A UNIDADE DUAL: (Manoel de Barros e a poesia) 1 volume · Manoel de Barros poetry shows us the word...

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José Carlos Pinheiro Prioste A UNIDADE DUAL: (Manoel de Barros e a poesia) 1 volume Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Semiologia), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Semiologia). Orientador: Ronaldo Lima Lins. Rio de Janeiro 2006

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José Carlos Pinheiro Prioste

A UNIDADE DUAL: (Manoel de Barros e a poesia)

1 volume

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Semiologia), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Semiologia).

Orientador: Ronaldo Lima Lins.

Rio de Janeiro 2006

2

FOLHA DE APROVAÇÃO

José Carlos Pinheiro Prioste

A UNIDADE DUAL: (Manuel de Barros e a poesia) Rio de Janeiro, 28 de julho de 2006 ________________________

(Ronaldo Pereira Lima Lins, Professor-Doutor, UFRJ) ________________________

(Luiz Edmundo Bouças Coutinho, Professor-Doutor, UFRJ) ________________________

(Ronaldes de Melo e Souza, Professor-Doutor, UFRJ) ________________________

(Rita de Cássia Miranda Elias, Professora-Doutora, Centro Universitário da Cidade)

________________________ (Sônia Monnerat Barbosa Professora-Doutora, UFF)

________________________

(Antônio Jardim, Professor-Doutor,UFRJ)

________________________ (Victor Manuel Ramos Lemus,Professor-Doutor,UFRJ)

3

In memoriam

minha mãe

com quem aprendi a ser zelante da delicadeza,

de quem não aprendi a serenidade do jasmim

4

Lembramentos:

Amélia de Nóbrega

Ana de Jesus

João Vieira Publio

Joaquim Frias Pinheiro

Júlia de Freitas

5

RECONHECENÇA

A minha mãe pela SABEDORIA em seu ninhário de singelezas.

Ao pássaro que me privilegiou com seu canto enquanto escrevia a outra

parte.

Ao contribuinte brasileiro.

À Camila, Caio e Lucas e a todas crianças pela ensinança dos

desensinamentos.

À beleza do ilimitável da língua portuguesa.

A Ronaldo Lima Lins pela solicitude e fidedignidade.

A Antônio Jardim por uma ínvia diretriz que se fez quase exeqüível.

A Ronaldes de Melo e Souza pelas lições de equanimidade frente às

adversidades.

Aos alunos com quem preciso aprender a não perder o sabor na pretensão

do saber.

À passarada (bem-te-vis, beija-flores, garças, sanhaços,...), ao florejar de

jasmins, girassóis, brincos-de-princesa e muito mais: à vivificação da chuva

e do sol, à iridescência do arco, ao silencial e ao amanhecente.

Às pedras e espinhos no meio do caminho.

Ao eternífluo da vida que emana de DEUS.

6

ILUMINAMENTOS:

Cristo por ensinar através de parábolas o velar e o revelar.

Padre Vieira por molhar nossos lábios com a lábia de nossa língua.

Euclides da Cunha por derriscar o traçado limitâneo entre o histórico e o

literário, entre o poético e o documental, entre o factual e o estético.

Guimarães Rosa pela avessia da travessia de um linguajar na terceira

margem da língua.

Haroldo de Campos enxadrista interestelar da linguagem a iluminar as

galáxias da prosa com as rutilâncias da poesia.

Renina Katz por ter feito na USP provavelmente a primeira tese não verbal

no Brasil em cuja introdução a uma série de gravuras somente constava o

poema de Carlos Drummond de Andrade Paisagem: como se faz.

Walter Benjamin por ousar, frente às fronteiras, dizer coisas como “o tédio

é o passaro de sonho que choca os ovos da experiência”.

7

Será que os absurdos não são as maiores

virtudes da poesia?

Será que os despropósitos não são mais

carregados de poesia do que o bom senso?

Manoel de Barros,

Exercícios de ser criança

Tudo que os livros me ensinassem

os espinheiros já me ensinaram.

Tudo que nos livros

eu aprendesse

nas fontes eu aprendera.

O saber não vem das fontes?

Manoel de Barros,

Cantigas por um passarinho à toa

8

RESUMO

PRIOSTE, José Carlos Pinheiro. A unidade dual: (Manoel de Barros e a poesia). Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura)- Faculdade de Letras,Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

A poesia de Manoel de Barros destaca a palavra como invenção

de um mundo no qual as oposições não constituem paradoxos, mas uma unidade complementar dos contrários. O conhecimento racional defende a separação entre o sentir e o pensar para estabelecer um método seguro e firme de uma avaliação exata da realidade e da verdade. A poesia prefere a contradição de um pensar em que os contrários, como clareza e obscuridade, se unam em uma integração indivisível. O pensar poético procura uma concepção diferente da análise linear e objetiva dos estudos literários. A linguagem deste outro pensar combina o imaginativo ao intuitivo como meio de apreensão de uma lógica próxima à condição originária do humano encoberta tanto pelo racionalismo calculador objetivo como pela linearidade objetiva.

9

ABSTRACT

PRIOSTE, José Carlos Pinheiro. A unidade dual: (Manoel de Barros e a poesia). Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura)- Faculdade de Letras,Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

Manoel de Barros poetry shows us the word as an invention of

an universe that the oppositions don’t constitute paradoxes, but a complementary unit of contraries. The rational knowledge postulates a separation between the feeling and the thinking to establish an exact and secure method of evaluation about the reality and the truth. The poetry prefers the contradiction of a thinking that the contraries, like clarity and obscurity, gather themselves in an indivisible integration. The poetical thinking needs a different conception of linear and objective analysis of literary studies. The language of another thinking combines the imaginative and the intuitive as expression of apprehension of a logical similar to the human condition originary hidden into the rationalism as the objective linearity.

10

ILUSTRAÇÕES: Ilustração 1: Os valores pessoais, René Magritte, 1952, p. 105.

ABREVIATURAS

Foram utilizadas as seguintes referentes às obras de Manoel de Barros:

APA – Arranjos para assobio

CCAPSA – Concerto a céu aberto para solos de ave

CPT – Cantigas por um passarinho à toa

CUP – Compêndio para uso dos pássaros

EF – Ensaios fotográficos

ESC – Exercícios de ser criança

FA – O fazedor de amanhecer

FI – Face imóvel

GA – O guardador de águas

GEC – Gramática expositiva do chão

LI – O livro das ignorãças

LPC – Livro de pré-coisas

LSN – Livro sobre nada

MP – Matéria de poesia

MI(I) – Memórias inventadas – A infância

MI(SI) – Memórias inventadas – A segunda infância

P – Poesias

PCSP – Poemas concebidos sem pecado

PQT – Poesia quase toda

PR – Poemas rupestres

RAQC – Retrato do artista quando coisa

TGGI – Tratado geral das grandezas do ínfimo

11

SUMÁRIO

1- COMEÇAMENTO SEM CONCLUDÊNCIA..................................................1

UMA PARTE

TESE: ELEGIA À DIVINAÇÃO

2- HUMANO, CONSIGNADO HUMANO.........................................................21

2.1- POSTAIS DA CIDADE............................................................... .....................25

2.2- RETRATOS A CARVÃO.................................................................................32

2.3- BOCA.................................................................................................................34

2.4- COISAS DESÚTEIS..........................................................................................37

2.5- O HOMEM DE LATA.......................................................................................43

2.6- ENTRE O ÚTIL E O INÚTIL...........................................................................44

2.7- O ALICATE CREMOSO E O PARAFUSO DE VELUDO..............................49

2.8- SOB A VIGÊNCIA HEGEMÔNICA DA TÉCNICA.......................................52

2.9- A MÁQUINA.....................................................................................................55

2.10- A MÁQUINA DE CHILREAR.......................................................................57

2.11- A COISA..........................................................................................................60

2.12- LÍRICA E SOCIEDADE.................................................................................64

2.13- A TEOLOGIA DO TRASTE...........................................................................68

2.14- O DESSUJEITO...............................................................................................78

12

3- O PRIMADO DA CONTRADIÇÃO.................................................................82

3.1- UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO..................................................................89

3.2- OS DESLIMITES DA PALAVRA...................................................................104

3.3- A LÍRICA EM FRAGMENTOS......................................................................112

3.4- MUNDO PEQUENO.......................................................................................120

3.5- POESIA E VIDA.............................................................................................127

3.6- DA AGNOSIA À OUTRA AGNIÇÃO (RECAPITULATIVO).....................133

OUTRA PARTE

ANTI-TESE: ELOGIO AO DEVANEIO

4- PRINCÍPIOS....................................................................................................137

4.1- O EXTRAORDINÁRIO NO ORDINÁRIO....................................................140

4.2- OS LIMITES DA SUJEIÇÃO.........................................................................146

4.3- O DIZÍVEL DO POSSÍVEL E O CONCEBÍVEL DO IMAGINÁVEL.........150

4.4- AO ALINHAVAR DAS PALAVRAS....................................... ....................156

4.5- DIDÁTICA AO AVESSO...............................................................................162

4.6- NA FONTE DA INFÂNCIA...........................................................................168

4.7- O DELINQÜIR DO DELÍRIO........................................................................174

4.8- OS DESLIMITES DO SUJEITO......................................................................180

4.9- ENTRE O PERMANECENTE E O TRANSITIVO........................................186

4.10- FINS...............................................................................................................192

5- INCONCLUDÊNCIA DE UM COMEÇAMENTO.......................................193

6- BIBLIOGRAFIA...............................................................................................197

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1 – COMEÇAMENTO SEM CONCLUDÊNCIA

HUMANO, onde reside o humano? O que qualifica o humano? Este se

apresenta como uma identidade unívoca, uniforme, legível e reconhecível de forma

imediata à percepção do senso comum? Ou se representa através de uma língua a

dissimular a mediação verbal a designar o que se denomina de realidade? A exatidão

das idéias claras e distintas que configuram a racionalidade hegemônica como meio

supostamente preciso de afastar o falseamento que as sensações proporcionam ao

observar dão conta da complexidade e multiplicidade que distinguem o humano? Como

precisar este que sempre se apresenta inapreensível às próprias representações que

sustentam a pretensão à univocidade?

Como ler POESIA? Pelo prisma de uma lógica verbal que se funda por

representações que evitam a equivocidade e instauram a determinação de certezas como

freio a imaginabilidade? Como pensar Poesia se esta não se ajusta ao paradigma da

razão decifradora que se disfarça sob os dogmas da exatidão e da clareza? Há que se

restringir o pensar poético ao cogitar lógico de um raciocinar que intenciona a

eliminação do fantasioso, do inimaginável e do imponderável? Estes não identificariam

também o humano em complementaridade com o inteligível de um exato conceituar?

A poesia de Manoel de Barros apresenta um corpus propício à

compreensão do humano em sua complexidade, pois por não se ajustar ao raciocinar

retilíneo clama por um retorno ao originário do pensar. Ou seja: um modo de

apresentação, mais que representação, a convergir o sentir e o pensar em um impartível

conjugar dos contrários.

14

No propósito desta tese estipula-se um avesso investigar do que subsiste no

versejar barrosiano que mesmo ao versar sobre a natureza ainda assim parece atinar

sempre para a instância problemática do humano. Este se apresenta intraduzível pela

conceitualidade racional que adjunta ao cogitar o estatuto do inteligível distinto da

inferioridade do sensível. O pensar dicotômico instaurado no Ocidente por Platão

concebe como valor de positividade apenas o pólo que se sobreponha às sensações para

instaurar uma razão fundada na certeza de um saber impermeável às ilusões da

experiência. A poesia desqualificar-se-ia ao estabelecimento absoluto da VERDADE

por se circunscrever à materialidade da sonoridade rítmico-métrica e da escrita. A partir

desta camada sensorial o poeta instaura o fingir, proveniente de fingère: modelar na

argila, dar forma a qualquer substância plástica, esculpir, e por extensão reproduzir os

traços, representar, imaginar, fingir, inventar. No entanto, o fazer poético não finge que

a relação instituída pelo de/signar entre as coisas e a representação não é um pacto

convencional alicerçado sobre o fingimento. O poeta mostra a verdade como fingimento

que se convenciona ao perspectivismo humano que se circunscreve a dogmas, crenças,

certezas e ideologias contingenciais ao que cada um pressupõe, acredita e defende. O

poeta ao vislumbrar na tragicomédia humana o esfacelamento de cada certeza que se

encena como asseveração do veraz prefere apresentar pela via do fingir a representação

verbal como um mascaramento a mascarar outras máscaras.

Sob o fingir da poesia a língua é colocada sob suspeição por substituir a

linguagem imaginativa originária pela conceitualidade inequívoca. O conhecimento

racional, entretanto, ao articular conceitos ainda se atém ao domínio da representação

verbal. A conceituação de um pensar estruturado na clareza das idéias postula uma

categórica determinação conceitual pelo afastamento e eliminação de toda fantasia e

devanear impediente de um esclarecimento de/finidor. O fingir poético que não finge

15

que é fingimento, no entanto, parece revelar pela re/presentação que se apresenta como

tal mais que a pretensão a uma clareza que quer esconder a obscuridade que se vela por

trás de qualquer designação representativa. O Poeta reconhece o fingimento da palavra e

apreende a realidade como um cenário construído a partir do alicerce verbal. Percebe

que a fronteira com o falseio é muito tênue para ousar referendar um discurso que se

pretende claro e distinto quanto tudo é muito mais complexo e indefinível do que supõe

qualquer filosofia. A obscuridade compartilha da clareza em um infinito enlace no qual

o humano se embate sem a certidão fidedigna de uma verdade imune ao contradito, ao

dubitável e ao oblíquo.

O método analítico tem como premissa a clareza das idéias distintas como

garantia de estatuir um conhecimento pautado em uma investigação rigorosa na

comprovação e evidência de um veredicto. A pretensão absolutizante de um

conhecimento pela via do inteligível, do racional e do lógico delegou ao poetizar o

estatuto do imaginativo, do devaneante, do imaginoso e do divagante por não se firmar

em uma fundamentação axiomática rigorosa. O raciocinar distinto do fantasiar

configura uma concepção divisionista na qual se credita a um dos pólos a positividade

plena em distinção à inferioridade da negatividade do que se institui como seu contrário.

Assim para se livrar do contingencial da condição humana, determinada pela percepção

sensível, portanto, ilusionista, o conhecimento racional deve-se alçar às altitudes do

inteligível. É concebível tal descondicionamento do condicionável? O separatismo

inconciliante dos contrários institui uma divisibilidade a pautar o modo de pensar

ocidental pelos princípios da identidade, da não contradição e do terceiro excluído para

impedir qualquer possibilidade da paradoxalidade. A não vigência do contraditório

firma-se como premissa ao estabelecimento determinante de um entendimento da

verdade. Kant reconhece dois troncos do conhecimento humano que talvez brotem de

16

uma raiz comum: a sensibilidade, a “matéria bruta das impressões sensíveis” 1, pela

qual os objetos nos são dados e o entendimento pelo qual são pensados. No entanto,

como se alçar à sapiência inteligível se é através da palavra, fenômeno auditivo e visual,

portanto, perceptivo, sensível que o conhecer se conceitua? Em concordância com tal

dicotomização a Lingüística concede ao conceitual a propriedade significativa opositiva

ao sensorial do significante. Este seria um mero invólucro a proteger a essencialidade do

conceito. Entretanto, no significar de uma palavra não se imiscuem várias palavras em

um torvelinho a remeter a outras ad infinitum? Como, então, determinar a verdade se a

língua é humana, logo, falível, defectível, variável, mutável e instável? Seria preciso

depurar as impurezas do contradizer na precisão de um exato dizer? É possível tal

assepsia sob a instância precária da condição humana?

O princípio da não contradição repousa na impossibilidade da

simultaneidade dos contrários, ou seja, a afirmação coexistir com a negação, a vigência

do Ser com o não ser, assim como do círculo da identidade exila-se o divergente da

homogenia na qual vige a similitude. Ao se privilegiar exclusivamente o que é

concordante, similar e congruente como então entender os seus contrários senão pelo

traço identitário outorgado à polaridade primeira que exclui o diferenciável? Todavia,

diversamente de um pensar instituidor de oposições separáveis e inconciliáveis seria

factível postular uma relação complementar entre os opostos?

O conhecimento que pretende aferir a certificação de identidades fixas

busca instituir a normatividade do que se constitui como inequívoco para indeferir o

equí/voco por este escapar à imperiosidade do que se impõe admissível como Certeza.

Daí não ser imputável ao poético a insígnia de insigne no que se refere à veridicidade

por subscrever o paradoxal, o contraditório e o alógico. Na qualificação de algo como

1 - KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. V. Rohden e U. B. Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 53.

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paradoxal tal distinção firma-se na supremacia da doxa legitimada pelo princípio da

identidade em que isto não pode ser aquilo simultaneamente, daí a partição inconciliável

dos contrários. Entretanto, tal qual um espelho, os antagonismos não comparticipariam

de uma unidade a complementar as polaridades de uma alteridade na qual se encontram

unidas em um MESMO apenas diferenciado pelo avesso? Inexistiria assim uma

contraposição separadora, mas a complementaridade dos contrários em uma unidade

que se funda pela dualidade.

Gaston Bachelard eleva o princípio da complementaridade como

fundamento do novo espírito científico da física moderna ao estatuto de uma operação

filosófica em que conceitos como contínuo e descontínuo, determinação e

indeterminação não possuem valor absoluto mas são, antes, complementares: “as noções

de onda e corpúsculo são duas objetivações complementares de uma mesma realidade

que se representa intuitiva e alternativamente” 2. O que antes se designava através de

antagonismos opositivos transforma-se em oposições complementares a determinar uma

apreensão do universo diferenciada das leis clássicas do entendimento. Ronaldes de

Melo e Souza assevera que o diálogo interdisciplinar com o novo espírito científico

efetuado por Bachelard proporciona a elaboração de uma crítica literária postulante de

uma nova doutrina da imaginação, uma arqueologia do imaginário a partir da “potência

poética da matéria, regida pela dialética ontológica das oposições complementares” 3.

Argumenta que

contrapondo-se ao postulado da unidade de composição do racionalismo literário e ao preceito de uniformidade metodológica do positivismo científico, a nova crítica bachelardiana se notabiliza, porque substitui o critério lógico da unicidade da retórica tradicional pelo princípio da interação dos contrários a fim de compreender e tornar compreensível a unidade dual, ambivalente e complexa das obras literárias da modernidade e, sobretudo, porque aplica a cada escritor o método que a originalidade de sua obra requer, enfatizando que um procedimento metodológico só se

2 - SOUZA, Ronaldes de Melo e. “Poesia filosofia e ciência”. Interfaces. Rio de Janeiro, 7: 2000, p.58. 3 - Id., ibid. p. 59.

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afirma verdadeiro quando se confirma nos limites circunscritos pelo princípio dinâmico que rege a estrutura de cada obra de arte. A crítica literária se converte, portanto, numa perpétua aventura do conhecimento, continuamente devotada à tarefa poética de invencionar novos recursos metódicos para se haver com a singularidade dos novos discursos artísticos. Esta doutrina dialética da imaginação e o pluralismo coerente do método se harmonizam na formulação de um novo humanismo, solidamente vinculado a uma nova educação estética do homem. 4

O entendimento do mundo, e do humano, então poderia se divisar além da

tradição de um pensar divisionista impeditivo de uma outra compreensão do universo

postulante de uma perspectiva apreensível da dinâmica dos contrários a constituir uma

unidade indivisível, complementar e não contraditória. Postula-se, portanto, a noção de

uma unidade que se manifesta pela multiplicidade complementária, oscilatório-

integrativa dos contrários. Assim as distinções antitéticas entre o pensar e o sentir, o

inteligível e o sensível terminam por se transformar em ambivalências indissolúveis e

co-participantes do mesmo em diferença.

De modo diverso ao raciocinar que separa inconciliavelmente o

condicionado e o incondicionado, a poesia postula uma interação dialética das

dualidades antagônicas em uma “síntese antitética, uma conjunção disjuntiva ou uma

disjunção conjuntiva do ideal e do real” 5. À pretensão da sistematização de um saber

absoluto a poesia responde com um pensar que não somente se desvincula da aspiração

determinante de uma linearidade e clareza, distintivas da obscuridade ilegível de um

dis/curso enviesado, como busca transparecer o modo original, portanto caótico em que

se manifesta e aflora o pensamento. Ou seja, o pensar poético, na verdade o inaugural,

é refratário à concepção hegemônica dominante que somente concebe o linear como

determinação da clareza e esta como premissa à exatidão de uma expressão

compreensível impeditiva do dificultoso, do desordenado, do complexo, do intrincado,

4 - Id., ibid. p. 59. 5 - SOUZA, Ronaldes de Melo e. “Introdução à poética da ironia”. Linha de pesquisa, Rio de Janeiro, I (1): 35, out. 2000. p.34.

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do emaranhado, do indefinido, do misturado e do inextricável. Esta outra linguagem em

desacordo com o normativo e que se funda na ambivalência paradoxal na verdade é a

linguagem originária que constitui o humano, ser complexo que não repousa sobre uma

idéia construída de clareza, mas em um indeterminável devir sempre a constituir um

caleidoscópio não aprisionável à conceituação idealizada de um pensar que se firma

sobre representações. Este outro pensar, que o racionalismo vitorioso denomina

poético, intenta restaurar a instância originária da linguagem ainda não destituída do

inventivo instituída pela conceitualidade de/finidora. Para retro/ceder ao procedente da

linguagem rei/vindica-se transparecer o irromper do pensamento que se dá pelo

prejudicar, intuir, inervar, antecipar e exagerar 6 e que se apresenta não sob o disfarce

de uma representação objetiva, mas em um propósito de presentar o próprio ato de

pensar ainda não aprisionável. Ou seja, em suas inervações e irrupções não modeladas

por uma linearidade objetiva, clara e inteligível, mas na própria pulsação do

pensamento a germinar, a brotar, a desabrochar, a despontar, a rebentar, a florescer, a

frutificar.

Estabeleçamos três desígnios a fundar esta tese: a primeira refere-se às

potencialidades que a língua nos proporciona. Ou seja, as veredas a serem viajadas tanto

no aspecto vocabular como sintático e semântico e que ainda podem ser aventuradas.

Deseja-se aventar possibilidades rítmicas e sonoras que se apresentem como alternativas

além da estruturação e ordenação lingüística circunscritas à normatividade

paradigmática determinante da objetividade de uma explanação nítida, acessível, direta

e entendível. Por reconhecer nestas propriedades expressivas apenas convenções

estabelecidas concernentes a um pensar pretenso à determinação do legível intenta-se

então um avesso dizer que não se intimide frente ao limitante quanto à prescrição do

6 - ADORNO, Theodor. Mínima moralia. Trad. L. E. Bicca. 2 ed. São Paulo: Ática, 1993. p. 63.

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escrever. Que este possa ousar a avessidade do avezado, ou seja, diante do costumado

desabituar o perceptivo das lindes da gramaticidade, do normativo, da objetividade.

A segunda proposição é resultante da primeira: a partir da finidade da

língua divisar a infinitude da linguagem. No suceder desta deixar irromper o que lhe é

imanente: o substrato poético que há de se entender como fundamento do pensar e não

como um aparato dispensável à limpidez de uma tese. Antonio Candido assevera que no

Brasil o pensamento e a sensibilidade quase sempre assumiram, em suas melhores

expressões, a forma literária e que “esta linha de ensaio, – em que se combinam com

felicidade maior ou menor a imaginação e a observação, a ciência e a arte, – constitui o

traço mais característico e original do nosso pensamento” 7. Nossa tenção tem o intuito

de efetuar a juntura entre o pensar e a leitura poética a postular a emancipação da

clausura da leitura acadêmica ao modo analítico-discursivo como a única via de se

debater literatura. Ressalte-se ainda que se na vida social brasileira prevaleceu a

posição suprema de inteligência como ornamento e não instrumento de conhecimento

por não significar, no analisar de Sérgio Buarque de Holanda, apreço ao pensamento

especulativo e sim um apego à sonoridade ostentosa, à raridade da expressão e ao verbo

abundante 8, há que se questionar se nessa crítica não se insinua uma postulação do

pensamento permanecer restrito ao especular como fundamento único do pensar. A

refutação ao aspecto sonoroso da expressão brasileira não conteria uma aversão ao

barroquismo não cartesiano do nosso pensar mais sensitivo, intuitivo e imaginativo do

que um cogitar moldado na racionalidade ocidental? A consideração que esta tese

devota à sonoridade textual rege-se primordialmente pelo reconhecimento do dado

sensorial como uma fonte de conhecimento não desdenhável, posto que o realce à

7 - CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. IN: ____. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. 6 ed. São Paulo: Nacional, 1980. p. 130. 8 - HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 22 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 50-51.

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palpabilidade e materialidade das palavras seria fundamento da função poética 9 esta

não há por que ser desmerecida em uma acareação com o aspecto referencial dominante

na ensaística universitária. Portanto, o teor literário que esta tese possa comportar

funda-se em uma compreensão da dinâmica conjuntiva entre teoria e criação como

aspectos indissociáveis de uma leitura que recusa a prevalência do discursivo lógico e

analítico sobre o que se denomina como inventivo, intuitivo e imaginativo. O nosso

escrever se tece através da camada sonora como fundamento também propiciador do

pensar e não como figura ancilar e dispensável ao conhecer.

E, por fim, postulamos uma leitura que seja pertinente e atinente ao objeto.

Ou seja, frente à norma vigente no meio acadêmico de uma perspectiva objetiva de um

observador a se manter distanciado e afastado do objeto através do rigor investigativo,

opta-se aqui por uma proposição para-analítica (tanto aproximativa como opositiva) que

pressuponha a superação de tal dicotomizar por uma confluência entre as duas margens

a se equacionar em uma terceira na qual vija o dialogar integrativo e não separativo

entre o percebido e o perceptor. Desta forma, qualquer obra poética há que solicitar uma

atitude leitoral entranhável tanto na alteridade do poeta acessível através da escritura,

como na interioridade de si próprio em um enredamento entre a subjetivação do objeto e

a objetificação do sujeito. O que se questiona, portanto, refere-se não somente ao

estatuto da cognição a privilegiar o inteligível em detrimento do sensível, mas ao

próprio conceito de sujeito dissociado de um objeto a ser dissecado de modo asséptico.

Retomemos o fio da linguagem. Se a noção de poiesis postula um fazer que

implica um conhecer através da linguagem, a morada do ser, há que se entranhar

adentro o círculo linguageiro. Se o conhecer é suscetível à designação na qual os signos

representam as coisas em ausência através de uma distinção diferencial sonora, da

9 - JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Trad. I. Blikstein e J. P. Paes. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 1985.

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camada significante, reconheça-se que a cognição tanto é partícipe da linguagem, pois

lida com a representação verbal, como repousa sobre uma lógica separativa

determinante do discernimento entre isto e aquilo. Como, então se determinar a

exatidão? Não seria esta partícipe inseparável do que se institui como a in/exatidão?

Impõe-se qualificar qualquer coisa pela finitude de um conceito conclusivo,

determinante e imune ao erradio de um designar? Que critério decisório e impositivo

exige-se como legitimação da universalidade de um saber se este principia por um

sujeito separado de um objeto, se “toda observação pressupõe uma instância de

observação que prefigura o horizonte do observável”? 10

Na dissertação A ordem dos ladrilhadores problematizávamos as

“dificuldades internas intrínsecas à apropriação do objeto poético por uma objetividade

que se quer plena, firme, estável, segura e lógica” 11 e questionávamos: como escrever

sobre poesia? Retornemos àquela indagação. Ao abordarmos uma tríade de poetas

brasileiros, Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos que

configurariam uma linha construtiva de uma poesia insubmissa ao acaso, puséramos em

confronto duas linhas teóricas: uma formalista a ressaltar os aspectos da linguagem a

partir da função poética de Roman Jakobson e outra atenta para as relações históricas e

sociais que permeariam a produção poética selecionada. A conclusão a que chegáramos

apontava para uma irresolução da leitura de poesia a partir da dissonância entre estas

duas vertentes teóricas. Postulava-se então um outro modo de ler poesia insubordinável

à linearidade de uma lógica discursivo-analítica e que o método correspondesse

isomorficamente ao objeto de estudo, ou seja, um modo ametódico pelo qual o leitor

responda criativamente à própria escritura poética a qual ele se depara e não por uma

premissa apriorística determinante da objetividade separativa do sujeito. 10 - SOUZA, Ronaldes de Melo e. op. cit. , p. 64. 11 - PRIOSTE, José Carlos Pinheiro. A ordem dos ladrilhadores. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999. p. 218.

23

Ao elegermos a obra de Manoel de Barros como foco de uma tese teríamos

de partir do seguinte impasse: escrever a respeito de uma poesia que não compartilha da

mediania da expressão aprisionada a um pensar incompatível com qualquer contradição.

Se a poesia escolhida insurge-se contrária aos princípios norteadores do que se

determina como pensar, impõe-se não somente um criticar da dominância desse modo

de entender como se exige uma leitura em consonância com o que é imanente a esse

poetar. Este solicita do leitor uma convergência com um outro pensar que se encontra

mais próximo da origem da linguagem, ou seja, do inventivo e do imaginativo e não

adestrado pela racionalidade excludente do intuitivo e do sensitivo. No entanto, o

percurso barrosiano principiou por uma escrita ainda restrita a uma perspectiva objetiva

como representativa do real. Nosso escrever haverá de partir desse ponto de vista para

per/seguir o trajeto do poeta. Entretanto, como se situar face à mudança ocorrida na

poesia de Barros que a certa altura inverte o nexo usual e assume o paradoxal como

constituinte do próprio pensar e não como um desvio da lógica? Encarar esta poesia por

uma ótica rejeitada pelo poeta seria traí-lo tal qual um estuprador 12 a referendar a

dominância da racionalidade analítica. Reivindica-se então um pensar dialógico com o

poetar barrosiano postulante de uma analogia com a linguagem. Esta, no entanto, não

mais cativa da representação linear da realidade, mas propositiva de uma presentação

multiangular do real.

O percurso do poeta de Arranjos para assobio será desdobrado em duas

partes a compor a estrutura geral da tese. Uma parte, referente à trajetória inicial de

Barros, que recusamos denominar de primeira fase, denominar-se-á Elegia à divinação

12 - BARROS, Manoel de. “Uma palavra amanhece entre aves”. Entrevista a Antônio Gonçalves Filho. Folha de São Paulo. APUD: ____. Gramática expositiva do chão. (Poesia quase toda). 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996. p. 318 : “Poesia está sempre no escuro das fontes. Sofro medo de análise. Ela enfraquece a escureza das fontes; seus arcanos. Desses grandes poetas, que admiro e leio com devoção, eu não faria análise nunca. Nem comparativa. Primeiro porque não sei decompor. Segundo: não tem segundo. A grande poesia há de passar virgem por todos os seus estupradores. Pode ser amada, nunca analisada”

24

e esquadrinhará o sentido do humano meio ao imperativo do raciocínio calculador e

adestrador do imaginativo que se tornou refém do produtivo e do quantitativo. Esta

parte ainda circunscreve o domínio analítico como forma convencional de leitura

interpretativa de poesia de acordo com o vigente no meio acadêmico. Denomina-se

Elegia à divinação não somente como crítica ao pensamento matematicístico e

produtivo vigente no mundo contemporâneo como também ao modo de pensar literatura

na universidades restrito ao raciocinar que se determina pela análise. Divinação é o

mesmo que adivinhação, ou seja, aquilo que é rejeitado pelo pensamento científico por

não se determinar ao conceitual elaborado pela razão desencantadora do instintivo e do

intuitivo. A poesia, no entanto, navega no impreciso e não no preciso de um asseverar

raciocinativo pela exatidão.

