo e
a introspeco como caractersticas formais da obra machadiana. Em sua anlise, chama
10
MAYA. Machado de Assis, p. 29. 11
PEREGRINO JUNIOR. Doena e constituio de Machado de Assis, p. 122-123. Grifo meu.
-
28
ateno a mistura dos conceitos de pirronismo e niilismo, que do uma caracterizao
ambgua ao pessimismo de Machado de Assis:
Por mais que ponha nas palavras uma graa incomparvel, cheia de perfdias
finas e de pulos imprevistos, no sabe disfarar o pirronismo niilista que
forma a raiz do seu pensamento. Com as diversas mscaras superpostas
desse voluptuoso da acrobacia humorstica, podemos compor uma cara
sombria a cara de um homem perdido em si mesmo e que no sabe rir. Perdido em si mesmo, isto , engaiolado na autodestruio do seu niilismo
12.
A inflexo crtica de Augusto Meyer, ousada para a poca, props o
comparativismo de dois autores que eram, via de regra, tidos como antpodas, por
temperamento, biografia, fatura literria e relao com a nacionalidade: Dostoievski e
Machado.
Com enfoque no homem subterrneo, Meyer leu as Memrias pstumas de Brs
Cubas luz das Notas do subsolo, ressignificando a obra do escritor brasileiro.
Indiretamente, porm, o russo machadianizou-se13, recebendo caractersticas inteiramente
ausentes da recepo crtica anterior: ironia, malcia e humor, dimenses que, segundo Bruno
Gomide, so importantes e subestimadas no estudo da fico de Dostoievski e do romance
russo em geral, ainda que, na acepo de Meyer, fossem apenas mscaras a encobrir o
niilismo de fundo.
Em 1936 aparece o estudo crtico e biogrfico de Lcia Miguel Pereira que,
apesar de no trabalhar com o conceito de niilismo, compreende Machado como um niilista e
aponta para o mesmo ao comentar que H um gosto de cinza nos seus livros, as cinzas da
inanidade de tudo, mas h tambm o sal das lgrimas e do sangue, o sangue do homem
sofredor, as lgrimas do desespero que se sabe intil14. Segundo a autora, Machado, marcado
por uma obsesso do nada, aceitou a falta de sentido da vida como um fato consumado,
tornando-se um pessimista cuja obra alcanou a descrena total, no cu e na terra, em Deus e
nos homens. Assim, ela interpreta o autor como um pessimista que quer destruir os valores
estabelecidos e conclui que isso um sinal de fraqueza.
De 1934 a 1959, Pereira dedicou-se obra de Machado de Assis. Seu estudo
crtico e biogrfico, considerado referncia fundamental na fortuna crtica do autor, foi uma
publicao decisiva para a guinada interpretativa de base psicolgica, que, se renovou a
12
MEYER. Machado de Assis, 1935-1958, p. 16. Grifo meu. 13
GOMIDE. Da estepe caatinga, p. 464. 14
PEREIRA. Machado de Assis, p. 27.
-
29
recepo da obra de Machado de Assis, tambm contribuiu para a propagao do clich
romntico do artista doentio, mestio, gago e epiltico.
Em 1940, Afrnio Coutinho publicou A filosofia de Machado de Assis, obra que
busca investigar as fontes do pessimismo machadiano, determinando os antecedentes e
motivos sociais, psicolgicos, intelectuais e hereditrios, provenientes da sua origem, da sua
raa e da sua doena, que repercutiriam na concepo pessimista da vida, do homem e do
mundo, na obra do patrono da ABL. Partindo da premissa de que o escritor era pessimista e s
enxergava o lado mau da natureza humana, Coutinho conclui que justamente este o carter
da filosofia de Machado, o sentido de niilismo total da sua concepo do mundo15.
Coutinho, em sua tentativa de interpretao do problema psicossocial do mestio
brasileiro, repleta de preconceitos, profere uma srie de improprios, dentre os quais ele
afirma que O autor de Helena foi um caso tpico de ressentimento mulato16. O resultado
que se deixa a ltima pgina com uma intensa decepo, avalia Srgio Buarque de Holanda,
para quem A filosofia de Machado de Assis uma obra marcada por uma fragilidade to
patente dos seus argumentos em favor de uma tese artificial e forada17.
