A Vida de Um Almocreve
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A VIDA DE UM ALMOCREVE
Nuno Maneta – Etnografia Portuguesa 3º Ano Licenciatura Antropologia ISCTE – 2015/2016
Palavras-chave:
Cantos de trabalho, Ergologia,
Etnomusicologia,
Gostaria de analisar neste ensaio a relação da melodia cantada no exercício das tarefas
diárias assim como a cultura musical que surge desta relação. Os Cantos de trabalho não
nascem na alegria mas na dor, na angústia de chegar ao fim de mais um dia de trabalho.
Hoje devido ao trabalho de homens como Michel Giacometti essas melodias foram
preservadas sendo referenciadas como de interesse regional, nacional até mundial como
é o caso do Cante Alentejano.
Esta relação entre o canto e trabalho não é uma característica nacional apenas, pois
podemos encontra-la até aos anos 50 nos campos de algodão nos EUA ou na construção
de ferrovias Norte Americanas como os “Gandy Dancers”. Tendo havido este tipo de
representações pelo mundo inteiro nem sempre foram registadas, o trabalho de recolha
de Giacometti é muto relevante por ter registado praticas que entretanto desapareceram
do panorama laboral de Portugal.
Os mais belos cantos ritmados surgiram quando o trabalho era o mais pesado sendo a
única forma de sincronizar o esforço as vozes em sincronia. Analisarei aqui alguns dos
filmes de cantos de trabalho nomeadamente na forma de expressão e na relação com o
trabalho.
A VIDA EM 3 TEMPOS
Muitos tiveram a sorte de ser embalados nas sonoridades maternas em forma de cantigas
de embalar, aninhados ao colo ou deitados no berço envolvidos pelo som sereno e
harmonioso das suas melodias.
Outro só conhecem o canto quando a vida se torna adulta e a angustia da fome e da
labuta surge. Não tens de comer canta! (RTP, s.d.) (Episódio Baixo-Alentejo)
O Mapa interativo criado pelo Museu da Música Portuguesa, da Câmara Municipal de
Cascais e pela Casa Verdades Faria, dispõe de 62 excertos de recolhas etnográficas que
Michel Giacometti recolheu entre os anos de 1970 e 1974 com a exceção do filme 55 –
(O Alar da Rede) que terá sido recolhido em 1962. Vou incidir aqui nos 12 cantos de
trabalho disponíveis.
Os filmes estão organizados em 3 cores, cada cor aglomera um conjunto tipo da música
popular Portuguesa:
A Verde - Cantos de Trabalho
A Roxo - Cantares Religiosos
A Azul - Instrumentos, Instrumentistas e Cantos Populares Lúdicos.
Podemos afirmar que estes são 3 dos tipos de representações orfeicas populares mais
relevantes na cultura popular portuguesa. Trabalho, Ócio/lazer e Devoção Religiosa.
Os Cânticos têm os seus lugares e momentos próprios onde crescem, se desenvolvem e
mas deixam de perduram quando as condições de trabalho se alteram
CANTOS DE TRABALHO
Os cantos de trabalho são sempre fascinantes. Observo neles o poder que a voz tem sobre
o músculo, moldando o corpo ao compasso pretendido, o poder que tem sobre a
sanidade mental de quem trabalha em condições precárias, são melodias continuadas
que se tornam indispensáveis para o avanço do trabalho. Os cantos de trabalho, superam
o silêncio quando se tratam de tarefas repetitivas que envolvem esforço, combatendo o
silêncio que muitas vezes agudiza a dor e amplia a monotonia. Os Cantos de trabalho
evitam que as preocupações tomem conta da mente. Como o povo diz: “Quem canta seus
males espanta”
Para quem trabalha a terra, torna-se fácil soltar a voz no meio de uma labuta rotineira
quase sempre solitária mesmo com companhia. Trata-se de uma luta interior e pessoal,
ninguém quer ficar para trás na cadência mecânica da enxada que ao sulcar a terra escreve
nela as notas musicais respetivas como se o talhão de terra de uma pauta musical se
tratasse. O soprar das vozes auxilia a respiração até ao alcance das metas estabelecidas.
