A Vida No Estado Islâmico - PÚBLICO

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KEVIN SULLIVAN O que é ser mulher ou criança no autoproclamado Estado Islâmico? O que se compra e o que falta no território? Como é aplicada a justiça? Três dezenas de pessoas que vivem ou viveram sob o regime extremista dão as respostas. As carrinhas brancas saem por volta da hora do jantar, carregadas de refeições quentes para os combatentes islâmicos solteiros da cidade de Hit, no Oeste do Iraque. Equipas de mulheres estrangeiras, que deixaram a Europa (/1710046) e vários países do mundo árabe para se juntarem A vida no Estado Islâmico 3 18 DE OUTUBRO DE 2015 1352 OUTRAS EDIÇÕES

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KEVIN SULLIVAN

O que é ser mulher ou criança no autoproclamado

Estado Islâmico? O que se compra e o que falta no

território? Como é aplicada a justiça? Três dezenas de

pessoas que vivem ou viveram sob o regime

extremista dão as respostas.

As carrinhas brancas saem por volta da hora do jantar,carregadas de refeições quentes para os combatentesislâmicos solteiros da cidade de Hit, no Oeste do Iraque.Equipas de mulheres estrangeiras, que deixaram a Europa(/1710046) e vários países do mundo árabe para se juntarem

A vida no Estado Islâmico

3 18 DE OUTUBRO DE 2015 1352OUTRAS EDIÇÕES

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ao Estado Islâmico (EI), trabalham em cozinhascomunitárias para preparar o jantar dos guerrilheiros,entregue nas casas que foram confiscadas a pessoas quefugiram ou foram mortas, diz o ex­presidente da câmara dacidade.

O EI tem atraído dezenas de milhares de pessoas de todo omundo, prometendo o paraíso na pátria muçulmana queestá a erguer nos territórios conquistados na Síria e noIraque. Mas, na realidade, os islamistas criaram umasociedade desigual, onde a vida quotidiana é radicalmentediferente para ocupantes e ocupados, de acordo comentrevistas conduzidas a mais de 30 pessoas que vivemainda no EI ou fugiram recentemente.

Os combatentes estrangeiros e as suas famílias têm direito ahabitação gratuita, serviços médicos, educação religiosa eaté a uma espécie de entrega de refeições ao domicílio, deacordo com os entrevistados. Recebem salários pagos comos impostos e taxas que sobrecarregam milhões de pessoasque eles controlam, num território que agora tem o tamanhodo Reino Unido (/1700334).

Aqueles que vivem nas mãos do EI dizem que têm deenfrentar não só a brutalidade dos islamistas — quedecapitam os seus inimigos e transformam em escravassexuais as mulheres que pertencem às minorias — comotambém uma escassez extrema de vários produtos básicos.

Muitos têm electricidade durante apenas uma ou duas horaspor dia e em algumas casas a água canalizada fica vários diassem aparecer. Há poucos postos de trabalho, por isso umagrande parte não consegue pagar os preços exorbitantes dosalimentos, que em alguns casos mais do que triplicaram. Oscuidados médicos são deficientes, a maioria das escolas estáfechada e as restrições às saídas para o mundo exterior sãoimpostas pela força das armas.

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Ao longo dos últimos dois anos, os islamista produziramuma torrente de propaganda sofisticada na Internet(/1668875), que ajudou a convencer pelo menos 20 milcombatentes estrangeiros, muitos com famílias, a vir delocais tão remotos como a Austrália. A campanha, que ésobretudo veiculada pelo YouTube e pelas redes sociais,mostra uma terra de rodas gigantes e algodão doce, onde aspopulações locais convivem animadamente comestrangeiros fortemente armados.

Mas os entrevistados dizem que as suas vidas no “califado”,onde são governados por homens que impõem uma versãoextremista da sharia (a lei islâmica), estão a transbordar demedo e escassez. “Regressámos à Idade da Pedra”, dizMohammad Ahmed, de 43 anos, antigo funcionário da LigaÁrabe de Deir al­Zour, uma cidade perto de Raqqa, aautoproclamada capital dos islamistas, no Norte da Síria.“Antes tínhamos uma casa linda, com chão em mármore eazulejos”, diz Ahmed, que fugiu da sua terra em Junho e queagora vive com outros 20 mil sírios no campo de refugiadosde Azraq, na Jordânia. “Durante toda a nossa vida tivemostudo o que precisávamos. Depois, quando eles chegaram,passámos a cozinhar numa fogueira na rua e a lavar asnossas roupas em baldes.”

Várias das pessoas ouvidas afirmam que na verdade oEstado Islâmico é menos corrupto e oferece serviçospúblicos mais eficazes, como a construção de estradas erecolha de lixo, do que os anteriores governos sírio eiraquiano. No Iraque, dizem alguns, os militantes sunitastratam­nos melhor do que o Governo central de Bagdad,dominado por xiitas. Mas nenhuma das testemunhas afirmatolerar os islamistas e todos concordam que umagovernação mais eficiente não ajuda a desculpar ocomportamento fanático e brutal do EI.

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“Nós odiamo­los”, diz Hikmat al­Gaoud, o antigo autarca deHit, de 41 anos. Fugiu em Abril e agora divide o seu tempoentre Bagdad e Amã, na Jordânia.

O Estado Islâmico conquistou poder (/1690458) nasequência dos combates na Síria e no Iraque que já tinhamdeixado de rastos muitas das instituições públicas. Mas aspessoas entrevistadas afirmam que o EI apenas piorou asituação, de formas que poderão ser sentidas durante aspróximas décadas — fazendo regredir os progressosalcançados no ensino público, arruinando a infra­estruturamédica, criando um sistema judicial que assenta no terror eexpondo toda uma geração de crianças a uma violência,física e psicológica, devastadora e grotesca.

Para as mulheres, viver no EI significa frequentementeserem sujeitas a uma linha de montagem que serve paragarantir noivas aos combatentes, ou às vezes seremsequestradas e levadas para casamentos forçados.