Em 1958, o militante comunista Octvio Brando publicou O niilista Machado de
Assis, primeira e, at agora, nica obra dedicada ao tema. O livro apresenta uma anlise
biogrfica impressionista por meio da qual, ao atribuir o niilismo como um defeito tanto do
autor quanto da obra, tenta desqualificar o escritor:
Machado de Assis no se limitou ao pessimismo vulgar. Mergulhou num
abismo sem fundo, ainda mais lbrego e lgubre o niilismo [...] Era ateu. Mas seu atesmo no servia absolutamente para nada. Levava ao niilismo negao de tudo quanto existe de positivo na vida e no universo, na histria e
na sociedade. [...] Antes e depois da primeira guerra mundial, os livros de
Machado de Assis e de outros literatos exerceram uma influncia
profundamente perniciosa. Ameaaram as foras vivas da Nao brasileira.
Envenenaram a conscincia de muitos intelectuais, com o ceticismo, o
pessimismo e o niilismo18
.
Em artigo de 27 de dezembro de 1958, Otto Maria Carpeaux j respondia ao autor
do livro recm-lanado: No me refiro ao Sr. Otvio Brando, que, pretendendo denunciar o
niilismo de Machado de Assis, apenas conseguiu demonstrar seu prprio niilismo literrio19.
Embora claramente secundrio dentro da fortuna crtica machadiana, o livro de Brando teve
15
COUTINHO. A filosofia de Machado de Assis, p. 52. 16
COUTINHO. A filosofia de Machado de Assis, p. 87. 17
HOLANDA. A filosofia de Machado de Assis, p. 312. 18
BRANDO. O niilista Machado de Assis, p. 152-153. 19
CARPEAUX. Vrias histrias, p. 454.
-
30
o mrito de levantar a discusso sobre o tema do niilismo na obra de Machado de Assis. No
entanto, o pressentimento da importncia do conceito de niilismo para a compreenso da obra
machadiana desproporcional capacidade analtica para esclarec-lo. O crtico l Brs
Cubas e entende Machado, sem perceber que o niilismo do narrador submetido ironia do
autor. Ou ainda: se alguns narradores e personagens so niilistas, o escritor no
necessariamente o , e ironiza esse niilismo.
Em 2007, Gustavo Bernardo Krause escreveu uma rplica tardia ao livro de
Octvio Brando. Em contraponto ao autor de O niilista Machado de Assis, que iguala os
termos ceticismo, niilismo, cinismo e pessimismo com o intuito de desqualificar a obra do
escritor brasileiro, o artigo O Bruxo contra o Comunista procura demonstrar que esses
termos designam filosofias muito diferentes, a fim de sustentar que o valor artstico da obra
machadiana deriva precisamente de seu ceticismo. Krause conclui que a incompreendida
postura ctica do autor e de seus personagens, ao colocar uma srie de problemas morais,
motiva contra Machado a acusao de acomodado, reacionrio ou niilista20.
Entre as dcadas de 1950 e 1970, Dirce Cortes Riedel dedicou dois estudos obra
de Machado: O tempo no romance machadiano (1959) e Metfora, o espelho de Machado de
Assis (1974). No primeiro, analisa a concepo machadiana de tempo, observando as formas
que tal concepo assumiu em sua fico. No segundo, investiga as metforas constantes na
obra machadiana e observa que o escritor foi caracterizado como niilista por causa da
crueldade lcida do seu humor: Por ter jogado com essa dubiedade do ser humano, e no ter
acreditado na integridade do bem, que Machado tido por niilista e cruel21.
Em 1987, Roberto Schwarz defende que o Machado da chamada segunda fase, ao
criar narradores que pertencem elite e reproduzem seus valores, passa a representar a vida
social brasileira pelo ngulo da classe dominante, revelando, assim, todas as suas iniquidades:
Em lugar da viso positiva, a viso desabusada, cujo propsito no de
criticar, mas de conferir o brilho e a tranquilidade da inteligncia sem peias:
a compreenso da mecnica social como que uma consolao para a falta
de sentido desta e para os seus horrores. Ainda aqui Machado fazia trabalho
civilizador, pois o seu pessimismo dava dignidade e equilbrio ao sentimento
de impasse em que se debatiam as nossas elites liberais, escravocratas e
paternalistas. Uma arte nihilista, mas no maldita22
.