O enfoque da obra de Manoel de Barros privilegiará a questão do humano a

partir do confronto com uma civilização dominada pela técnica racional que delibera

sobre a utilidade da produção e transforma os sujeitos em sujeitados a um modo de

pensar delimitado ao objetivo, ao racional, ao exato, ao legível e ao inteligível. Barros

realça o avesso disso: o rejeitado desvalorizado por uma sociedade produtiva de bens

consumíveis tanto duráveis como descartáveis. A razão vitoriosa condena ao ostracismo

o poeta por de/clamar palavras sem sentido por serem contrárias tanto ao senso comum

como à distinção das idéias. Barros encara a titânica e tirânica racionalidade pelo desvio

da ironia a perpetrar a paradoxalidade da contradição como meio de inverter a lógica

apensa ao princípio da identidade. Tudo se reverte em riso pelo olhar poético a postular

uma outra didática que reverta até ao originário da linguagem não conceitual, mas

inventiva e divinatória a restituir ao humano, sujeitado ao cogitativo separado do

sensitivo, a instância de uma agnição fundada na imaginação e no devaneio.

25

A discordância em relação ao paradigma do pensar a poesia pelo regrar

analítico linear nos conduziu a uma tentativa de ousar uma outra proposição de

compreensão. Ou seja, que não se conformasse ao raciocinativo moldado pela clareza

das idéias distintas, mas por um fluxo verbal margeante ao poético como possibilidade

de manifestação de um pensar próximo ao inventivo do devaneio, do sensitivo e do

intuitivo. A Outra parte, Elogio ao devaneio, configurará o que denominamos como

uma anti-tese pois se organizará tanto estruturalmente como estilisticamente de modo

diverso à parte inicial. A estrutura será desenvolvida por alguns tópicos recorrentes na

poética barrosiana: a poesia, o ordinário, o delírio, a palavra, a gnose, a infância, a

natureza, o dessujeito e a sujeição. Esta outra parte põe em questão o pensamento

analítico-discursivo vigente nos estudos literários como única possibilidade de leitura de

poesia. Propomos uma escritura atinente ao objeto, ou seja, uma transcriação poética

do pensar a própria poesia enquanto um fazer indistinto entre teoria e criação. Não se

advoga aqui, entretanto, a eliminação da via analítica ou a transformação em seu oposto,

a leitura poética, em senda dominante, mas que cada objeto de estudo reivindique uma

leitura própria e particular pertinente a cada ótica pessoal e intransferível. O que se

postula primeiramente é uma discussão sobre a hegemonia do discurso analítico como

primazia dos estudos literários, assim como a urgência da insurgência de dicções

distintas da conceitualidade dominante para a auguração de um di/verso entendimento.

Não que tal propósito se apresente em sua inteireza nesta tese, mas que se lancem os

dados para a discussão da clausura dos estudos literários nas uni/versidades a cooptar o

conhecimento à unicidade de um pensar raciocinativo impediente de outras

possibilidades divergentes do padrão aceito e imposto como norma. A anti-tese não

propõe uma reflexão enquanto sinonímia de pensamento restrito à razão mas de um

flectir, curvar-se, dobrar, vergar: um desviar retrocessivo à primitiva, primeva e

26

originária condição da linguagem. Um recurvar sobre si próprio, um voltear que re-

conduz ao original do humano eclipsado pelo ideal de pensar por idéias claras e distintas

a separar o que é inerente à própria linguagem: uma obscuridade intrínseca que se

esconde na profundidade de cada palavra. Nada é tão simples como querem parecer os

guardiães da clareza, pois tudo remete a uma obscuridade do sentido da própria

existência que não se apresenta sob o império de uma razão unilateral, mas de uma

simbiose dialética entre os contrários a exigir uma compreensão além do divisionismo

conformador de uma percepção estática. Como então expor tal complexidade a se

apresentar ao homem e a se representar através do humano a não ser por uma escrita que

transponha pela pluralidade indefinita da palavra toda a complexidão envolvente em

cada circunstância a circundar nosso conhecer? A partir deste limite é que nossa

escritura há de proceder e não sob o esquadro do raciocinar diretivo e uniforme, mas

pelo circular e re/curvo de um pensar multifacetado a re/volver uma flexão até revirar o

enrolado do pensamento em um desenrolar que retorna a um novo enovelamento infindo

e infinito. Bachelard sustenta que é na região do ultra-racionalismo dialético que sonha

o espírito científico:

é aqui,(...), que nasce o sonho anagógico, aquele que se aventura pensando, que pensa aventurando-se, que procura uma iluminação do pensamento através do pensamento, que encontra uma intuição súbita no além do pensamento instruído. 13

A estranheza da escrita desta tese per/segue, portanto, não a redução

exclusiva ao pensar racional, mas ao enredamento infindo que se origina no labirinto

espiralado ao adentrar o pórtico do sentir/pensar poético. A inviabilidade da clareza, de

acordo com o exigível à objetividade e ao entendimento intelectual, reflete-se nesta tese

não como subsunção ao hermetismo indecifrável e enclausurado em uma concêntrica

dispersão do sentido, mas como consciência da problematicidade de transcrever para o 13 - BACHELARD, Gaston. A filosofia do não. Filosofia do novo espírito científico. Trad. J. J. M. Ramos. IN: ____. Os pensadores, XXXVIII. São Paulo: Abril, 1974. p. 180.

27

plano da precisão a precariedade de uma gnose que não se sustenta sob a valoração

unilateral de um aspecto do conhecer, mas que reconhece na vigência da claridade a

presença da obscuridade, pois que estas se dis/põem uniaxialmente e indissolvíveis.

Portanto, aceder a um ideal de clareza seria subsumir a um padrão de pensamento que

se postula como fundamentador de uma cognição presumível de definir a exatidão como

revelação da verdade. Esta, entretanto, conforma-se ao designar dos signos que simulam

uma nitidez sustentável somente como convenção de uma ordenação linear e construída.

Nossa presunção e desmesura problematizam a dificuldade do conhecimento que evita

aceder à quimérica clareza de uma ordenação quando esta exclui do pensar a

obscuridade do que é desordenado e desconexo. O pensamento poético não pode se ater

à fixação determinante de um padrão verificativo da inteligibilidade pela exclusão do

ininteligível que se apresenta simultaneamente como força correlata e vigente da

dinâmica do pensar. Contra o acorrentamento ao ideário de um pensamento idealizado

balizado em uma concepção do inteligível divergimos não por defesa da irracionalidade,

mas como proposição de um entendimento além do limitável que nos condiciona a uma

percepção aprisionada a padrões e valores que referendam uma fronteira divisional entre

o permissivo do pensável, enquanto escravo do ordenável, e o inviolável não excedível

pelo aceitável de acordo com as convenções do conhecido. A desmedida que se avizinha

ao nosso ousar postula um avançamento na percepção do objeto poético por uma

subjetividade que não se confranja ao opinativo como também recusa uma visão

analítica como via única determinante de um suposto preciso pensar. Que este possa

flexionar conjuntamente com o sentir uma outra possibilidade de dizer se não o

indizível, mas defender a manifestação da insurreição de vozes contrárias à expressão

dominante ainda refém de uma razão reverencial de uma lógica divisional e excludente

do diferenciado, do inortodoxo e do heteróclito.

28

A divisão entre uma parte primeira e a outra parte consecutiva,

entretanto, desimplica qualquer propósito linear causal-seqüencial, pois vigora antes

uma crítica que se faz ao modo divisionista de se conceber o real por oposições quando

o que se postula nesta tese é a complementaridade dos contrários. Daí as partes desta

tese se complementarem não como opostas, mas como uma unidade dual a configurar

aspectos diferentes do mesmo: a poesia, neste caso a de Manoel de Barros. A estrutura

geral da tese configura isomorficamente uma relação entre o que se defende, ou seja,

uma unidade dual complementar e não opositiva dos contrários, e a divisão em duas

partes que conformam uma unidade indissociável. Ambas as partes conjuminam um

mesmo aspecto indissociável: tanto o discursivo a problematizar o humano como a

leitura poético-retórica ao avesso da normatividade escritural das teses acadêmicas

apontam para uma revisão das cercaduras e extremidades a demarcar o conhecer a

perspectivas impedientes do exercício da liberdade da linguagem. Desta forma a

unidade entre leitura crítica e criação postula-se como co-participante da estrutura geral

análoga ao postulado central da tese. Portanto, não há como separar a problematicidade

da linguagem que se apresenta em sua materialidade sonora e poética, estranhável por

ser in/comum, e a crítica ao modo hegemônico de se estudar poesia nos bancos

universitários moldado em um racionalismo opositivo ao discurso poético.

Mais que a obra do poeta mato-grossense o que problematizaremos é a

própria poiesis, o fazer poético que não se dobra à dimensão do produzir enquanto

perfazimento de realizações reais. A Poesia instaura um discurso produtor de

inquietações quanto ao conceito de realidade, pois suplanta o condicionamento ao

contingencial através de uma permanente desestabilização das certezas moldadas por

perspectivas temporais e espaciais. Gaston Bachelard indaga: “os coeficientes de

realidade não diferirão consoante as noções, de acordo com a evolução dos conceitos,

29

de acordo com as concepções teóricas da época?” 14. Terry Eagleton, por sua vez,

afirma que a poesia é “entre todos os gêneros literários, o mais evidentemente desligado

da história, aquele em que a sensibilidade pode desenvolver a sua forma mais pura,

menos impregnada pelo aspecto social” 15. Não que a poesia esteja imune ao desenrolar

do pesadelo histórico, ou que negue o contingencial, pois o que ela suscita implica não

somente uma sobrelevação do conceito de história atinente ao registro do factual ao

levar em conta “a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado

perdido para a história” 16, mas uma compreensão não teleológica e sim caleidoscópica

em que tanto o cotidiano e o coloquial tenham a mesma importância que o não vivido, o

sonhado e o imaginado. Não se deduza, entretanto, um propósito filosófico subjacente

ao pretender desta tese nem um fazer desta um arremedo de poesia, mas uma

desconstrução das fronteiras para a instauração de um pensar poético, pois de acordo

com Heidegger “entre ambos, filosofar e poetar, impera um oculto parentesco porque

ambos, a serviço da linguagem, intervêm por ela e por ela se sacrificam. Entre ambos,

entretanto, se abre ao mesmo tempo um abismo, pois moram nas montanhas

separadas”17.

Esta tese, no entanto, sustenta que a faculdade de pensar, e não filosofar, se

instaura pela imisção com o poetar diversamente de um estabelecimento rígido de

margens separativas. A determinação de princípios a priori avessos ao devanear

demarca o rumo do pensar analítico pelo trilhar seguro de uma razão incólume às

influências de um sujeito instável e problemático quanto à objetividade de qualquer

conhecimento. Entretanto, tal partição polar entre o subjetivado e o objetivado contradiz

14 - BACHELARD, G. Op. Cit. p. 183. 15 - EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, s.d. p. 55. 16 - BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. VOL. I. Trad. S. P. Rouanet. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 223. 17 - HEIDEGGER, Martim. Que é isto – a filosofia? Trad. Ernildo Stein. IN: ____. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril, 1973. (Os pensadores, XLV) p. 221.

30

a lógica poética cúmplice do princípio da complementaridade dos opostos. No

paradoxismo inerente ao poético encontra-se a proposição do pensar originário

concernente ao humano ainda não agrilhoado às designações correntes na caverna do

saber na qual as conceituações definidoras e delimitadoras interditam o vôo devaneador.

Trata-se, portanto, de defender aqui uma prática do Pensar, poético, não somente

restrito a uma concepção teórica como crítica do pensamento hegemônico, mas revirar

este ao avesso para instaurar o integrativo entre os contrários dos pólos antípodas, como

o sentir não mais diferenciado do pensar.

Não se infira que se pretenda a cópia do idioleto manoelês archaico 18.

Vigora, sim, o desejo de um diálogo por uma filtragem interior e pessoal da escrita do

outro. Intentou-se a proximidade ao poetar como uma equivalência ao fundamento de

um pensar avesso ao analisar retilíneo que separa entre o poetar e a raciocinação.

Descarte-se também qualquer intencionalidade na direção da anulação do sentido, pois

se não se corrobora o pensar linear não se pretende a ruína do pensável e sim alentar o

advento de um reflexionar em conjunção com o pres/sentir. O labiríntico norteia nosso

diligenciar por uma analogia com os meandros da poética barrosiana a se fundar no

sensivo de um pensar infixo em um calcular, pois intenciona o desarraigamento da

linguagem submissiva a um cogitar impediente do imaginar. Se a linguagem para

Manoel de Barros é a genetriz, nutriz e diretriz primordial a instaurar um confabular

com a natureza, é conjecturável que tal mediação se enraíze em um pensar originário,

portanto, poético como condição de possibilidade de superar tal mediar. Se tal parece

ser irrealizável resta a tentativa de transcrever aqui nosso ínvio lutar com as palavras.

Daí nosso dizer se fazer nas fímbrias não propriamente do escrever de Barros, mas na

18 - BARROS, M. de. Livro sobre nada. 8 ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 43.

31

proximidade das propriedades intrínsecas ao poetar: o inventivo sem definidade, o

indefinito sem finidade, o infinito sem impossibilidade.

A cada um compete o seu possível...

32

UMA PARTE

TESE:

ELEGIA À DIVINAÇÃO

33

2- HUMANO, CONSIGNADO HUMANO

A poética de Manoel de Barros se compõe de certas marcas constantes, que

ele designa como arquissemas, indicativas de um referencial à natureza que se traduz

em “sapo, lesma, antro, musgo, boca, rã, água, pedra, caracol” 19. Embora esta

constância conforme um feixe que tem por elemento aglutinador o mundo natural, no

entanto defendemos a hipótese de que ao versar sobre cada um destes, como sobre

outros signos, o poeta termina por remeter sempre a uma instância desencadeadora de

poesia: o homem seja sob a condição social ou naquilo que o revela, a linguagem. Este

nosso acolher, menos que uma análise, não se funda na determinação de esclarecer ou

desvendar com exatidão, mas em seguir o rastro do que antes é próprio da “obscura

verdade reprimida” 20 em que se pauta a escrita do poeta. Para tanto concebemos a obra

barrosiana não por fases, mas como um percurso que o poeta trilha e na qual pode ser

observada uma primeira etapa em que se configura uma poética a denunciar a condição

degradada do humano em confronto tanto com a dominância da técnica como com uma

concepção do divino afastada da concretude do mundo. Este é o nosso primeiro passo

de aproximação da obra.

19 - BARROS, Manoel de. “Pedras aprendem silêncio nele”. Entrevista a Turiba e João Borges. Revista Bric-a-brac. APUD: ____. Op. cit. p. 327. “Arquissema, aprendi de um filólogo, cujo nome não me lembro agora, são palavras logradas dos nossos armazenamentos ancestrais, e, que ao fim norteiam o sentido de nossa escrita. Arqui, derivado do grego archos, é aquele que comanda. Essas palavras chaves, portanto, orientam os nossos descaminhos. Orientam nossa obra a fim de que não fujamos de nós mesmos no escrever”. 20 - BARROS, M. de. Op.cit. p. 328.

34

Você é um homem ou um abridor de lata?21 Esta questão indaga sobre o

humano distinto de um mero artefato. Mas o que propõe tal indagar ao estabelecer uma

diferença entre um e outro? O segundo termo não compreende uma definição clara, pois

pode ter um duplo sentido. O vocábulo abridor pode ser entendido como o que abre ou

serve para abrir. Ao ser justaposta a outro sintagma, de lata, compreende-se como um

utensílio fabricado com o objetivo de servir ao homem ou este é que se reduziria a

sujeito de uma ação destituída de criação e invenção, repetidor de uma atividade

rotineira, habitual e naturalizada pelo uso? O postular alternativo da questão não

delineia inequivocamente o que seja um abridor: se o objeto fabricado com a função de

abrir latas ou se o próprio homem que seria assim reduzido a uma única atividade

configuradora de uma existência desprovida de possibilidades mais amplas. Se

pensarmos no abridor como um mero utensílio, produzido para fins práticos, a

comparação ao homem impõe ao interlocutor virtual um ato decisório que defina: você

é um homem ou uma coisa?

Deste modo a questão parece pressupor em seu perguntar uma outra: o que

é o homem? Se o homem para Aristóteles é zoon logon échon, “animal que tem por

dote a razão” no dizer de Heidegger 22, para Descartes é res cogitans, uma coisa

pensante. Ou seja, se o homem é aquele que cogita, um ser que pensa, que se pensa em

seu pensar, há que se perguntar, por sua vez, a relação da questão do ser com o pensar.

Heidegger entende a sentença de Parmênides tò gàr autò noein estìn te kaì einai como

21 - ____. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 1999. p.10. Esta frase remete a um dos títulos encontrados nas 29 folhas de caderno de um homem que fora preso. Tal episódio é narrado em “Protocolo vegetal”, a primeira parte do livro Gramática expositiva do chão, que corresponde a um dos títulos do caderno encontrado com o prisioneiro. Um dos outros títulos, “29 escritos para conhecimento do chão através de São Francisco de Assis”, configura-se em outra parte deste livro de Barros. “Retrato do artista quando coisa” transforma-se posteriormente, em 1988, no nome de um livro de Manoel de Barros. 22 - MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade. Heidegger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: Annablume / FAPESP, 1999. p. 46.

35

“o mesmo, pois, tanto é aprender (pensar) como também ser” 23. Pensar e ser teriam

lugar no mesmo, ou seja, ser pertence com o pensar ao mesmo e formariam uma

unidade em um comum–pertencer:

se compreendermos o pensar como a característica do homem, então refletimos sobre um comum–pertencer, que se refere a homem e ser. No mesmo instante nos surge a questão: que significa ser? quem ou o que é o homem? 24

A questão barrosiana postula-se na problematicidade do ente, pois tanto o

homem como o abridor de latas se apresentam como entes. Heidegger afirma que o

homem é manifestamente um ente e faz parte da totalidade do ser como a pedra, a

árvore e a águia. Se homem e ser pertencem um ao outro seria possível a identidade

entre um abridor de lata, ou mais: entre o universo técnico e o ser? 25

Se, no entanto, a pergunta de Barros posta no proêmio deste nosso

acolhimento de sua poesia, clama menos por uma definição exata do que por uma

compreensão da diferença entre o ser do ente homem e um mero executor de tarefas

práticas e repetitivas, portanto mecanizadas e desumanizadas, a questão termina por

revestir-se de um teor ético mais que ontológico. Entretanto, no cerne do perguntar

sobre a alternativa entre um elemento e outro da questão insere-se um verbo: muito mais

do que buscar uma definição entre isto ou aquilo, instaura-se o problema do ser, pois o

que se pergunta é se o interlocutor É um homem ou um abridor de lata.

A indagação apresentada por Manoel de Barros torna possível uma

aproximação de sua obra tanto sob o ponto de vista ético como ontológico. Se vige, no

entanto, uma preocupação do poetar barrosiano com a condição humana, e se ao situar

esta em um mundo no qual vigora o domínio da técnica e da reificação implica em uma

23 - HEIDEGGER, Martin. O princípio da identidade. IN: ____ e SARTRE, Jean Paul. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 378. (Os pensadores, XLV). 24 - Id., ibid. p. 380. 25 - Id., ibid. p. 381.

36

preocupação ética e social, contudo, tal problematicidade não exclui uma atenção a

questão do ser. O percurso do poeta demonstra isto. Para tanto seguiremos o curso que o

próprio poeta traçou em sua obra que prima no início por uma atenção primeira ao

homem sob o prisma da condição social.

37

2.1- POSTAIS DA CIDADE

Já nos primeiros passos a poesia barrosiana prima por um palmear o chão

tendo por companhia os pés dos indigentes. Em Poemas concebidos sem pecado,

primeiro livro publicado pelo poeta expõem-se “Postais da cidade”. Dentro de um

horizonte de expectativas cristalizado o presumível de um postal qualquer subscreveria

um figurativismo representacional atinente ao pitoresco que retratasse a região mato-

grossense nos aspectos geográficos e turísticos imediatamente reconhecíveis pela

aprazibilidade da paisagem. Um postal constrói-se, portanto, a priori por um código

formal elaborado dentro de margens estreitas que restringem a composição da imagem a

determinados aspectos de um lugar representado de modo que se ressaltem unicamente

as características identificadoras das singularidades geográficas marcantes e

designadoras de uma identidade diferenciada do restante dos outros lugares. Entretanto,

tal singularidade geográfica termina por se restringir a uma formalização ideal

estipulada por um modo de representar paisagens, uma referência exemplar,

paradigmática que tem por premissa enquadrar exclusivamente o aspecto aprazível de

uma determinada localidade através do enfoque restrito de uma característica que a

identifique por traços reconhecíveis. Ao se esquivar de uma exposição dos aspectos

sociais problemáticos a paisagem torna-se, então, inumana, uma fachada, um cenário

ensolarado de tonalidades vibrantes cujo enquadramento previsível e convencional

condiciona e constrói um olhar asséptico e distanciado das entranhas do viver que

fervilha naquele espaço. Não pulsa aquilo que caracterizaria, segundo alguns, o homem:

o pensar. Todo postal evita tudo o que se considere como desagradável, que incomode

ou perturbe a recepção de um olhar que deseja a fruição prazerosa e desatenta de

38

aspectos instantaneamente identificáveis como belos, desinteressados. Os postais

barrosianos não subscrevem tal ordem de representação antes registram imagens através

de um enfoque que possa aflorar o pensar crítico frente ao desconforto do mirado. Para

isto ressalta os aspectos da degradação humana como no postal de Maria-pelego-preto,

de 18 anos, cujo pai entrevado cobrava entradas para homens espiarem o púbis

abundante de pelos da jovem. O poema visa arremessar o leitor na comoção para fazer

irromper a indignação, mas que, no entanto, não se traduz no moralismo da fala de um

“senhor respeitável” que bradava sobre o “desrespeito às instituições da família e da

Pátria” 26. O verso final desarma qualquer juízo moralizador ao assinalar que o humano

se degrada diante de condições que o ultrajem: “Mas parece que era fome” (51). Esta é a

tática de Barros: instaurar o abalo para comover e desencadear a consciência crítica.

Estes postais pelo avesso não são enviados por um viajante acidental, em

trânsito, passageiro fortuito a flanar interessado apenas na face imóvel, paralisada,

idealizada, inerte de uma cidade, mas por um homem que vive entre esses homens. E

pensa sobre estes homens. Interessa-lhe algo como “a estátua de Antonio Maria Coelho,

herói da Guerra do Paraguai” (39), não como uma representação de heroísmo, mas pelo

risível do inusitado a desconstruir a solene figuração, pois tal escultura está cheia de

besouros na orelha. Uma estátua não possui a propriedade da fala, da audição, da

locomoção, da respiração, do pensar, ou seja, não vive. É uma coisa. Importam ao poeta

antes os homens. Estes, entretanto, vivem em um plano diverso daquele em que transita

um poeta municipal que se relaciona com a realidade através das palavras com as quais

descreve a cidade como um escrínio, “coisa relacionada com jóia, cofre de bugigangas”

(39). Ao olhar de Barros a cidade, no entanto, inexiste somente na redução a uma mera

figura de linguagem, abstratamente constrita ao pensar poético, mas realiza-se na 26 - BARROS, Manuel de. Poemas concebidos sem pecado. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 51. Neste capítulo e no próximo as citações referentes às indicações entre parênteses apontarão para esta obra e edição.

39

existência de seres como Negra Margarida, “boa que nem mulher de santo casto” (40), e

que um dia foi embora com um negro risonho. Flagrantes humanos do agir cotidiano

como este, destituídos de heroísmo enaltecedor, é o que importa ao pensar

comprometido do poeta. Esta ótica desvia o foco não somente do postal como um

constructo a retocar cenários assépticos, mas da normalidade provinciana dominante

para atentar para seres que co-movam, que desencadeiem abalos como Mário-pega-

sapo, apreciador de velórios e jias, e que na companhia de dementes e embriagados

ocupam uma draga abandonada. Esta quando passa a designar uma condição

degradante, não se institui, no entanto, pela via oficial do léxico, mas surge, floresce e

viceja a partir da fala regional, da boca dos seres humanos que manifestam o seu modo

de ser: “estar na draga, viver na draga por estar sem dinheiro, viver na miséria” (44). Se

qualquer postal induz à imobilidade do pensamento pelo embevecimento estético,

portanto, desinteressado, porém, ilusório diante do construído idealmente, a poética

construída por Barros postula um agir comprometido que pro-voque, que faça o leitor

observar a vida concreta pela ótica crítica da condição humana como desumana, ou seja,

um mundo no qual não floresce o ser em sua plenitude.

Este pensar crítico para se fundar necessita fundamentar a própria

linguagem. Ralph Waldo Emerson concebe que toda palavra foi algum dia poema e que

a linguagem é poesia fóssil 27. Barros ao escrever um livro que versa sobre as

reminiscências referentes à infância compara o fazer poético ao trabalho do arqueólogo:

Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. 28

27 - EMERSON, Ralph Waldo. Ensaios. Trad. José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 133. 28 - BARROS, M. de. Memórias inventadas. Minha infância. São Paulo: Planeta, 2003.

40

O poeta parece exemplificar a tese do filósofo americano sobre a linguagem

que se constituiria “de imagens ou tropos, que hoje, em uso secundário, de há muito

deixaram de fazer-nos lembrar sua origem poética” 29. O poema sobre a draga coloca-

nos diante desta origem. Se a poesia, para Manoel de Barros, devolver-nos-ia a origem

poética das palavras gastas pelo uso 30, no entanto, no percurso inicial de sua trajetória

poética a condição criadora se origina da palavra corrente a circular no cotidiano das

pessoas. A palavra usual instaura uma condição de possibilidade de poesia a partir da

função básica de criar elos, fazer irromper clareiras, disseminar entendimento entre os

homens. A poesia origina-se, a seu ver, como criação oriunda da vivência humana

através da palavra confeiçoada pelo palato humano e não em estado de dicionário ou

fórmulas poéticas. Emerson afirma ainda que o “vocabulário de um homem onisciente

deveria incluir palavras e imagens que são excluídas da conversação polida. O que seria

vil, ou mesmo obsceno, para o obsceno torna-se ilustre quando usado numa nova

conexão de pensamento” 31. A pré-ocupação do poeta com uma linguagem proveniente

do registro informal, impregnado das incrustações e sedimentações cotidianas da

existência, demarca um território no qual vigora o ímpeto da palavra sempre como

instauradora de significações firmadas por um acordo social e não apenas um jogo

formal de significantes esvaziados.

Retornemos ao poema que se refere à draga e o que ele pode despertar. O

processo de transformação da coisa em signo se efetiva pela relação social que se efetua

entre os homens. A palavra é um instrumento de troca entre os seres humanos e ao

poeta, neste ponto de seu caminhar, importam as palavras relacionadas ao existir diário,

ao agir poético como uma possibilidade de suscitar um outro pensar. A coisa, o objeto

draga precede a expressão “estar, viver na draga”, que conota outro sentido à coisa 29 - EMERSON, R. W. Op.cit. p. 133. 30 - BARROS, M. de. Op.cit. p. 310: “Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose”. 31 - EMERSON, R. W. Op. cit. p. 130.

41

designada. A palavra pro-voca então, a partir de sua relação com o agir, uma revelação

da condição humana atrelada aos limites espaciotemporais. No entanto, tal expressão

não é acolhida pela normatividade do registro de um léxico, apenas circula oralmente

entre os falantes. Ou seja, é algo que vige à margem da norma culta dos salões oficiais.

O poeta, então, oferece “ao filólogo Aurélio Buarque de Holanda / Para que as registre

em seus léxicos / Pois que o povo já as registrou” (44). A palavra draga, assim, ao não

subscrever a poeticidade de um léxico nobre e emplumado, pois se contamina com o

que é próprio aos viventes, é carreadora de rastros e ranhuras humanas. Roland Barthes

afirma que “sob cada Palavra da poesia moderna, jaz uma espécie de geologia

existencial, onde se reúne o conteúdo total do Nome, e não mais seu conteúdo eletivo

como na prosa e poesia clássica” 32. No entanto, esta palavra da poesia moderna seria

enciclopédica, genérica, uma categoria a configurar um estado de dicionário reduzido a

um grau zero. Não é o que ocorre na etapa inicial da travessia barrosiana, e em toda a

sua obra, pois nos primeiros livros a palavra é dirigida de antemão, ou seja, decorre da

intencionalidade geral de um comprometimento que se norteia pela intervenção crítica.

De modo diverso ao da poesia moderna que concede à palavra uma instância absoluta

de possibilidades infinitas, Barros articula nos primeiros livros um conteúdo eletivo

guiado por relações seletivas determinadas pelo contexto social da realidade vivenciada.

Para evitar que a poesia transforme-se em uma fala terrível e inumana o poeta de Face

imóvel pretere uma escrita regida por ausências que se oponha ao que se concebe como

uma função social da linguagem. Se a linguagem se caracteriza por uma determinação

do encontro, do entendimento com o outro, portanto, subsistindo como um fenômeno

social que se realiza pela troca verbal, há que se entender não apenas a poesia inaugural

de Manoel de Barros por esse prisma, mas todo o seu percurso que se orientará por uma

32 - BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. Trad. A. Arnichand. e A. Lorencini. São Paulo: Cultrix, 1971. p. 61.

42

convergência com a fala como o traço que busca distinguir o que constitui o humano.

Este percorrer, no entanto, toma rumos distintos ao longo do caminho.

No despontar desse trajeto não vige ainda a desconstrução das relações de

linguagem que submeterá a escrita a um descontínuo que obscurece a lógica sintática

configuradora da representação da realidade. Entretanto, a poesia barrosiana, desde o

seu iniciar, não se filia a um veio da poesia moderna que, no modo de dizer barthesiano,

seleciona

palavras-objetos sem ligação, ornadas de toda a violência de sua explosão, cuja vibração puramente mecânica toca de maneira estranha a palavra seguinte, mas logo se extingue – estas palavras poéticas excluem os homens: não existe humanismo poético na modernidade: esse discurso de pé é um discurso cheio de terror, vale dizer, que põe o homem em ligação não com os outros homens, mas com as imagens mais inumanas da Natureza. 33

Contrariamente a essa poesia que ao se desprender da fala reivindica uma

autonomia por um corte profundo 34, Manoel de Barros, seja nas primeiras obras, em

que efetua uma articulação entre representação e realidade, ou em todo o seu percurso,

não abandona o domínio da significação pela redução do significante à camada da

materialidade. Antes, desvia-se da linguagem funcional, pragmática e instrumental não

para debilitar os significados, mas para recuperar o estado anterior às conceituações

inequívocas das idéias claras e distintas. Se no início da trajetória Barros delineia uma

poética para censurar as desigualdades sociais, no entanto, o impasse diante da palavra

como a instância que funda o humano, mas que se despe de sua humanidade ao intentar

uma supremacia da exatidão, impõe, então, ao poeta um redimensionar o fazer poético.

Se os primeiros versos do poeta primam por uma atenção à fala dos excluídos do

registro oficial, isto traduz uma priorização do homem como cerne do fazer poético e

33 - Id., ibid. p. 63. 34 - FOCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.60.

43

que resultará em uma etapa posterior na recusa ao discurso matematicístico, calculador

e operacionalizador. Porém, observe-se que o inicial enfoque crítico da realidade é

distorcido por um enquadramento a enviesar a representação que se postula como

denúncia. Que distorção proposital é esta? É a ironia que se infiltra no postal de Seu

Zezinho-margens-plácidas: “célebre fazedor de discursos patrióticos, agora aposentado,

morava em seu sítio denominado A Abóbora Celeste (...)” (47). Ora a representação

desse brasileiro alcunhado com uma designação retirada de um trecho do hino nacional,

portanto um signo referente aos valores pátrios, entretanto, é um negociante de sabiás,

um pássaro designador no Romantismo brasileiro de um traço identitário da

nacionalidade. Assim, instaura-se um desfiguramento que se funda na transfiguração da

realidade, porém, não por um falseamento seja de uma representação direta da realidade

ou por uma idealização, mas por uma escrita não descritiva ou reprodutiva, mas irônica.