(http://imagens4.publico.pt/imagens.aspx/990724?tp=UH&db=IMAGENS)

Hikmat al­Gaoud, o antigo autarca de Hit, diz que o EI leva rapazes para camposde treinos "e eles regressavam combatentes. No meu bairro, todos foram, menoso meu filho, que se recusou" HIKMAT AL­GAOUD

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Muitos dos entrevistados apenas quiseram dar o primeironome ou recusaram­se a ser identificados fosse de queforma fosse, para proteger a sua segurança e a das suasfamílias que ainda vivem em território controlado pelo EI.Foram entrevistados por Skype ou telefone, a partir da Síriae do Iraque, ou pessoalmente, no Iraque, Turquia eJordânia.

Aqueles que falaram a partir de áreas nas mãos dosislamistas fizeram­no correndo grande perigo, afirmandoque estes controlam rigidamente o acesso à Internet.Concordaram em falar para poder contar a sua históriasobre a vida dentro do “califado” do Estado Islâmico.

Quase todos os entrevistados dizem ter testemunhado umadecapitação ou outro castigo igualmente selvagem. Épraticamente impossível confirmar estes testemunhos, talcomo é impossível verificar as afirmações feitas através domaterial de propaganda que é editado pelo EI. Os militantesraramente permitem a jornalistas ou outros observadoresindependentes entrar no seu território e já divulgaramvídeos de decapitações (/1702792) de vários capturados.

As entrevistas, conduzidas ao longo de vários meses, foramcombinadas bastante ao acaso ou através de contactosmantidos há tempo na região. Apesar de vários activistasterem sido ouvidos, o Washington Post não quis dependerdeles para estabelecer outros contactos. No campo de Azraq,os jornalistas analisaram os registos de chegadas eprocuraram aqueles que tinham partido recentemente dasáreas controladas pelo EI. Muitas das conversas duraramduas horas ou mais.

Os militantes controlam pequenas comunidades rurais, mastambém grandes zonas urbanas, incluindo Mossul, umacidade iraquiana com mais de um milhão de pessoas. Assuas políticas diferem de região para região, por isso não há

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um estilo de vida único e uniformizado; mas nas entrevistashouve temas que apareceram consistentemente: mulheres,saúde, educação, justiça e economia. (...)

“A vida no Daesh é um pesadelo todos os dias”, diz umaantiga professora de Matemática que vive em Mossul,usando o nome árabe do Estado Islâmico. “Temos um futuroincerto”, afirma, pedindo para não ser identificada. “Talvezo Daesh nos mate, ou talvez morramos na guerra, ou talvezdepois. Aquilo por que estamos a passar agora é uma mortelenta.”

Os islamistas criaram checkpoints para impedir as pessoasde sair. Mas, segundo os entrevistados, há cada vez maisredes de tráfico para ajudar quem decide fugir e estes estãoa entrar em cada vez maior número na Jordânia, Turquia,Líbano e nas áreas do Iraque que não estão sob controlo doEI. Responsáveis da ONU afirmam que 60% dos refugiadosque atravessaram recentemente a fronteira entre a Síria e aJordânia fugiam das áreas controladas pelos islamistas.

(http://imagens2.publico.pt/imagens.aspx/990762?tp=UH&db=IMAGENS)

Faten Humayda tem 70 anos e deixou a sua terra perto de Raqqa em Maio. Viveno campo de refugiados de Azraq e diz que a violência faz aumentar o ódio daspopulações em relação aos islamistas CHARLES OMMANNEY/ THE WASHINGTONPOST

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A propaganda apresenta­os como libertadores; num vídeorecente apareciam, armados, a distribuir doces num lar daterceira idade. Mas, segundo as testemunhas, a maior parteda população vê­os como uma força ocupante impiedosa etenta manter­se à distância o mais possível. “Mesmo quenos cruzemos na rua ou em lojas, não há convívio”, relataum activista que se identifica como Abu Ibrahim al­Raqqawi, natural de Raqqa, e que gere um site chamadoRaqqa Is Being Slaughtered Silently. As pessoas de Raqqa,diz, “sentem­se estrangeiras na sua própria cidade”.

O EI tem tido algum êxito no recrutamento da populaçãolocal. As pessoas ouvidas dizem que muitos dos seus amigose vizinhos na Síria e no Iraque escolheram juntar­se aosislamistas, tornar­se combatentes, professores oufuncionários dos seus gabinetes governamentais. Algunsfazem­no porque acreditam no seu objectivo de unir omundo sob a sua interpretação radical da lei islâmica. Mas amaioria é por desespero. Em locais onde o preço da comidadisparou e muitas pessoas vivem com pouco mais que pão earroz, alguns homens concluíram que tornarem­seguerrilheiros do EI é a única forma de sustentar a família.

“Não há trabalho, por isso temos de nos juntar a eles sequeremos sobreviver”, diz Yassin al­Jassem, de 52 anos, quefugiu de sua casa em Raqqa em Junho. “Tantos habitanteslocais se juntaram a eles. A fome empurrou­os para oDaesh.”

Peter Neumann, director do Centro Internacional para oEstudo da Radicalização da Violência Política do King’sCollege, em Londres, afirma que embora os combatentesestrangeiros tenham dado um fôlego ao EI, “a longo prazo,acabarão por se tornar um fardo”. O investigador recordaque as tribos locais revoltaram­se contra a Al­Qaeda noIraque em meados dos anos 2000 em parte porque viam o

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grupo como uma organização estrangeira. É da opinião queas pessoas que estão agora sob o controlo do EI poderãofazer o mesmo — sobretudo no Iraque.

No entanto, os entrevistados afirmam que o ISIS não poupaesforços no que se refere à supressão de potenciaislevantamentos, matando qualquer um que suspeite dedeslealdade.

Faten Humayda, uma avó de 70 anos que deixou a sua terraperto de Raqqa em Maio e que agora vive no campo deAzraq, é da opinião de que a violência faz aumentar o ódiodas populações em relação aos islamistas, mas também criadesconfiança entre os locais. E é mais difícil a qualquermovimento de resistência formar­se quando as pessoaspensam que os amigos e vizinhos podem ser informadores.“Eles põem­nos uns contra os outros”, afirma Humayda.

Ahmed, que também abandonou a sua terra nasproximidades de Raqqa, em Junho, adianta que alguns doscombatentes árabes tentam misturar­se com a populaçãolocal, mas que os europeus e os não árabes nunca o fizeram.E apesar de o EI proclamar que o seu objectivo éproporcionar uma vida melhor aos muçulmanos, pareceestar sobretudo concentrado nos combates com os outrosgrupos rebeldes e as forças do Governo. “Eles foram sempremuito agressivos e parecem zangados”, diz. “Estão ali paralutar, não para governar.”