20
KRAUSE. O Bruxo contra o Comunista, p. 239. 21
RIEDEL. Tempo e metfora em Machado de Assis, p. 49. Este volume rene as duas obras supracitadas. 22
SCHWARZ. Que horas so?, p. 178. Grifo meu.
-
31
A tese de Schwarz ganha corpo com a publicao de Um mestre na periferia do
capitalismo (2000), obra que apresenta uma consistente anlise sociolgica da articulao
entre forma literria e processo social no Brasil. Ele examina a relao estabelecida entre
esttica e ideologia no desenvolvimento do capitalismo, bem como a ambivalncia entre
iderio burgus e paternalismo, inscrita na conduta dos grupos sociais do sculo XIX: A
funcionalidade da barbrie colonial para o progresso das elites brasileiras est no centro do
humor e do nihilismo machadianos23.
As categorias examinadas por Schwarz se associam a perspectivas de
interpretao voltadas para conexes entre literatura e pensamento social no Brasil. O enfoque
do crtico a anlise da volubilidade como princpio formal da narrativa do defunto autor
Brs Cubas. Sua pena da galhofa seria a estilizao de uma conduta prpria classe
dominante brasileira, caracterizada por abuso, arrogncia, interrupes e agresses ao leitor:
Com efeito, no h chave de que Brs no se valha para decifrar e reduzir a nada os
movimentos da volubilidade, donde uma espcie de nihilismo ecltico, a que no falta o trao
de comdia24.
Em 1988, Ktia Muricy, com A razo ctica, procura situar o vnculo do
pessimismo de Machado de Assis com as questes de seu tempo. A partir dessa abordagem, a
autora mostra como o escritor construiu uma crtica ctica s transformaes da sociedade
brasileira oitocentista. A obra do autor estaria voltada para o advento da racionalidade
burguesa no perodo em que a sociedade carioca importava os valores da modernidade
europeia. A propsito de tais transformaes, Muricy faz uma nica meno a esse conceito-
chave, mas para descartar sua atribuio prosa machadiana:
O descrdito dos valores culturais e ticos da nossa cultura, caracterstica
radical em Machado de Assis, est presente de forma exemplar em
Memrias pstumas de Brs Cubas. O descrdito no resulta de um
ceticismo, compreendido como marca psicolgica do autor; tampouco
efeito da diluio de algum niilismo do sculo. Resulta antes da trama de um
texto capaz de desnudar as articulaes do poder na nova sociedade
brasileira do sculo XIX25
.
Em 1989, Jos Guilherme Merquior apresenta uma conferncia sobre a recepo
crtica da obra de Machado, interpretando a viso de mundo do escritor como ctica e niilista,
pelo uso radical de certo tipo de pessimismo, por um lado, e pelo humor corrosivo, por outro:
23
SCHWARZ. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 128. 24
SCHWARZ. Um mestre na periferia do capitalismo, p. 207. Grifo do original. 25
MURICY. A razo ctica, p. 110.
-
32
Para Machado no a individualidade na sua prpria essncia que constitui
o problema; so outras coisas, sobretudo o embate dos apetites, uma
viso que desqualifica todas as ambies, todos os apetites, todos os
impulsos, em nome de uma possvel contemplao esttica de tipo nirvanista
e, em ltima anlise, de tipo niilista; o famoso niilismo de Machado26
.
Merquior vai da crtica biogrfica, que discute o aspecto da mobilidade social em
Machado de Assis, abordagem de tipo sociolgico, passando por comentrios sobre as
influncias estilsticas e filosficas do escritor, concluindo que a fico machadiana levanta
uma viso eminentemente corrosiva e negativa da realidade social brasileira e da realidade
humana, atravs do prisma do contexto social especfico.