44

2.2- RETRATOS A CARVÃO

A necessidade de pro-vocar um pensar crítico que não seja anulado pela

convenção representacional do figurativismo paisagístico conduz o poeta a criar retratos

que tenham por centro a figura humana. Daí a recusa ao postal. Ao evitar uma

representação não-oficial e embelezadora da cidade que elimina a presença dos homens,

o poeta opta, então, por “retratos a carvão”, título de uma das partes constituintes do

primeiro livro. No entanto, tais retratos não se conformam ao que é exigido como

condição de figuralidade clássica, ou seja, atributos superiores que devem ser

representados de maneira enaltecedora e enobrecedora. Os retratos barrosianos

esquivam-se dos contornos convencionais da representação ao ressaltar justamente o

que o olhar clássico estipularia como traço indesejável. Daí o título destes poemas

referir-se a uma técnica artística que não configura a representação clássica de um

registro asséptico e aparentemente fiel de uma máquina fotográfica. Projeta-se, assim,

um fazer artístico que re-faz o vivenciado pelo riscar não preciso dos dedos a flagrar

instantâneos como um esboço em que o negror macula a brancura do suporte. O carvão

constitui-se, então, como elemento isomórfico a unir a representação ao representado,

posto que os miseráveis de Barros não se enquadram na luminosidade da paleta à óleo

pois exigem uma aproximação vital e não uma figuração nobre e polida.

Barros ressalta que sua escrita é uma fala a flagrar os habitantes que não

mostram a face no cenário de fachada de um postal: “falo da vida de um menino do

mato sem importância” (PCSP,68). No entanto, não é uma fala desinteressada, mas

desencadeadora tanto de um pensar como de um co-mover que reflita sobre a condição

humana no limite. Polina, uma menina de oito anos, “rolava na terra com os bichos /

tempo todo o nariz escorrendo” (63). A relação homem e animal é o que funda este

45

existir: “de tão sós e sujos, Cláudio/ e esse jacaré se irmanavam” (63). Nesta simbiose

entre o humano e o mundo natural, em que “todos eram iguais perante a lua” (65) uns,

entretanto, não se atrelam mais ao limite do racional: “desencostado da terra/ Sabastião /

meu amigo / um pouco louco” (65). Deste modo, neste mundo a realidade não se

apresenta ao olhar pelas lentes e objetivas de uma razão desencantada em que

predominem a clareza das idéias, mas ainda sob o prisma do imaginário popular

fundado no mítico: “à noite vinha uma cobra diz-que / botava o rabo na boca do anjo / e

mamava no peito de Petrônia” (68). Porém, a condição humana no Pantanal ao se

imiscuir com a animalidade circundante de um meio no qual não vigem as leis da

racionalidade calculadora, mas do imaginário mítico, termina vez ou outra por se

degradar na luta pela sobrevivência. É o caso de Antonina-me-leva, uma prostituta que

recebe, por vezes, três e até quatro comitivas de vaqueiros. A ética barrosiana, contudo,

mais uma vez não subscreve o moralismo provinciano condenatório, pois procura, antes,

compreender as razões humanas sempre sob uma perspectiva crítica: “a fome não é

invenção de comunistas, titio. / Experimente receber três ou quatro comitivas de

boiadeiros por dia!” (73).

46

2.3- BOCA

A contrapelo da poesia moderna, ou seja, procurando restaurar o elo entre

significante e significado como representação crítica da realidade, Barros inicia um

percurso que se funda a partir da fala. Assim, um dos arquissemas arrolados por Manoel

de Barros como fundadores de sua poética é boca. Esta palavra pode ser entendida

como um traço indicial da presença humana que pode indicar tanto o aspecto sensorial

referente ao paladar como ao prazer, portanto ao desejo, e mais ainda: implica em uma

dualidade que tanto aponta para fala como para o silêncio. A boca para o poeta, no

entanto, funda-se na fala. E esta se manifesta em uma intervenção que recusa silenciar-

se diante da desigualdade, da injustiça e da exploração dos homens por outros homens.

Como observamos, a boca do poeta frente a um mundo desigual não se

permite compactuar com uma estética subscritora do vazio da neutralidade asséptica de

um postal, mas vira a construção cenográfica pelo avesso para denunciar o humano que

ainda pulsa. Tudo aquilo que transforma o homem em inumano, em um ente destituído

de vontade e autonomia é matéria da poesia inicial de Barros. Frente à degradação

humana o poeta não silencia e afronta o moralismo provinciano por uma intervenção

que sobrevém através da palavra:

- O que você fazia lá? Que rastejava tatu. Voltava correndo avisar o padrasto: lá no brenha tem uma! Tornasse pra casa sem rasto apanhava no sesso. Eras sesso mesmo que empregava. (PCSP,61).

Se nesta poética inaugural não vigora um projeto estetizante, no entanto, a

mera exposição verbal do aviltamento do ser humano não parece ser suficiente, e sim o

propósito ético de provocar uma re-ação modificadora das condições da existência: “É

47

preciso AÇÃO AÇÃO AÇÃO / Levante desse torpor poético, bugre velho.” (PCSP,35).

Reconhece, no entanto, que o mundo somente se traduz no poema através do advento e

da mediação da palavra. Se esta é urdida nos primeiros livros de Barros como elemento

desencadeador de possibilidades de pensamento crítico e transformação, a função social

que o poeta busca conferir ao fazer poético fundamenta-se na própria linguagem, ou

mais especificamente, na língua. Assim como para T.S.Eliot o dever do poeta é

preservar, ampliar e melhorar sua língua 35, Manoel de Barros busca “promover o

arejamento das palavras, inventando para elas novos relacionamentos, para que os

idiomas não morram a morte por fórmulas, por lugares comuns”. 36

No passo seguinte da poesia barrosiana o livro Face imóvel a fala

impossibilita-se, pois o homem encontra-se diante de contingências históricas graves:

uma guerra mundial. Como então reagir diante do pesadelo da história? Frente ao ecoar

de sirenes e explosões distantes, prevalece o silêncio:

Tudo permaneceu sem um grito, Um pedido de socorro sequer. Ele passou sem calúnias E é possível que sem corpos que o chamassem. (FI,70)

A instância primordial da poesia de Barros, no entanto, preserva-se intacta,

pois tanto ao valorizar a fala dos segmentos marginalizados da sociedade como ao

enunciar o emudecimento e a consternação diante de um mundo em conflito, a

preocupação fundamental é com o outro. Este traço, o desdobramento em alteridade,

será uma característica constante na ética barrosiana. Ser humano implica em saber ser

o outro, perceber, sentir, conhecer, entender, aceitar, pensar e viver a dor dos relegados

ao escárnio, ao desprezo e ao infortúnio, seja uma prostituta da Lapa, de Curitiba ou

35 - ELIOT, T.S. A essência da poesia. Trad. Maria Luiza Nogueira. Rio de Janeiro: Artenova, 1972. p. 35. 36 - BARROS, Manoel de. “Sobreviver pela palavra”. Entrevista a José Otávio Guizzo. Revista Grifo. Campo Grande, MS. IN: ____. Op. cit. p. 310.

48

ainda um menino inglês cuja rua foi bombardeada: “Ontem de tarde eu vi o pai de Katy

voltando do trabalho – e nunca mais o verei // Porque por onde ele passou agora as

ruínas fumam silenciosamente...” (FI,62). Diante de um momento histórico de

gravidade mundial como o conflito de uma guerra distante as bocas nada mais dizem,

assim, não há mais a transcrição das falas: “Eles estão esperando um grande

acontecimento. / E estão silenciosos diante do mundo, silenciosos. // Ah, mas como eles

entendem as verdades / De seus infinitos segundos” (FI,65). O não-dito ao se fundar

pela negatividade, no entanto, conforma uma fala que, embora, não se efetive na

materialidade da palavra, pois a experiência da dor é indizível, problematiza o dizer e o

fazer poético. O entendimento ultrapassa, então, a mera emissão sensorial da palavra: o

silêncio também traduz sentido. Captar esse dizer que não se expressa sob a sombra e

sobra da palavra, mas espreita em surdina o silêncio, é o estro de um poeta que pensa

sobre o próximo embora desprezado ainda assim não desprezível. O silêncio paralisante

que se imprime no mundo circundante, entretanto, não induz ao emudecimento da

palavra poética, antes ensina ao poeta seguir em direção ao outro, a tentar apreender

nessa silencialidade o sentido da existência. A auscultação do outro, mesmo no

silenciar, instila no poeta, por vezes, outras falas como a de uma persona feminina que

exalta o prazer conceptivo da criação:

(...) Aberta Estou, como pétalas noturnas, Para os astros. Minha boca silenciosa. Ficarei inclinada levemente para ele Como torre. Inclinada para sua violência. Ele me fará frutificar como as árvores na chuva. Florescer entre pedras, aves e astros. Abrir-me Como rosas da noite, ao luar. (P,79)

49

2.4- COISAS DESÚTEIS

Como se dá, então, a resistência do humano em um mundo destituído de

humanidade que silencia a palavra, envilece o ser e o converte em coisa, em um abridor

de latas? Se a racionalidade matematicista avaliza uma expressão que determina à

linguagem científica a eliminação de sentidos equívocos, ou seja, afiança a eficácia de

um discurso da exatidão designado não ao pensar crítico, mas ao produzir, então resta

ao poeta ativar aquilo que constitui o humano em sua propriedade diferencial não

somente em relação aos outros entes mas também aos próprios homens desumanizados:

a linguagem poética. Os sentidos do poeta passam a atentar, assim, para aqueles que não

se renderam ao jugo de uma sociedade regulada pelo lucro e que repeliram a posição

cômoda que designa o homem à produção e ao consumo. Os andarilhos em andrajos,

então, serão seus guias em um périplo cujo télos não se determina pelo desígnio da

conquista, da posse e do ganhar, mas por um outro dizer: o avesso da razão calculista e

calculadora.

Se a vida moderna designa ao ser humano a função de meros abridores de

lata ela é recusada por vagamundos que flanam margeando a liberdade: “Seria homem

ou pássaro? / Não tinha mãos. / Vestígios de sua boca iam para flor. / Havia uns sonhos

/ Dependurados como roupa” (P,84). O modo de ser dos andarilhos sem eira nem beira

conforma uma ética da qual o poeta sente-se semelhante e próximo tal qual um novo Jó

que se submete ao escárnio para provar sua fé poética, assim como não se sujeita aos

mandos e comandos de um mundo que se ordena pela noção de objetividade:

Bom era ser bicho que rasteja nas pedras; ser raiz de vegetal ser água. Bom era caminhar sem dono

50

na tarde com pássaros em torno e os ventos nas vestes amarelas. Não ter nunca chegada nunca optar por nada. Ir andando pequeno sob a chuva Torto como um pé de maçãs. (CPUP,52) A liberdade do ser que pode ir e vir sem a interferência de um imperativo

que determine seu partir e chegar é o princípio que rege um agir cujo leme direciona-se

por uma vontade não subserviente e servil. À pergunta sobre o que é um homem o poeta

principia a responder através das lições que os rejeitados e destituídos de posses lhe dão.

E destas lições a liberdade constitui-se como um valor maior. Desta forma o poeta não

se sente mais na obrigação programática de denunciar diretamente seja a exploração do

homem ou mesmo a questão da liberdade, pois não explicita o que se pode esquadrinhar

nas entrelinhas: o desacordo com o todo de uma sociedade37 que coisifica o ser, aniquila

a vontade em prol de um pragmatismo funcionalista e induz a um viver cujo fim seja o

de abrir latas. Caminhar sem dono implica em uma vontade e autonomia de um pensar

que se ponha em desacordo com a ética do trabalho voltada para a produção de coisas

úteis sob a forma de utensílios ou de meros objetos descartáveis. O exercício da

liberdade começa a se constituir em Manoel de Barros ao assumir a persona de um novo

Jó que se recusa, entretanto, a se prostrar diante do Deus transformado agora em uma

máquina. Ao postular um caminho sem o direcionamento de alguém, sem obedecer a

uma precisão e exatidão como meta ou sequer a submissão a qualquer atividade

obrigatória, o poeta aspira revelar o homem não mais por um registro direto de sua

observação e experiência, como realizara nos primeiros livros, quando tudo se dava a

conhecer por uma exposição denunciativa, mas presentar de viés o ser aprisionado à

condição da produtividade funcional na engrenagem de um mundo no qual urgem 37 - ADORNO, Theodor. Conferência sobre lírica e sociedade. In: BENJAMIN, Walter et alii. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p.202. (Os pensadores, XLVIII).

51

negócios, contas, compras, compromissos, obrigações, necessidades, afazeres, deveres e

haveres a serem cumpridos rotineiramente, constantemente, obrigatoriamente. A

consciência crítica do poeta não põe mais o dedo na fratura exposta de um mundo

injusto. Isto, entretanto, não decorre devido à desistência de um posicionamento

contrário ao desregrar dominante, mas por conceber que intervir criticamente na

sociedade não implica em uma poética que se funde na denúncia direta e explícita, mas

sim em revelar a contrapelo, através de uma linguagem de viés os tentáculos de um

mundo que impedem o florescimento pleno do ser. Postula, então, um linguajar

circunjacente ao mundo animal, vegetal e da mineralidade que se, por um lado, têm por

propriedade a impossibilidade da expressão verbal, por outro não sofrem a coação do

imperativo de uma linguagem que se determine por conceituações inequívocas: “ser

como as coisas que não têm boca!” (CPUP,53). Não que o poeta intencione uma

quietude silencial frente à sociedade oprimente, mas que a não-fala das pedras, animais

e plantas possa ensinar aos homens lições de coisas a resgatar aquilo que lhes concerne

como humanos, ou seja, a própria linguagem e não um mero ecoar mecânico de

sentenças, pensamentos e saberes que lhes modelam a língua e os desumanizam, pois

retiram do ser a liberdade da palavra em sua plenitude.

Como se expressam, então, estes seres à margem do arrazoado

hegemônico? Aproximemo-nos de um dos viandantes a vaguear, um que fora detido

arbitrariamente sem qualquer esclarecimento. Dentre os pertences de uso pessoal deste

preso que “entrara na prática do limo” (GEC,9), encontra-se um caderno de poemas ao

lado de objetos como: o retrato da esposa na jaula, uma corda de enforcar, um sapo

seco e um sabugo meio a outras coisas como pneu, pente, chapéu, muleta, relógio de

pulso, caneta, suspensório, capote, bicicleta, garfo, abridor de lata, escapulário, anel,

travesseiro, bengala, botão. Esta lista incongruente, no entanto, articula um sentido

52

crítico. A inclusão de objetos como uma corda de enforcar dentro da série de utilidades

funcionais como relógio e caneta, instala um ruído, um abalo e estremecimento na

aparente normalidade destes objetos denominados úteis. Todos estes signos podem ser

lidos como traços indiciais que conformam uma espécie de repositório das ruínas e

fragmentos da civilização do bem-estar. Dentre os objetos há aqueles que designam

proteção e conforto como capote e travesseiro, outros apontam para uma noção de

elegância configurada nas imagens da bengala, do chapéu e suspensório e há aqueles

que indicam uma relação com o mundo prático tais como relógio de pulso, caneta,

abridor de lata, botão. Qual a razão, então, de um homem que não vive mais sob o

regrar controlador de um mundo determinado por normas e convenções carrear consigo

todo um aparato de referências deste universo do qual ele renunciou ao convívio? A

transcrição da realidade por Manoel de Barros, então, passa a se dar pelo primado da

ironia que instaura um olhar crítico e avesso. Somente por este prisma pode se entender

o sentido de uma corda de enforcar, o retrato da esposa na jaula, um sapo seco e um

sabugo. A tensão que se estabelece entre um sabugo, por exemplo, e o restante das

coisas úteis é exatamente a de pôr em questão o valor de utilidade que vigora em um

mundo que se firma através de costumes e práticas naturalizadas como civilizadas tais

como o ato de alimentar-se munido de talheres, o hábito de pentear-se, trajar chapéu ou

a cronometragem precisa do tempo. Tais práticas, entretanto, não evitam que se relegue

um enorme contingente de outros homens à indigência inumana e incivilizada. Sob a

noção de utilidade, ou da imposição forçosa de se compor uma persona social designada

a representar uma civilidade de fachada, imiscui-se a problematicidade da existência em

uma sociedade na qual o jogo de aparências aniquila o ser: “Saber o que tem da pessoa

na máscara é que são!” (MDP,32). O que resta do homem por detrás do mascaramento

social? A pergunta posta pelo bom senso, no entanto, seria: qual a função, a utilidade de

53

coisas sem função? A anormalidade de um conjunto de coisas estranhas põe em xeque

a normalidade das existências que vivem comodamente a adquirir e acumular objetos

que são funcionalmente úteis, pois têm serventia prática. Os homens terminam, no

entanto, por emudecer e se equiparar às coisas funcionais, aos objetos sem fala. O

retrato da esposa na jaula, não mais um retrato a carvão dos marginalizados, ressalta

uma visão irônica que denuncia a existência rotineira e normal como aprisionadora e

enclausurada às normas, regras, ditames, convenções, obrigações e deveres que sufocam

o ser. A corda de enforcar estabelece uma tensão entre a praticidade de um mundo

confortável, estável e seguro e um objeto que tem por desígnio a extinção da vida por

vontade própria. Entrevê-se nas entrelinhas o mal-estar da civilização. Freud afirma que

a liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização pois

ela foi maior antes da existência de qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já que dificilmente o indivíduo se achava em posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições. O que se faz sentir numa comunidade humana como desejo de liberdade pode ser sua revolta contra alguma injustiça existente, e desse modo esse desejo pode mostrar-se favorável a um maior desenvolvimento da civilização; pode permanecer compatível com a civilização. 38

Um homem livre ao se tornar um prisioneiro, como relatado no poema de

Barros, transforma-se em uma coisa que não possui mais a liberdade tal como antes

exercida no escritório a jogar bilboquê ao invés de se determinar ao trabalho diário

ordenado e produtivo. A aversão a se constituir como peça funcional na estrutura

produtiva opera neste homem uma transfiguração aproximativa do estado natural das

coisas que germinam. De acordo com as palavras do compadre, um professor de física

de São Paulo, o preso “quase sempre nos intervalos para o almoço era acometido de

lodo” (GEC,13). Este homem que não mais se dispõe a prosseguir no trilho do senso 38- FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. IN: ____. O futuro de uma ilusão. E outros trabalhos. Trad. José O. A. Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p.116. VOL. XXI.

54

comum passa a ler Marx, portanto, adquire uma consciência crítica da sociedade de

classes, da exploração do homem e do processo de alienação. Para o filósofo alemão o

valor da força de trabalho

se determina pela quantidade de trabalho necessário para produzi-la. A força de trabalho de um homem consiste, pura e simplesmente, na sua individualidade viva. Para poder crescer e manter-se um homem precisa consumir uma determinada quantidade de meios de subsistência, o homem, como a máquina, se gasta e tem que ser substituído por outro homem. 39

O processo de libertação deste homem como uma máquina que se gasta

implica tanto em uma atitude pessoal, individual, existencial como política em que

ambas condigam com uma prática resistente ao domínio da técnica. No entanto, a ação

deste homem, no parecer barrosiano, não se converte em ativismo engajado que objetiva

uma modificação radical das condições do modo de viver, mas do modo de ser, pois o

prisioneiro é definido como encantador de palavras, ou seja, desafia o domínio da

técnica e a práxis utilitária vigente ao instaurar a supremacia da poiesis, da criação e

seleção de objetos desúteis através de uma linguagem diversa da usual. O inexplicável

da detenção desse homem põe em questão o razoamento de uma sociedade arbitrária e

impeditiva da liberdade do homem em um mundo destinado à produção e ao lucro. Este

desherói é o primeiro passo rumo a um dessujeito: aquele que não está mais sob

sujeição ou prisão, mas que está desimpedido, liberto e solto.

39 - MARX, Karl. Salário, preço e lucro. IN: ____. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. Sel. José Arthur Giannotti. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p.87.

55

2.5- O HOMEM DE LATA

A condição do civilizado que o poeta configura não mais se conforma,

portanto, ao humano, mas à objetificação de um ser de lata, “armado de pregos”, que

“está na boca de espera de enferrujar” e “morre de não ter um pássaro em seus joelhos”

(GEC,23-8). Embora a conotação referente à lata aponte para a reificação, para a

destituição de qualquer elemento humano, para Manoel de Barros permanece uma força

resistente que busca ativar a natureza do homem que teima em se insurgir contra a

mecanização e automatização do ser. O homem de lata, assim, arboriza, tem natureza de

enguia, ou seja, algo de próximo a um animal que irradia voltagens, que carreia dentro

de si uma potência que resiste à maquinalidade. O enferrujar que pode advir ao ente de

lata há de vingar, entretanto, se o homem aniquilar de seu ser o que lhe é imanente, a

linguagem. Desta forma há de morrer, murchar por não fazer brotar o que há de mais

vital em seu ser como o cantar de um pássaro, pois “o homem de lata / é um passarinho /

de viseira: / não gorjeia” (GEC,25). A ancestralidade telúrica emerge, então, como

resistência ao desumano e insiste como força vital contrária ao enferrujamento do ser. A

condição de lata, desumana, não é imanente ao homem, não é uma propriedade natural,

mas um atributo que lhe é imposto devido às condições inumanas da civilização

técnico-industrial. A mineralidade, a animalidade e o mundo vegetal são condições

naturais que podem restituir ao ente mecanizado a sua condição originária: a de ser

livre.

56

2.6- ENTRE O ÚTIL E O INÚTIL

A poesia barrosiana martela, assim, insistentemente nas mesmas teclas a

soar notas de dissonância em relação à mercancia dominante: “Tudo aquilo que nos leva

a coisa nenhuma / e que você não pode vender no mercado / como, por exemplo, o

coração verde / dos pássaros, / serve para poesia” (MP,12). As regras do mercado, no

entanto, não consentem um caminhar que conduza à coisa nenhuma, pois tudo teria, de

acordo com esses pressupostos, um valor que pode ser negociado, um fim definido, um

objetivo prático e realizável. Para a poesia barrosiana, entretanto, o coração verde dos

pássaros, “coisa nenhuma” na perspectiva mercadológica, é algo de valor exatamente

por resultar em coisa nenhuma. O coração verde dos pássaros, por não existir, é

engendrado pelo poeta como um valor da imaginação que não se comercia, não se

vende ou se compra, pois “as coisas sem importância são bens de poesia” (MP,15).

A meditação permanecente em Manoel de Barros sobre a não utilidade das

coisas, “só me preocupo com as coisas inúteis” (APA,9), em um mundo em que domina

o tecnicismo solicita uma ética que reaja ante a aniquilação do ser. O poema, então, sob

este princípio, há de se constituir não como um objeto destinado a uma função utilitária,

tal qual a práxis mercadológica regra a produção de bens duráveis, mas como um

inutensílio. A anteposição prefixal in-, por indicar o sentido de negação, relativiza a

positividade central da designação sobre o que se sentencie como útil. O conceito de

utilidade, de acordo com noções do discurso pragmático–utilitário–instrumental,

determina o que é inútil a partir de um centro de definição de valor em que prevalece

apenas a positividade do que seja ÚTIL, funcional, prático, proveitoso, profícuo,

rendoso e lucrativo. INútil é o que NÃO se legitima pelo estatuto normativo do que seja

considerado como útil. Ao afirmar que “o poema é antes de tudo um inutensílio”

57

(APA,25) Barros parece refutar não apenas a utilidade das coisas, mas implantar uma

crítica ao modo de pensar que se institui por polarizações quando nesses pressupostos

determina-se a um dos pólos um valor absolutizante. A vigência de uma noção a priori,

como a que designa que uma coisa seja primeiramente útil, implica em uma instância de

poder que dissemina hegemonicamente a idéia de funcionalidade como um valor em si e

não como um valor de mercado. O conceito derridiano de différance nos auxilia a

entender esta questão como uma relação com a linguagem. O neologismo criado pelo

filósofo franco-argelino concebe um jogo sem fim que não se instaura mais por um

começo, um ponto de partida definidor do significado, pois “designa a causalidade

constituinte, produtora e originária, o processo de cisão e de divisão do qual os

diferentes ou as diferenças seriam os produtos ou os efeitos constituídos” 40. No

entanto a linguagem se funda através do estabelecimento da diferenciabilidade e não por

termos positivos, plenos e estanques. Se na linguagem todo signo remete a um sistema

que se institui por um jogo de diferenciação, portanto, o significado não é em si mesmo

uma presença auto-suficiente. Segundo Derrida “a diferança é a origem não-plena, não-

simples, a origem estruturada e diferente das diferenças. O nome de origem, portanto, já

não lhe convém” 41. Se todo signo pertence a uma cadeia, a um jogo sistemático

diferenciável em que um conceito remete para outro, nesse jogo infinito a diferença

“não é mais, portanto, um conceito, mas a possibilidade da conceitualidade, do processo

e dos sistemas conceituais em geral” 42. O que se recusa desse modo é um significado

transcendental, a priori, pois todo elemento no jogo de significação não ocupa mais um

ponto hierárquico definido, mas um posicionamento sempre passível de deslocamento,

um incerto descentramento que não se conforma mais a um centro absoluto, definidor e

40 - DERRIDA, Jacques. A diferença. IN: ____. Margens da filosofia. Trad. J. T.Costa e A. M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991. p. 39. 41 - Id., ibid. p. 43. 42 - Id., ibid. p. 42.

58

definitivo. De acordo com as dicotomias clássicas que fundam o pensamento da

metafísica ocidental

para que esses valores contrários (bem/mal, verdadeiro/falso, essência/aparência, dentro/fora etc.) possam se opor, é preciso que cada um dos termos seja simplesmente exterior ao outro, isto é, que uma das oposições (dentro/fora) seja desde logo creditada como matriz de toda oposição possível. É preciso que um dos elementos do sistema (ou da série) valha também como possibilidade geral da sistematicidade ou do serialismo. 43

Desse modo o modelo de pensamento que se institui por dualidades

opositivas é corolário da metafísica ocidental, em que se concede ao plano inteligível a

supremacia hierárquica. Sendo assim, então, a noção de positividade concedida à

utilidade das coisas por concernir a bens materiais opor-se-ia a este paradigma que

estipula ao pólo inteligível e hipersensível um valor essencial prioritário? O fato de se

creditar a um objeto fabricado um valor de utilidade em oposição a uma coisa que não

seja estipulada como útil, demonstra que tais noções ainda são devedoras de um pensar

dicotômico. Portanto, a questão referente ao valor das coisas como mercadorias

subordina-se ao modo de pensar.

O pensar barrosiano, se assim pudermos aventar, instaura, então, uma

inversão: se a noção de inútil somente se determina devido a hegemonia de poder de um

discurso que impõe o valor de útil como sendo positivo, e do qual tudo o que se

diferencie deste centro se marcará com o traço da negatividade, ou seja, da inutilidade,

então em uma sociedade na qual vige a dominância destes valores determinantes de

sentidos plenos e absolutos, competiria ao artista, ao poeta e ao filósofo desconstruir tal

modelo de pensar que nomeia o certo, o exato, o bem, o belo, o útil, o superior, o

perfeito, o essencial, etc. Barros ao pôr sob o crivo da dúvida a primazia de um valor

incondicional que é determinado por uma sociedade de mercado que impõe como

43 - ____. A farmácia de Platão. 2 ed. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 1997. p. 50.

59

suprema a positividade de um pólo que exclui tudo o que não esteja concordante com o

padrão preponderante problematiza também o pensar que se institui por dicotomias.

Pensemos, então, sobre o que seja considerado como inútil:

num mundo para o qual não vale senão o imediatamente útil e que não procura mais que o crescimento das necessidades e do consumo, uma referência ao inútil fala sem dúvida, num primeiro momento, no vazio. Um sociólogo americano reconhecido, David Reisman, em A multidão solitária verifica que na sociedade industrial moderna o potencial de consumo deve, para assegurar o seu fundo (Bestand), tomar a dianteira sobre o potencial de tratamento das matérias-primas e sobre o potencial de trabalho. Contudo, as necessidades definem-se a partir daquilo que é tido por imediatamente útil. 44

Heidegger afirma que o inútil tem sua própria grandeza, pois com ele

exatamente NADA se pode fazer 45. Assim é um parafuso de veludo, um inutensílio,

“artefato inventado no Maranhão, por volta de 1908, por um PORTA-ESTANDARTE

que, após anunciar os seus inventos em praça pública, enrolava-se na Bandeira

Nacional” (APA,31-2). Ao declarar que o poema é antes de TUDO um inutensílio

Manoel de Barros parece divergir de Marx e Engels que afirmaram que “a burguesia

desnudou de sua auréola toda ocupação até agora honrada e admirada com respeito

reverente. Converteu o médico, o advogado, o padre, o poeta e o cientista em seus

operários assalariados” 46. Octavio Paz, no entanto, chama a atenção para o fato de que

aos poetas a burguesia fechou seus cofres, pois não seriam nem criados ou bufões, mas

párias, fantasmas, vadios errantes, já que a “poesia não tem cotações, não é um valor

que pode transformar-se em dinheiro, como a pintura” 47. Walter Benjamin, por sua vez,

aproxima Baudelaire da figura do trapeiro, aquele que tenta sobreviver com restos e

44 - HEIDEGGER, Martin. Língua de tradição e língua técnica. Trad. Mário Botas. Lisboa: Vega, 1995. p. 9. 45 - Id., ibid. p. 12. 46 - ENGELS, Friedrich e MARX, Karl. O manifesto comunista. 4 ed. Trad. Maria Lúcia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. p. 13. 47 - PAZ, Octavio. O verbo desencarnado. IN: ____. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 77.

60

tanto o literato como o conspirador profissional reencontrariam neste catador de lixo um

pedaço de si mesmo, pois “cada um deles se encontrava, num protesto mais ou menos

surdo contra a sociedade, diante de um amanhã mais ou menos precário” 48. Embora o

poeta possa ser situado dentre os deserdados na sociedade, a sua situação seria mais

problemática do que a do próprio proletariado pois há que se ressaltar que os proletários

são aqueles que “não possuem outro bem que não a sua força de trabalho” 49, enquanto

a palavra poética não se institui como moeda de troca. O poeta torna-se então um

fazedor de inutilidades sem valor em um mundo cuja norma é ditada pela associação

entre saber e poder. Se um saber não se presta ao exercício do poder a ele não se delega

sequer o conceito de saber. Daí a diligência de Barros em atrever-se na via de um fazer

que opera um outro vínculo entre saber e poder, ou seja, através do exercício livre da

imaginação que conjectura objetos sem qualquer utilidade.

48 - BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas. VOL III. 3 ed. Trad. J. C. Martins Barbosa e H. Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 17. 49 - Id., ibid. p. 19.

61

2.7- O ALICATE CREMOSO E O PARAFUSO DE VELUDO

Há duas instâncias em que podem ser lidas estas invenções de inutilidades

pelo poeta. A primeira aponta para uma crítica ao domínio de uma civilização da técnica

em que vige a produção de objetos que primam pela utilidade. Sob este prisma é

possível entender a criação de um alicate cremoso ou de um parafuso de veludo. Tanto

um objeto quanto outro, ou seja, o alicate e o parafuso, são destituídos de suas

propriedades intrínsecas: a dureza, a impenetrabilidade da matéria e o aspecto funcional

para o qual eles são fabricados. Imaginar um objeto que não tenha por atributo qualquer

utilidade é agir contrariamente ao bom senso que se funda em concepções que se

impõem como necessárias e objetivas. Assim, criar, produzir pela imaginação um

objeto que inexiste no cotidiano implica em pôr uma questão sobre a utilidade da vida

que essas pessoas levam em uma rotina esvaziada de sentido. Um alicate não tem a

propriedade de ser algo comestível, portanto, não poderia ser associado logicamente a

uma característica que contrarie sua constituição material, ou mais ainda, ser destituído

de sua função primeira de utensílio prático. Um objeto desfuncional é algo impensável

em uma sociedade dominada pelo determinismo da produção, do lucro e da

funcionalidade pragmática. Contrariar a norma da fabricação em série de objetos úteis,

então, torna-se condição de possibilidade de aflorar à imaginação o devaneio que

instaura uma outra ordem de associação entre um instrumento prático e utilitário e uma

adjetivação que o caracteriza como degustável. Cultivar tal modo de expressão é

possibilitar à linguagem o exercício da liberdade do homem diante da civilização da

máquina e do capital. A invencionice de um objeto inútil não pode ser compreendida

sem se atentar para a intencionalidade crítica que se faz a uma sociedade dominada pela

62

preeminência do utilitarismo e da eficiência determinantes do pensar, do agir, do existir,

portanto, do ser.