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Crianças fugidas de Mosul num campo de refugiados perto de Arbil REUTERS

Na sua tenda de zinco em Azraq, Jassem conta que quandovivia sob o controlo do EI o neto de dois anos desenvolveuum tumor no cérebro. Os médicos pediam quase 700 eurospara o tratar. Jassem, que é agricultor, estava sem trabalhodesde que os islamistas tomaram a sua vila. Estavadesesperado, e por isso em finais de Maio foi implorar pelavida do neto. O EI fez uma proposta: “Eles disseram­me: ‘Senos deres o teu filho para ele lutar por nós, nós pagamos otratamento do teu neto’”, recorda. A ideia de ter um dosfilhos a combater pelo Estado Islâmico revirava­lhe oestômago, e a ideia de perder o neto despedaçava­lhe ocoração. Então pegou na família e fugiu no camião de umtraficante. Agora, o filho está a pedir apoio médico àsautoridades jordanas para salvar o menino. “Nunca maisvou voltar para a Síria”, diz Jassem, na sua tenda de 5,5 por3,5 metros, olhando para o vazio do deserto jordano. “Já nãoé a minha Síria.”

I Parte

Até que o martírio nos separe

Algures no território sírio controlado pelo Estado Islâmico,uma jihadista holandesa põe um post no Twitter com afotografia de um cheesecake de bolachas Oreo que acaboude fazer. É uma vívida acção de propaganda que partilhacom outros que estejam a pensar viajar para a Síria para sejuntar à causa. Mas também tem um toque pessoalislamista: o cheesecake foi fotografado ao lado de umagranada.

A cerca de 320 quilómetros para sul, num campo derefugiados da Jordânia onde faz um calor abrasador,Rudeina, de 17 anos, diz que a sua vida no Norte da Síria,numa zona controlada pelo Estado Islâmico, e que

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abandonou em Abril, era miserável. Morava numalocalidade perto da cidade de Raqqa, e conta que durantemais de um ano não saiu de casa, com medo de ser raptadaou forçada a casar com um combatente estrangeiro.

“Eles cortaram a Internet, mas nós já nem a queríamos”, dizela. “Se olhássemos para a Internet, veríamos como aspessoas vivem lá fora. Isso entristecia­nos. Ver o mundo láfora era mais uma tristeza.”

Na propaganda do EI, a vida das mulheres doautoproclamado califado está repleta de amor, crianças ealegrias domésticas, tais como um bolo de Oreos. Mas arealidade é, frequentemente, bem mais dura para as queabandonam o mundo árabe, a Europa, os Estados Unidospara ir para lá, afirmam especialistas que analisam as contasnas redes sociais ligadas ao EI. Essas mulheres, quegeralmente são atraídas por ideias românticas de apoio aosrevolucionários e da vida num estado que venera a suareligião, vêem­se rapidamente num sistemainstitucionalizado, quase uma linha de montagem, quefornece esposas, sexo e filhos aos combatentes. E quando osmaridos são mortos, espera­se que celebrem o seu“martírio” e rapidamente casem com outros islamistas.

A situação é ainda pior para milhões de mulheres na Síria eno Iraque que viram as suas cidades e vilas ser tomadas peloEI, revelam os entrevistados, com testemunhos semelhantesa outros dados a organizações de ajuda humanitária eactivistas dos direitos humanos.

“O nosso maior medo era irmos para uma prisão demulheres”, conta Rudeina, sentada na barraca de zinco ondeagora vive, no campo de Azraq. Recusou­se a dar o apelidopor razões de segurança. Diz que os islamistas usariamqualquer pretexto para prender mulheres. “Usam as

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mulheres prisioneiras como esposas de combatentesestrangeiros. Se fores parar a uma prisão, sabe­se lá o quepode acontecer.”

A mãe, Nabiha, de 42 anos, conta que esse foi o destino dafilha de um vizinho, que foi presa por o marido ser soldadodo Exército sírio. “Eles disseram­lhe: ‘Ou casas com umcombatente ou cortamos­te a cabeça e penduramo­la napraça.’ Então, ela casou com um combatente e nunca maissoubemos dela.”

De acordo com a ideologia do Estado Islâmico, o lugar damulher é em casa, a cuidar do marido e a procriar. “Ocriador decidiu que não há responsabilidade mais dignapara ela do que ser a esposa do seu marido”, refere omanifesto “Mulheres do Estado Islâmico”, publicado esteano pela Brigada al­Khanssaa, um grupo feminino do“califado”. O documento foi traduzido para inglês porCharlie Winter, investigador da Quilliam Foundation, emLondres, e oferece a maior descrição feita até aqui sobre aforma como as mulheres são tratadas pelo EI. Determina

(http://imagens3.publico.pt/imagens.aspx/990763?tp=UH&db=IMAGENS)

Duas mulheres no campo de refugiados de Azraq. As suas famílias estão ainda naSíria e por temerem represálias só aceitaram ser fotografadas de costas CHARLESOMMANNEY/THE WASHINGTON POST

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que as mulheres só devem sair de casa para circunstânciasespecíficas, incluindo estudar religião ou trabalhar emsituações em que as mulheres estão absolutamentesegregadas. O manifesto rebela­se contra os valoresocidentais.

As mulheres que optam por se juntar ao EI, quer sejamestrangeiras ou locais que acreditam na sua ideologia,parecem aceitar e até apreciar o seu novo papel. Algumasacabam por se casar por amor e apoiam entusiasticamenteum sistema que rejeita os ideais ocidentais de moda ebeleza. Mas muitas locais acham que as restrições sãoexageradas, antiquadas e aterrorizadoras, segundo asentrevistas.

As regras são particularmente chocantes para as habitantesdas zonas urbanas, como Raqqa ou Mossul, onde asmulheres se vestiam modestamente, mas muitas usavamsimplesmente um lenço sobre o cabelo, calças de ganga esandálias. Agora, são obrigadas a usar, em público, véus quelhes cobrem o rosto todo e vestidos, e não podem sair decasa sem a companhia de um homem.