As modas choradas que guiam a mula que puxa o arado beneficiam tanto o agricultor na
sua lide como o animal que carece de orientação.
Na moda da lavoura (Filme 1 – Moda da Lavoura) é evidente o cariz de lamento da
vocalização do trabalhador rural, de seu nome António da Assunção Lopes. António faz-
nos Uma declaração de pesar um reconhecimento da arduidade da empreitada que por
outro lado enaltece o trabalho em si, pois só vinga nesta árdua vida rural quem aceita a
condições da vida de um almocreve e as supera, Vejamos a letra:
Nestes campos solitários Onde a desgraça me tem, Brado, ninguém me responde, Olho, não vejo ninguém. A vida do almocreve É uma vida arriscada, Ao descer uma ladeira, Ao cerrar uma carrada!
Quando Michel Giacometti pergunta a António o nome da moda, ele precisa de cantarola-
la para se recordar da letra, porque a letra para ele só faz sentido no contexto cantado de
arado na mão, nunca terá visto sequer a letra escrita, passou para ele de forma oral ao
ouvir os velhotes que o iniciaram na lavoura.
A letra constata a ausência de pessoas em redor, essa desertificação amplia os perigos do
trabalho no campo, se o trabalhador calha a ter um acidente não existe ninguém que o
acuda, essa constatação é um dos lamentos mais presentes nas cantigas populares
Alentejanas.
Vamos encontrar esse lamento em Dornelas, (Filme 23 – Toque da Roda) povoação do
concelho de Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra. Numa roda de madeira que se
destinava à irrigação das hortas, minúsculas, nas margens do rio nas margens do rio
Zêzere. Podemos reparar que nos tempos de silêncio todos os outros sons se ampliam, a
água a correr, o ranger da roda. A perigosidade da tarefa requer concentração para se
colocar um pé á frente do outro o peso da água mantem a roda com a resistência
necessária para ser contrabalançada com o peso da mulher.
As palavras cantadas mais uma vez são referentes à própria tarefa, criando de alguma
forma maior concentração na tarefa em si. Se a cabeça viajasse para uma ode a grandes
amores, seria provável que a mente perdesse a concentração da tarefa em mãos.
A forma de canto da Cava da Manta, (Filme 22 – Cava da Manta) é um tipo de canto de
trabalho muito usado em diferentes partes do mundo aqui é notória a funcionalidade
entre o canto e o trabalho que se torna cadenciado pela voz. Guiados pelo mandador que
sopra encorajamentos vocalizados acelerando ou afrouxando a cadência com orientações
curtas, a célula de trabalhadores responde com um sopro cadenciado enquanto cravam
a enxada na terra. A relevância destes cantos está na capacidade de ritmar trabalhos
coletivos que por vezes exigem esforço conjunto. Essa sincronia de outra forma não seria
possível. Constatamos isso mesmo noutro filme (Filme 54 – A Pedra) em que o alvanel
António Canha Soares orienta o trabalho com simples exclamações monossilábicas,
funcionalidade vocal que vamos encontrar no Alar da Rede ( Filme 55) em que a recolha
da rede é acompanhada com uma cantilena respiratória orientada por uma voz e
respondida pelas restantes. Estes cantares além de sincronizarem o esforço preveniam a
distração de alguns elementos.
Abordando o tema reflexivamente
Há muitos anos atrás após ter saído precocemente da escola dei comigo a trabalhar numa
empresa gráfica como aprendiz numa máquina de Offset. O som das máquinas era
ensurdecedor mas ritmado, uma das tarefas que me assistia era enquanto a máquina
imprimia observar as ventosas de aspiração do papel a fim de prevenir que as folhas
entrassem tortas. Era uma tarefa rotineira e enfadonha mas que requeria algum ouvido
para o som que as ventosas faziam quando aspiravam mal.
De repente surge um colega meio agitado que grita: - Há fogo no Chiado está tudo a
arder!
No meio daquelas tarefas rotineiras cantava ao ritmo das ventosas, ajudava-me muito a
abstrair das solicitações mentais que um jovem de 16 anos normalmente tem, desta forma
andava sempre à procura de inspiração temática para preencher a mente.