A outra instância em que pode se entender a invenção de inutilidades diz

respeito ao modo dessa crítica a um mundo em que o homem não é mais humano.

Manoel de Barros para evitar reincidir em uma denunciação frontal articula uma outra

frente de ataque: o humor. Não se pode compreender a poesia barrosiana sem este

enfoque. A estratégia poética muda de tática ao desfigurar o processo de mimesis que,

anteriormente, se pautava pelo registro das contradições de uma sociedade desigual

através de um abalo desencadeador da consciência crítica. A estratégia do abalo

permanece ao articular uma escrita que inverte a ordem normal das associações por uma

desarticulação das conexões lógicas e previsíveis. O efeito de espanto provocado por

um parafuso de veludo mobiliza o leitor a estranhar a realidade dos objetos e utensílios

que conformam uma sociedade de consumo determinada pelas noções de

funcionalidade, utilidade, praticidade e objetividade. Primeiramente o questionamento

advém pela via do senso comum que se pergunta instantaneamente pela razão de um

objeto cuja lógica não se firma na prática usual da produção de artefatos e utensílios

destinados aos afazeres humanos. A seguir irrompe o espanto do estranhamento que

desencadeia uma interrogação sobre o conceito de normalidade. Esta passa a ser

divisada, então, como indiferenciável do absurdo. Ao forjar um objeto irreal o poeta

mobiliza o riso que põe, então, sob o signo da controvérsia o conceito de realidade ao

traduzir esta pelo prisma do inusual. O riso barrosiano, portanto, motiva-se a partir de

uma observação crítica da realidade e se instaura através da ironia que pode ser

conceituada como:

uma síntese antitética, uma conjunção disjuntiva ou uma disjunção conjuntiva do ideal e do real. Pensar ou poetar ironicamente significa intercambiar incessantemente os extremos complementares da idealidade e da realidade. A síntese antitética é a condição a priori essencialmente

63

irônica da possibilidade de autoconhecimento do sujeito humano. Que é o homem? Que significa o saber acerca de si mesmo? É digno de riso quem crê que seu olhar revertido para dentro de si alcança o que ele é ou que em si há algo que lhe reflete a imagem.50

O indagar que se instala diante de um objeto estranhável, irreconhecível ao

olhar comum, parte de um procedimento que observa tudo sob o viés do risível como

meio de questionar o que é real. O âmbito em que o poeta age, portanto, tange a utopia,

ou seja, fora de qualquer lugar em que legisle o princípio da realidade. Sérgio Paulo

Rouanet em relação a uma sentença proferida por Ernst Bloch que afirma que a utopia é

o ponto de vista de onde julgamos o que fazemos à luz do que deveríamos fazer prefere

citar outra passagem de Bloch, em que ele diz que o princípio regulador da consciência utópica é a esperança, mas uma docta spes, uma esperança sábia, instruída por tendências já presentes na realidade, sem o que a esperança seria uma simples fantasmagoria subjetiva. 51 A poesia barrosiana, entretanto, não investe em uma esperança sábia, mas

na fantasmagoria subjetiva da poiesis que ao propiciar o riso possa abalar a segurança, a

estabilidade, a firmeza e a rigidez de uma estrutura que impede a afloração do humano.

O que se parece apreender pelo riso é o ato de neutralizar as certezas absolutas por uma

interrogação irônica que ponha sob o duvidar um mundo construído para alijar e

aprisionar o homem, um ser que ri de si próprio.

50 - SOUZA, Ronaldes de Melo e. op. cit. p. 27-48. v. nota 2. 51 - ROUANET, Sérgio Paulo. “Em nome de uma nova utopia”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 8 nov. 2003. Idéias.

64

2.8- SOB A VIGÊNCIA HEGEMÔNICA DA TÉCNICA.

A indagação relativa ao conceito de utilidade sucede em um mundo no qual

a supremacia da técnica designa ao homem um estatuto que o equipare à produtividade

da máquina. De acordo com Heidegger caracterizar o domínio técnico por uma atenção

exclusiva ao maquinário industrial seria inexato, pois se em um primeiro momento

ocorreu a passagem do artesanal e do manufaturado à motorização a segunda revolução

consistiu em uma automatização definida “pela técnica da regulação e da direção, a

cibernética” 52. Segundo o filósofo alemão as representações da técnica moderna

resumir-se-iam no primeiro momento a uma coisa criada pelo homem e para o homem.

O segundo momento aponta para o caráter instrumental da técnica:

o verbo latino instruere significa: dispor em camadas sobre – e justapostas, construir, ordenar, instalar de maneira coerente. O instrumentum é o aparelho ou o utensílio, o instrumento de trabalho, o meio de transporte, o meio em geral. A técnica passa por qualquer coisa que o homem manipula, da qual ele se serve na perspectiva de uma utilidade. 53

Entretanto, o termo técnica deriva de technikon, ou seja, o que pertence à

techné, cujo significado é conhecer-se em qualquer coisa, produzir qualquer coisa,

conhecer-se no ato de produzir e a mesma significação de epistemè que quer dizer velar

sobre uma coisa, compreendê-la:

o fundamento do conhecer repousa, na experiência grega, sobre o fato de abrir, de tornar manifesto o que é dado como presente. No entanto, o produzir pensado à maneira grega não significa tanto fabricar, manipular e operar, mas mais o que o termo alemão herstellen quer dizer literalmente: stellen pôr, fazer levantar, her, fazendo vir para aqui, para o manifesto, aquilo que anteriormente não era dado como presente. 54

52 - HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. Maria da Conceição Costa. Lisboa: Edições 70, s.d. p. 14. 53 - Id., ibid. p. 19. 54 - Id., ibid. p. 21.

65

Heidegger concebe que techné é um conceito do saber e não do fazer. A

técnica moderna relaciona-se à aplicabilidade prática da ciência da natureza. A

calculabilidade do real, em que tudo pode ser reduzido a medidas, e o primado do

método que investiga o objeto pela determinação de certezas a partir da eliminação de

contradições têm por fundamento uma noção de natureza abalizada por uma

objetividade calculável. O problema abrange o controle da técnica sobre o homem, à

perplexidade e impotência diante do caráter de dominação da tecnologia:

quando se acena, antes de mais, nesta submissão ao inevitável, a concepção corrente da técnica, adere-se então nos fatos ao triunfo de um processo que se reduz a preparar continuamente os meios, sem nunca se preocupar com uma determinação dos fins. 55

Se a questão da técnica implica em um conhecer-se no ato de produzir, este,

entretanto, a rigor não se realiza, pois se opera apenas um processo que visa aos meios e

não aos fins, o que evidencia uma questão ética. Sartre ao afirmar que a existência

precede a essência argumenta com o exemplo de um objeto, um corta-papel, fabricado

por um artífice amparado por um determinado conceito, ou seja, a uma técnica prévia,

uma receita que faz parte deste conceito:

assim, o corta-papel é ao mesmo tempo um objeto que se produz de uma certa maneira e que, por outro lado, tem uma utilidade definida, e não é possível imaginar um homem que produzisse um corta-papel sem saber para que há de servir tal objeto. Diremos, pois, que, para o corta-papel, a essência – quer dizer, o conjunto de receitas e de características que permitem produzi-lo e defini-lo – precede a existência: e assim a presença, frente a mim, de tal corta-papel ou de tal livro está bem determinada. Temos, pois, uma visão técnica do mundo, na qual se pode dizer que a produção precede a existência. 56

De acordo com a visão sartreana a técnica na modernidade, como a

essência de um determinado receituário paradigmático que se configura na produção,

principalmente de utensílios, objetos úteis, práticos e eficientes, precederia a existência. 55 - Id., ibid. p. 29. 56 - SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 11.

66

Do mesmo modo proceder-se-ia ao conceber Deus, ou seja, imputar-se-ia a um artífice

superior a causa da criação. Assim a criatura humana assemelhar-se-ia a um corta-papel

na técnica industrial, ou seja, se a criação resulta de técnicas, o homem também seria o

produto de uma certa idéia situada na inteligência divina. No século XVIII suprime-se a

noção divina como fonte originaria da criação, mas não a idéia de que a essência

precederia a existência, pois a natureza humana encontrar-se-ia em todos os homens,

portanto, cada um seria um exemplário de um conceito universal. No entanto, para

Sartre “há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe

antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como

diz Heidegger, a realidade humana” 57. Desta forma pressupõe-se no homem uma

precedência da existência anterior ao conceito de essência e a qualquer conceitualidade

que somente se consubstancia a posteriori:

assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz. 58

Se o homem é o que ele faz, então, como diferenciá-lo daquilo que ele

fabrica? Como reconhecer o humano na civilização da técnica e da máquina?

57 - Id., ibid. p. 12. 58 - Id., ibid. p. 12.

67

2.9- A MÁQUINA

Manoel de Barros depara-se em dois momentos com a máquina. No poema

“A Máquina: a Máquina segundo H.V., o jornalista” os homens se caracterizam como

meros simulacros em uma engrenagem cujo intuito é a exploração da força de trabalho

por um condicionamento repetitivo e reprodutor: “A Máquina mói carne /(...)/ atrai

braços para a lavoura /(...)//cria pessoas à sua imagem e semelhança (...)” (GEC,45). A

inversão da cosmogênese genesíaca que preconiza a origem humana sob a ordem da

similitude com o divino, portanto, de uma essência que precederia a existência

apresenta-se sob o prisma da inversão irônica que assemelha na modernidade o homem

à máquina e não mais à supremacia de uma perfeição superior. A poética barrosiana,

então, resvala da ironia para o humor ao subverter o pragmatismo produtivo desse

mecanismo rentável: “A Máquina / (...) incrementa a produção do vômito espacial / e da

farinha de mandioca / influi na Bolsa / faz encostamento de espáduas / e menstrua

pardais” (45). Quando o poeta refere-se a uma entidade abstrata como A Máquina, um

sintagma formado por um substantivo concreto precedido de um artigo definido,

portanto definidor termina por excluir uma máquina qualquer, pois, a maiusculização

aponta para uma amplitude de sentido generalizante e simbólico. O sentido do sintagma

refere-se não somente ao maquinário advindo com a industrialização, mas ao sistema

capitalista que se funda no aproveitamento da força de trabalho dos homens manejados

como ferramentas substituíveis. Este sistema funda-se na injustiça, na desigualdade e

exploração do homem pelo próprio homem: “(a máquina) ajuda os mais fracos a

passarem fome / e dá as crianças o direito inalienável ao / sofrimento na forma e de

acordo com / a lei e as possibilidades de cada uma” (46). Se o homem torna-se um

68

instrumento, portanto, uma peça no mecanismo dessa máquina desumanizadora há que

se atentar para o fato de que se trata de um grupo reduzido situado em determinados

setores da sociedade que equacionam a relação entre saber e poder ao objetivarem um

maquinário como meio de prover eficiência e rentabilidade à produção e não a

humanização. Contra estes a poesia barrosiana estila o contraveneno da ironia: “A

Máquina (...) // condecora / é guiada por pessoas de honorabilidade consagrada, / que

não defecam na roupa!” (46). A dominação do homem pelo processo maquinal não se

determina pelo estabelecimento de fins, pois se institui pelo aprimoramento dos meios

mecânicos de produção que visam à aniquilação de tudo o que afete o humano, ou seja,

tudo aquilo que tange ao sensível, ao delicado e ao lírico: “A Máquina tritura anêmonas

/ não é fonte de pássaros / etc. / etc.” (47).

69

2.10- A MÁQUINA DE CHILREAR

Se no poema comentado anteriormente o homem sucumbe diante da

engrenagem de uma estrutura tirânica e titânica, Barros parece procurar no dialogar com

a Natureza um resgate do humano. No poema “A Máquina de Chilrear e seu uso

doméstico”, título que remete a uma pintura de Paul Klee, o autor de Arranjos para

assobio compõe uma encenação dialogada entre um poeta e alguns elementos da

natureza como a lua, o pássaro, o córrego, o mar, o sol, a estrela, o caramujo, a árvore, a

rã e a formiga. Esse poeta almeja como princípio para sua poética tudo o que se

constitua pela leveza: “– Só quisera trazer pra meu canto o que pode ser / carregado

como papel pelo vento” (GEC,37). No entanto há que se entender que tal levez camufla

uma inquietude diante da rigidez maquinal. Este resistir se constitui ao auscultar a

natureza falar: “O dia todo ele vinha na pedra do rio escutar a / terra com a boca e ficava

impregnado de árvores” (37). O córrego, ao configurar o que sempre flui e ao mesmo

tempo permanece fixo em um constante mudar, assinala a corrente que jorra e escorre a

correr, a manar em um caudal. Tal auscultação do que mana rememora ao humano não

uma essência de onde tudo emana, mas a própria existência que precede aquela por se

qualificar primordialmente como matéria. Embora o poeta incline-se para o mirrar

permanente da vida, sente-se impotente diante de um mundo gerenciado para a serventia

das coisas: “Meu corpo não serve mais nem para o amor nem para o canto” (38). No

entanto, a estrutura desumanizadora não é impediente do cantar poético. A poesia se

insurge no trinar de um pássaro, o chilrear, como a traduzir o ressurgimento da efusão

lírica a emanar o devaneio que Barros associa, entretanto, à máquina. Esta não configura

mais a propriedade funcional de um mecanismo fabricante, portanto inumano, mas lhe é

70

conferida um atributo vivificador ao se justapor o lírico ao mecânico. Contudo, a

potência da natureza a irromper ininterruptamente o jorro de transbordamento da vida,

figurada na imagem de uma engrenagem vivificante, depara-se ante a resistência e as

contingências do tempo: “A Máquina de Chilrear está enferrujada e o limo apodreceu a

voz do poeta” (39). Se o vigor vivificativo parece impotente diante do domínio da

técnica, entretanto, isto não impede que o fazer que distingue o homem se configure

plenamente no sentido que se entende a poesia, ou seja: produzir um sentir / pensar via

linguagem. Esta é a semente na qual ainda sobrevive a vigência do humano. Se a

máquina não escuta os humanos o ser poético se notabiliza pela contaminação, ou seja,

pelo re-colher, re-unir, apanhar, juntar em um feixe que unifica o eu lírico e os homens.

Tudo o que convirja para o homem é passível de acolhimento poético. Para tanto o

poeta desconhece o distanciamento objetivo da metodologia científica, pois intrínseco

ao poetar é antes de tudo dar guarida a tudo mediante a alteridade e imiscuição com os

outros seres: “– O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, das pedras. Sua

gramática se apóia em contaminações sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de

arvores, de rãs” 59 (39). Resultante disto, a linguagem poética, aquilo que distingue o

humano em profundidade, se manifesta em plenitude na integração entre o eu lírico e os

outros através da superação das margens, fronteiras e limites. O percurso de recuperação

do humano através da alteridade da linguagem poética que ausculta a natureza, no

entanto, é penoso. Para atingir o estado de arborescência da linguagem em que as

palavras despontem pela irrupção da superveniência, por um sobrevir que escape ao

controle da previsibilidade calculadora, “muitos anos o poeta se empassarou de escuros,

até ser atacado de árvore” (40). Tudo, então, que remeta ao âmbito do mundo

mecanizado, do cálculo, da exatidão e que desvie o ser da imisção e desbordamento com

59 - Estas palavras sobre o poeta são pronunciadas por Chico Miranda até então não presente ao diálogo.

71

o rebentar e irromper do imprevisível é repudiado por uma escrita que em seu rastro

consigna outra concepção de tempo: o arraste vagarento de lesmas “comendo seus

cadernos relógios telefones” (40). O caramujo, outro rastejante a lecionar a lenta

absorção de um tempo qualitativo frente à vertiginosa imposição do fabricar em série,

por sua vez, denuncia em sua fala a degradação do homem fragmentado e

desumanizado: “–restos de pessoas saindo de dentro delas mesmas aos tropeços, aos

esgotos, cheias de orelhas enormes como folhas de mamona” (40). A condição humana

desvirtuada, ainda assim, se qualifica como matéria de poesia a revelar o que ainda resta

de humano: “–Os indícios de pessoas encontrados nos homens eram apenas uma tristeza

nos olhos que empedravam” (40).

72

2.11-A COISA.

Se a primazia da técnica adultera a condição humana o que resta, então,

próprio ao ser humano? Este na sociedade capitalista converte-se em um mero

componente da cadeia produtiva, mas não se afirma como um ser criativo, pensante e

livre. Transfigura-se neste sistema em uma quase coisa que sobrevive sob a égide de um

tempo que é cronometrado sob a lei absoluta da lucratividade:

o tempo é o campo do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono, das refeições, etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia. E, no entanto, toda a história da moderna indústria demonstra que o capital, se não lhe põe um freio, lutará sempre, implacavelmente, e sem contemplações, para conduzir toda a classe operária a este nível de extrema degradação. 60

Tal argumentação aponta para o fato de que a degradação resulta das

condições de trabalho e ainda assim esta não atinge a todos os homens indiferentemente,

mas a uma determinada classe. Se essa observação procede pela análise referir-se à

estrutura econômica, entretanto, escapa-lhe a dimensão totalizadora de uma civilização

na qual o homem foi destituído de suas qualidades e investido de uma uniformidade

reificante. Como, então, salvaguardar o humano? Na ficção kafkiana o humano avilta-se

sob a aparência de um inseto a se arrastar por infindáveis labirintos burocráticos. O

procedimento técnico resulta na desumanização, ou seja, impossibilita no homem um

pensar e uma linguagem fora das fronteiras da calculabilidade produtiva caracterizando-

o como uma coisa. No entanto o que é uma coisa? Heidegger afirma que

quando assim perguntamos, queremos conhecer o ser-coisa (Dingsein), a coisidade da coisa (die Dingheit). Importa experienciar o caráter coisal (das

60 - MARX, K. op.cit. p. 98-9

73

Dinghaft) da coisa. Para tanto, temos de conhecer o âmbito a que pertencem os entes a que, desde há muito, chamamos com o nome coisa. 61

De acordo com o filósofo alemão a pedra no caminho, o outeiro no campo,

o cântaro, a fonte, a nuvem no céu, a folha no vento de outono tudo isto deve ser

chamado de coisa. Entretanto, aviões e aparelhos de rádio pertenceriam hoje às coisas

mais próximas, o que seria diferente se falássemos das coisas mais derradeiras como

morte e Juízo. A obra de arte também seria uma coisa, pois é algo que É, já que a

palavra coisa designaria o que quer que seja que, em absoluto, é não-nada. De acordo

com o autor de Ser e tempo hesitamos em denominar de coisa tanto Deus, o cabrito

montês na clareira da floresta, o escaravelho na relva, o talo de erva, o camponês, o

professor na escola como o homem, pois este não é uma coisa:

uma coisa seria antes o martelo e o sapato, o machado e o relógio. Mas estas também não são simplesmente coisas. Para nós, as verdadeiras coisas são a pedra, o outeiro, o pedaço de madeira. As coisas inanimadas da Natureza e do uso. As coisas da Natureza e do uso são, portanto, aquilo a que chamamos habitualmente coisas. 62

Então parece que já se insinua um prenúncio de resposta à questão sobre o

homem: este NÃO é uma coisa. Se sob o domínio da técnica e do capital o homem se

assemelha a uma coisa, que ele NÃO é, então o que É o homem? Parece que estamos

circulando dentro de uma teologia negativa que se firma por negações, pois a única

coisa que podemos afirmar pondera que o homem NÃO é uma coisa.

Se a vigência da técnica como um saber que se relaciona ao poder retira do

homem o que lhe é intrínseco, a própria humanidade, como reconhecer, então o

humano? Manoel de Barros ao invocar o vigor da linguagem como condição de

possibilidade de restaurar o originário parece fornecer uma pista. Se o homem não é

uma coisa isto se deve à propriedade da linguagem que lhe confere o estatuto humano, 61 - HEIDEGGER, M. Op.cit. p. 15. 62 - Id., ibid. p. 15.

74

ou seja, de se abrir ao outro no esforço do entendimento. Deste modo, o poeta não

parece diferir o pensamento da ação sob a instância da palavra poética que irrompe

como desencadeadora da liberdade e profunda aspiração do ser. O hiato entre o pensar,

o dizer e o agir, então, equaciona-se na palavra poética como um círculo que recolhe,

reúne e enfeixa o humano por um feixe de contradições, paradoxos e contrários e não

pela exatidão das conceituações inequívocas.

O poeta ao interpelar a natureza empenha-se em reatiçar o humano através

do diálogo com a coisidade do mundo mineral, vegetal e animal. Sobre Bernardo

considera que “esse homem / Teria, sim / O que um poeta falta para árvore” (GA,22).

Este viajante estradeiro que “tira ardor de pétalas” (GA,22) é o exemplário do homem

que ao passarinhar, no sentido de vadiar, devolve ao ser o agir que se traduz em

liberdade.

A condição, então, a que parece aspirar o poeta não solicita o simplesmente

humano, mas o sobre-humano a retornar ao estado originário do ser. Se este reside na

linguagem, no entanto como lhe restituir sua condição inaugural se a palavra também se

contamina do contingencial e do suscetível? O estado imaculado de palavras não

crismadas pelas nomenclaturas de uma denominação conceitual inequívoca, ou seja, de

uma racionalidade que se funda na calculabilidade matematicística não seria, no

entanto, irrealizável?

Barros ao se entremear às coisas da natureza não pleiteia proscrever o que é

inerente ao humano, ou seja, a linguagem, mas reanimar a sensibilidade que o domínio

da técnica dissipou. Reaproximar o homem da natureza não sugere uma evasão ao

processo de reificação degradadora, mas antes, em restituir ao humano a sensibilidade

recuperativa da propriedade que lhe é específica, a linguagem que o diferencia de um

utensílio mecânico e destituído de ser. Para se des-vendar e re-velar a condição humana

75

em pleno vigor há que se aguçar a sensibilidade através da linguagem. Retornemos ao

mesmo indagar ainda não respondido: como, então, se dá isto se o homem articula não

somente a moeda concreta da fala do senso comum, mas pensa sob a vigência e

vigilância do discurso hegemônico que exige a exatidão dos conceitos?

76

2.12- LÍRICA E SOCIEDADE

Adorno afirma que “o eu que se manifesta na lírica é um eu que se

determina e se exprime como oposto ao coletivo, à objetividade” 63. Como então a

poesia de Manoel de Barros se manifesta em oposição à dominância do coletivo e da

objetividade? Pelo desapreço aos valores de um mundo no qual o conhecimento e a

técnica direcionam-se à produção de coisas úteis e funcionais. Atente-se, no entanto que

na equação de Francis Bacon saber É poder 64. A Aufklärung se fundamentava no

desvendamento do mundo, pela dissolução dos mitos e superstições para que o homem

se livrasse do medo, imperasse sobre a natureza desencantada e atingisse a maioridade,

ou seja, ficasse de pé através de seu próprio “entendimento sem a direção de outrem” 65.

A imaginação foi então substituída por um saber, essência da técnica que já não visa

mais “conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização

do trabalho dos outros, o capital” 66, ou seja, o procedimento eficaz, a operation. O

princípio que se efetiva na modernidade funda-se na substituição do conceito pela

fórmula, da causa pela regra e probabilidade em que tudo se submeta ao critério da

calculabilidade e da utilidade 67. A hegemonia burguesa tornou-se avalista de um saber

que elimina qualquer possibilidade de um indagar que resulte em considerações inócuas

ou que não sejam profícuas, rendosas e lucrativas.

Giambattista Vico ao estabelecer uma analogia do processo histórico com a

linguagem relaciona o desenvolvimento desta a três eras distintas. Assim a era dos

deuses teria se caracterizado por uma expressão mimética através de sinais e gestos, na

63 - ADORNO, T.op.cit. p. 204. 64 - ADORNO, T. E HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. 2 ed. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. p. 20. 65 - KANT, Immanuel. APUD: ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. op.cit. p. 81. 66 - Id., ibid. p. 20. 67 - Id., ibid. p. 21.

77

era dos heróis teria predominado um metaforismo por imagens, similitudes,

comparações e representações simbólicas, enquanto na era denominada civil, dos

homens, os conceitos tornaram-se, por fim, uma mediação segura, uma representação

por signos inequívocos e unificados 68. Este último estágio concerniria à linguagem

instrumentalizadora e operacionalizadora a estabelecer um valor de exatidão e certeza

ao conhecimento.

Se Vico esboça uma história cíclica Adorno aponta, no entanto, para a

proeminência dialética: frente à dominância da técnica produtiva irrompe a expressão

das mais altas formações líricas, ou seja, aquelas em que o auto-esquecimento do sujeito

abandonado à linguagem e ao imediatismo involuntário de sua expressão tornam-se o

mesmo, ou seja,

a linguagem mediatiza, da forma mais íntima, lírica e sociedade. Por isto a lírica se mostra comprometida socialmente do modo mais profundo justamente onde não se manifesta em tudo conforme com a sociedade, onde nada comunica, mas onde o sujeito, bem sucedido em sua expressão, se situa em igualdade com a própria linguagem (...). 69

A reação à coisificação do mundo, à degradação do humano e à

tecnicização do saber pode se dar, então, através do retorno poético à palavra inaugural,

virginal, ainda não condicionada pelos conceitos exatos e legitimadores de uma prática

que se pauta pela produtividade e eficiência: “esta exigência à lírica, a da palavra

virginal, em si mesma já é social. Ela envolve o protesto contra uma situação social,

experimentada por cada um em particular como hostil, estranha, fria, opressora em

relação a si (...)”. 70

68- VICO, Giambattista. Princípios de (uma) ciência nova. Acerca da natureza comum das nações. Trad. Antonio Lázaro de Almeida Prado. São Paulo: Abril, 1974. p. 105-7 69 - ADORNO, T. op.cit. p. 206. 70 - Id., ibid. p. 203.

78

No entanto, na poesia de Manoel de Barros vige esta exigência à palavra

virginal? Ao ser perguntado sobre as funções da poesia no mundo atual o poeta

respondeu que “os governos mais sábios deveriam contratar os poetas para esse trabalho

de restituir a virgindade a certas palavras ou expressões, que estão morrendo cariadas,

corroídas pelo uso em clichês”. 71

Tanto o filósofo quanto o poeta apontam para a restituição de um estado

virginal à palavra, ou seja, a uma condição original não desgastada ainda pelo uso, para

algo que não foi tocado ou violado, que permanece puro, imaculado, sem mancha.

Reside neste retorno uma concepção utópica, pois a palavra como instância

comunicativa é depositária de sedimentos carreados ao longo de seu percurso. Regressar

ao estado originário da palavra seria inverter a seta do processo histórico idealizado

como direcionado ao futuro e retroceder, assim, ao princípio no qual vigeria

primordialmente o verbo? Seria esta a concepção de linguagem adâmica admitida pelo

próprio poeta?

Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas, Ovídio mostra seres humanos transformados em pedras, vegetais, bichos, coisas. Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc. Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural – Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às crianças que foram Às rãs que foram Às pedras que foram. (GA,64) O que o poeta parece pretender é restituir ao homem o estado anterior a

qualquer conceitualidade. Isto se torna factível ao olhar poético através da inebriação e

arrebatamento sensorial a impregnar-se do vigor da terra, da mineralidade, do

vegetacional e da animalidade. A recuperação do humano tornar-se-ia exeqüível por

uma tornada à linguagem em sua instância originária enquanto atinente ao sensorial,

71 - BARROS, M. de. Op.cit. p. 310

79

encantatório e simbólico. Assim o que Barros denomina de adâmico e edênico não

poderia ser entendido como um retrocedimento a uma concepção genesíaca, enquanto

determinada por uma visão religiosa, mas sim, ao que é primitivo, primevo, originário,

fundador, inaugurador, pré-religioso e arcaico. Embora Manoel de Barros utilize o

termo adâmico observamos neste “significante hebraico” 72 menos uma referência à

cultura judaico-cristã do que uma volta ao estado primordial de onde emanaria o

humano.

Ora se o que parece revelar o homem é a linguagem que se constitui por

camadas de sentidos que se incrustaram através da ação do tempo e da troca verbal,

como então resgatar o humano por um regresso a um ponto no qual ainda não

vigoravam as relações de linguagem? Reiteremos que o discurso hegemônico da

modernidade aniquila o humano em proveito da técnica, do lucro e da exploração do

homem pelo próprio homem. Assim, o poeta ao intentar reconduzir ao que pertence ao

humano através da ativação da palavra em seu estado originário, portanto, não submisso

à calculabilidade do mundo, atua de forma interveniente no todo de uma sociedade.

Entretanto, ao pretender restaurar a linguagem em seus pressupostos arcaicos por uma

retomada da palavra em uma dimensão encantatória não ocasionaria, então, a própria

obliteração do humano?

72 - BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão. Um olhar sobre a linguagem adâmica em Manoel de Barros. São Paulo: Annablume / Belo Horizonte: Fumec, 2003. p. 21.

80

2.13- A TEOLOGIA DO TRASTE

Embora na poesia barrosiana haja uma referência constante a Deus e a

signos atinentes à doutrina judaico-cristã, no entanto, tais indícios revelam traços que

ainda assim afiguram o homem. A alusão à concepção imaculada no título do primeiro

livro publicado pelo poeta Poemas concebidos sem pecado advém sob o primado da

ironia, dado que a menção ao dogma enforma-se pelo avesso, pois não delega a uma

pureza virginal a matriz da poesia. Esta, na convicção barrosiana que se observa no

percurso inicial, ao se fecundar infensa à noção de pecado invalidaria qualquer desígnio

divino, pois não se fundaria sob a égide do tom sacramental, posto que o percurso

inaugural do autor de Matéria de poesia não comungava ainda da fé em uma criação

sobrenatural. Em “Cabeludinho” Nhanhá se aborrece “com o neto que foi estudar no

Rio / e voltou de ateu” (PCSP,31). A poética de Barros em seus primeiros passos

prezava exclusivamente a materialidade sensório-carnal como constitutiva do humano:

“O que eu preciso e quanto! Nesta mísera tarde / É daquela mulher com as coxas

entreabertas na minha frente. / E isso não tem mandamentos nem ofende a disciplina

militar” (FI,71). Se qualquer preceito religioso exige uma complacência aos ditames

divinos, sujeitar-se a isto seria sucumbir o humano diante do não humano. Ora, se o

poeta recusou-se, posteriormente, a reduzir-se à condição de coisa não parecia, àquela

época, seduzido a enveredar rumo ao etéreo como solução ao pesadelo da história.

Proclamava, antes, a crença na plenitude humana pela insurreição a toda e qualquer

submissão:

Ela me encontrará sadio, apolítico, antiapocalíptico Anticristão e, talvez, campeão de xadrez. Ela me encontrará forte, primitivo, animal Como planta, cavalo, como água mineral. (P,94).

81

Essa insubmissão reflete pelo avesso a sujeição de Jó, ao qual o poeta se

refere para, contudo, não aquiescer a qualquer desígnio imperativo que ponha à prova

sua fé, pois esta se traduz de outro modo, em comunhão com a existência concreta:

Ser como as coisas que não têm boca! Comunicando-me apenas por infusão por aderências por incrustações...Ser bicho, crianças, folhas secas! (CPUP,53).