Amina Mustafa Humaidi, de 40 anos, fugiu de Raqqa emMaio, e diz que nunca deixava a filha de nove anos sair àrua, com medo dos radicais. “Ouvimos muitas histórias desequestros de raparigas nas ruas por parte de guerrilheirosestrangeiros”, conta no seu abrigo em Azraq. “Quando eleschegaram, anunciaram que iriam buscar uma rapariga acada casa e casá­la com combatentes estrangeiros. Nuncaaconteceu. Acho que só disseram isso para nos aterrorizar.”

Mas o medo de Humaidi pela sua filha é justificado: omanifesto diz que as raparigas podem casar­se a partir dosnove anos.

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Para além disso, o EI também tem feito sistematicamentedas mulheres escravas sexuais, nomeadamente mulheres emeninas da minoria yazidi no Iraque, referem grupos comoa Human Rights Watch (HRW) e a Amnistia Internacional.Os próprios militantes, na sua publicação Dabiq, deOutubro de 2014, anunciaram que mulheres yazidis tinhamsido oferecidas a combatentes como “despojos de guerra”.

Um documento oficial do EI publicado no final do anopassado definia as linhas mestras de como as escravasdevem ser tratadas, declarando que é permitido espancá­lase ter relações sexuais com elas antes de chegarem àpuberdade, adianta a HRW.

Os pais de Kayla Mueller, uma activista humanitária na casados 20 anos que foi feita refém, disseram em Agosto aosjornalistas que a filha tinha sido levada como “esposa” e foirepetidamente violada por Abu Bakr al­Baghdadi, o líder dogrupo, de acordo com uma adolescente yazidi que estavacom ela. Mueller morreu nas mãos do EI, mas não seconhece a causa exacta da sua morte.

Entre os seus próprios membros e milhões de mulheresiraquianas e sírias que vivem nos territórios conquistados,os islamistas criaram uma complexa arquitectura social paragarantir aos combatentes um fluxo constante de noivas eescravas sexuais.

Quando um guerrilheiro estrangeiro chega ao EstadoIslâmico com a mulher e os filhos, recebe uma casa, quegeralmente foi confiscada a famílias locais que fugiram ouforam mortas, ou forçadas a sair.

As estrangeiras solteiras são obrigadas a ficar numa pensão,onde recebem comida e uma “mesada”, segundo umrelatório recente do Instituto para o Diálogo Estratégico, deLondres, que analisou as experiências de dezenas demulheres estrangeiras seguindo os seus posts nas redes

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sociais. O investigador Shiraz Maher, do CentroInternacional para o Estudo da Radicalização e ViolênciaPolítica, afirma que os combatentes solteiros estãoautorizados a entrar na pensão, conhecer as mulheres epedir­lhes que levantem os véus. Se gostarem do que vêem,podem ficar imediatamente noivos. Maher adianta que asmulheres no EI têm alguma palavra a dizer sobre com quemcasam, mas não muita. “O processo não é longo”, afirma.“Conhecem­se numa manhã e à tarde estão noivos.”

Ainda assim, e porque as famílias sírias locais mantêm asfilhas longe dos jihadistas, tem havido escassez de mulherespara os combatentes. Alguns, incluindo um britânico,queixam­se no Twitter da incapacidade de encontrar umaesposa — um raro sinal de discórdia na abundantepropaganda cor­de­rosa. “Alguns destes tipos estão a ficarrealmente frustrados”, afirma Maher.

Uma mulher que diz chamar­se Shams, uma agente depropaganda online do EI, descreveu o seu casamento naconta de Tumblr. Diz que esteve solteira durante meses naSíria, onde chegou em Fevereiro de 2014, mas que viver

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Raqqa: Mulher em fuga depois de ataques do exército sírio REUTERS

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assim era “muito difícil” e por isso optou por casar com umcombatente, com quem se encontrara duas vezes. Fez umpost com uma fotografia sua de véu branco, só com os olhosa verem­se, e o marido com uma camisa de manga curtabranca e uma gravata preta muito fina. A legenda:“Casamento na terra da jihad. Até que o martírio nossepare.” Shams identifica­se como uma médica de 27 anosda Malásia e o marido é marroquino. Postou ainda aquiloque disse ser uma selfie dos recém­casados: um estetoscópiopendurado numa AK­47.

Muitas mulheres estrangeiras que vão para o EI sentem­sefrustradas porque não partem para casar, mas para lutar, oque é proibido. “Temos vistos várias mulheres que não estãocontentes com o facto de não poderem combater e que oexpressam claramente”, afirma Peter Neumann. As queixas,adianta, reflectem o fosso entre as sociedades ocidentais —sobretudo da Europa —, onde estas mulheres cresceram, e asua nova casa, que é moldada pela sociedade islâmica de há1400 anos. “Obviamente são atraídas pela ideologiamedieval, mas, ao mesmo tempo, algumas das suas atitudessão muito ocidentalizadas”, diz Neumann.

Erin Marie Saltman, investigadora do Instituto para oDiálogo Estratégico, adianta que a frustração entre asmulheres estrangeiras era visível através dos seus posts cadavez mais duros. “Há mais mulheres agora, e mais mulheresocidentais, e elas estão na verdade a revelar uma voz maisviolenta.”

Muitas, acrescenta Saltman, ficam chocadas por descobrirque a vida no EI está repleta de violência e muita privação,incluindo escassez de electricidade e água potável — longedo paraíso que é apregoado pela propaganda. “Quandochegam ao Estado Islâmico, nunca é aquilo que diz naembalagem”, diz a analista. “Quase são forçadas a

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radicalizar­se ainda mais para justificar a viagem quefizeram, para justificar terem deixado as suas casas paratrás.”

Algumas acabam por ter um papel de quase combatentesnas brigadas policiais femininas que aplicam as regras doEI, controlando sobretudo a forma de vestir das mulheres eas suas actividades. Outras ajudam a revistá­las emcheckpoints.

Mas, de acordo com o manifesto, as mulheres só receberãoordens para combater se for emitida uma fatwa declarandoque a “situação dos muçulmanos é desesperada”.