No mesmo ano, 1989, Enylton S Rego publicou O calundu e a panaceia,
primeira obra da fortuna crtica machadiana que analisa sistematicamente as relaes entre a
prosa madura de Machado e a stira menipeia gnero criado por Menipo de Gadara no
sculo III a.C. e retomado pelo srio helenizado Luciano de Samsata no sculo II de nossa
era. Detendo-se, sobretudo, em Luciano, Menipo e seus seguidores modernos, como Robert
Burton e Laurence Sterne, Rego documenta a insero do escritor brasileiro na chamada
tradio lucinica:
Foi tambm nossa inteno demonstrar que algumas questes levantadas
desde o sculo dezenove pela crtica literria brasileira com relao obra de
Machado reproduzem exatamente as questes sistematicamente colocadas
pelos textos pertencentes tradio da stira menipeia. De fato, ao apontar
na obra de Machado sua grande dificuldade de classificao genrica, seu
carter fragmentrio e antidiscursivo, suas citaes truncadas e seu contedo
parodstico, seu ponto de vista irnico e distanciado, e ao julg-la como
moralmente duvidosa, pessimista ou niilista, os crticos estavam de certa
forma repetindo as observaes feitas pela crtica tradicional aos textos de
Varro, Sneca, Luciano, Erasmo, Burton e Sterne, eminentes escritores da
tradio menipeia ou lucinica27
.
Rego chama ateno para uma caracterstica recorrente na obra machadiana, a de
ser um texto hbrido, em que se misturam a seriedade e a comicidade, e resulta na mesma
espcie de stira e de riso filosfico pretendidos por Luciano, que visava sempre denncia e
crtica das mazelas sociais e dos vcios humanos. O pessimismo apenas aparente isto ,
um pessimismo ou niilismo presente enquanto perspectiva a ser galhofada.
Em 1999, Alfredo Bosi publicou Machado de Assis: o enigma do olhar, livro que
rene quatro ensaios: dois inditos e dois publicados na dcada de setenta. O tema central o
26
MERQUIOR. Machado em perspectiva, s. p. Grifos meus. 27
REGO. O calundu e a panaceia, p. 189. Grifos meus. Para uma compreenso geral da obra de Luciano, cf.
BRANDO. A potica do Hipocentauro.
-
33
foco narrativo do autor. O olhar machadiano, segundo o crtico, est voltado para o
comportamento humano, mais especificamente para a percepo de palavras, pensamentos,
obras e silncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo
Imprio.
Segundo Bosi, o olhar com que Machado penetra nos meandros da sociedade
fluminense de seu tempo mostra a decomposio do sistema escravista, com a permanncia da
estrutura social assimtrica e injusta. Prevalece o egosmo das classes dirigentes e a
disparidade das relaes sociais: Nada, porm, impedir que a corrente da vida individual
desgue na morte e no nada: o legado da misria o de toda gente, no excludos os
cavalheiros ricos e ociosos como Brs Cubas28.
Apesar de destacar o pessimismo machadiano, na nica vez em que faz uso do
conceito de niilismo, Bosi nega a atribuio do epteto ao escritor, caracterizando-o como
ctico: o caso de Machado de Assis, que apenas relativiza o que vulgarmente aparece sob a
veste de bem ou de mal, de verdadeiro ou de falso, assim fazendo, nada afirma nem denega
com o ar peremptrio dos dogmticos ou dos niilistas29.