Subsumir no mundo físico, no entanto, não implica em ser submisso a uma

condição servil, mas em assumir e tomar para si a condução do próprio existir. A

proeminência da materialidade revela-se no inventário das palavras re-colhidas e re-

unidas na poesia de Barros: chão, árvore, rã, pedra, caracol, boca, homem, etc. Tal feixe

empilhado pelo poeta não reverencia o sacralizado relativo ao incorpóreo e intangível,

mas sagra o ordinário e o sensível como passíveis de adoração: “Quem salvar a sua vida

perdê-la-á / com árvores e lagartixas” 73 (MDP,23). Assim, sob o signo da ironia, ou

seja, pela imisção dos contrários, postula-se o sacrário para as coisas ordinárias

enquanto o sacramentado pelo dogma, e não pelo evangelho em sua mensagem

vivificante, é destituído da aura impositiva pelo crivo de um duvidar que não busca a

exatidão dos conceitos: “Só as dúvidas santificam / O chão tem altares e lagartos”

(MDP,31).

A partir do ato de cisão, irônico, que se recusa a acolher o sacramental

enquanto algo apartado do mundo, o poeta articula, então, uma teologia do traste que se

trata de um

manuscrito do mesmo nome, con- tendo 29 páginas, que foi encontrado nas ruínas de um coreto, na cidade de Corumbá, por certo ancião

73 - cf. MATEUS. Novo testamento. 16,25: “pois, quem quiser salvar a sua vida por amor de mim perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de mim, acha- la- á”.

82

adaptado a pedras. Contou-nos o referido ancião, pessoa saudavelmente insana de poesia, que sobre as ruínas do coreto BROTAVAM ÁRVORES / OBRAVAM POBRES / MORAVAM SAPOS / TREPAVAM ERVAS / CANTAVAM PÁSSAROS (...) (APA,31). Ao estipularmos uma teologia barrosiana no que esta se diferenciaria de

uma doutrina? Os ensinamentos de Cristo foram recolhidos sob a forma de evangelhos

(euaggélion: boa notícia) como meio formador de uma comunidade (ekklesía) dirigida

pelos apóstolos 74. Historicamente somente no século IV esse grupo alcançou o estatuto

de igreja universal (kathólou) com a instituição de uma doutrina que cogita interpretar a

realidade, a verdade e o homem por meio de preceitos e sanções. A partir deste ponto

institui-se a teologia. Como se diferenciam evangelho e teologia?

O primeiro (...) refere-se a um conjunto de ensinamentos que traz em seu bojo uma interpretação da vida do homem sob uma perspectiva fáctica, onde o tempo da existência humana é tomado no seu sentido kairológico, isto é, ele se desdobra dentro de um acontecer histórico humano que possui os traços de imprevisibilidade e subtaneidade. A teologia, por seu turno, é a interpretação dos evangelhos à luz do saber metafísico que procura lhe assegurar justificação filosófica, atribuir validade aos seus ensinamentos e onde o tempo histórico é interpretado no sentido cronológico, isto é, a existência humana acontece e se desenvolve dentro de um âmbito de certeza e previsibilidade. 75

O caminho percorrido pelo pensamento medieval prosseguiu na via

metafísica através da estruturação de dogmas que conformaram uma teologia. Se a

patrística, seja sob o caráter doutrinário ou apologético, interpreta a realidade a partir do

modelo platônico de uma concepção dual da realidade entre corpo e alma, a escolástica

especula a respeito de Deus e da criação, sob a influência do pensamento aristotélico. A

74 - MICHELAZZO, J. C. Op.cit. p. 49. 75 - Id., ibid. p. 49-50. Essa imprevisibilidade e subtaneidade são definidas por Heidegger ao analisar a epístola de S. Paulo (Tess. 4,13 ss) “onde o apóstolo exorta aos cristãos que a segunda vinda de Cristo não virá dentro de um tempo com dia e hora marcados (previsibilidade), mas como o ladrão na noite (subtaneidade)”.

83

natureza humana tanto na concepção patrística como escolástica, no entanto, situa-se

como intermediária pois

o homem como todas as demais criaturas, também é interpretado como ens creatum, mas colocado numa posição especial, uma vez que está situado entre Deus e as demais criaturas. Entretanto, como possuidor de um corpo perecível, pertence, como qualquer outro ente criado, ao âmbito do sensível, mas porque lhe pertence também uma alma racional perene, está também vinculado ao mundo supra-sensível, o que faz com que esteja acima das criaturas, numa condição especial: a de ser filho de Deus. 76

A interpretação da realidade pelo conceito da dualidade conserva-se ainda

no pensamento de Descartes ao estabelecer para o mundo sensível a denominação de res

extensa e à esfera supra-sensível res cogitans, ou seja, o ens creatum caracteriza-se por

possuir a faculdade de pensar: “ser coisa pensante é, para Descartes, o que constitui a

essência do homem” 77. Assim, tal essência encerraria apenas o pensar e excluiria a

corporeidade material, pois esta tange ao plano do sensível e do instintual, portanto,

distinto do ser cogitante.

A doutrina teológica barrosiana tem por princípio restituir ao homem sua

condição de res extensa e assim, portanto, não se curvar ao cogitans como uma esfera

situada em um plano supra-sensível. Essa teologia por brotar da terra bruta da matéria

onde germina a vida aproxima-se do conceito grego de phýsis que “evoca o que sai ou

brota de dentro de si mesmo (por exemplo, o brotar de uma rosa), o desabrochar, que se

abre, o que nesse despregar-se se manifesta e nele se retém e permanece” 78. A phýsis se

manifesta tanto na irrupção daquilo que se manifesta pelo movimento como naquilo que

permanece e se retém em repouso, conformando assim uma unidade dialética e não uma

dualidade opositiva entre o sensível e o inteligível.

76 - Id., ibid. p. 56. 77 - Id., ibid. p. 58. 78 - HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica. APUD: MICHELAZZO, J.C. op.cit. p. 28-9

84

O conceito de teologia de Barros há de se entender não como uma doutrina

dentro do âmbito da certeza e previsibilidade, mas por seus opostos, pela

imprevisibilidade e subtaneidade. Ou seja, se nos evangelhos vigorava uma confiança

pura no criador, nas concepções doutrinárias transformadas posteriormente em teologia

o Deus creator torna-se a causa primeira universal, traduzida em exatidão. A teologia

barrosiana não mais subscreve a orthótes, mas a incerteza do porvir, do devir e de um

criar que se manifesta em uma irrupção perene, constante e imprevisível.

Mas porque uma teologia conjurada ao traste? A palavra traste provém de

tra(n)strum que significava originariamente banco utilizado por remeiros, que

posteriormente reduziu-se a banco em geral, e daí, estendeu-se o significado para

qualquer móvel velho. Também designa um pedaço de arame atravessado no braço do

violão e outros instrumentos de corda, provavelmente por comparação com a série de

bancos de uma galera. Observa-se, portanto, que o termo traste abarca na acepção

originária um objeto destinado ao uso ordinário e que provavelmente adquiriu uma

conotação de coisa de pouco valor. Entretanto refere-se também a um componente de

instrumentos musicais. A teologia do traste teria, então, uma dupla acepção em que

tanto aponta para o ordinário como se relaciona ao atributo material da condição da

criação artística.

Para fundar essa teologia Barros intenciona o avesso do dogma de uma

criação divina irretocável de acordo com as prescrições doutrinais, pois para ele, ao

contrário “o mundo não é perfeito como um cavalo” (APA,67). Se o mundo

diversamente da convicção teológica tem por propriedade a perfectibilidade, portanto, é

suscetível de ser aperfeiçoado e não subscreve o primado da perfeição, a materialidade

não se subsume à instância perficiente do empíreo exatamente por se apresentar na

condição da falibilidade que é o que constitui o terreno e o humano. A atividade artística

85

nessa concepção teológica termina, então, por desassemelhar-se ao divino, pois se neste

vigora o incondicional que institui à criação o estatuto da perfeição, na arte o processo

criador decorreria da insubmissão ao designado como perfeito devido a

imperfectibilidade do mundo:

Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. (LSN,75).

Daí a valoração do ordinarismo como uma distinção indissociável da

natureza defectível do homem. Se a condição humana sob o prisma da eminência é algo

da ordem da imperfeição, entretanto, ao olhar lúdicro do poeta o sublime, o excelso e o

elevado consubstanciam-se ao soez, ao alarve e ao sólito. No poema “Dos veios

escatológicos” Barros tece uma narrativa que descreve a ausência de latrinas na Vila e

como os homens sujavam-se nos matos ao serem arrastados pelos porcos enquanto

defecavam: “De forma que sujos de suas obras como se lê no Eclesiastes” (LPC,73).

Dentre as virtudes teologais barrosianas avigora-se o imperativo do desejo

como constitutivo do humano não maculado pelo anátema da condenação divina:

O sacristão apareceu (puxava um cavalo). Aquela chapoleta do cavalo na égua por detrás Adentro, eu vi de perto. Meu olho crepusculou-se. Uma aranha espirrou pessoalmente. Deu para aprender concepção sem ler o Pentateuco. (CCAPSA,20).

Na teologia barrosiana vige um crer que se funda, entretanto, pelo duvidar,

pois ambos conformam uma fé no que é concreto sem, entretanto se ater aos domínios

do lógico: “Quem ama exerce Deus – a mãe disse. Uma açucena me ama. Uma açucena

exerce Deus?” (LSN,29). Para este poetar o questionar instaura-se na medida em que

86

tudo o que se esquive à racionalidade lógica torna-se condição de possibilidade de

indagação sem a imperiosidade de um esclarecimento de–finidor.

Se a trastaria não se sustenta em doutrinas religiosas nem comunga a

concepção do divino cultuada pelo senso comum, contudo, por vezes, aproxima-se da

idéia corrente de Deus pela mesma figuração metafórica que se propaga através de

ditados populares: “Prefiro as linhas tortas, como Deus” (LSN,39). A recusa a trilhar a

exatidão retilínea por eleger o oblíquo como legítimo implica em uma decisão que

privilegia o acaso como divisa do livre arbítrio. A apropriação de um ditado popular que

designa à divindade soberana a estrita correição de uma escrita através da tortuosidade

linear serve de norteamento para estipular um percurso sinuoso diferenciado tanto da

lógica linear vigente na civilização técnica como da moral de uma retidão imaculada. Se

qualquer ação divina sobre os desígnios humanos resulta como certificante de uma

vontade supernal acima da desvirtude, do defectível e da erronia, portanto

pronunciamento da legitimidade de uma voz providencial que prima pela insuspeição,

por sua vez, o gauche, o retorto pantaneiro palmeia o sinuado pois o sentimento do

dissímil avizinha-o de tudo o que é designado à tortuosidade não pela dileção ao

ardiloso, mas por reverência ao adverso. O enleio e enlevo com a trastaria, ou seja, o

apreço pelo ordinário e pelo indigente, torna-se o ponto de sutura, de religamento a uma

espécie de sagrado que se manifesta através da miserabilidade das coisas imprestáveis,

desvalorizadas e diminuídas: “Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam/ a

Deus. // Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!” (LSN,57).

Se Manoel de Barros não celebra um altar e uma liturgia para o culto de

divindades súperas e adversas à materialidade perfectível cultua, por conseguinte, o

supremo no insignificante e no que não é insigne: “O cisco tem agora para mim uma

importância / de Catedral” (RAQC,23). A santidade, no entanto, somente se manifesta

87

naquilo que margeia o humano: “Há nos santos grandes margens de antro”

(CCAPSA,62). Deus na concepção barrosiana abrange o universo em sua concretude e

palpabilidade, pois do ínfimo ao infinito tudo é requisito de adoração enquanto

manifestação da existência: “Coisa de Deus! A breve espera do rio para a passagem dos

patos”(CCAPSA,62). Tal visão aproxima-se de “O guardador de rebanhos” do

heterônimo pessoano Alberto Caeiro, mestre do paganismo:

Mas se Deus é as flores e as árvores E os montes e o sol e o luar, Então acredito nele, Então acredito nele a toda hora, E a minha vida é toda uma oração e uma missa, E uma comunhão com os olhos e os ouvidos Mas se Deus é as árvores e as flores E os montes e o luar e o sol, Para que lhe chamo eu Deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; Porque, se ele se fez, para eu o ver, Sol e luar e flores e árvores e montes, Se ele me aparece como sendo árvores e montes E luar e sol e flores, É que ele quer que eu o conheça Como árvores e montes e flores e luar e sol. 79

A reverência ao ordinário clama uma leitura dos evangelhos pela ótica dos

desvalidos. Para o poeta tudo aquilo que condiga ao existir, mesmo que desprezível, é

próximo e partícipe do homem, portanto, de si mesmo: “já posso amar as moscas como

a mim mesmo” (RAQC,11). Ao postular o amor aos insetos consagra a divisa cristã

além do dogma que determina amar ao próximo enquanto este circunscrever apenas o

humano. Barros concebe o próximo como todo e qualquer ser, especialmente os

desapercebidos, os desprezados e os desvalorizados como os lunáticos, andarilhos e

vagabundos. Daí ter como seus guias espirituais não uma entidade divina, mas um

desses seres da indigência que tinha “uma voz de oratórios perdidos” (RAQC,25): “Pote

79 - PESSOA, Fernando. O guardador de rebanhos V. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.p. 208.

88

Cru é meu pastor. Ele me guiará” (RAQC,25). Outro andrajoso a quem Manoel de

Barros também atribui a função de guia pastoral é Passo-Triste, perseguido por uma

“espécie de ascese moscal” (RAQC,43).

Essa teologia, entretanto, se não prescreve doutrinas intenta o possível: a

transubstanciação do cediço no inaudito. O sacramento da eucaristia barrosiana tem por

fundamento a própria origem da palavra kharízomai: agradar, dar gosto, como algo que

se funda em um sabor que estatui outro saber e que se dá pela inversão de sentidos. Se a

comunhão com o próximo articula-se pela linguagem usual, a fala transubstanciada pelo

poeta quer atingir o estágio da despersonalização, do desnudamento e deslindamento

para fazer brotar um outro dizer. Somente despindo-se das personas sociais, do

mascaramento do ser, então, atinge-se o ponto em que não se é mais ALGUÉM, mas o

nada de um Zé-ninguém:

Falar a partir de ninguém Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos (...). Falar a partir de ninguém Faz comunhão com o começo do verbo. (EF,25).

Observamos que a poesia de Manoel de Barros desde o seu pronunciamento

inaugural excomunga a noção de pecado ao conceber o humano pela imisção na

concretude do contingencial. Solicita, então, um retorno à condição originária, ou seja, à

vigência de uma consciência anterior ao cisma que determinou a condenação ao

homem. Entretanto é possível tal retrocedência após a cicatriz do cristianismo ter

marcado fundamente a epiderme, a alma e a mente humanas assim como também a

revolução francesa assinalou irreversivelmente nossa consciência com a possibilidade

da fraternidade, da igualdade e da liberdade? Barros reconhece a supremacia do pêndulo

da história a vibrar na cavidade do tempo e a acorrentar o homem ao fluxo contínuo do

irretroativo. O poeta enfrenta os tentáculos da razão hegemônica com o seu contra-

89

veneno: não a irracionalidade do ilogismo, enquanto designado pelo senso comum como

força não produtiva, mas pela instauração do que é mais caro ao humano, ou seja, a

capacidade do imaginar, do poetar, de um fazer que instaura a liberdade de um pleno e

múltiplo pensar como poiesis.

Como ressaltamos Barros credita à concretude de tudo que medra uma

qualidade que não se situa nem como inferior nem como superior. Na concepção

teológica barrosiana o mundo como irrupção pelo velar e desvelar constante instaura a

criação não por uma essência que precede a existência, mas pelo seu inverso: “Se diz

que no início eram somente elas (as águas) / depois é que veio o murmúrio dos corgos

para dar testemunho de Deus” (APA,44). Para o poeta postular uma teologia do traste

não implica em abjurar a concepção divina, pois esta é sempre invocada: “Deus é quem

mostra os veios” (MDP,26). Entretanto a noção do divino somente se manifesta na

concretude do criado como já demonstramos. Assim, um simples pássaro como um

quero-quero “cumpre Jesus” (LPC,85). A igualança com o outro se consubstancia no

finito perecível do mundo fenomênico seja sob a instância mineral, vegetal, animal ou

humana e não adstrita à veneração do intáctil. Neste conflito entre o divino e o humano

os loucos configuram uma espécie de mediação: “Roupa-grande (...) Com as mãos

endireita Deus para ele” (GDA,17).

Em um mundo desumano Manoel de Barros não afiança uma alergia ao

divino, mas aliança uma elegia à divinação à teologia do traste que se não nega

totalmente a divindade, no entanto, não a afirma por uma idealização abstrata e supra-

sensível, mas pelo realce do plano substantivo, complexo e paradoxal, no qual existe o

homem. Se o que o definiria prezaria tanto o cogitar quanto o sentir, tal condição

confere ao humano uma característica dual que conflui entre o entendimento pelo

inteligível e a experiência empírica do sensível qual uma unidade indissociável.

90

2.14- O DESSUJEITO

Retornemos à questão: o que é um homem? Este na civilização industrial

conformou-se ao simulacro de uma coisa não pensante forçada à produção maquinal e

ao consumo de objetos úteis. A meta do indivíduo pauta-se, então, pela vontade

direcionada de ser ALGUÉM. Mas qual o sentido de tal intenção? O SER já não implica

em ser alguém? Ou este ALGUÉM situado em uma sociedade de mercado tem por

sentido alcançar o status de uma posição destacada acima dos outros através da

ascensão social em que se releve a posse de determinados signos indicadores de

reconhecimento e elevação?

A poesia barrosiana, como mostramos, no início pauta-se pelo tom

denunciativo a acusar a opressão do indivíduo em uma sociedade desumana sob a forma

da expressão direta da indignação. Após este primeiro passo, no entanto, parece mudar

de rumo e enveredar por uma linguagem alógica similar a de andarilhos, dementes e

errantes. Se não lhe parece que o intento da denúncia não se traduz em eficácia isto se

deve ao fato de que poesia concerne à linguagem, ou seja, àquilo que conforma o

homem. Daí a esquivez à normalidade hegemônica por um outro enfoque que visa ao

enviesado e não mais ao direto: “Usado por uma fivela, o homem tinha sido escolhido, /

desde criança, para ser ninguém e nem nunca” (APA,17). Se Manoel de Barros nega-se

a referendar a soberania da técnica e do capital em que triunfa somente o rentável e o

vantajoso, afirma então uma entronização do reles, do rasteiro e de tudo aquilo que é

abjeto aos olhos do mundo como resposta à práxis desumanizadora: “Arcado ser – eu

sou o apogeu do chão” (APA,69).

91

Ao se negar a prostrar-se diante da engrenagem maquinal produtiva assim

como também se submeter a um desígnio supremo distanciado das tragédias humanas, o

caminhar barrosiano ruma direção àquilo que lhe revele o humano. Daí embrenhar-se

por uma errância que atravessa pelo avesso a sensaboria da razão calculadora em

vigência no mundo. O mundo dos errantes, destes ninguéns não se pauta pela conquista

de bens nem se nutre de uma esperança post-mortem, mas de uma negatividade que

abole qualquer princípio de posse, pois tudo é transitório. Barros ao ressaltar a figura do

caminhante, da desfigura errante, parece, entretanto, enveredar pelo rumo da alienação

desobrigada de compromissos com a sociedade, quando o que quer revelar a contrapelo

é o caos em que o mundo se encontra. A figura do erradio é um outro modo de tocar nas

mesmas questões circunscritivas ao humano. Contudo, o que está em questão não é a

figura do andarilho como um degradado, pois, este antes possibilita visionar de viés o

que não é mais relatado sob a forma da denúncia explícita de uma poética que se

postulava como interventiva, mas a situação aviltante do ser reificado por uma estrutura

maquinal contra a qual se insurge em busca da conquista do humano: a liberdade. O

errante revela pelo avesso a desumanização de um mundo onde se atordoam os sentidos,

não se entende o próximo e nem se consegue definir o que seja ainda humano.

O poeta de Livro sobre nada, como ressaltamos, a partir de um ponto do

percurso não mais utiliza uma enunciação direta no registro das contradições sociais,

mas inverte o sinal de igualdade entre representação e realidade pelo traço de subtração

em que amplia a mediação entre os dois pólos para fazer ver menos diretamente os

dados. O vagamundo configuraria o dessujeito, ou seja, o humano em posse de seu

prosseguir a não se sujeitar ao comando da técnica e do lucro. A questão do dessujeito

subsume-se na condição do homem coisificado no esforço de lutar pela liberdade. No

vaguear o multívago exerce a liberdade através de uma errância que ruma norteado pelo

92

livre-arbítrio sem se submeter à tirania de um tempo cronometrado a determinar

compromissos que sujeitam o indivíduo a uma ordem pragmática hegemônica.

O que seria então o dessujeito?

Não se trata de um sujeito que não É, mas de um ser que não mais se

sujeita. Mas não se sujeita a que? Disto o poeta não enuncia de maneira clara, mas de

forma velada como um desvelamento que acoberta e revela. A sujeição significa

submissão, obediência, ação de pôr debaixo. Não se sujeitar diz respeito ao repúdio a

qualquer anuência passiva aos acontecimentos. Se o sujeito, na acepção latina é o

subjectus 80, o que está posto debaixo, colocado abaixo, submetido, subordinado e

dependente, a negativa a estes imperativos exige uma vontade resultante de uma

consciência inquieta diante da ordem conformadora das coisas. O não consentimento

passivo frente às contingências requer uma autonomia vigorosa que se determine a um

caminhar ereto, porém solitário, pois cada vez mais distanciado da manada

encabrestada. O pôr-se de pé é o passo inicial em direção ao dessujeito, aquele que não

está mais sob o jugo, sob rédeas, sob o comando de fios invisíveis a frear sua vontade e

autonomia. Tomar a condução da existência sob suas próprias mãos implica em uma

plena soberania que não admite mais a gerência, a gestão, a regência e administração do

que compete à plenitude do ser. O vagante assim configura o humano sob a figura do

dessujeito, ou seja, insubmisso à resignação diante do pesadelo da história. Se esta

oprime e nos arrasta em seus trilhos, o ser tem a possibilidade de resistir pela vontade

insubordinada aos ditames subjugantes. O dessujeito é o ser insurgente que após

80 - A palavra latina sujeito seria uma “tradução literal de hypokeímenon que, para os gregos, significava aquilo que ‘no fundo e sempre, estava já presente’ no âmago dos entes. (...) Assim, sujeito, como tradução reducionista de hypokeímenon, passa a designar dentro da estrutura gramatical a primeira parte da proposição enunciativa simples, como aquilo de quem ou do que se fala, seguida do predicado que lhe postula atributos. Sujeito, contudo, ganha o significado que hoje conhecemos só a partir da Idade Média, isto é, com uma referência precisa ao homem, na forma de um eu ou de uma consciência, pessoa ou razão, espírito ou personalidade”. MICHELAZZO, J.C. op.cit. p. 60-1.

93

libertar-se dos grilhões que o acorrentavam à caverna ao mirar o sol da existência

enxerga somente um clarão que o enceguece.

Ao final desta etapa Barros parece chegar a um impasse: se a condição

humana não se revela por uma transcrição direta, ou seja, pela representação da

realidade como, então, entrever a verdade através do imperativo de uma língua que

sequer se apresenta como um espelho em absoluta transparência do real? Se o humano é

passível de se revelar através da linguagem onde reside o ser, restaria, então, ao poeta

rumar em direção a uma poesia que pusesse em jogo a lógica da linguagem.

94

3- O PRIMADO DA CONTRADIÇÃO

A poética barrosiana busca fundar o humano naquilo que lhe constitui

como tal, ou seja, a linguagem. Esta, no entanto, sob o prisma de certezas absolutas se

constitui como uma prisão onde somente medra a precisão, quando o liame que sutura

as significâncias aos significantes é de uma delicada e imprecisa qualidade que não se

sustenta sob a luz de uma depuração do inverídico. Mas é precisamente isto que torna a

linguagem passível de uma qualidade que se intenta cultivar à sombra do impreciso tal

qual postula o discurso poético. A condição humana se desumanizou em um mundo no

qual a imperiosidade de certificabilidade sustenta as relações degradadas e em

decomposição. Seria a fragmentação que se contempla na poesia barrosiana explicada

pela depauperação do existir em uma sociedade fundada na livre concorrência, na

lucratividade e no acúmulo? Não somente isto, porém, pois a linguagem que se grava

sob o crivo do estilhaçamento sintático-frasal e gramatical constitui-se como tal se

acatamos a noção fragmentista como um valor menor em relação a um centro de

verdade que estabelece a hierarquia superior na concepção de unidade e inteireza. Não

haveria na lírica moderna uma postulação de resgatar na escrita poética aquilo que a

funda, ou seja, uma linguagem que não somente não sirva como redução do real a

quantificações precisas e nomeações exatas mas instaure uma outra concepção em que a

noção de preciso se complete com o impreciso em uma dualidade a compor uma

unidade indissolúvel? O humano se constitui dessa mescla entre o definido e o

indefinido e em todas as oposições a dialogar em um permanente e indissolúvel

movimento. Portanto, argumentar a fragmentação de um discurso poético é realçar o

estatuto qualificador na unidade como absoluto quando este se compõe com a

desintegração em uma indissociável ligação.

95

Na obra de Manoel de Barros tida como fragmentária 81 haveria algum

princípio construtivo? De acordo com Ronaldes de Melo e Souza o princípio de

construção que fundamenta a obra de arte literária seria a ironia. Esta não se confinaria

ao tropo retórico como figura do discurso, pois de acordo com Schlegel qualificar-se-ia

muito mais como uma parábase permanente 82 que se funda na comédia Ática em que o

coro interrompia o desenrolar dos acontecimentos e dirigia interpelações ao público a

instaurar um momento crítico e reflexivo sobre a própria representação. Esse processo

de auto-reflexão crítica do próprio atuar que se mostra como representação e não como

forma especular da realidade configura-se como ironia, eironeia, questionamento. A

poesia moderna ao mostrar-se como um construto que se expõe ao olhar do leitor

interpõe uma visada crítica que se funda pela ironia como “uma nova forma de

conhecimento, em que a contradição é consentida” 83. A oposição dos contrários deixa

de se constituir, então, como antagonismo conflitante para instituir-se pela

complementaridade de uma unidade dual, pois em “consonância com o caráter

contraditório do homem e da natureza, a unidade da obra irônica é a unidade paradoxal

do orgânico e do não-orgânico, do formado e do não-formado, do ser e do nada, do

cosmos e do caos”. 84

No entanto o que é ironia? Instaurar qualquer questão que implique no ser

de alguma coisa determina-lhe a unidade de uma resposta? Ou seja, há a imposição de

se asseverar a qualidade da singularidade do que seja definido como alguma coisa e não

outra? Pois se em um perguntar postula-se desvendar o É de alguma cosia pondera-se

que este encaminhar a pergunta conclua por um de-finir que estabeleça as

particularidades caracterizadoras de algo como sendo isto ou aquilo, mas jamais isto E

81 - A tese de doutorado de Goiandira Camargo sobre Manoel de Barros denomina-se A poética do fragmentário. 82 - SOUZA, Ronaldes de Melo e. “Introdução à poética da ironia”. V. nota 2. 83 - Id., ibid. p. 32. 84 - Id., ibid. p. 36.

96

aquilo. Portanto, uma resposta atinente ao bom senso deveria proceder por uma

determinação conclusiva sobre isto ou aquilo, mas que evitasse a ambigüidade de se

dizer que ao mesmo tempo tanto é uma coisa como seu reverso. Asseverar desta

maneira seria contrariar o bom senso e cair no paradoxo. Segundo Deleuze o “bom

senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável; mas o

paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo” 85. O paradoxo postula o

avesso do princípio da não contradição firmado pela lógica que não comporta que uma

coisa seja isto e aquilo simultaneamente. Assim, qualquer proposição firmada pela

linguagem usual estrutura-se a partir dos fundamentos lógicos, ou seja, que uma coisa

não pode simultaneamente ser outra. Se a linguagem, portanto, fixa os limites

definidores, como afirma o filósofo francês, “é ela também que ultrapassa os limites e

os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado”. 86

A ironia configura-se em um dizer que estipula em uma afirmativa a

ocultação implícita de uma correspondente negativa assim como o inverso. A

denominação usual que repousa na convencionalidade conforma um significado a um

determinado significante e ao se imiscuírem as diferenças em único feixe significativo

deixa de se constituir como um atributo de veracidade ao signo para se revestir de um

sentido que prima pela dubiedade. Assim a duplicidade e simultaneidade fundam a

ironia pelo primado da contradição em que algo se insinua na aparência de um

enunciado como proposição determinada a designar corretamente alguma coisa, mas

desloca a significação corrente para uma similaridade ao avesso em que isto não tem

mais por identidade isto em si mesmo, mas assume a propriedade inversa ao pretendido.

Deste modo a ironia se firma pela afirmação simultânea dos contrários em que isto e

aquilo conformam uma unidade dual. Assim o conceito de ironia funda-se na

85 - DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. L.R. Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 1. 86 - Id., ibid. p. 2.

97

ambigüidade da linguagem e não na fundação de certezas da ortótes ou da doxa. Vige

assim o paradoxismo de uma coisa que não é, mas que parece ser e que na verdade é

uma outra que não se afirma a não ser pela negação. Situa-se então na fímbria entre um

ser e um parecer, entre um ser e não ser. Deste modo ao se nomear algo como

verdadeiro, no entanto tal coisa termina por revelar-se como falseamento e simulação. O

poeta não dissimula que o escrever não comporta a realidade na sua determinação de

aparente redução à representação da facticidade, mas é uma apresentação do representar

que como tal não se finge como realidade, mas que instaura a realidade do escrever

como um dissimular.

À coexistência bifacial de algo que não é, mas que, parece ou finge ser, ou

o inverso, de algo que é, mas aparenta não ser, impõe-se um indagar sobre a fixidade da

linguagem. Embora esta se institua pela infinidade polissêmica dos diversos contextos

em que os signos são articulados há uma convenção contratual que não possibilita em

cada contexto determinado uma pluralidade indefinida de significações diversas a

permitir a floração de equívocos. Se em uma placa informativa interpõe-se qualquer

dado que instaure a profusão de sentidos, o bom senso impõe a eliminação do elemento

propiciador de equivocidade para se evitar aquilo que em teoria da comunicação

denomina-se de ruído, ou seja, qualquer vocábulo ou sintagma condutor de dubiedade

que induza ao duplo sentido, portanto à anulação de uma identidade fixa 87. Se vigora na

margem cotidiana, informal e rotineira da linguagem a impossibilidade de um navegar

além das linhas limítrofes dos significados estritos costurados aos signos, há também

uma outra que cerceia nosso compreender e dizer e que se postula como a fidedignidade

87 - Terry Eagleton exemplifica a ambigüidade da linguagem usual com um aviso encontrável no metrô, “cachorros devem ser carregados na escada rolante”: “Isso talvez não seja tão claro quanto pode parecer à primeira vista: significará que nós temos de carregar um cachorro na escada rolante? Seremos impedidos de usá-la se não encontrarmos algum vira-lata para tomarmos nos braços, antes de subirmos ou descermos? Muitos avisos, aparentemente claros, encerram ambigüidades semelhantes (...)”. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, s.d. p. 7.

98

dos conceitos que fundam o estatuto de qualquer saber. Em ambas determina-se a

fixidez da certidão autentificativa da verdade a qualquer enunciado, pois se tal não

condizer com a normatividade vigente revelar-se-á como farsa, portanto, inverdade.