Para Neumann, é inevitável que o EI comece a recorrer amulheres como bombistas suicidas, como fez, no Iraque, aAl­Qaeda, que deu origem ao Estado Islâmico. Há algunssinais de que algumas têm já guardados em casa coletessuicidas. O relatório do Instituto para o Diálogo Estratégicocita uma mulher que diz chamar­se Umm Khattab e que, emDezembro do ano passado, escreveu no Twitter que ouviutiros em Raqqa e ficou com medo de que a sua casa fosseatacada — de tal forma que, escreveu, “pus o cinto [deexplosivos] e tudo”.

Por definição, o Estado Islâmico estará quase sempre emguerra, já que o seu objectivo declarado é criar um califadomundial por imposição das armas. Isso significa um ciclo demorte infindável dos seus combatentes e incontáveis jovensviúvas que serão encorajadas a voltar a casar com outrosguerrilheiros.

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Mohammed Ahmed com a família em Azraq. Fugiram de Deiral­Zour, na SíriaCHARLES OMMANNEY/THE WASHINGTON POST

Apesar de a maioria dos casamentos no EI pareceremapenas combinações pragmáticas para a procriação,Saltman refere que muitos envolvem, no entanto, laçosprofundos entre marido e mulher. “Há um elementoromântico, de escape, para muitas destas mulheres”,acrescenta. “Quando se é novo, quando se perdeu avirgindade com alguém, teve­se um filho com essa pessoa,ela torna­se o nosso pilar. Não é o tipo de amor que vemosnum filme ocidental sobre adolescentes, mas é uma ligação aalguém. E é um amor muito profundo à sua maneira.”

II Parte

Para os rapazes, Deus e armas.Para as raparigas, Deus ecozinhados

A guerra fechou a maior parte das escolas na terra deYahyah Hadidi, em 2013, com o agravamento dos combatesentre os rebeldes e o Governo sírio. Hadidi, com umdiploma acabado de tirar e uma grande paixão pelaEducação, decidiu fazer alguma coisa em relação a isso.Começou a dar aulas de improviso numa escola abandonadado seu bairro, atraindo mais de 50 rapazes e raparigas pordia. Até que, no início de 2014, chegou o Estado Islâmico eordenou o encerramento de todos os estabelecimentos deensino.

Hadidi ficou desolado e pediu autorização para reabrir aescola, na vila de Manbij, entre as cidades de Raqqa eAleppo, no Norte. Um combatente saudita, alto e barbudo,

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disse­lhe que, se queria ensinar, poderia dar aulas dereligião na mesquita, apenas a rapazes e sob supervisão doEI. “Eu não podia fazer isso”, diz Hadidi, de 26 anos, que emJulho fugiu da Síria com a mulher e que agora vive nocampo de refugiados de Azraq. “Eu queria dar umaeducação boa às crianças e não fazer­lhes lavagens aocérebro.”

O EI arrasou com a educação pública de milhões decrianças, agravando os danos provocados por anos de umaguerra devastadora na Síria e no Iraque (/1706769), dizemas três dezenas de entrevistados.

De acordo com a propaganda do EI, o ensino primário é umpilar da vida quotidiana do autoproclamado califado. Masestes entrevistados dizem que os islamistas praticamente oeliminaram. Fecharam muitas escolas públicas, e, em algunscasos, reabriram­nas depois de darem nova formação aprofessores e readaptarem os currículos à sua interpretaçãoextremada do islão. Eliminaram disciplinas como música,arte e geografia.

Os testemunhos recolhidos sugerem que o sistema deeducação do EI, segregado e desigual, não tem conseguidoatrair muito apoio popular. Os jovens deixam de ir à escola eos combatentes estrangeiros enviam os filhos parainstituições que os doutrinam.

Os testemunhos reflectem largamente as conclusões deanalistas que estudam o Estado Islâmico. “O objectivo dosistema de educação é doutrinar as crianças”, comenta PeterNeumann. “Todos os movimentos totalitários, os nazis ou oque for, põem grande ênfase no doutrinamento dos jovens ena formação de uma geração que constituirá a sociedadecombativa que eles pretendem”.

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O EI faz parte da complexa rede de problemas da Síria, e osjihadistas têm desempenhado um papel significativo naregressão de décadas no ensino público. Um relatório deMarço da Save the Children concluiu que as inscrições dealunos diminuíram para 50%, quando eram de praticamente100% antes do início da guerra civil, em 2011.

O EI tem tentado afincadamente que as crianças frequentemas suas escolas religiosas, nomeadamente através do uso do“Daesh Bus”. Hadidi refere que os radicais atravessamcidades e vilas num velho autocarro branco e chamam ascrianças através de um altifalante, desafiando­as para umaboleia ou para ver desenhos animados num grande ecrã detelevisão. Mas quando os miúdos entram, adianta, recebemsermões de islamismo extremista e panfletos paradistribuírem aos pais.

“Isto é muito perigoso; o nosso país está a regredir 20 anos”,diz Hadidi. “Não só as nossas crianças não estão a recebereducação, como estão a ser arrastadas para caminhos

(http://imagens2.publico.pt/imagens.aspx/990772?tp=UH&db=IMAGENS)

Esta criança iraquiana fugiu da violência imposta pelo EI em Mosul. Está a viverno campo de refugiados de Baherka, em Erbil AHMED JADALLAH/REUTERS

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errados. Vivíamos numa zona rural e levámos muito tempoa convencer os camponeses pobres a enviarem os miúdospara a escola. E agora isso está a morrer.”

Em vez de aprender a ler e escrever, os rapazes aprendem alutar. Muitos dos entrevistados adiantam que existemcampos de treino militar para rapazes que são na maioriaadolescentes, mas onde também se encontram meninos desete anos.

Hikmat al­Gaoud diz que o EI criou um campo de treinopara rapazes numa mina de sal abandonada nas imediaçõesda cidade. “Eles levavam­nos durante três ou quatro mesespara os treinar e eles regressavam combatentes”, afirmanuma entrevista em Amã. “No meu bairro, todos foram,menos o meu filho, que se recusou.”