Em 2008, Patrick Pessoa, com A segunda vida de Brs Cubas, parte do princpio,
formulado por Friedrich Schlegel, de que toda interpretao filosfica deve ser ao mesmo
tempo uma filosofia da interpretao. Respeitando a autonomia do texto ficcional, Pessoa
prope uma leitura fenomenolgica da narrativa do defunto autor, visando suspender os pr-
conceitos que ele atribui fortuna crtica machadiana. Sua nica meno ao niilismo
encontra-se na introduo de seu livro:
Como seria possvel compatibilizar uma interpretao que, inspirada pela
fenomenologia de Heidegger, descobre afinidades entre Brs Cubas e o
homem do subsolo dostoievskiano, explicitando o modo como suas
memrias pstumas constituem uma negao sistemtica da existncia, e o
prazer esttico que esse autntico monumento ao niilismo e ao ressentimento
capaz de provocar?30
A obra de Pessoa, denso exerccio de interpretao do romance Memrias
pstumas de Brs Cubas, oferece contribuies importantes para esta pesquisa. No entanto, a
prpria estrutura de uma tese de doutorado, da qual se origina o livro, que exige a delimitao
do tema, gerou inevitavelmente uma lacuna em sua descrio fenomenolgica. Seu estudo
bem fundamentado da melancolia, da ironia trgica, da volpia do aborrecimento, da
28
BOSI. Machado de Assis: o enigma do olhar, p. 155. 29
BOSI. Machado de Assis: o enigma do olhar, p. 44. 30
PESSOA. A segunda vida de Brs Cubas, p. 44. Grifo meu.
-
34
solidariedade do aborrecimento humano e do desdm dos finados aborda a voluptuosidade do
nada a partir de sua relao com as noes supracitadas, mas no inclui um estudo do
niilismo.
Em 200931
, o livro Serenidade e fria: o sublime assismachadiano, de Ravel
Giordano Paz, renovou a recepo crtica da poesia machadiana, dedicando-se a resgatar o
dilogo vivo do escritor carioca com o Romantismo, sob o prisma de um conceito
preeminente na esttica romntica: o sublime. O ponto crtico do trabalho a hiptese de que
a arte de Machado de Assis mais fiel ao sublime romntico do que o prprio romantismo
pde ser. Tratando-se, aqui, de uma fidelidade sentimental e livre (libertria), na medida em
que o escritor carioca mobiliza o sublime em sua instabilidade constitutiva.
Giordano Paz mostra que o sublime machadiano se configura como herana e
problematizao do idealismo romntico dos filsofos e escritores europeus. A tenso entre
vida e morte, constitutiva do sublime romntico, seria um componente fundamental da obra
machadiana, visvel em sua implacvel desmistificao do sentimentalismo romntico e na
constatao de uma misria universal, que o amor, longe de redimir, agrava: A esse respeito,
o lugar ocupado pela filosofia de Quincas Borba nos dois romances em que ela se faz presente
bastante sugestivo: tentando superar esse niilismo, tambm ela no faz seno agrav-lo32.
Em 2012, Luis Eustquio Soares publicou um estudo dedicado ao tema do
niilismo, o terceiro na histria da recepo crtica machadiana. Seu artigo Cinismo, niilismo
e utopia aborda o carter paradigmtico do niilismo na obra de Machado, apresentando uma
breve e sugestiva anlise da problemtica em questo. Soares avalia que o niilismo o
dispositivo atravs do qual tentamos nos fazer modernos destacando a morte num mundo sem
Deus e, por conseguinte, sem salvao na vida eterna: O niilismo espalha a morte em tudo
porque sabe que tudo que reluz no o ouro da eternidade, mas a respirao do que morre,
morrer33.
Soares observa que o autor de Memrias Pstumas de Brs Cubas constitui um
exemplo singular de uso criativo do niilismo na fico brasileira, na medida em que
desconstri mitos, verdades e valores, no deixando pedra sobre pedra, a fim de fazer valer a
onipresena da morte:
31
Em 2009, eu publiquei um artigo cujos argumentos j eram, no essencial, os mesmos que posteriormente
apresentei no anteprojeto que deu origem a esta tese. O trabalho o primeiro, aps o de Octvio Brando,
dedicado ao tema do niilismo na obra de Machado de Assis. Cf. SANTOS. Nietzsche, Machado e o niilismo. 32
PAZ. Serenidade e fria, p. 169. 33
SOARES. Cinismo, niilismo e utopia, s. p.
-
35
tal como o defunto autor/narrador de Memrias Pstumas de Brs Cubas,
o ponto de vista da morte, logo do niilismo, que cria o contexto favorvel
para que, cinicamente, ela, a morte, quando nos observa mortalmente, venha
a rir, sem vergonha alguma, de nossas vs atribulaes, preocupaes,
apegos, verdades, idealizaes, desprezos, autodesculpas, hipocrisias,
roubos, limitaes34
.