Esta lógica é excludente e se funda no princípio da contradição em que algo não pode se

constituir como verdadeiro e falso simultaneamente. Porém, parece haver uma outra

margem em que vige um linguajar que instaura uma aporia ininterrupta que não

acorrenta definitivamente o nome a uma determinada coisa. Roland Barthes postula que

duas margens são traçadas: uma margem sensata, conforme, plagiária (trata-se de copiar a língua em seu estado canônico, tal como foi fixada pela escola, pelo uso correto, pela literatura, pela cultura), e uma outra margem, móvel, vazia (apta a tomar não importa quais contornos). 88

A ironia, entretanto, instaura o fluir ininterrupto de uma terceira margem,

pois destitui o estatuto firmado na convenção da certeza para revelar na conformidade

de um enunciado uma ambi/valência em que uma determinada afirmativa termina por se

constituir como sua própria negação. A simultaneidade da interpenetração dos

significados em uma tessitura ambivalente funda-se em uma dialética entre a verdade e

a mentira, o afirmar e o negar que não permite a conformidade do sentido à mansidão de

um porto seguro. A seguridade, no entanto, é o fundamento da linguagem atinente ao

senso comum da fala cotidiana ou da objetividade conceitual das nomenclaturas de

determinados saberes regidos pelo rigor e precisão classificatórios. De acordo com as

premissas do princípio da não contradição isto e aquilo não se conformam a um mesmo

aspecto, mas distanciam-se por margens seguras que não permitem a promiscuidade

difusa e profusa de um variar de sentidos. Assim, a ironia ao postular que um afirmar

pode repousar sobre a indeterminação significativa põe de sobressalto a seguridade da

linguagem assentada sobre alicerces definidores e definitivos a se guardar da

88 - BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1977. p. 12.

99

infirmidade. A instabilidade da relação entre os signos e as coisas vem à tona com a

instauração da ironia, pois esta termina por interpor um desacordo incômodo no

contrato oficial que firma a linguagem.

Embora toda poesia se funde na instauração de uma infinitude significativa

a postulação de uma ambivalência pela simultaneidade antitética estipula uma

consciência diversa da uniformidade unívoca e unificadora da linguagem que estrutura o

pensamento ocidental. A complexidade do humano não se firma pela afirmação

irrevogável de distinções inequívocas, mas por uma imisção dos contrários que funda o

que há de mais fundo no ser que se firma pela linguagem que em si mesma não prima

pela identidade fixa mas por uma condicionalidade que impõe uma convencionalidade

outorgada por um contrato firmado em nome da univocidade, da unidade e do

identitário. A postulação de uma linguagem dúbia que se conforma na ironia clama por

uma concepção diversa da redução da multiplicidade à uniformização e anulação dos

contrários. A concepção irônica se pauta na compreensão da complexidade do ser

humano que não deve se ater a uma representação que finja uma identidade fixa quando

repousa a instabilidade não somente do estatuto significativo, mas da própria

constituição do ser que articula a linguagem, pois este não se limita ao nivelamento e

aplainamento da redução do real mas se constitui em uma diversidade de camadas que

compõem um compósito variegado e multifacetado. Isto, no entanto não nega a

preeminência da coerção social a vigiar o dizer como a determiná-lo por um regrar que

a mera violação encarcera no exílio da demência todo aquele que ousar divergir do bom

senso...

Assim, articular uma expressão que não referende a linguagem em sua

pretensão de univocidade é postular uma outra compreensão, e para esta se instaurar há

100

que se arregimentar um outro dizer, que requer um outro pensar, que postula uma outra

didática avessa ao assentido.

101

3.1- UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO

Na obra de Manoel de Barros há uma constância de tratados, compêndios,

gramáticas, protocolos, glossários, livros, cadernos, lições, exercícios que conformam

um dessaber para o aprendizado de uma outra didática. A primeira parte d`O livro da

ignorãças denomina-se “Uma didática da invenção”. A palavra didática provém de

didaskó, ensinar, instruir e refere-se à pedagogia que intenta uma eficácia maior na

aplicação da atividade educacional através de preceitos. Tal termo utilizado em um livro

de poesia termina por revestir-se de tom irônico por retirar do aspecto educativo o

compromisso com a eficácia pedagógica de um saber atinente aos conhecimentos

determinados por regras e prescrições. Ao invés de subsumir-se no modelo pedagógico

ditado pelo bom senso aventa-se um outro trilhar que investe no avesso da repetição: o

inventar. Este induz a descobertas imaginativas e criadoras e não se resume ao

repositório de saber convencional firmado sob normas.

A epígrafe creditada a um certo Felisdônio afirma que “as coisas que não

existem são mais bonitas” 89. O autor do enunciado é um dos seres próximos ao poeta

que navegam nas outras margens da razão e por isso contam com a adesão incondicional

de alguém que não comunga do senso comum. Com esta sentença o poeta demarca que

seu suporte didático convergirá para uma concepção literária que postula uma outra

medida além do que se determina como realidade. Antonio Candido aponta que este é

um problema da tradição literária brasileira pois

89 - BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1993. p. 7. Todas as referências a versos de Manoel de Barros relacionados nos capítulos subseqüentes referir-se-ão a esta obra.

102

como não há literatura sem fuga ao real, e tentativas de transcendê-lo pela imaginação, os escritores se sentiram freqüentemente tolhidos no vôo, prejudicados no exercício da fantasia pelo peso do sentimento de missão, que acarretava a obrigação tácita de descrever a realidade imediata, ou exprimir determinados sentimentos de alcance geral. 90

Assim há que se pensar a poesia a partir de fundamentos que são inerentes à

constituição literária como elaboração verbal imaginativa: a capacidade de articular

textualmente uma outra realidade que recusa a noção de mimesis como cópia. Daí que a

literatura se configura não pela obediência a uma transcrição fiel e exata do real, mas no

plano da invenção, da própria constituição do que se denomina como poiesis, o inventar,

o engendrar, o criar.

A conformação irônica da poesia barrosiana se constitui não pela

representação figurativa, mas estruturalmente pela utilização de fundamentos do

discurso lógico e hegemônico, mas para reverter-lhe as propriedades. Na Didática da

invenção há uma organização seqüencial enumerativa que pressupõe uma ordenação

metódica, mas que, no entanto implica em um desacordo com o enunciado poético-

inventivo. O poeta de O guardador de águas estrutura de forma ordenada o poema

como a mimetizar um saber sistematizado que, porém, não se coaduna com o discurso

poético, pois este não se determina por uma seqüencialidade metódica em um

desenvolvimento linear por etapas. Essa didática se organiza em vinte e uma partes não

tituladas, mas enumeradas seqüencialmente em algarismos romanos. O primado do

método desconstrói-se assim ironicamente por uma didática que mimetiza formalmente

um ensino moldado no conhecimento acumulativo de um registro de fatos, dados,

números e nomenclaturas taxonômicas generalizadoras e definidoras.

90 - CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. (Momentos decisivos). VOL I. (1750-1836). 2 ed. São Paulo: Martins Editora, 1964. p. 29. Lembremos que Terry Eagleton, um teórico que postula a determinação histórica, afirma que a poesia é “entre todos os gêneros literários, o mais evidentemente desligado da história, aquele em que a sensibilidade pode desenvolver a sua forma mais pura, menos impregnada pelo aspecto social”. IN: EAGLETON,Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, s.d. p. 55.

103

O poema I estabelece premissas para o conhecimento, mas que, no entanto

não se limitam a uma metodologia científica, pois o que interessa à observação poética

são “as intimidades do mundo” (I) e não o desvendamento objetivo das leis que

determinam a natureza. Este outro saber se divide em itens organizados de forma

alfabética que parecem intentar um paulatino desenvolvimento de uma investigação

acurada. No entanto, a leitura seqüencial denota um discurso fragmentário se, e somente

se, comparado com a ordenação textual convencional amparada em uma organização

linear das idéias claras e distintas. A noção de fragmento, instaurada principalmente por

Schlegel 91, decorre de um confronto com a convenção discursiva estabelecida por uma

ordenação linear das idéias. A poesia barrosiana, continuadora da tradição moderna,

parece procurar devolver à poiesis o fluxo dinâmico interno de um fazer verbal que não

se conforme aos rigores tanto da norma culta da língua como da estruturação de

pensamento lógico.

Aristóteles argumenta que a poesia contém um teor mais filosófico do que o

discurso histórico, pois narra imaginativamente o que poderia ter ocorrido e não se atém

a um relato pretensamente fidedigno dos acontecimentos 92. Desta forma pode-se

entender que o “esplendor da manhã não se abre com faca” (I), pois o que concerne à

poesia não remete ao dado evidenciado na observação imparcial dos fatos, mas a uma

instância criadora que não se restringe às regras do senso comum. O aspecto utilitário de

um objeto como uma faca anula-se frente ao encantamento com a fulguração de um

amanhecer. O juízo estético ultrapassa o sentido de utilidade ou de interesse e

propulsiona uma comoção subjetiva que anula o distanciamento estabelecido entre

sujeito e objeto.

91 - SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Trad. M. Suzuki. São Paulo, Iluminuras, 1997. 92 - ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril,1973. (Os pensadores, IV).

104

O verso final do poema afirma que “desaprender oito horas por dia ensina

os princípios” (I). Na pedagogia do avesso de Barros o aprender tem por princípio não a

retenção de conhecimentos, mas a desconstrução de todos os fundamentos incutidos

pela instrução oficial que adestra o ser não para a liberdade, mas para se submeter

incondicionalmente às normas e regras. Há que se retirar o entulho da educação

tradicional e mais ainda desacostumar a mente aos hábitos convencionais do já sabido e

então auscultar e vislumbrar o não retido pelo hábito, mas pelo ainda não descoberto e

pelo inventivo.

Qual o método desta didática? Se esta se autonomeia pelo prisma da

invenção há que se compreender o processo pedagógico por este postulado. Assim não

há que se con-formar ao dito, ao sabido, ao conhecido e repetido, mas ao que foge a

tudo isso e instaura um outro aprender. Portanto, faz-se necessária, ao poeta, uma re-

fundação do saber a partir de suas condições elementares como o ato de designar as

coisas. Se cada coisa se apresenta “ela mesma consigo mesma a mesma” 93 não carreia

em si qualquer designação. Esta, antes se deve a um acordo em que se convenciona que

a cada coisa consigna-se um signo que a representa como sendo esta coisa. Então o

designativo é um rótulo que sobrepõe uma outra identidade sobre a unidade consigo

mesma.

Deste modo esta didática se funda sobre a desinvenção dos signos. Se no

poema antecedente postulava-se um desaprendizado como premissa de um abrir-se para

a sabença das intimidades do mundo, faz-se necessária uma outra educação em que o

des/aprender não se determine pelo a/prender mas por um a/preender não determinado

pela convenção do que se legitima como saber. A educação somente se promoverá ao

estatuto de uma pedagogia que invente um novo saber, ou ainda o próprio SABER, no

93 - HEIDEGGER, Martin. O princípio da identidade. Trad. Ernildo Stein. São Paulo:Abril, 1973. p. 378.

105

sentido de sabor, se ocorrer um refazimento da percepção embotada no contrato

efetivado nas trocas lingüísticas em que os objetos são denominados por nomes, ou

melhor, substituídos e representados por signos. Ou seja, na poesia de Manoel de Barros

os signos não correspondem mais à convenção firmada entre significante e significado,

pois “os nomes já vêm com unha?” (1.2). Desmonta-se não somente o vínculo instituído

socialmente assim como se desapropria a condição funcional de qualquer coisa. Desta é

retirada a convencionalidade de uso firmada no senso comum para revesti-la de um

estranhamento inicial que postule não uma percepção exata, mas uma consciência

ampliada para além da utilidade das coisas. Barros ao pôr em questão a serventia usual

das coisas embaralha não apenas as peças do tabuleiro, mas as próprias regras que

determinam o jogo. Desta forma ao pente são dadas “funções de não pentear” (II), em

que a percepção poética desvincula da coisa o atributo que a con-forma em objeto

reconhecível pelo uso rotineiro para arrancá-lo de sua redoma impermeável à

invencionice e inocular através do estranhável o inabitual. Instaura-se então o inaugural

da presença da unidade consigo mesma.

Tal procedimento des/construtor aproxima-se do efetuado pela pintura de

Magritte que desloca um objeto usual não somente de suas associações habituais, mas o

posiciona fora de uma representação delimitada por regras que se conformem tanto a

uma perspectiva convencional como à escala em desacordo com a percepção sensorial.

Veja-se, por exemplo, o quadro “Os valores pessoais” de 1952 em que a representação

figurativa de um quarto de dormir mobiliado com uma cama e um armário é contrariada

logicamente pela configuração de objetos fora de sua escala usual, como por exemplo, a

desproporcionalidade do tamanho de um pente em cima de uma mesa, ao lado de outros

objetos comuns, que conforma uma dimensão gigantesca e irreal. 94

94 - MAGRITTE, René. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. Entretanto não se defende aqui qualquer proximidade da poesia de Barros com o Surealismo.

106

Ilustração 1: Os valores pessoais, René Magritte, 1952.

Na poesia de Barros não somente os signos deixam de representar o

conhecimento oficializado, mas perdem a aura de representantes das coisas para pôr na

balança a própria percepção da realidade que passa a ser vista como um jogo aparente

que não revela o que seja REALIDADE. Para isso a didática barrosiana utiliza-se não

do sentido consensual da fala cotidiana ou até mesmo do léxico dicionarizado, pois este

está sedimentado no limo das convenções que não permitem apreender o real das coisas,

mas de um dizer que contraria as fórmulas da mesmice. Há que se “usar algumas

palavras que ainda não tenham idioma” (II), pois antes de ser qualquer coisa ela consigo

mesma, a mesma assume em nossa percepção imediata a condição representacional de

uma outra coisa que a substitui na ausência de sua presença.

A condição de possibilidade de uma outra percepção é estimulada por um

processo pedagógico de desaprendizado constante, e para isto a repetição irônica da

mesmice se faz necessária como parte desta deseducação. Ao expor a repetição

108

mesmas coisas não foram ainda apropriadas e cerceadas por um batismo oficial. Por

isso “as coisas que não têm nome são as mais pronunciadas por crianças” (VI). Estas

ainda não se adestraram no contrato oficial que une a coisa ao signo e que se usa

consensualmente para definir e delimitar a noção de realidade. Há que, então,

descosturar as coisas aprisionadas ao signo para que se atinja o estado ainda não

contaminado que vige no universo infantil. Neste vigora o criar imaginativo que maneja

uma língua que ainda não se firma na designação de/finidora das coisas, mas por uma

constante invenção. A didática barrosiana postula uma educação poética que se equipara

à visão livre oswaldiana: “nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo.

Ver com olhos livres” 96. Barros por sua vez afiança: “quero enxergar as coisas sem

feitio” (3.2).

Essa visão desenferrujada do mundo que o poeta reconhece na infância, ou

seja no in-fans, no que ainda não tem o atributo da fala mas possui a propriedade virtual

da linguagem, se conforma como delírio do verbo, ou seja, “lá onde a criança diz: Eu

escuto a cor dos passarinhos” (VII)97. Assim como Rimbaud em um procedimento

sinestésico associava a sonoridade das vogais à experiência sensorial das cores, o poeta

de Gramática expositiva do chão se apóia na pré-lógica do infans para postular uma

outra concepção de lógica que desacorda com a norma do bom senso que estipula como

convicção errônea tudo que se estabeleça como interpretação delirante da realidade, pois

“se a criança muda a função de um verbo, ele delira”. (VII). A poética barrosiana busca

esta instância inaugural da palavra em seu estado germinal de poiesis, ou seja, da

invenção e da criação. Assim como Benedito Nunes aproxima Graciliano Ramos de

96 - ANDRADE, Oswald de. Manifesto da poesia Pau-Brasil. IN: ____. Do pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Manifestos, teses de concursos e ensaios. Obras completas VI. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 9. 97 - Na segunda parte do livro, “Os deslimites da palavra”, no fragmento 2.3 o narrador Apuleio assevera: “escuto a cor dos peixes”. E no fragmento 2.5: "ouço o tamanho oblíquo de uma folha”.

109

Guimarães Rosa pela “linguagem em estado nascente” 98 poderíamos conjeturar o

mesmo sobre Barros que estatui que “em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer

nascimentos – o verbo tem que pegar delírio” (VII).

A poesia, entendida como toda causa de qualquer coisa passar do não-ser

ao ser no dizer platônico 99, vige não somente no modo verbal, mas em outras instâncias

estéticas como a pintura. E uma das mais delirantes, se a situarmos em relação ao pintar

que se conforma às convenções normais da visão correta, é a de Van Gogh 100. O pintor

holandês não procede a uma representação de acordo com as normas técnicas atinentes

a um observador distanciado do objeto, mas introjeta nele o estado emocional que lhe

afeta. Tem-se então a visão não da coisa em si, de acordo com a perfeição estética de

uma pintura que imponha uma mimesis especular do observado, mas uma interpretação

emocional que anula a separação objetiva entre sujeito e objeto. Para Manoel de Barros

“um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh” (VIII). O girassol de Van Gogh

não se amolda aos parâmetros da mimesis especular, da cópia fiel do olhar adestrado

nas convenções estéticas ou de uma grafia do visto, mas do vivenciado emocionalmente.

Esta também é a visada barrosiana: uma poesia feita menos de regras do que de

instantes poéticos fragmentários traduzidos emocionalmente. O poema seria o espaço

privilegiado onde esta reflexão alógica aconteceria.

O processo de deseducação subtrai-se à lógica matematística pelo

aprendizado permanente de um estado de absorção das coisas pela via da experiência

emocional. Desenhar o cheiro das árvores, como propõe o poeta, é tarefa que somente

98 - NUNES, Benedito. “No limite da transcendência”. Folha de São Paulo. São paulo, 9 mar. 2003. p. 9. 99 - PLATÃO. O banquete. Trad. José C. de Souza. São Paulo: Abril, 1973. p. 43. (Os pensadores, III). 100 - Vincent Van Gogh foi internado no hospital psiquiátrico de Saint-Remy de onde escreveu ao irmão Théo conjeturando sobre sua doença sob o ponto de vista dos médicos que não apontavam para uma doença mental: "pour autant que je sache, le médecin d´ici est inclin à considerer ce que j´ai eu comme une attaque de nature épileptique”. GOGH, Vincent Van. Lettres de Vincent Van Gogh à son frère Théo. Paris: Gasset, 1986. p. 278.

110

se permite aquele que desobedece à didática da lógica que decreta impedimento racional

onde se perpetre o delírio do verbo.

Para a poesia “não tem altura o silêncio das pedras” (X), pois o estado

poético não se determina pela dimensão como mensuração101 já que vigora antes o

espanto, o espasmo, a vertigem. Na mineralidade material da bruteza das pedras há que

se induzir não ao domínio de suas leis físicas e propriedades, mas ao procedimento

estético que revela a aproximação do homem ao divino pela recriação. “Botar aflição

nas pedras (Como fez Rodin)” (XI) implica na não submissão incondicional ao natural,

mas na reinvenção deste por um modelar estético que recria o criado pela intervenção da

criatura. O estado sólido da pedra não se modifica em sua propriedade, mas reveste-se

de outro sentido pelo re-fazer humano.

Barros constrói dialeticamente uma des/construção que problematiza a

lógica racional. Descostura todos os pontos que estruturam não apenas a língua, mas a

linguagem poética. O poeta define a poesia como voar fora da asa (XIV). Esta

in/definição não se pauta pelo procedimento de uma conceituação amparada

metodologicamente em uma investigação sistemática e organizada, pois não somente

recusa este saber como tal definição re-vela o estatuto poético que se funda na in-

exatidão taxonômica. Não ser exato, entretanto, não significa subsumir no erro mas na

errância de um devir que recusa reduzir o real a qualquer designação de-finidora. Daí a

preferência pelos insanos, marginais, loucos e dementes. Voar fora da asa significa estar

além/aquém do conhecível e adentrar a imaginação liberta das dicotomias

contraditórias: “as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: / elas

desejam ser olhadas de azul / Que nem uma criança que você olha de ave”(XIII). Tal

poética avessa à razão dominante não tem por desígnio a destruição da razão, mas a

101 - JARDIM, Antônio. Os caminhos da técnica. IN: ____. Música: vigência do pensar poético. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

111

instauração de um outro procedimento que busca reaver a condição inaugural do

humano anterior à educação moldada em um conhecer que mais designa e reduz o real

do que o re-vela. Revelar poeticamente o real, portanto, induz não ao desencantamento

do mundo com fins operacionais de dominação, mas ao desnudamento do próprio fazer.

Uma das características distintivas da poesia moderna evidencia-se no traço

metalingüístico, ou seja, mostra-se o próprio poema como um construto no qual o

procedimento poético é revelado em seu processo de construção. O poeta enovela a

poesia sobre si mesma para deslindar o fazer poético como escritura e não uma

inspiração sobrenatural. Se na definição do poeta a poesia seria um vôo fora da asa, ou

seja, capaz de ultrapassar os limites do real, a prática do poema, portanto, há que ser

concorde com o ilimitável. Para tanto investir no poético impõe-se como um dos tópicos

desta poética / didática. Aristóteles propugnava que a linguagem poética deveria primar

pela clareza sem resvalar para a baixeza, a trivialidade e a vulgaridade embora o termo

corrente e usual do cotidiano possa conferir ao texto maior clareza. Horácio, por sua

vez, argumentava diferentemente ao propor o emprego de um termo surrado com

“delicada cautela no encadeamento das palavras, (...) graças a uma ligação inteligente”

em que o estilo ganhará em requinte 102. A poética barrosiana que postula que “ao lado

de um primal deixe um termo erudito” (XIV) pode ser entendida como uma recusa

crítica tanto da via aristotélica como por um ir mais além da proposta horaciana. Para

tanto o poeta não se intimida diante de normas poéticas do bem dizer que legitimam a

estabilidade do bom senso e da normalidade: “Encoste um cago ao sublime. E no solene

um pênis sujo” (Id.). Barros ultrapassa a demarcação do requinte aventado por Horácio,

102 - HORÁCIO. Epistola ad pisones. IN: ARISTÓTELES, HORÁCIO e LONGINO. A poética clássica. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, s.d. p. 56.

112

pois para este “o princípio e fonte da arte de escrever é o bom senso” 103, ou seja,

haveria que aquiescer à cautela para ajustar-se às convenções do bem dizer.

O autor de Compêndio para uso dos pássaros prefere situar-se, no entanto,

na paradoxalidade distanciado do bom senso: “sou pervertido pelas castidades /

santificado pelas imundícias?” (XVI). O poetar barrosiano distancia-se das coordenadas

de qualquer escrever alinhado ao estatuto da mediania. Não se acanha mesmo frente à

possibilidade do retraimento da clareza e prossegue consciente de um dizer que avance

em direção a uma ampliação do dizer e, portanto, do humano. Ao contrariar o princípio

da não contradição postula um entendimento que proceda por outras vias diversas do

conhecimento usual atinente exclusivamente à linguagem verbal. E não podemos definir

esta como objetiva, pois seria creditar-lhe uma categoria determinante que

circunscreveria qualquer outra expressão ao domínio da subjetividade como sinonímia

de falta de clareza. Como se a linguagem usual fosse portadora de um entendimento

maior das coisas quando apenas estabelece um acordo estipulador dos signos como

ferramentas convencionais a se determinar ao entendimento comum.

Como então entender o sentido do verso “em casa de caramujo até o sol

encarde?” (XVII). Se pautarmos nossa compreensão de acordo com a linguagem

conforme o registro culto, ou a corrente entre os usuários, ou mesmo a estrita aos

jargões específicos de determinados saberes, deduziremos uma espécie de inexatidão

que não se coaduna com o princípio da realidade. Mas nestas linguagens estabelece-se

um pacto inviolável entre os signos e as coisas que não permite um desacordo entre os

elementos, pois se tal ocorresse implicaria em uma desordem dos conceitos. Estes têm

que ser preservados de qualquer abalo para que se conserve a noção de realidade que se

103 - Id., ibid. p. 64.

113

sustenta pela afirmação destes conceitos que determinam apenas o plano das realizações

como a única Realidade. O irrealizável seria devaneio de poetas, loucos e visionários...

Observemos mais detidamente esse verso. De acordo com a concepção

poética convencional tal sentença não corresponderia ao paradigma de um poema, pois

parece tratar-se antes de um mero aforismo sem conexão aparente de ordem seqüencial

com os anteriores ou ulteriores. O verso, e podemos denominá-lo assim, parece

mimetizar a forma breve e sintética dos ditados populares. Ou seja, haveria uma

intenção de conferir à frase uma relação similar à conformação da estrutura das

expressões correntes que expressam a sabedoria popular através de sentenças modelares

curtas. Estas remetem a valores vigentes em determinados grupos sociais e que através

desta forma verbal sucinta exemplifica a moral dominante com vistas à correção

coletiva. O verso barrosiano parece apropriar-se da conformação estrutural do

enunciado popular que afirma que “em casa de ferreiro, espeto de pau”. No entanto, o

poeta se não procede a um reaproveitamento do mote através de uma operação

renovadora de seus termos, tal qual o lema poundiano do make it new, não referenda o

repositório da cultura popular em suas manifestações de servilismo ao bom senso. Antes

investe contra a régua da razão pragmática, seja ela científica ou consensual. Se no

ditado popular referido se estabelece uma relação irônica estruturada por elementos

simbólico-metaforizantes contraditórios de uma condição social determinada por

contingências econômicas adversas, ou seja, a condição irônica do trabalhador que não

usufrui o produto do seu próprio trabalho, no entanto, o verso, por sua vez, não articula

signos referentes a um paradigma relacionado a um contexto remissivo aplicável à

dimensão social. O repertório vocabular selecionado por Barros, tal qual Graciliano

ramos na visão de João Cabral, constitui-se de um eixo seletivo compacto e reduzido a

elementos da natureza, mas que, no entanto tem pouca importância para o poetar que

114

confere às palavras o próprio estatuto de coisas antes que representações de outras

coisas. Primeiramente a instância material do verso aponta para a valorização dos

elementos sonoros recorrentes através da aliteração consonantal de casa, caramujo e

encarde. A homofonia, reiteração da mesma vogal tônica em casa e encarde conforma o

texto a um eixo conciso de similaridades que encerra o poema em uma sintética

harmonia melódica 104. Entretanto, conformar o verso apenas ao aspecto sonoro seria

conceder a Barros o estatuto de um artífice voltado exclusivamente para o exercício

formal sem visar a elaboração de sentidos. E é a noção de sentido que está em jogo em

sua poética. Esta, no entanto, não pode ser denominada de absurda, pois seria creditar à

lógica dominante um valor absoluto que excluiria qualquer outro modo de sentir /

pensar. Antes, estipula-se para a lógica poética o mesmo estatuto que a hegemônica, ou

seja, a propriedade de revelar através de uma conformação verbal diversa da usual um

sentido diverso e multi-facetado para as coisas. Mesmo que estas aparentem não ter

sentidos aos nossos sentidos...

O contrato firmado entre os signos e as coisas delimita-se por uma

convencionalidade determinante de que tal conformação sonora configura um

determinado objeto, ausente ou não. Ao olhar avesso do poetar, porém, as coisas não

são bem assim. Um rio, por exemplo, pode ser “a imagem de um vidro que fazia uma

volta atrás da casa” (XIX). Nesse poema exemplifica-se o saber professoral na figura de

um homem que passa e diz que “essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama

enseada”. O desencantamento do mundo se fez em nome da objetividade que quer a

apropriação do mundo com vistas a sua manipulação utilitária, mas o olhar poético

recusa não propriamente a racionalidade do conhecimento da natureza e das coisas, mas

a calculabilidade que retira não o encantamento mistificador, pois este produz o

104 - Ressalte-se que este procedimento é dominante na poética barrosiana.

115

obscurecimento servil às crendices, mas a propriedade humana da imaginação e da

criação. Na visão do poeta “o nome empobreceu a imagem”.

A expressão poética que se norteie pelo inventar imaginativo conduz-se não

por bússolas ou sextantes indicadores de caminhos seguros e rotas conhecidas, pois no

dizer de Maiakovski, poesia “é uma viagem ao desconhecido” 105 e, portanto,

determina-se mais por uma expressão que se quer incompleta, inconclusa, reticente não

por omissão, mas por uma condição permanente do descobrir, do urdir, do imaginar, do

engendrar, ou seja, da noção de poiesis como um devir da condição de possibilidades

que instaura a vigência do não ser ao ser.

105- MAIAKOVSKI. Poemas. Trad. B. Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 1982. (Signos, 10).

126

codificação instituída como normativa nas atividades humanas. A resposta desta lírica

representa antes um abalo nas certezas instituídas pelo pensar ocidental.

Friedrich considera na lírica moderna

a tendência a manter-se afastada o tanto quanto possível da mediação de conteúdos inequívocos. A poesia quer ser, ao contrário, uma criação auto-suficiente, pluriforme na significação, consistindo em um entrelaçamento de tensões de forças absolutas. As quais agem sugestivamente em estratos pré-racionais, mas também deslocam em vibrações as zonas de mistério dos conceitos. 116

Contudo, o distanciamento da mediação de conteúdos inequívocos não seria

premissa constituinte não somente da lírica moderna, mas da própria poesia? Afirmar a

vigência de conteúdos que não permitam a formação de equívocos não seria aceder a

um valor de objetividade, portanto, de positividade que tenha por pressuposto condenar

a plurissignificação como desencadeadora e produtora de equívocos? Portanto, não se

trata de estabelecer o conceito de poesia a partir da diferença dos constituintes de cada

discurso, mas sim de questionar a supremacia de uma forma de organização lógico–

objetiva sobre outra que é considerada como irradiadora de conteúdos equívocos.

Todavia, a expressão poética intenta através da ativação de sentidos diversos das trocas

comunicativas pragmáticas restituir à palavra o simbolismo originário e múltiplo da

expressão. Ou seja, se o signo enquanto contrato convencional representativo é forma

arbitrária e simbólica de comunicação não há que dissimular esta condição sob a

máscara da objetividade e da transparência. A premissa lingüística que estabelece para o

jogo usual de representações verbais uma relação de identidades precisas com as coisas

é destituída de sua legitimação no âmbito poético. Este, antes, se funda pela dissociação

entre signo e coisa para instaurar uma relação inventiva entre o nome e a coisa.

116 - Id., ibid. p. 16.

127

A questão poética barrosiana parece confluir sempre para uma reavaliação e

não uma validação dos códigos. Seja uma dissensão do código social que prescreve

regras com o intuito de consolidar o statu quo ou ainda um enfoque crítico que

desconstrói o código verbal. Se este se firma pelo arbitrário da convenção dos

conceitos, então à poesia, seja ela moderna ou não, competiria um retorno à expressão

original na qual a mediação não se camufle mais como conteúdo inequívoco, mas que se

exponha como meio simbólico que exclui qualquer noção antagônica entre equívoco ou

in-equívoco. A determinação de exatidão universal dos conceitos é uma construção

arquitetada do discurso lógico–científico-matemático que supõe em seus pressupostos a

eliminação de qualquer resíduo impuro de subjetividade. Assim se aniquila toda a

possibilidade imaginativa com vistas a uma uniformização e conformação da expressão.

A equivocidade da poesia só é concebida como tal quando não se tem em conta a

condição originária da palavra como signo da plurissignificação de uma expressão que

se sabe antes de tudo condição simbólica, e, portanto, distante e próxima da verdade

simultaneamente. Etimologicamente a palavra equívoco traduz uma equanimidade de

sentidos que se manifestam simultaneamente em uma oposição complementar que

traduz uma ambigüidade.