Gaoud afirma que muitos rapazes sunitas de Anbar sejuntaram ao EI devido à sua revolta contra o Governo deBagdad, dominado por xiitas, que vêem como demasiadopróximo do Irão, também xiita. Mas alguns dosentrevistados apontam outras razões. “Para os jovens, nãose trata propriamente de ideologia”, diz Mohammad Ahmed,de 43 anos, que vivia numa zona rural perto de Raqqa atéfugir com a família para a Jordânia, em Junho. “Vêem osamigos alistarem­se e a voltarem dos treinos com uma AK­47 e com medalhas no peito. Pensam: ‘O meu vizinho agoraé importante e eu também quero ser importante’.”

O seu filho de 14 anos, Ziad, diz que pelo menos 50 rapazesda sua escola, que foi encerrada, se juntaram aos militantes.“Adoram ter as suas armas”, comenta Ziad.

O Estado Islâmico não atribui muita importância à educaçãodas raparigas, a julgar pelo manifesto “Mulheres do EstadoIslâmico”. Satiriza as mulheres ocidentais que se dedicam a“ciências inúteis… que estudam as células cerebrais devacas, grãos de areia e as artérias de um peixe!”

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O documento salienta que as mulheres não podem cumpriros seus papéis de esposas e mães se forem “iletradas ouignorantes”. Mas adianta que a educação das raparigas deveir dos sete aos 15 anos e focar­se na religião e “aprendizagemde tarefas como têxteis, costura e cozinha básica”.

Nabiha, uma mãe de Raqqa, de 42 anos, entrevistada nocampo de refugiados de Azraq, diz que os islamistasdescobriram que a sua sobrinha estudava numauniversidade numa zona da cidade de Homs controlada peloGoverno. Confrontaram­na com isso e ameaçaram executá­la caso a filha não regressasse a Raqqa em 30 dias. “Todossabemos que esta gente não tem misericórdia, por isso elamandou vir a filha”, conta.

Campo de refugiados em Azraq, Jordânia CHARLES OMMANNEY/ THE WASHINGTONPOST

Nabiha conta que os militantes vão porta a porta à procurade pessoas que se tenham licenciado: “Reúnem os diplomase queimam­nos numa grande fogueira.”

III Parte

É como se vivêssemos no séc.XVIII

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Antes de o Estado Islâmico ter capturado a cidade de FatenHumayda, no Norte da Síria, há quase dois anos, uma bilhade gás propano para o seu fogão custava­lhe o equivalente a50 cêntimos. Mas quando os islamistas se instalaram, opreço subiu para os 27 euros, obrigando Humayda acozinhar numa fogueira no quintal.

“Antes era um paraíso”, diz, descrevendo a sua antiga vida,passada nas margens do rio Eufrates. Agora está sentadanuma barraca de zinco de Azraq, onde chegou com ajuda detraficantes.

O Estado Islâmico tem tentado fazer aquilo que a Al­Qaedae outros grupos jihadistas nunca tentaram sequer: criar umestado, com governo e instituições e uma economiafuncional. Apesar de os jihadistas terem algum sucesso degovernação, para milhões de pessoas que estão sob o seucomando tem sido impossível encontrar — ou conseguirpagar — comida, combustível e outras necessidades básicas.

As entrevistas conduzidas neste campo da Jordânia sugeremque o Estado Islâmico criou um sistema no qual a maiorparte dos habitantes locais luta por sobreviver, enquanto osocupantes têm electricidade e alimentação gratuitas e atéprodutos importados, incluindo bebidas energéticas, comoRed Bull.

As pessoas ouvidas referem que é mais fácil encontraralimentos nas áreas onde se cultivam frutas e vegetais ouonde há pastagens de animais. Mas, com o encerramentodas rotas tradicionais de abastecimento devido aoscombates, até produtos básicos, como açúcar ou leite em pópara bebé, têm de ser contrabandeados e são terrivelmentecaros.

A situação é ainda mais grave devido ao número elevado dedesempregados. Fábricas e grandes lojas fecharam asportas, por os donos terem fugido ou porque as matérias­

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primas de contrabando são demasiado dispendiosas.

“Eu só cozinhava lentilhas com arroz. Era tudo o quetínhamos”, afirma Amina Mustafa Humaidi, querecentemente abandonou a cidade de Raqqa com a família eque agora vive no campo de Azraq, no deserto jordano, a 65quilómetros de Amã. Diz que no ano passado o marido foiabatido a tiro pelos combatentes do EI. Depois de elemorrer, a família dele deu­lhe uma panela de pressãoeléctrica, mas só tinha uma hora por dia de electricidade.“Quando a electricidade chegava, meu Deus! Eu ia a corrercozinhar”, conta. “Se deixasse passar essa hora, os meusfilhos não comiam. Tínhamos frigorífico, mas não podíamosusá­lo.”

Sentada no chão de cimento, Humaidi conta que o filhomais novo tinha nove meses quando os islamistas chegarama Raqqa, e de repente ela deixou de conseguir encontrar leiteem pó para lhe dar. “O Estado Islâmico não trouxe ordem.Trouxe caos”, diz.

Os novos governantes também se mostravam contra a ajudahumanitária estrangeira. Em Abril, apareceram fotografiasem sites do Estado Islâmico que mostravam islamistas aqueimar dois carregamentos de frango vindos dos EstadosUnidos e destinados às vítimas da guerra civil síria(/1709616).

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Os cuidados médicos e os medicamentos tambémescasseiam, e muitos hospitais só tratam de membros do EIou reservam as melhores equipas e equipamentos para eles,segundo relatos de pessoas entrevistadas na Síria e noIraque.

Muitos profissionais de saúde fugiram quando oscombatentes do EI chegaram. Agora, se um médico pedirautorização para se deslocar para fora das áreas controladaspelos islamistas, é­lhe exigido que tenha até cinco pessoas agarantir que regressará, dizem testemunhas. Se não voltar,os familiares ou amigos que apresentaram a garantia serãopunidos ou mortos.

Em Mossul, uma cidade com mais de um milhão de pessoas,os médicos queixam­se de que lhes falta praticamente tudo:radiologistas, anestesias, sangue. “Todas as dificuldades quepossa imaginar nós temos”, declarou uma médica iraquianado hospital de Mossul.