O chiado a arder? Que grande tópico pensei!
Assim enquanto o Chiado ardia no dia 25 de Agosto de 1988 eu escrevia uma canção
para melhor superar a empreitada em mãos.
Há fogo no Chiado
Está tudo a arder
É melhor teres cuidado
Se não queres morrer
Polícias e Bombeiros
Mas que grande aflição
A tentar salvar o Carmo
Desta triste situação
Tudo começou com uma vela
Tudo ficou encarnado
Ardeu o Grandella
E Queimou-se o Chiado
Não se descobriu o culpado
Desta grande desgraceira
Vejam só a brincadeira
Deste grande desgraçado
Os Cânticos as sonoridades têm os seus lugares e momentos próprios onde crescem se
desenvolvem e perduram.
Separo os cantos de trabalho em dois grupos: Os solitários ou lamentativos e os de grupo
e cadenciados que também aqui dou uma experiência pessoal.
Nos tempos de serviço militar, obrigatório, fui destacado para a Escola Prática de
Artilharia em Vendas Novas, acabei por ficar retido grande parte dos fins-de-semana no
quartel, por indisciplina, nada de insurgências, mas pregoava chalaças em momentos
críticos durante os exercícios, em momentos que os oficiais tentavam criar circunstâncias
de stress, para fazerem de nós homens valentes, que eu normalmente não levava a sério.
As corridas de 15 ou 20 km eram tão dolorosas como para o meu companheiro ao lado,
no entanto era um dos que no sofrimento não podia conseguia estar calado e lançava o
que podia. Decidi pensar numas frases e contribuir para o esforço coletivo e para o
acerto da passada do pelotão nos exercícios.
E um dia sendo o Homem da fila da esquerda mais recuado gritei enquanto corríamos:
- Meu Tenente dá licença que cante uma canção para os meus camaradas repetirem?
- Cante lá – Vamos lá ver o que é que vai sair daí.
Aqui vai o 2º pelotão
O melhor da Bateria
Sempre pronto para acção
Quer de noite quer de dia
Oh Oh Oh
Oh Oh Oh
Este era uns dos versos dos 6 ou 7 que criei para cantarmos que vejo agora que os já
esqueci. A partir daquele dia as corridas “Marcor”1 passaram a ser mais fáceis e estes
cantos passaram a ser o orgulho do 2º pelotão que se tornou no único pelotão que
cantava na Escola prática de Artilharia, pelo menos naquela incorporação de 1992, tinha
um poder motivacional tremendo principalmente quando em corrida nos cruzávamos
com outros pelotões.
Em conclusão ainda hoje apesar das maquinarias substituírem o trabalho manual, apesar
dos tratores terem rádio nas corridas usamos leitor de MP3 amenizar o trajeto ainda há
espaço para os cantos de trabalho. Como o caso do pintor que na remodelação do prédio
onde habito que quase diariamente me acordava ao som do seu assobio.
1 Corridas Marcor, são corridas feitas no exercito com extensões variadas 5,10 ou 20km, feitas em T-shirt e de metrelhadora segura à frente do corpo com as duas mãos
Alguns exemplos universais de cantos de Trabalho
A Cava da Manta à moda do Mississippi
https://youtu.be/-3x6a6QvvdM?list=PLF05ED443B738D6F2
Lenhadores prisioneiros em sincronia no Texas
https://youtu.be/wFSlw8LlIw0
A força em sincronia dos Gandy Dancers dos caminhos-de-ferro
https://youtu.be/c1O2X890tig
A polifonia numa prisão da Africa do sul
https://youtu.be/9QDeQeV3ixc
Os cantos de honra e motivação das forças armadas
https://youtu.be/7WIBbTF6TFk
1 BIBLIOGRAFIA (MÚSICA, S.D.)
Música, M. d. (s.d.). Uma viagem pelo trabalho de Michel Giacometti. Obtido de Povo que canta:
http://www.arcgis.com/apps/MapTour/?appid=6fb857f1ff434600acd2277fbd550399#info
RTP. (s.d.). Povo que ainda Canta. Obtido de Media.rtp.pt:
http://media.rtp.pt/opovoqueaindacanta/episodios/