A lírica moderna apenas acentua de forma mais evidente o jogo com o

código, daí a impressão de dissonância, posto que o mascaramento da pretensão à

universalização da verdade dos discursos dominantes é revelada a partir da inversão das

normas do código verbal usual. Tal inversão denuncia a falácia da inequivocidade da

expressão verbal articulada pela oficialidade de uma norma que se impõe como tal pela

força do uso, do hábito e do costume, quando a poesia, entretanto, revela que esta

constituição é periférica à força originária e fundadora da palavra. Esta se estrutura, no

entanto, como uma caixa de múltiplas ressonâncias significativas não redutíveis a uma

128

aparência de estabilidade, exatidão e segurança. Daí o discurso poético revestir-se de

modo expressivo a ressaltar o elemento sensorial como uma condição propiciadora de

possibilidades de um outro entendimento e não somente como estágio primário e inicial

de conhecimento como postula a concepção metafísica dual que credita à esfera

inteligível a supremacia hierárquica em relação à aparência sensível. Portanto, trata-se

de pensar a escrita poética a partir do limite da lógica fundada no Ocidente sobre os

alicerces de um conhecimento que instaura o conceito de verdade como idéia apartada

do mundo sensível. A poesia postula tanto a vigência da materialidade física em sua

instância sonora como a instauração de sentidos fundada em uma lógica da analogia

paradoxal. E é deste limite que se ousa o ilimitado dos múltiplos e irredutíveis sentidos

além da exatidão dos significados e definição dos conceitos firmados na convenção dos

limites da palavra.

Goiandira Camargo ressalta que “a visão que o homem tem do contexto

histórico contemporâneo é (...) fragmentária” 117. A autora destaca as modificações

ocorridas na Idade Moderna que provocaram “rupturas irreversíveis no modo de ser e

estar do homem, o que o deixou com um sentimento de multiplicidade interior,

estilhaçado em sua subjetividade, a equilibrar-se no fio da dúvida cartesiana” 118.

Portanto, a autora relaciona desta forma a situação da poesia moderna meio ao contexto

histórico determinante que se configuraria esteticamente através da forma fragmentária.

Entretanto, tentemos entender, brevemente, o surgimento da noção do fragmentário a

partir das idéias de Schlegel em relação à sistematização filosófica.

A forma fragmentária como expressão filosófica surge com Schlegel e

Novalis. Este a concebia como um meio de ativar o pensamento através de sementes,

117 - CAMARGO, Goiandira. A poética do fragmentário: uma leitura da poesia de Manoel de Barros. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. p. 107. 118 - Id., ibid. p. 107.

129

grãos de pólen desencadeadores da reflexão. Schlegel amplia tal concepção para ajustá-

la a uma instrumentalização crítica contrária a uma filosofia sistemática, pois em seu

modo de pensar o filosofar é “um sistema de fragmentos” 119 enquanto algo sempre a se

realizar. Daí, portanto, a crítica à falta de sistematização que sua filosofia sofre. Márcio

Susuki observa a peculiaridade desta filosofia se firmar “exatamente num momento da

história da filosofia em que os maiores esforços estão voltados para a completitude e

acabamento sistemático da crítica kantiana” 120. O que este filosofar fragmentário põe

em questão é a pretensão do idealismo alemão tentar estabelecer um sistema de saber

absoluto. Schlegel se propõe a “despir a filosofia de seu aparato artificial, tecnicista,

tentando torná-la tanto quanto possível apta a expor o saber na figura original em que

ele mesmo imediatamente se manifesta” 121. Adorno observa que a tentativa de

sistematização filosófica que intenta a representação de todas as etapas que conduziram

a uma asserção é equivocada, pois

ainda que se lhe concedesse aquela recomendação discutível de que a exposição deve reproduzir exatamente o processo de pensamento este processo não seria uma progressão discursiva de etapa em etapa, assim como, inversamente, tampouco os conhecimentos caem do céu. Ao contrário, o conhecimento se dá numa rede onde se entrelaçam prejuízos, intuições, inervações, autocorreções, antecipações e exageros, em poucas palavras, na experiência, que é densa, fundada, mas de modo algum transparente em todos os seus pontos. 122

O que se propõe pela forma fragmentária é um re/flexionar que a/presente

de maneira mais próxima ao i/mediato o modo com que este pensar ir/rompe na

cons/ciência. Afinal a pretensão de elevar a sistematização ao princípio definidor do

pensar filosófico parte de um pressuposto de defini-la como ciência. Entretanto, como

119 - SUZUKI, Márcio. A gênese do fragmento. IN: SCHLEGEL, Friedrich. Trad. M. Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. p. 11. 120 - Id., ibid. p. 12. 121 - Id., ibid. p. 12 122 - ADORNO, Theodor. Op. cit. p. 63. v. nota 3.

130

afirma Fichte “a forma sistemática seria meramente contingente para a ciência; não

seria seu fim, mas meramente – digamos – um meio para esse fim”. 123

A poesia não se caracteriza pela sistematização de um conhecimento e,

portanto, não haveria como avaliá-la pelo juízo científico ou filosófico, pois a “obra de

arte ironicamente se apresenta imperfeita, incompleta, inacabada. Intimamente

associada ao real que não cessa de se realizar e desrealizar, a forma poética

autenticamente irônica é necessariamente fragmentária” 124. O filosofar fragmentário

que se instaura contra a sistematização do pensar busca, entretanto, uma aproximação

com o poetar. Embora no dizer de Heidegger entre este e o filosofar vija um abismo,

pois residiriam em montanhas separadas, entretanto, “impera um oculto parentesco

porque ambos, a serviço da linguagem, intervêm por ela e por ela se sacrificam” 125.

Deste modo ocorre uma intersecção entre poesia e filosofia através da fragmentação

que busca um retorno da linguagem a uma maneira menos mediata e não atrelada à

sistemática de um metódico pensar fundado na clareza e distinção das idéias.

Entenderíamos, então, a fragmentação da poesia moderna tanto pela explicação

historicista que aponta o desacerto entre a consciência individual poética meio a um

mundo dominado pelas novas relações da divisão de trabalho, quanto pela fissura

ocorrida no pensar ocidental entre o idealismo de uma sistematização redutora da

complexidade do real e a instauração de uma reflexão fundada na concepção dinâmica

de uma expressão mais condizente com o irromper da manifestação do pensar e do

dizer.

123 - FICHTE, Friedrich Von. Sobre o conceito da doutrina – da – ciência ou da assim chamada filosofia. Trad. R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril, 1973. (Os pensadores, XXVI) p. 15. 124 - SOUZA, R. M. e. op. cit. p. 36. 125 - HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril, 1973. p. 221. (Os pensadores, XLV).

131

Este percurso ajuda-nos a entender como a poética de Manoel de Barros

corresponde a uma tradição moderna que tanto não referenda a sistematização

metódica do pensar como única via filosófica assim como busca na fragmentação um

modo de pôr em questão a lógica ocidental determinada pela causalidade linear. Assim

à poesia barrosiana não podem ser creditadas as características da lírica moderna de

anormalidade e dissonância, pois estas não se justificam diante de um pensar que não

se constitui mais por dicotomias antagônicas. A poética de Manoel de Barros poria em

questão tanto a noção de normalidade como de consonância ou qualquer binarismo

dicotômico que configure o modo de pensar metafísico. Daí essa lírica atentar para o

linguajar dos dementes.

132

3.4- MUNDO PEQUENO126

A presença de inúmeros dementes entre os que habitam a poesia de

Manoel de Barros re/vela um dos fundamentos da poética barrosiana que é o de

restaurar a lógica fundadora da linguagem. Esta não se con/forma à mediação de

conteúdos inequívocos, como já afirmamos, mas postula uma outra margem que não se

limita ao re/conhecível mas a um dizer que se pauta pelo equívoco, ou seja, no qual

vigora a ambigüidade da palavra em uma instância primeira de disseminar e re/colher

mais do que a/firmar ou mesmo negar. Assim sob este prisma demência constituir-se-

ia como uma propriedade inerente à poesia, posto que tal nomeação denotaria um voar

fora da asa? Para tanto há que se indagar sobre a visão da realidade que Manoel de

Barros constrói a partir do seu mundo.

A concepção de Barros sobre a natureza, por exemplo, é algo propiciador

de espanto, enlevo e arrebatamento que conduz ao êxtase embriagador, e, portanto,

propiciador do deslimite da razão. O inebriar, no entanto, não fundamenta o princípio

da realidade, mas o do prazer que elevado às últimas instâncias pode produzir além do

estado dionisíaco da fruição embriagadora a destituição do discernimento entre o real e

a imaginação.

O poeta, entretanto, não se intimida diante da ultrapassagem do limite em

que vigoram as leis impostas à sensatez do senso comum. A convivência com os

dementes Bugre Felisdônio, Ignácio Rayzama, Rogaciano, Sombra – Boa, Andaleço e

Bernardo permitem ao poeta um aprendizado maior em direção ao aprimoramento

cada vez mais acurado da didática da invenção. Ao dizer que “todos catavam pregos na

beira do rio para enfiar no horizonte” (II) o poeta ressalta uma expressão de força

126 - Este título refere-se a última parte d´O livro das ignoraças.

133

poética que retira da enunciação qualquer juízo avaliativo quanto à razoabilidade.

Talvez o poeta queira avizinhar as paralelas da demência e da poesia que se tangeriam,

então, no ponto de intersecção da linguagem desmedida. Esta, no entanto, somente

adquire o tom de delírio do verbo, como o poeta definira a poesia, quando abandona as

rédeas das palavras adestradas pela razão utilitária e funcional. Para esta a separação

entre sujeito e objeto comporta uma linha divisória que estabelece um papel

determinante ao primeiro. Manoel de barros, no entanto, inverte esta relação. Vejamos.

Em um verso constituinte do mundo pequeno de Barros está escrito que

“quando o rio está começando a peixe / ele me coisa, / ele me rã, ele me árvore” (I).

Tem-se neste verso uma problematicidade referente à lógica que funda a norma

gramatical a preconizar uma relação sintática entre sujeito, verbo e predicado. A

formulação do enunciado, no entanto, não parece clara tanto em sua estrutura sintática

como no aspecto semântico. A quem se refere o pronome pessoal do caso reto, ele: ao

rio ou ao peixe? À primeira vista aparenta ser uma referência ao rio como elemento

desencadeador da cadeia biológica iniciada pela geração de um peixe. De acordo com

essa hipótese então a ordem frasal seria esta: o rio me coisa, o rio me rã, o rio me

árvore. Se esta for a forma possível então resta entender o sentido de um enunciado

que rompe com a lógica frasal costumeira. Esses versos se estruturam de acordo com

uma ordenação gramatical lógica até um certo ponto. Há, entretanto, um elemento

ausente que desequilibra a estabilidade frasal: o verbo, elemento estrutural

configurador da temporalidade e, portanto, da ação. A composição da frase exige como

complemento um elemento verbal que organize o sentido. Este se esfacela ante a

ausência do componente verbal como estruturante de um nexo. No código da língua

portuguesa não se torna possível uma construção como esta em que em lugar do verbo

se utilize um substantivo. A complexidade de tal enunciado denuncia-se pela

134

imiscuição entre sujeito, objeto e verbo. A ação que caracteriza a temporalidade é

subtraída por um objeto que se relaciona ao sujeito. Se, no entanto, observarmos que

há uma elipse na qual se omite o verbo, o sentido parece refazer-se, tal como o rio me

quer coisa, o rio me faz rã ou o rio me gerou árvore. Entretanto, se procedermos deste

modo acederemos à lógica usual que exige uma complementação verbal de acordo

com o estipulado pela norma gramatical. E não é isto o que está escrito, ou seja, não

parece ser esta a intenção do sujeito da enunciação. Se o enunciado tem tal forma

enviesada de acordo com o senso comum manejado nas trocas comunicativas diárias é

porque há uma intenção crítica nisto. O problema não se reduz à ausência da forma

verbal, mas da formulação frasal avessa ao hábito. O estranhamento receptivo

decorrente de uma escrita cuja estruturação lógica é diversa da conformação

gramatical corrente é proveniente da força do hábito e do costume. A modificação de

um elemento qualquer na estrutura verbal convencional desestabiliza a recepção da

mensagem e postula uma re/visão do automatismo dos significados cristalizados em

fórmulas gastas. A investida poética da enunciação contra o habitualismo de qualquer

expressão se formula pela inversão das expectativas. Estas se nutrem do esperável, do

previsível e do seguro. A inventividade produz-se pelo elemento desencadeador de

surpresa que desacomoda o estratificado, o estagnado e o imutável. Porém, se vida é

mudança, movimento e instabilidade, ou seja, um permanente e incessante devir, não

há porque ansiar pelo costumeiro. Tudo é possível e passível de mudança, portanto, de

uma constante re/visão das perspectivas que se modificam. Daí importar o exemplário

retirado das falas dos dementes.

Em Elogio da loucura de Erasmo a loucura teria o mesmo estatuto que a

sabedoria. Assim vigeria o “privilégio que têm os bobos de poder falar com toda a

135

sinceridade e franqueza” 127. Em uma sociedade na qual vigem disfarces de personas a

verdade só pode ser re/velada sob a instância da demência. Ao insano é concedida a

faculdade plena de dizer o que quiser, pois estaria fora do juízo, acorrentado pela

húbris, a desmesura que tanto situa o humano abaixo da normalidade como o coloca

acima de todos, tal qual Édipo que decifra o enigma da esfinge, mas também é aquele

que comete o parricídio e comete o incesto com a própria mãe 128. Entretanto, qual a

distinção entre sanidade e insanidade? Ronaldes de Melo e Souza argumenta que

Erasmo

demonstra que a oposição antagônica da razão e da loucura é uma ilusão racional. O antagonismo se revela ilusório, sobretudo quando se verifica que a razão e a loucura são reversíveis, que se manifestam na síntese antitética da razão da loucura e da loucura da razão. 129

No final da Idade Média a personagem do bobo, assim como a do louco

ou do simplório, nas farsas e sotias “toma o lugar no centro do teatro, como o detentor

da verdade (...). Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira onde todos se

perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade” 130. Na Europa o

fenômeno da loucura sucedeu a lepra e a sífilis no processo de exclusão social através

da condenação dos dementes a uma navegação errante na Narrenschiff (Stultifera

navis): “fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue no rio de mil

braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo”. 131

127 ERASMO. Elogio da loucura. Trad. Paulo M. de Oliveira. São Paulo: Abril, 1973. (Os pensadores, X). p. 31. 128 - VERNANT, Jean-Pierre e VIDAL–NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga. Trad. A. Prado, F. Garcia e M. Cavalcante. São Paulo: Brasiliense, 1988. 129 - SOUZA, Ronaldes de Melo e. “Introdução à poética da ironia”. Linha de pesquisa. Revista de Letras da UVA. (2000) 1:37. 130 - FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. 2 ed. Trad. J. Teixeira Coelho. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 14. Em Hamlet a suposta loucura da personagem-título é uma condição de possibilidade de se dizer a verdade. 131 - Id., ibid. p. 12. Foucault afirma ainda que a “a água e a loucura estarão ligados por muito tempo nos sonhos do homem europeu”. p. 12

136

O conceito de razão e a clausura da loucura, no entanto, são questionados

por Manoel de Barros através de um discurso poético que se constrói por uma alquimia

irônica: o louco transmuta a realidade em poesia que assim modifica a palavra de uso

normal. O poeta de Arranjos para assobio articula uma diversidade de personagens

a/normais que compõem uma espécie de painel narrativo que conforma um aspecto da

narrativa irônica

que é a narrativa dialetizada por um narrador que se representa numa mobilidade pura, assumindo todo gênero de caracteres, articulando uma alternância sistemática de perspectivas, modulando vários pontos de vista, sempre recusando a possibilidade de se imobilizar na representação doutrinária de um só papel, na adoção monológica de um ponto de vista pretensamente normativo. 132

Um outro ponto da desconstrução das dualidades que moldam a percepção

da realidade repousa sobre a normatividade da língua na instância fundadora da

normalidade dos significados e univocidade dos sentidos. A normatividade da língua

na poesia de Barros é constantemente desconstruída pelo viés poético como meio de

questionar ironicamente o mundo das certezas. Felisdônio, vaqueiro e peão comedor

de papel, um dos dementes do rio, “gostava de desnomear: / para falar barranco dizia:

lugar onde avestruz esbarra. / Rede era vasilha de dormir” (II). Se a palavra é o

elemento material fundador com que lida o poeta, no entanto, pela via normal, ela é

mediação entre o sujeito e a coisa observada. Na poética barrosiana a relação entre o

homem e a realidade não é representada dicotomicamente, pois vige um

metamorfosear contínuo em que isto pode ser aquilo e vice-versa. Berta Waldman

pergunta: “entretanto, como instaurar a unidade homem / natureza através da poesia, se

a palavra é uma mediação que reforça a perda da unidade?” 133. Ela aponta para uma

síntese mítica e poética do sujeito com o objeto e de todos os opostos através da

132 - SOUZA, R. de M. e. op. cit. p. 36-37. 133 - WALDMAN, B. op. cit. p. 4.

137

floração da “linguagem da infância recalcada, a metáfora do desejo, o texto do

inconsciente, a grafia do sonho”. 134

Essa síntese do sujeito com o objeto, entretanto, somente se efetiva após

uma reflexão crítica sobre a própria palavra. A convenção arbitrária do contrato

instituído entre o signo e a coisa condiciona a consciência do observador a esta

instância. O experimentado pelo sujeito torna-se o resultado de sua apropriação via

linguagem do que se denomina como realidade. Esta é concebida de acordo com o

estipulado pelas designações e assim o que resta entre o sujeito e sua experiência é

proveniente do entendimento que concebe a realidade por um designar pelo qual o real

se restringe a reduções que não comportam uma complexidade que não se limita aos

pólos de sujeito e objeto, mas a uma relação ambivalente e simultânea. Daí, no dizer de

Waldman, ser necessário “libertar o contemplado da consciência que o contempla” 135.

Para que a linguagem da infância aflore faz-se necessário antes a instauração do

processo crítico do código lingüístico. A poesia de Barros não permite que o enleio

com as palavras sirva de fomento para sustentar uma suposta poesia idílica de uma

natureza idealizada, tal como se realizou no ideário romântico forjador de uma

identidade nacional enraizada na imagética de uma nação destinada a configurar a

grandeza de uma terra destinada à consagração universal. Um permanente retorno à

palavra e à condição de representação problemática devolve esta poesia à instância

crítica de impedir qualquer mecanismo ilusório. Tal como defende Ronaldes de Melo e

Souza “a função crítica da arte consiste em converter a ilusão da consciência em

consciência da ilusão”. 136

134 - Id., ibid. p. 4. 135 - Id., ibid. p. 4. 136 - SOUZA, R. de M. e. op. cit. p. 31.

138

Destituir esta ilusão da consciência implica em remover os

condicionamentos que forjam esta consciência. Daí, portanto, a necessidade permanente

de se pôr em questão os valores estabelecidos pela normatividade da mediania. Esta

poética se constitui por um retorno ao estado em que a “língua era incorporante” (VI),

ou seja, à condição material das palavras, “que já estavam consagradas de pedras”

(XIV), para adquirir uma “espessura de gosma” (XIV). Para que este retorno se efetue

“há que apenas saber errar bem o seu idioma” (VII). A obediência à correção sofre nesta

escrita uma intervenção pelo desvio crítico da ironia. Se a gramática não ensina a

inventar, mas a escrever de acordo com as normas da correção, o poeta aprendeu pelo

método da agramática a “fazer defeitos na frase” (VII). Assim após o período de

desaprendizado do saber normativo que se efetua pela desconstrução da gramática e por

uma didática que ensina os deslimites da palavra é que se torna realizável, então outro

sabor, o ilimitado da poesia, ou seja, voar fora da asa: “foi então que comecei a lecionar

andorinhas” (XIV).

139

3.5- VIDA E POESIA

Em teoria literária separam-se como duas águas a poesia e o viver

crismando o enunciar da primeira com a denominação de um eu lírico diferenciado da

pessoa que escreve. A poesia de Manoel de Barros mescla as duas correntes e reduz

tudo a uma foz cujo rio poético espraia-se sempre na seara do vivenciado indiferenciado

do inventado. Inexiste na poética barrosiana um marco fronteiriço a exilar de um

meridiano o que não se engaiola em um específico exatificar, ou seja, a cingir em um

casulo as insígnias que estampam a completitude e unicidade absolutas de qualquer

designar. Se cada signo é uma máscara temporária com aspiração à âncora o nome para

Barros é uma película que paramenta o que é imanente a qualquer coisa. O nome é o

nome da coisa como coisa, como sendo a coisa em si mesma e não uma representação.

Se a rosa não é o nome rosa, em poesia rosa é uma rosa e muito mais e menos que uma

rosa.

Se o re/presentar de qualquer signo confina-se ao contrato soldado entre o

que soa e o que significa, tal liame vem a se esfazer no fazer poético em que o nomear

conjumina-se em uma unidade entre o nome e a coisa assim como entre o poeta e o

fazer, ou seja, a poiesis como inseparável do ser, do existir, do viver. Barros costura

nomes a outras coisas e enxerta qualificativos que termina por indeterminá-las. A poesia

barrosiana então parece fundar-se sobre o princípio da identidade? Se neste vigora a

relação igualitária em que uma coisa é ela mesma em si mesma, a designação

significativa que fundamenta a linguagem não repousa sobre este princípio, pois em um

signo a substituição de uma ausência é preenchida por uma outra coisa que a quer

suplementar como representação. Esta identidade não vincula o ser da coisa à coisa mas

140

a um signo que é uma outra coisa. Na poesia de Manoel de Barros cada coisa é a coisa

mesma, mas revestida de um modo de ser que se institui por um qualificar que retira do

signo seu atributo representativo para instaurar uma propriedade fundadora de uma

identidade que prima pela ambigüidade em que uma coisa é uma coisa mas re/vela-se

simultaneamente também como outra coisa.

A ambigüidade nomeante que Barros institui às coisas tanto se funda como

instauradora de uma poética como repousa sobre a relação indissociável entre vida e

poesia. No mundo barrosiano as coisas são elas mesmas em suas nomeações, mas

unidas a seus avessos em desnomeações que as qualificam ao revés. Assim o estatuto

definitório que institui uma relação identitária entre os signos e as coisas através de uma

identidade fixa é destrançado por um fiar de nervos que se entrelaçam em um labirinto

de ressonâncias. A aparente simplicidade de um mero designar em que uma coisa em

ausência é representada por um signo é desconstruída pelo poetar barrosiano em que a

presença da coisa se apresenta, se re/vela e des/vela no próprio ato de nomeá-la. Mas

esta nomeação não se reduz a um simples exercício taxonômico de relacionar

identidades mas de um re/colher mais amplo em que o a/presentar de qualquer coisa se

faz não pelo princípio de igualização pretendido pelo designar mas por uma instância

multíplice que não somente alforria o agrilhoamento do signo como cédula certificante

da identidade da coisa mas como um ato de consciência da ilusão deste designar.

A poesia barrosiana não se funda pelo designar, mas por um des/designar.

Daí os delimites da palavra. Esta não é signo para Barros, pois não re/presenta coisa

alguma, pois se institui como a presença da própria coisa e não sua ausência em

diferença. Mas este presentar não tem a propriedade especular de refletir a facticidade

das coisas em sua visibilidade imediata ou mesmo através da mediação verbal mas de

instaurar uma compreensão multifocal das coisas. O signo é o limite que funda uma

141

instância separadora entre a coisa e seu nome, pois este é substituído por uma outra

coisa. Este limitar serve para dar consistência denominadora ao real por uma redução

que quer exatificar tudo por linhas demarcatórias que instaurem a mesmidade das coisas

em sua nomenclatura, pois se tal não se instituísse imperaria uma variegada gama de

significações que poria em risco a definidade de qualquer coisa. Barros a/presenta

então: as coisas como coisas, palavras que são coisas, palavras que são as próprias

coisas e palavras que são simultaneamente coisas, as próprias coisas e outras coisas.

Nesta poética não vigora o estatuto portuário de ancoragem compulsória a alfândegar o

fluxo viajante dos signos com passaportes carimbados com a nomenclatura oficial.

Despe-se antes a mascaragem dissimuladora da identidade real para revelar por detrás

do signo o nome da coisa e a própria coisa.

Mas em poesia tudo pode ser às avessas. Octavio Paz pressupõe no nomear

poético um divergir do designar habitual, pois naquele institui-se uma relação que não

se funda pela identidade fixa deste mas por uma identidade dos contrários em que isto é

aquilo tal qual como pedras em poesia não somente podem ser, como no inverossímil

possível aristotélico, como SÃO plumas 137. Assim não se trata de um nomear para

almejar o estatuto da certificação absoluta como garantia de uma impermeabilidade à

contingência e ao devir das coisas, mas de uma consciência de que a falibilidade de tal

projeto se demonstra na própria consciência do devir como uma inapreensibilidade de

um brotar fluxionário ininterrupto na simultaneidade em que vigem isto e aquilo, o

verso e o reverso, o ser e o nada em uma unidade que se funda pela dualidade opositiva

dos contrários a constituir-se na indissolubilidade. Portanto não é de limite que se trata,

ou seja, mas de uma amplitude das fronteiras em direção a uma complexidade

perceptiva que conjugue não a vigência do separatismo das coisas em uma facilidade

137 - PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 120.

142

designadora, mas uma articulação sempre móvel e instável no qual a fixidez das

designações se transmute na vertigem de um dizer que não se ampara na sinonímia da

similitude entre espelho e verdade, mas nas possibilidades múltiplas de um acordo

desacorde em que tudo e nada con/formam um compósito indissociável entre o nome,

que é tudo e nada, e a coisa que é ela mesma sendo ela mesma, inclusive no estatuto do

nome da coisa.

Nesta vigência entre linguagem e ser reside a fundação da poética

barrosiana, pois nesta vigora uma aliança não somente entre os nomes e as coisas como

o seu avesso que termina por re/velar o indissolúvel liame que se firma entre as

polarizações e antinomias. Corolário deste entrelaçar emerge a con/vergência entre vida

e poesia. Desde o primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, Barros não separa o

joio do trigo, pois antes consubstanciam-se em uma persona poética que re/vela e oculta

a própria face que se disfarça em máscara para des/velar o que não se re/vela a olho nu.

Como já se observou, a etapa inicial do percurso poético Barros conjuga uma relação

especular entre a facticidade vivencial e o escrever como um ato especular que denuncie

as condições do existir. Contudo esse confluir entre o dizer poético e o viver que

postulava uma intervenção crítica no conjunto da sociedade modificou-se na trajetória

barrosiana e passou a conjugar também o próprio fazer como uma instância do ser. A

partir de Compêndio para uso dos pássaros aflora uma con/fluência que adjunta ainda

mais o que não parecia divisível ao conceber do poeta, ou seja, um contrapesar em que

vida é sinonímia de poesia assim como o inverso. A poesia de Barros então não mais

diferencia o estatuto do que é verossímil ou do imaginoso, pois que no reino da

linguagem se posto como tal, ou seja, como linguajar, assim vige. Então não há que se

delimitar a fronteira entre duas águas, mas o correr ininterrupto de um vigorar que

permanece e que flui em um devir que se institui pela mesmidade e pela alteridade

143

contínuas. Assim as palavras, as coisas, os seres tudo con/flui em um jorrar/germinar

que é indiscernível.

Na poesia de Manoel de Barros poetar é VIVER e como tal se funda não

somente na linguagem como fundamento do ser, mas também como fundante do existir

que foge às grades e teias que nos emparedam ao viver como sinônimo do sobre/viver

diário em direção à decomposição material. A poesia de Barros não fala sobre os

acontecimentos que enredaram sua vida, seus amores e dores ou sobre dramas e vitórias,

mas ela é o próprio viver do poeta. Comprova-se isto pela total indiferenciação entre a

vida e a poesia em suas entrevistas que não separam um divisor comum entre o poetar e

o viver. Barros responde às entrevistas como poeta que se constitui pela poesia que

funda o seu ser.

A poética barrosiana incorporou à luta por modificações na rede social um

pelejar pelo indissociar entre o ser e o fazer que funda a divisão de trabalho da

sociedade moderna. Barros É poeta não somente no seu fazer, mas no viver permanente

em estado de poesia que se faz acontecer no dia a dia e não em uma esfera inalcançável

de uma torre divorciada do mundo. Ao ser entrevistado não separa vida e poesia.

Portanto, não há como falar em um eu lírico que dissocie o fazer do viver, pois ambas

instâncias constituem o ser do poeta que se funda na linguagem.

Então na poética barrosiana não vigeria uma alteridade que se mascara no

dizer do poeta que re/vela um multi/facetado aspecto do existir? Este próprio aspecto

multífluo constitui o cerne do ser do poeta que se funda na variedade personificada em

loucos, andarilhos, coisas e na diversidade animal, vegetal ou mineral. Este aflorar

multivalente é constituinte do próprio ser que não se institui pela unidade de uma

identidade da unicidade, mas na pluralidade que funda a própria linguagem. A

in/determinação do devir é o que funda o fazer, a poesia de Barros: tudo é um

144

permanente viver/morrer, germinar/derruir em aliança indissolúvel que não há como

separar o que se constitui como fundação não somente do poetar, mas do próprio ser.

Assim não há como distinguir entre a instância indiferenciada de um eu lírico que

devaneia nas paradoxalidades inverossímeis e as contingências determinantes dos

aspectos imediatos da concretude do existir. Manuel de Barros tudo conjuga de modo

defectivo na vertigem da linguagem da poesia que não dissocia os aspectos multíplices,

contraditórios, paradoxais e opositivos do humano, pois que complementares e

indivisíveis na dualidade que conforma a unidade do ser.

145

3.6- DA AGNOSIA À OUTRA AGNIÇÃO

(Recapitulativo)

Se na obra de Manoel de Barros vigora uma dialética da desconstrução e da

construção em diálogo permanente e impediente de qualquer imobilização em um dos

pólos como escrever sobre essa poesia senão sob essa dinâmica? A desconstrução

barrosiana que se apresenta através da eironeia, um questionamento que desmonta a

veridicidade subsumida na concepção sobre as coisas não exigiria uma leitura

convergente a este questionar? A escrita do poeta de Livro sobre nada ao evitar a

encenação ilusória que forja uma aparência de realidade como suporte da representação

da verdade configura uma presentação da natureza como metamórfica. Se tudo está em

constante movimentação e permanecente mudança a poesia há de responder a isto,

assim como sua leitura, por uma perspectivação nem objetiva ou subjetiva, mas por um

fusionar entre os dois pólos através de uma simbiose interagente.

Por outro lado a construção que se estrutura a partir da desconstrução do

dualismo antagônico entre sujeito e objeto há de ser alentada por um entendimento

poético. Este se funda ao avesso do senso comum e ao afrontar a normatividade da

língua põe em suspeita os confins que conformam o avaliar humano. Desmantelar este

arcabouço implica desarticular a designação que deforma nosso observar, sentir e

pensar. Ao intentar um outro nomear e frasear supõe-se minar as sustentações do

arcabouço textual, ou seja, a lógica de uma enunciação que ainda se dobra aos

princípios da identidade e da contradição. Se estes são revertidos por Barros em um

assistemático desviar a desfiar o fio do pensar por um desavir com o raciocinar parece

haver um propósito de fundar outro saber.

146

Se essa poesia tenciona a criação de outro pensar a se assentar na via da

linguagem ao avesso do convencionado há que se exigir outra gnose. Esta somente

torna-se-á factível após a desconstrução do construto conformador da sabença das

coisas à lógica opositiva vigente e dominante na tradição ocidental. Urge a instauração

de um conhecer superante do logicismo cogitante que faculte ao homo sapiens a

superação do antagonístico por uma síntese antitética. Nesta não se estabelece uma

diferenciação bipolar excludente, mas uma noção de complementaridade intrínseca à

dinâmica dos contrários. Esta maneira de conhecer e se relacionar com o mundo se

firma por outro patamar: o da ironia. Tudo há que perpassar por um permanente

contrabalançar pelo qual a consciência estipula uma “nova forma de conhecimento, em

que a contradição é consentida” 138. Assim não prevalece nem o antagonismo opositivo

ou a síntese dialética, e sim a valência de uma unidade dual do que é pensável como

contraditório. Essa parece ser a lição do poeta que assume a ignorância como

inseparável da sapiência.