A mesma profissional adianta que o hospital deixou de fazercirurgias preventivas, reservando os recursos somente paraas operações destinadas a salvar vidas. Os cortes de energia

(http://imagens5.publico.pt/imagens.aspx/990775?tp=UH&db=IMAGENS)

Bandeira do EI em Raqqa em Junho de 2014 REUTERS

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significam que o hospital tem de depender de geradores,mas muitas vezes é difícil encontrar combustível para eles.Se não houver electricidade para as bombas de água, não háágua. “Imagine um hospital sem água”, diz a médica. “Écomo se estivéssemos a viver no século XVIII. Estou a tentarsair de Mossul, mas tenho uma casa boa, que resultou dosmeus 25 anos de trabalho. Não posso deixar a minha casa, éo fruto da minha vida. Mas isto não é vida.”

Para controlar as pessoas que governa, o EI criou governoslocais que regulam serviços como licenças de construção oude pesca. (Pescar com dinamite ou baterias eléctricas éagora proibido.)

Nas entrevistas, algumas pessoas referem que os serviçospúblicos pararam, enquanto outras dizem que o EI osmelhorou.

Um líder religioso de Fallujah, cidade no Centro do Iraque,que pediu para não ser identificado por razões de segurança,disse numa entrevista por telefone que é contra osislamistas, mas que eles instalaram um governo eficiente.Adianta que criaram gabinetes que emitem licenças decasamento e bilhetes de identidade ou resolvemcontenciosos. Funcionários pagos pelo EI varrem as ruas earranjam geradores que garantem iluminação em algumasruas, diz.

Também instalaram tribunais da sharia [lei islâmica] e umadelegação da Hisbah, uma espécie de departamento dapolícia religiosa.

“Eles controlam os preços; se alguém subir demasiado ospreços, é punido”, afirmou o responsável religioso.

Várias das pessoas entrevistadas referiram que nosanteriores governos sírios e iraquianos pediam­se subornosdescaradamente, mas que o EI parece ter regras mais

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estritas contra o recebimento de luvas por parte dos seusoficiais.

“As coisas estão bem regulamentadas”, afirma umempresário de Raqqa, entrevistado via Skype, reconhecendocom relutância que alguns dos engenheiros, arquitectos eoutros profissionais com habilitações recrutados pelosislamistas em várias partes do mundo melhoraram osserviços.

“Já não vemos lixo atirado para o chão como era costume”,exemplifica.

Mas também há quem diga que os membros do EI estãomuito mais preocupados em combater do que em melhorara vida do dia­a­dia dos cidadãos.

O Estado Islâmico é financiado (/1711277) através do desviode petróleo, assalto a bancos, extorsão, sequestros, venda deantiguidades (/1697260) no mercado negro — e da cobrançade impostos às populações locais. As pessoas ouvidas peloWP dizem que costumavam reservar entre 2,5% e 10% dosseus rendimentos para o zakat, uma contribuição decaridade que os muçulmanos fazem para ajudar os pobres.Mas agora o EI exige que esses pagamentos sejam feitos àprópria organização.

O activista Abu Ibrahim al­Raqqawi acusa o EI de usar ozakat e outros impostos e taxas para pagar aos seuscombatentes e outros estrangeiros que vieram juntar­se aoEstado Islâmico. Os estrangeiros não pagam impostos.

Humayda, a avó que fugiu de uma aldeia perto de Raqqa,acusa os islamistas de terem levado 10% da colheita de trigoda sua família, argumentando que era para os pobres. Dizque uma ou duas vezes por ano o EI distribui umcarregamento de comida na aldeia e que quem a queriatinha de lutar por ela.

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Apoiantes do Estado Islâmico festejam perto de Aleppo FADI AL­HALABI/REUTERS

“Acho que estão a tentar que fiquemos iguais a eles”, afirma.“E depois dão chicotadas aos pobres que não pagam osimpostos.”

IV Parte

A lei do medo e da violência

Os jihadistas arrastaram o homem vendado para a praçacentral de uma localidade perto de Raqqa. Foi numa sexta­feira, logo a seguir às orações, e o mercado estava aabarrotar de pessoas. Gritaram que ele era um espião doGoverno e retiraram­lhe a venda para que todos lhepudessem ver a cara. Nabiha, uma mulher de 42 anos quefugiu da cidade e vive agora em Azraq, lembra­se de como sesentiu enojada pela forma como os radicais forçaram ohomem a baixar­se até um bloco de madeira, daqueles quesão usados no abate de ovelhas, e levantaram um cutelo detalhante. “Bastou um golpe”, diz Nabiha, que pediu que oseu apelido não fosse usado por razões de segurança. “Ocorpo foi para um lado, a cabeça para outro. Nunca me vouesquecer.”

O EI usa o seu brutal e tantas vezes arbitrário sistema dejustiça para manter sob controlo os milhões de pessoas quevivem nos seus territórios. Com as decapitações ecrucificações públicas de pessoas que podem ser apenas

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suspeitas de deslealdade, criaram uma cultura de horror epavor tal que praticamente ninguém tem coragem decontestar.

“Para vocês que nos vêem de fora pode parecer tão simplesperguntar: ‘Mas por que é que não há mais pessoas aenfrentar o Daesh? Por que é que não se ouvem mais vozes acontestá­los?’”, diz um homem de negócios em Raqqa comquem falámos por Skype e que recusou ser identificado.“Mas isso é porque não são vocês que têm de viver com eles,debaixo das suas ordens.”

Segundo os entrevistados, quem vive sob o jugo do EI estásujeito a um regime extremo de leis impostas pela polícia epelos juízes, na sua maioria estrangeiros vindos da Tunísia,Líbia, Arábia Saudita, Rússia, França, Grã­Bretanha e outrospaíses. Os relatos são considerados fidedignos e consistentescom as conclusões dos analistas que se têm dedicado aoestudo do EI e de activistas dos direitos humanos.

As decisões dos tribunais assentam numa interpretaçãoextrema da sharia. E para algumas localidades é mesmodeslocado um departamento da polícia feminina parareforçar as disposições legais para as mulheres e garantirque nas escolas, nos hospitais e noutros serviços públicosreina a segregação por género.

Para todos os que fumam cigarros, bebem álcool, mantêm aslojas abertas durante as horas de oração ou se vestem àocidental está­lhes reservado serem chicoteados em público— ou pior.