Controvrsias parte, os leitores de Machado reconhecem a relao de sua
literatura com o niilismo, galhofeiramente identificado na expresso voluptuosidade do
nada conforme as palavras que Pandora dirige a Brs Cubas em seu delrio. Entretanto,
nenhum dos crticos supracitados preocupou-se em aprofundar uma teoria do niilismo. Tal
lacuna o que esta tese tenta preencher, mostrando que, no tratamento ficcional, o niilismo
limado, ganhando algumas caractersticas e perdendo outras. Mas essa reviso bibliogrfica
no se encerra com a celebrao da falncia do olhar crtico sobre o tema do niilismo na obra
de Machado de Assis. Os autores supracitados detectaram aspectos cruciais da fico
machadiana, alguns dos quais coincidem com as preocupaes mais profundas desta tese. No
entanto, as descobertas dos crticos mostram a indefinio do que seriam o niilismo e o
escritor a ele filiado, de forma que se mostra pertinente buscar a resposta na obra do prprio
Machado.
A ausncia de um mergulho mais profundo na abordagem do niilismo por parte da
fortuna crtica machadiana reside no fato de no se ter levado em conta a histria e os
desdobramentos do conceito filosfico em questo. Tal empreendimento ser cumprido nos
captulos seguintes, que traam uma histria do niilismo no sculo XIX, investigando suas
origens, seu desenvolvimento na Europa oitocentista e o modo como Machado de Assis
maneja ficcional e filosoficamente tal conceito em suas obras.
34
SOARES. Cinismo, niilismo e utopia, s. p.
-
36
1.2. Nenhuma filosofia?
O teor filosfico inerente obra de Machado de Assis ocupa, desde o incio de sua
recepo, os leitores crticos. Uma vez que o campo recepcional da obra machadiana o mais
amplo da literatura brasileira, nessa tentativa de encontro do literrio com o filosfico a
profcua fortuna crtica do escritor percorreu diversos caminhos e alcanou diferentes
respostas. De minha parte, busco identificar algumas das possibilidades abertas ao
pensamento filosfico pela obra de Machado de Assis, tendo em vista o fenmeno do
niilismo.
Uma cautela se impe de imediato: Jeanne Marie Gagnebin alerta que o estudo da
presena de teorias ou conceitos filosficos em obras literrias, apesar de vlido e til,
limitado e s poder vir a constatar que na fico de qualquer escritor os conceitos filosficos
so transformados pela forma literria (por natureza imprecisa, metafrica) e no
correspondem exatamente s suas fontes originais:
Uma abordagem bastante comum da problemtica filosofia/literatura
consiste em analisar a presena de teorias ou de doutrinas filosficas na obra
de um escritor ou de um poeta: por exemplo, a presena de Spinoza em
Goethe, de Schopenhauer ou Bergson em Proust, de Adorno ou Nietzsche
em Thomas Mann, de Heidegger em Clarice Lispector. No nego o interesse
dessas anlises quando apontam para a elaborao esttica de elementos
histricos singulares, retomados e transformados pela escritura literria. Mas
trata-se, ento, de tambm mostrar como se do, na obra literria especfica,
tal retomada e tal transformao, isto , no s quais contedos filosficos esto presentes ali, mas como so transformados em contedos literrios35.
Advirto que o leitor no encontrar aqui um estudo das fontes filosficas de
Machado, tampouco uma interpretao da obra machadiana luz de algum filsofo ou
terico. Tambm no defendo a simples aplicao instrumental de conceitos filosficos na
anlise de sua obra, porque o texto ficcional no pode ser mero suporte de uma leitura
filosfica. Como o contedo filosfico o problema do niilismo se transforma em contedo
literrio na prosa de Machado de Assis o que vamos descobrir no decorrer desta tese.
Considerando-se que literatura e filosofia so duas ordens de discurso distintas,
importa dizer que o leitor no receber de antemo uma proposio normativa sobre as
diferenas e os domnios respectivos dos discursos literrio e filosfico, porque, se
35
GAGNEBIN. Lembrar escrever esquecer, p. 201.