Yassin al­Jassem lembra­se bem do dia em que o EIapanhou um adolescente, filho de um vizinho, a fumar umcigarro. “Prenderam­lhe a mão esquerda em cima de umbloco de madeira e com uma enorme faca de talhante

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deceparam­lhe dois dedos, precisamente aqueles com quesegurava o cigarro”, conta Yassin. “Depois, atiraram­no parao meio da rua, entregue à sua sorte.”

Os suspeitos de espionagem ou de colaboração com osinimigos do EI são executados. As mortes acontecemgeralmente em dias de mercado ou depois das orações dassextas­feiras, em locais de grande visibilidade, de forma agarantir que um número máximo de pessoas assiste àbarbárie.

Yahyah Hadidi diz que a principal praça da sua cidade, pertode Aleppo, ficou conhecida como “Praça do Julgamento” porser o palco de execuções todas as sextas­feiras. “Puseram láum mastro em forma de L e dependuravam os corpos e ascabeças com ganchos de talho”, diz. “Querem aterrorizar aspessoas. Muitos muçulmanos são boas pessoas e como nãopensam como eles são chacinados”, acrescenta.

(http://imagens4.publico.pt/imagens.aspx/990774?tp=UH&db=IMAGENS)

Centro de Qusair, quando as tropas fiéis a Assad reconquistaram a cidade em2013 REUTERS

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Ahmed Ali Humaidi, 19 anos, fugiu recentemente com a suafamília de Raqqa para a Jordânia. Diz que osrevolucionários decapitam as pessoas numa rotunda mesmono centro da cidade e deixam as cabeças penduradas empostes. “A minha vida sempre me correu bem e nunca tinhasentido medo. Mas quando vi o que acontecia, aí pelaprimeira vez senti medo”, relata.

De acordo com alguns dos entrevistados, o sistema dejustiça criminal do EI é menos corrupto do que asinstituições sírias sob governo do Presidente Bashar al­Assad. E no Iraque houve quem se tivesse juntado ao EIporque os sunitas preferem isso a viver sob o Governo deBagdad, dominado por xiitas.

Hikmat al­Gaoud, o antigo presidente da Câmara de Hit, noIraque, tem tentado recrutar nómadas sunitas para lutarcontra o EI, que diz odiar. Mas acrescenta que há iraquianosque se juntaram aos revolucionários com o seguintediscurso: “O Governo do Iraque não me me respeita, nem àminha mulher e à minha família. Se tiver de andar de mãosdadas com o mal para poder viver a minha vida comdignidade, fá­lo­ei. E o Estado Islâmico é o menor dos doismales.”

Por outro lado, Jassem afirma que o sistema de justiça do EIé caprichoso e abusivo. Diz que três dos seus vizinhos forammortos porque tinham inimigos que contaram mentirassobre eles ao Daesh.

Uma mulher que vive em Mossul, no Iraque, e que pediupara não ser identificada, diz que recentemente o EI cortouas mãos a quatro rapazes, de 14 ou 15 anos apenas, porqueforam acusados de roubar fios de electricidade paraconseguirem luz nas suas casas. Em entrevista por Skype,disse ainda que soube de um homem a quem cortaram asorelhas por ter feito queixas do EI. “Tenho medo deles. Olho

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para eles, com as suas armas e as suas facas, e penso: ‘Sãouns monstros. Como é que chegaram até aqui?’ Roubaram­nos a nossa cidade”, conclui.

Noutra entrevista por Skype, uma outra mulher de Mossuldiz que receia pelo futuro dos filhos, que estão a ser criadose educados a assistir a tamanha violência. “Na semanapassada, o meu filho de seis anos roubou um rebuçado aoirmão. E depois disse: ‘E agora, vais cortar­me a mão?’Preferia já ter morrido a ter de ouvir do meu filho uma coisacomo esta”, conta. Recorda ainda como há pouco tempo,quando seguia de carro com a família, se deparou com umaexecução. Era tanta gente a assistir que a estrada estavabloqueada. “Comecei a chorar e tapei os olhos dos meusfilhos para que não vissem. Não sei como será o futurodeles. Mas não temos condições para fugir.”

Hadidi, que vive numa localidade perto de Aleppo, diz quefrequentemente há estrangeiros que militam no EI a chegarà sua loja de telemóveis para o revistarem e verem as suascontas. Depois, vão a casa dos seus clientes para lhesinspeccionar os telefones. Diz que chicotearam umadolescente só porque ele tinha descarregado música para otelemóvel e que executaram dois outros porque descobriramque tinham a bandeira da Síria nos telefones e por isso eramapoiantes do Governo. “Pensam que toda a gente é espia”,conclui.

Com Souad Mekhennet, em Marrocos e Berlim, LovedayMorris, Erin Cnningham e Mustafa Salim, no Iraque, KarlaAdam, em Londres, e Taylor Luck, na Jordânia. ExclusivoPÚBLICO/The Washington Post

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COMENTÁRIOS

18/10/2015 14:00

Luis Simões

"Hadidi, que vive numa localidade perto de Aleppo, diz quefrequentemente há estrangeiros que militam no EI a chegar à sualoja de telemóveis para o revistarem e verem as suas contas.Depois, vão a casa dos seus clientes para lhes inspeccionar ostelefones. Diz que chicotearam um adolescente só porque eletinha descarregado música para o telemóvel e que executaramdois outros porque descobriram que tinham a bandeira da Sírianos telefones e por isso eram apoiantes do Governo. “Pensamque toda a gente é espia”, conclui." Mas os EUA dizem que oISIS não está em Aleppo...

18/10/2015 13:35

Marcos Ferreira Pinto Basto

Porque os países da CE não vão ao Oriente Médio acabar com oestado islâmico? Ajudaram a destruir a Líbia, grande parceirocomercial e continuam a colaborar com os EUA na tentativa dearrazar a Síria, provocando a imensa onda de refugiados queprocuram a Europa! Estão esperando o quê?

20/10/2015 12:02

AleximandrosSetúbal

...o petróleo ao preço da chuva! Compram aoEstado Islâmico e não aos curdos que ocombatem! Além do mais o Estado Islâmicoserve os interesses da UE e dos EUA como"tampão" contra o Irão e o Ditador Assad etambém consome armas e carrinhas Toyota...Os "políticos" que "choram" pelas mortes dosoutros e "ficam em pânico" com as vagas de

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