-
37
reconhecidas essas diferenas, as obras de Machado as desafiam, conjugando filosofia e
literatura de tal modo que contedo filosfico e forma literria tornam-se indissociveis a
ficcionalidade da teoria e a fora terica da fico criam uma porosidade entre literatura e
filosofia.
Aceitando-se que as diferenas e semelhanas articulam-se num terreno mvel, o
que no se deve confundir com a defesa ingnua da superposio do ficcional sobre outras
formas de discurso, cuja autonomia, diferena e finalidade permanecem, em cada caso,
resguardadas36, e evitando tomar literatura e filosofia como categorias universais, a tese toma
forma a partir da colaborao entre essas duas disciplinas, buscando os seus diversos pontos
de entrelaamento.
Tomemos ento um caso exemplar de entrelaamento entre literatura e filosofia, o
de Benedito Nunes, autodeclarado hbrido de crtico literrio e filsofo. Ele ensina a no
aplicar a filosofia ao conhecimento da literatura, na tentativa de uma pretensa crtica
filosfica. Tampouco, recomenda Nunes, se deve fazer da literatura um instrumento de
figurao de teorias, reduzindo o exerccio crtico parfrase do pensamento de filsofos. Sob
o foco prioritrio da estrutura narrativa da obra literria, preciso buscar a verdade da obra
enquanto fico: Nada melhor do que o seu modus operandi, o seu como, para nos dar uma
ideia da exigncia de verdade que a norteia37.
Mas deixemos com Machado de Assis a ltima palavra a respeito. Para
atentarmos aos pontos de entrelaamento entre as experincias literria e filosfica na prosa
machadiana, no podemos perder de vista o contexto social. No sculo XIX mais de 70% da
populao brasileira era analfabeta, as referncias culturais da elite estavam do outro lado do
oceano e o acesso informao era difcil e restrito a poucos, o que determinou condies
adversas para o florescimento da literatura e da filosofia, assim como para a produo e
circulao de bens culturais. Por isso, no surpreende que os livros fossem lanados ao
pblico como pedras ao poo, fato de que os escritores desde cedo se ressentiram38.
No primeiro recenseamento geral do Imprio do Brasil, em 1872, foi apresentado
um quadro da populao livre considerada em relao ao sexo, estado civil, raa, religio,
nacionalidade e grau de instruo, arranhando a imagem ufanista construda pelo discurso
oficial e reforada por muitos escritores romnticos. Hlio de Seixas Guimares, em seu
estudo sobre o pblico de literatura do Oitocentos, resume o resultado do referido censo:
36
FREITAS. Contradies da modernidade, p. 20. 37
NUNES. No tempo do niilismo e outros ensaios, p. 198. 38
GUIMARES. Os leitores de Machado de Assis, p. 69.
-
38
Em 1872, apenas 18,6% da populao livre e 15,7% da populao total,
incluindo os escravos, sabiam ler e escrever, segundo os dados do
recenseamento; entre a populao em idade escolar (6 a 15 anos), que
somava 1.902.454 meninos e meninas, apenas 320.749 frequentavam
escolas, ou seja, 16,9%. J em 1890, a porcentagem diminuiu: apenas 14,8%
sabiam ler e escrever. Ainda segundo o censo de 1872, que apurou uma
populao de quase 10 milhes de habitantes, apenas 12 mil frequentavam a
educao secundria e havia 8 mil bacharis no pas. Esses dados indicam o
leitorado potencial, o que significa que o nmero de pessoas efetivamente
capazes de ler e escrever era certamente muito menor39
.
O esforo de interlocuo com o minguado pblico leitor foi uma constante nas
narrativas de Machado. Exemplar o defunto autor Brs Cubas, que recorrentemente
interrompe a narrativa e se dirige ao leitor, mesmo que de modo agressivo e irnico. A
evocao e a qualificao do ledor chegam a ser obsessivas, transformando a sua escassez em
princpio de escrita: fino leitor (prlogo), leitor amigo (cap. XV), leitor circunspecto (XXXII),
amado leitor (XLIX), leitor obtuso (XLIX), leitora plida (LXIII), curioso leitor (LX