Se a obra de Manoel de Barros não incorre na pretensão de uma

representação especular da realidade, o primado que sustenta tal escritura é o da

contradição e este torna possível a presentação do real por um modo de pensar que

desconstrói a lógica antagônica para construir uma poética da complementaridade. Daí a

poesia barrosiana presentar a realidade em sua inteireza complementar mais do que a

representação mimética intenciona. Barros desensina pela avessia de um pensar que

intenta um retornamento não ao poético enquanto sinonímico do lírico, mas ao

constituinte do humano: paradoxal e contraditório.

O que aparenta ser uma utopia, um deslocamento de idéias fora do lugar, tal

qual o discurso demencial, no entanto parece clamar por uma outra topia, que devolva o

138 - SOUZA, R. de M. op. cit. p. 32.

147

humano à sua condição linguageira original, POÉTICA, que se funda pelo princípio da

complementaridade. Dessujeita-se o objeto e desobjetifica-se o sujeito: tal é dialética de

uma topia do dessujeito re/poetizado. O humano passa a se presentar não mais pela

representação designante de um sujeito, mas por um relacionar que se instaura pela

instabilidade das posições. Tudo se relaciona em um permanente transformar e

transmutar em que a reversibilidade converte o antes estável em um variado posicionar:

tudo e nada passam a constituir não pólos opósitos, mas um compósito complementar.

Este outro modo de se situar no mundo enuncia-se pela não sujeição aos modos

instituídos de pensar por antagonismos conflitantes. A antropotopia é o lugar do

dessujeito não mais submisso ao modo de pensar escorado na lógica excludente das

diferenças, mas incorporador destas em um movimento constante da unidade dualística.

Manoel de Barros sabedor de ignorâncias e agnosias postula uma expressão

propícia a outra agnição, que dialetize a gnose e o ignorar como constituintes

indivisíveis de um sabor insipiente, cuja instância originária é a poesia. Esta ao solicitar

outro conhecer insubmisso ao discursivo de uma lógica analítica a privilegiar o

inteligível não diferencia este do sensível e sim os conjuga em um modo integrativo do

opositivo que consiste o humano.

Consignar esta tese a outro conhecer em consonância com o poético, assim

como o retórico, é o que nos propomos em outra parte se nos ajudar o engenho e a

arte...

148

OUTRA PARTE

ANTI-TESE:

ELOGIO AO DEVANEIO

149

4- PRINCÍPIOS

Qualquer análise de poesia repousa sobre um postular que se estabelece a

partir de premissas a se perseguir. Entretanto imagine-se um variado propor não pela

determinação de um télos ou meta a se perseguir, mas antes uma aporia que estipule a

permanência de um investigar sem presumir o descanso de um porto como consolo onde

se ancorar. Mas investigar o quê? A poesia? Cabe tal distinto indagar? Há que se

intencionar sempre um certo propor para que se venha a se objetivar um saber intrínseco

ao sabor? Então há que ter um ponto de origem, de progênie, de princípio? Um umbigo

como monólito demarcartório de tais instâncias diferenciadas? Vigeria, assim

imperiosamente a nos confranger um necessário início direcionado a um exato e

concluso fim? Onde este se inaugura e quando aquele se fina? Há um fim como

princípio ou há sempre um princípio sem fim?

Ousar dizer o sabido é se aventurar a se perder nas rédeas do sápido.

Começaria assim a se responder o ainda não indagado sem o saber? Antes, entretanto,

supor um tatear que não nos imponha a exata mesura como escala, mas o descompasso

do tatear por um incerto traçado a nos guiar. Tal qual um rumo em desmesura a nos

remar, feito o velejar disposto ao ventilar dos ventos de um insensato reflexionar que se

insinua nas redes e rendas do dizer? O quê? Eis a questão?

Dizer o que já está inscrito nas tramas de um verso como traduzir algo que

se diz por si mesmo? Deveria, então, urdir-se uma meta e que esta se impusesse como

imperativo de postulações a priori? No entanto, o que se não proporá por este desvio

que aqui se prenuncia é A meta, pois antes vige e medra em nosso direcionar um

impreciso navegar entre uma esfera e outra. Sim: desfraldar o ancoradouro das certezas

que nos legou o modo de conhecimento ocidental por um diverso ou inverso fluir do

150

palavrear. Há que se instituir este outro cursar ao avesso não como o incerto, mas como

uma dimensão de possibilidades várias e ainda não palmilhadas pelas rotas seguras e

firmes do dominante pensar. Este se instituiu no Ocidente a partir de postulados estáveis

que conduziam sempre a um cais onde atracar através da via segura da verdade como

traço de união entre o conhecimento e a razão objetiva. Mas como aceder à verdade pela

via pavimentada pela palavra como espelho translúcido dos conceitos através da

objetividade e da razão? Há outros caminhares e um destes é o que se ousará como uma

proposição, tentativa e intenção sem um centro definido e definitivo: uma quadra de

ensaio. Assim, portanto um saber que, talvez nem poesia ou quiçá um filosofar, se sabe

somente ao se saborear...

A máquina do mundo forja na bigorna de sua engrenagem o mecanismo

que alimenta de objetos a avidez devoradora de retinas enceguecidas diante do ofuscar

das vitrines, dos tubos de imagem e dos monitores. Tudo é ânsia e desejo voraz de

compra por alívio de alguma fome não saciada. Cada ser comporta em si não mais uma

essência, mas um número que fomenta o otimismo sorridente das estatísticas. Assim,

estático o que vibra dentro do ser aniquila-se diante do enredo cruciante da morte a

incrustar na roda a ferrugem, mas que se finge ágil a custo do sangue que coagula nas

dobras de cada mecanismo a devorar um acúmulo de músculos.

Para manter assim a cena de arremedo do paraíso faz-se necessário o

discurso preciso das certezas. Em tudo que não fenece, em tudo em que vibre a potência

da imprecisão martela-se o ritmo uníssono e altissonante da precisão. Neste mundo de

aparatos o impreciso não vige, pois antes vigora a urgência de metas e problemas a

solucionar. Porém, nos meandros do labirinto da poesia ecoa-se um não-valor enquanto

algo diverso do mercatório através de uma permuta de sentidos inesgotável diante da

amplitude da existência. Nesta tudo é válido ainda que inviável. Se então a impediência

151

é o nada, como um desvalor a desequilibrar a balança comercial dos negócios, há que se

nadar rumo não ao mundo e sua roda de mudos, mas ao redor da moenda de signos.

Ígnea, entretanto, é a palavra que contamina de anti-ferrugem os hábitos e

vícios da linguagem. Contra as muletas de apoio que sustentam as lentes da objetividade

obtusa investem os poetas armados do vírus da poiesis. Se cada signo atolou na areia

movediça dos negócios imediatos que o aprisiona ao comerciar da cotidianidade,

cumpre a tarefa, talvez ingloriosa, de investir em uma outra valia que se transmute a

qualquer pronunciar, a cada escutar, a todo silenciar. O poeta meio ao rodamoinho de

cada dia desnuda cada significado de sua roupagem encardida e a reveste de silêncios

que dizem, desdizem e desmentem o que seja instituído e aceito como fronteira. Daí a

vigência da poiesis a nulificar o que se congela na língua, o que se petrifica na medula e

que se coagula como míngua da fala.

Ouçamos assim um poeta para que aprendamos a desaprender...

152

4.1- O EXTRAORDINÁRIO NO ORDINÁRIO

Diante do diminuto obliterado pelo olhar afeito ao correntio a poesia de

Manoel de Barros clama por um outro contemplar. Volver o perceber para o exíguo que

não se exibe ao imediato sentir sob a aparência do patente assim solicita essa poesia que

se faz presente quando se interna nos interstícios do invisível ao olho domesticado nas

rédeas do concordante. Torna-se, então, forçoso ao fazer do poeta o esmiuçar nas

mealhas da inânia o que ao parecer obtuso do conforme é sinonímia da insânia. Não,

porém, ao perscrutar indiscreto de uma poesia que se ousa como um des-fazer ao avesso

o que é serventia do fácil. Antes o físsil que se ramifica em feixes a serem re-colhidos

pelo manejar delicado de mãos que não rejeitam os dejetos onde repousa o inapreensível

de cada dia. Cabe vasculhar o disperso que eclipsa um advir inviso que exige outro

visionar. A premissa é que este não devasse o vi(ven)ciado com a lente de quem ousa

analisar tudo sob a ótica da exatidão. Inexatificar o certificativo e descertificar o

exatificado. Dessa forma não somente traspassar a fronteira da cotidianidade submissa

ao imóbil, ao imperante e ao inercial como interpelar os dados que nos são lançados

pelo regrar analítico do que se denomina objetividade. Aceder, sim, ao que é ex-cêntrico

e singular, mas que não se visiona de imediato posto que a adesividade ao resignante

incrustado no pensar rotineiro é empecilho a um livre exercício do voejar. Daí a faina

do afazer do Poeta. Há que se minuciar tudo ao avesso para a partir deste pressuposto

tornar, então, o cediço passível de poesia. Esta reside no adventício e no improvável e

não no certificante que se adere ao comprobativo. O atestado de veridicidade não se

aplica à erronia de um suspeito auscultar cujo despropósito seria o de não axiomatizar o

que se esquiva ao rotular preciso da nomenclatura, mas intenta um diverso nomear para

153

aquilo que se camufla ao nosso espanto frente ao inominável. O poeta repõe o impreciso

na vigência do viver que não navega pelo guiar da precisão. Poetar seria aventurar-se

nas veredas que conduzem ao que é equí-voco em busca do risco que reclama muito

mais que o isquêmico a corroer o germinar permanente. Se tudo se nuli-fica no ceifar da

existência, tudo se apodrenta, desvaece, palideja, ou seja, nada viceja no sempiterno,

nada vigoriza no permanecente, nada vige na constância, na imutação, então esse

tudonada, esse nadatudo se insurge por um acordar/desacorde em que o vivermorrer

incorre. Ao apodrir de um tronco a esvair a seiva da vida emerge síncrono o desabrochar

eviterno de um simples grânulo.

O que se considera como ordinário? Ordinarius significa posto por ordem,

disposto em ordem, conforme à regra, ao uso. Há uma diferença entre posto por e

disposto em ? O verbo pôr significa, entre várias acepções, fixar, estabelecer, dispor,

ordenar, arranjar. Posto por ordem implica em algo colocado, situado, fixado, arrumado

por ordem de alguém? Parece que sim, pois se algo foi arrumado, posto em ordem tal

ordenação ocorreu de acordo com a determinação de alguém. Este determinar se impõe

também ao se dispor algo em ordem, pois a etimologia do verbo disponère designa pôr

por ordem, arranjar, compor, regular, resolver, determinar, administrar, governar.

Conforma-se assim uma recolha que acolhe sempre em direção a um centro. Pôr e

dispor recolhem um sentido comum na ordenação. Mas o que significa ordem?

Ordo,ordìnis tem por origem fileira, alinhamento, ordem, arranjo, disposição. Pôr em

ordem implica, portanto, em estabelecer a organização de algo de acordo com uma ação

racional segundo a determinação de alguém a partir de certos princípios. O verbo

ordenhar também colhe os mesmos sentidos na direção deste feixe. Ordináre é pôr em

ordem, arranjar, ordenar, regular, organizar, fazer a ordenação de. Seria o ato de arranjar

as ovelhas em ordem que deu o sentido para o vocábulo ordenha? Ordenar e ordenhar

154

têm a mesma etimologia. Teria surgido daí o sentido de ordinário como algo vulgar,

inferior, reles, baixo? Ora no sentido originário de ordinário há a concepção de algo

conforme à regra e ao uso, ou seja, algo conforme ao costume, ao comum, ao usual, à

ordem normal. Observa-se que o sentido originário da palavra ordinário que indicava

uma ordenação tomou um sentido posterior que conota algo fora da ordem. Teria havido

uma depreciação do sentido do vocábulo ordenar a partir do significado de ordenhar

como trabalho braçal, ordinário, vulgar, afeito ao usual e costumeiro? Na tradição

ibérica imperou a desvalorização do trabalho manual, pois importaria mais à vida de

grande senhor um realce maior ao ócio do que ao negócio 139. No Brasil vigeu uma

discriminação aos ofícios de baixa reputação social e uma apreciação do trabalho mental

que não implica em pensamento especulativo, mas o relevo a um palavreado ostentoso

como traço diferencial da turba forçada aos trabalhos braçais. Esta desvalorização do

lavor manuário iniciou-se na denominada idade heróica dos aqueus em que aumentou o

distanciamento entre “o artista que trabalhava com as mãos e o poeta que trabalhava

com o cérebro” 140. Na Idade Média a cavalaria nutria desprezo pelo “racionalismo

econômico, pelo cálculo e pela especulação, pela poupança e barganha dos mercadores”

141. O desdenho ao ofício manual manifesto pelo cavaleiro é não-burguês e proveniente

da noblesse oblige.

Tecemos algumas considerações em torno da palavra ordinário, mas e seu

oposto? Ao vocábulo extraordinário apontam-se as seguintes sinonímias admirável,

divino, excessivo, excêntrico, inesperado, insigne e

memorável e a antonímia de

comum. Etimologicamente o prefixo extra indica algo fora de, além de, ou seja, fora do

que é conforme a regra, o usual, o comum, além de qualquer ordem, acima da

139 - HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 22 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 10. 140 - HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.60. 141 - Id., ibid. p. 211.

155

concepção humana. Portanto, o centro deste feixe converge ainda para a noção de

ordem. Algo é extraordinário somente se situado fora de determinada ordem comum à

maioria. Esta é que determina que algo seja considerado como fora de seus limites

prescritivos. Estes são aceitos pela habitualidade vigente em determinados meios ou

podem ser impostos através de crenças, dogmas e valores de um grupo. Assim, somente

podemos definir algo como extraordinário a partir de um conceito que defina o que seja

ordinário, usual, habitual, corriqueiro e vigente como padrão.

Procuremos o rastro fundador da noção de ordinário em relação ao

expressar. Para Aristóteles a linguagem artística há que se pautar pela clareza sem

baixeza, pois se constituída de termos correntes será clara, porém baixa e será elevada a

poesia que reunir vocábulos que não sejam os usuais do vulgo 142. A linguagem

corrente, essa que flui e escorre no linguajar de cada dia, que saliva de língua em

língua, avessa ao regrar gramatical e contaminada pelas impurezas que impregnam o

falar é preterida por não alçar altitudes elevadas. Deste modo impõe-se uma divisa: a

linguagem usual não atingiria o estatuto poético, pois não ascende a um vôo de

amplitude mais relevante e a poesia para se efetivar como tal precisaria se afastar do

falar rasteiro para poder voejar. Deste modo prescreveu-se a partir da proscrição do

falar corrente um certo pensar que formou e conformou o fazer poético no Ocidente.

Portanto, qualquer inferência que se possa aduzir terá que ter como premissa o

questionamento ao valor instituído de ordinário, pois traduz, antes, algo construído

temporalmente.

Aproximemo-nos de um exemplário do ordinário. A lesma, pegajoso ser a

originar ojeriza à espécie intitulada sapiens, consubstancia-se ao divisar do poeta não

pela distinção do asco, mas pelo estatuir da existência na plenitude do viger. No

142 - ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de. São Paulo: Abril , 1973. p. 463-4 (Os pensadores, IV)

156

indistinguível entre o venusto e o nauseoso avigora-se, ao deslinde poético, o enlevo

diante da vida. Esta se institui em tudo. O arrastar retardio a escrever na pedra um rastro

iridescente revela o preternatural que aflora na própria natura.

Vigem outras espécies de ordinário que desaparecem na aparência do que

se apresenta admissível ao que é diário. Assim é a garça. O descortinar alvejante do que

se reconhece como elegância a desfilar no fimbriar trêmulo do espelho d’água

representa-se na fiança que é concedida ao conceito aceito como beleza. No entanto,

neste mirar inquestionável repousa o comodístico, pois que se esconde no reconhecível

como belo um valor que se interpõe ao observado como uma lente a deformar o

visionado. Este se transforma então em um signo. A semiologia que se insere na

beatitude diante de uma garça configura alguns traços que se pautam pelo consagrado.

A branquidade aponta para uma relação entre o ideal de pureza e perfeição. Assomam-

se outros valores similares à brancura: a assepsia, a candidez, a inocência, a

virginalidade e a virtude. Tais atributos, no entanto, são aferições conferidas por uma

concepção humana?

Entretanto, não se infira que estejamos a propugnar um conhecer que se

estabeleça nas premissas de uma observação e descrição exata das propriedades

intrínsecas ao objeto, como se tal fosse possível. Tal ideal se concretiza apenas por uma

convencional taxonomia a que se confere o estatuto de científico. Não é isto o que um

poeta como Manoel de Barros parece perseguir. O que atrai o contemplar do poeta não

se refere somente ao branco que é implícito na ave, ao branco como branco destituído

de qualquer convicção assinalada, mas o vagar vagarento de um ser a nos ensinar uma

lição sem signos. Esta parece se constituir em uma didática ao avesso.

Para maginar tais vislumbres aberto na clareira do presenciar, seja o

vivífico no asqueroso ou o insigne no já designado pela habitude é forçoso ruminar de

157

dentro do ventre do tempo. É vital que o en-frentar não se filtre pelo funil de um certo

pensar, mas que o ser se inter-penetre no outro por um di-verso frontar. Este requerer

que se intima é fundamento de um exigir que se re-clama a um outro pensamentear que

não se con-forma ao cogitar enquanto divergência do sentir. Estes amalg/amam-se em

um con-fabular irre-vocável cujo inter-rogar não implica em um veraz, enquanto ancilar

do insuspeito, red-argüir, mas por um estipulante desregrar de um jogo que

permanentemente postula um infindável e indefinito indagar.

Daí a urgência, no sentido etimológico de urgére, ou seja, impelir e

perseguir, de uma didática que con-forme um multifário apreender, um siderado saber, e

uma singular compreensão. Rei-vindica-se, então, outro a-prender. Aproximemo-nos

desse verbo. Prender com-preende, entre outros, o sentido de tomar, segurar, atingir,

apanhar em flagrante. O a antepositivo ao verbo indica tanto aproximação, afastamento

ou negação. Desse modo pode signi-ficar atingir próximo, ou seja, um alvejar, atingir

um alvo, ou um afastamento desse alvo como ainda um negar qualquer alvejamento. Se

adicionarmos ao sentido dúbio de alvejar que con-diz com alvorejar como um branquear

que, por sua vez, remete ao alvorecer, compõe-se nesse con-vocar um quase exercício

do que se pretende dizer na exigência de um incipiente aprendizado.

158

4.2- OS LIMITES DA SUJEIÇÃO

Naturança? Então uma poesia na qual um poeta inter-verte a lógica

dominativa recicla-se pela indústria cultural como um rebento ecológico de uma

abstração crismada como Natureza? Assim é se lhe parece... Todavia há uma outra via

em que se vê um outro divisar. O avesso que se assanha ao se revirar o consabido se

propulsiona por um divergir necessário designado por uma ótica que propugna um

discorde demarcar. Este então se desvia pelo atentar ao que o poeta escreve e não ao que

o olhar de quem o lê se escraviza ao procurar escavar paraísos intangíveis, portanto,

inatingíveis ao contato humano, onde somente se encontram rastejar de lesmas, gosma

de caramujos, apodrecer de madeirames, enferrujamento de alumínio. Neste afluir entre

o viger e o derruir ininterruptos em que o mínimo e diminuto ao perceptivo domesticado

é alijado da perspectiva letrada o poeta peneira e transmuta o correntio em um discorrer

que não tergiversa o essencial ou superficial, ou seja, tudo o que consiste na existência

interessa ao SER humano. Assente-se que ao tecer um rendilhar que se consubstancia

em uma tessitura dócil ao enlevar-se com o cenário que exubera ao sentir, ainda assim

esse poetificar tecla acordes para acordar o que fala, ou melhor, o que pensa que fala, ou

ainda, o que não pensa e fala na dimensão não mensurada por um censurar que se

adstringe ao censo, ao senso comum e ao incensar da ciência. Todo o percurso

barrosiano resvala para a palavra, portanto, para o humano. Esta é a força motriz de um

fazer que se funda no humanizar e este é partícipe do controverso, do que discrepa,

daquilo que se confunde e se afunda no infindável.

Desde o principiar o poematizar barrosiano adscreve ao escritural buscante

no identitário o sanguífico humano, diverso do mítico, como consagrante posto que pó

159

como tal se esboroa na poeira do tempo. O desremelar o olho do menino se anuncia, –

Vai desremelar esse olho, menino! (PCSP), então, não como advertência para o

enunciar do que é regrante, mas de um advir a um ver advincular a um indiviso devir.

Pauta-se assim um poetar que não firma uma divisória entre o vivencial e o imaginante.

O descarnado do palavrear lexial e enjaulado nas molduras e brochuras de um bem dizer

é maculado com a nódoa do dia a dia em que viceja a meninice não como recordativo

registrável, mas como vivificante pulsar que permanece como vigor. Desnecessário

dizer que humano...

A cotidianidade, herança modernista, é repisada como solo fundador de

uma poética que vasculha desde o inaugurar um atentar para o não prescrito. Deslustra-

se o lírico de cristaleira para perlustrar o que é palpável embora imponderável. Tal qual

o frustrante que se impõe ao expectável e interpõe o risível como desfazimento do

antecipatório impeditivo do vislumbre do advir, a poética inaugural de Barros reprisa o

modernizar ao se desviar da imponência figural do Poeta e abjura o dote providencial da

vidência sobre-humana. Uma poesia que ainda se adstringe a um desfechar conclusivo,

porém que introjeta no terminativo o epilogar sarcástico. Esse prosaísmo limítrofe da

narrativa oral não se funda no experiencial coletivo com vistas ao pedagógico, ético ou

moral, no dizer benjaminiano, mas antes ao entendimento do humano em sua inteireza,

ou seja, na complexidade do antagonismo complementário entre o excelso e o usitado.

Poderia Barros remanescer no airoso, no especioso ou na aparência de

pulcritude do que apetece ao paladar da urbe letrada que consome literatura, mas

preferiu o desvão onde se despejam a trastaria e o imprestável. Disforme ao

padronizável pela fôrma da convenção do lirismo recusou-se a copiar a tradição forjada

em flor, olor e luar. Antes contravém com o inusual em que casa o azulejar de um céu

quase anilar com o mortiço de coisas em decomposição e dissipação. Repele o pitoresco

160

das tinturas bucólicas que apascenta leitores ciosos de exotismo e curiosidades para

vasculhar entre os detritos a joeira em que acasala, ao invés de desunir, o anojoso ao

aliciante posto que ambos uniaxiais como faces inversas do viver. Vislumbrar no que é

húmile a altanaria do que se despe do artifício é reencontrar o natural não na aparência

fácil do reconhecível como aprazível, mas desvendar como um descascar o que esconde

no trivial as sutilezas do inapreensível ao nosso avaliar. E isto tanto vale para o

palavrear como para o que o olhar do poeta retém. O apreço pelo que se tem como

contemptível é práxis de quem comunga com o humano em suas atribulações mais

estranháveis ao consensual. Portanto nada difere em grandeza daquilo que é imanência

ao existir não apenas como palavra, mas no lavrar destas como meio de louvar o que é

livre de designações definitivas. Daí o invencionar como instância constante de um

fazer que se funda como matriz de um reavaliar nosso ver, nosso viver, nosso haver.

Os primeiros passos poéticos de Barros são interventivos no sentido de

interferência no que se designa como real enquanto adstrito ao perceptivo e factual. No

entanto observa que mudar o mundo não se confina ao modificável das condições do

que é contingencial e tangível, mas atuar no factício do devaneante. Este se funda pelo

investir em um linguajar que não constranja ao meramente administrável, mas no que

revista o palpável do que se constitui como essencial quanto ao ser. Assim o escrever

poesia torna-se tarefa de transformações mais profundas que atingem a visão de mundo

forjada na lógica em que não viceja o contradizer, mas apenas o firmar e o afirmar de

um aspecto do realizável. Entretanto, se o inverso, o irrealizável, ou o não acontecível

consubstanciam o poetar no formular aristotélico em oposição ao historicístico enquanto

atinente ao relatar factual, a propriedade do fazer poético não se determina ao

invencionar como atuação destituída de intervenção no real. Se há mais mistérios entre

161

o celeste e o terreno a indeterminação do real abrange amplitudes mais inextrincáveis à

nossa compreensão.

Diante disso o poeta rescinde o contrato selado pelo senso e, por não

condescender e ser submissivo com o encontradiço na usança, dissuade-se por um outro

dizer. Se mais acidental, pois que intercadente, face à ascendência oficial do saber

dominante a poesia barrosiana resolve assaltar a sintaxe e a semântica para reviravoltear

o assente e votar-se ao adventício do subitâneo.

162

4.3- O DIZÍVEL DO POSSÍVEL E O CONCEBÍVEL DO IMAGINÁVEL

Poesia é voar fora da asa (LI).

A poética de Manoel de Barros versa em grande parte sobre o poetar. Dizer

a natureza é ousar a poiesis a re/velar-se na instância do próprio fazer. O voejar é

elevar-se acima do condicionante racional que determina ao pensar um separativo do

sentir. Se poesia, portanto, necessariamente o voar. O inverso se atém ao rastejar que

evita o hastear às altitudes mais elevadas com o objetivo de cativar o ser ao domínio do

calculável. A poesia, entretanto, transita do compossível ao impossível e não se atém às

raias da circunspecção. Tudo o que consiste e constitui existe em poesia na inteireza

conjugante a congeminar em dialogismo o divergente. A redução do real ao numerável

não se refugia no âmago da poesia. Esta aduz ao que não se traduz em um dissertar a ser

convertido ao convencível mas pro/duz (conduz para diante) uma discência avessa à

vigência do estimável enquanto atinente ao contar como cômputo, mas como um

dis/correr, per/correr para várias partes, perfazer, efetuar.

Tirar os pés da terra, aturdir e atordoar o sentir, restituir o sensificar ao

sensório e ao pensar, sopesar não apenso ao aquilatar, mas um dilatar tal qual um

prorrogar, prolongar, pro/vocar o voar a bulir (ferver), embolar, enrolar, engrolar cada

palavra como ave a velejar ao vento do inventar é intento do poetar barrosiano. Fora da

asa amplia, acrescenta ainda mais o voar. Se este indefere o deferível do viver em

segurança, não condescende ou é complacente com o apaziguar que seja sinonímia do

pacificar enquanto adormecer diante da inquietude e recusa o que condicione o fazer à

realização do contabilizável, há que se entender então como um auspício (predição a

partir da observação do vôo) não somente de um dizer a desatar, mas como um

163

desencadear a liberdade em plenitude. Fora da asa, pois além da fiscalidade, da

confinidade, do moderável, do dirigível, do restringível, do irrefutável, do retuso, do

regressista, do gramaticídio, do comodístico, do condicionalismo, do arrazoamento, do

perficiente, do comprovatório, do apodíctico, do categórico, do conclusivo, do

terminante...

Posto que ilídimo violar o legislar vigente, a licitude espreita o agir, o dizer,

o fazer visando o manutenível conformativo ao moldável. A república platônica

preconizava o velar do convenial que assevera ao acômodo um perdurar infindável com

a prescrição, sem remissão, do poeta ao exílio. O diferível linguajar metamorfoseou-se

na hodiernidade em um auto-exilar em que no claustro de um palavrear impróprio ao

mercar o bardo brada pela libertação ainda que a tardar.

A exercitação de um voar não propriamente desalado, qual um vogar

desprovido de velame, mas um alçar do solo embora solidário ainda a este, en/volve um

viajar ao avesso: do viário no qual o viandar corrente convive, como em um viveiro

ínvio, o viajor inventivo, avícula implume, desvia-se. Avia, então, um adverso

vivenciar: esvoaça do haver trivial, do ovo do óbvio, do hirto da ortótes, da convicção

da doxa, da intelecção paralítica em direção a uma complexão multíflua, multifária,

multíplice, multívoca. Evola-se em um desvanecer que não mais acumplicia com o

territorial enquanto adstrito ao distrital, mas com a estesia do terpsicórico que oscila

entre a sola e o solar. Ou qual ícaro a encarar o que um heliófugo se preserva de ousar.

Poesia no com/parecer de Barros transcende o voar. Mais que asa a Poesia

requer o arrojo de quem não se sujeita ao rastejar, ao envilecer, ao aviltamento do ser.

Não subscrever o que reza o razoar nem se subjugar ao usante zurrar e zoar visa a

Poesia além de A ou de Z. Na voragem sem azo a aduzir ao zênite ou ao nadir, adejar

até nadificar no devir.

164

A imagética do contradito que funda a poética barrosiana configura-se em

microcosmo no dizer que poesia é voar fora da asa. Se a propriedade do voar, impróprio

ao humanal, implica no atributo de ter asas, natural ao animal, como entender que tal

possa suceder sem a condição necessária? Há que se compreender que se trata de um

verso, tal qual o símil da figuração pictórica privado da respiração, e não de um tratado

de ciências, o que supõe um imaginar sem o decreto de ajustamento confinante às

dobradiças do real. No versejar arpeja um desdobrar em politomia que no desliamento

de nosso sensório se apresenta sob uma perspectiva multiangular. Alice nos mostrou

isso em um voraginoso entranhar adentro do outro lado do que há.

O que se contorce, destorce, distorce na poesia de Barros é o conceito

fantasioso de real. Poesia, então, não como espelho telescópico ou lente microscópica a

detalhar a exatidão certificativa dos conceitos, mas uma janela em esguelha na qual se

descortina, por um dizer avesso, um esgueirar em arpejo, o defectível, iniludível e

inimaginável do que É. E do que Não. O dizer da poesia barrosiana condiz o indizível

não sob o crivo do translatício ancilar do reconhecível, mas com o enunciável que

concebe o inacessível dissimulado naquilo que é visível como contradição. No adir do

que é diverso converge o con/fundir que funda o infindável do advir. Re/unir, re/colher

o que se espalha e centelha no assinalativo do folhear permanente entre o amanhecente e

o ensombrear nas entrelinhas que o olhar condicionado não percebe a concepção do que

está inscrito.

Dar asas também ao impensável arroja o imaginoso no magicar da poiesis.

Içar as solas do solo e desenliçar os enlaçamentos e liames dos cadarços para alçar

elevações acima do sonhável. Assim, sonhoso, a esvoaçar fora da asa, do causal, do

razoável arrisca-se o poeta acima da mediania para acenar, assinalar, anunciar e

enunciar o esquecidiço à sombra do insigne. Se esse sustém o atestatório cujo objetivo

165

é uma progressão como sinonímia do aperfeiçoar da condição humana, entretanto,

sucede o inverso que encerra e encarcera o saber à retenção de conceituações insípidas

que se sentenciam como ciência. O vero torna-se o ver como superação da crença e

comprovação do conhecer enquanto in/formação. Esta, no entanto, de/forma com o fito

de con/formar o confirmativo e atestatório como normativo, demarcativo e impositivo.

Desumaniza-se a essência do ser nas sobras de um sabor que há que se dessaber. Sorver,

então, na senda da insciência uma agnição que seja um elevar-se a exceler não como

celsitude, mas dissipar-se em um imperecível sobrevir. Este não se aprisiona ao

pre/visível mas ao adventício do inaudito, do mírifico e do subitâneo.

A poesia é como a boca dos ventos na harpa (MP). Pauta-se mais pelo

inapreensível que não se escreve no pentagrama do que pela subscrição ao regrar da

gramática. Música que alicia (acaricia) a dedilhar idílios, milhares de lírios no miolo da

íris a de/lirar. O salmodiar odes e rapsódias do bardo modula-se mais pelo ritmo do que

pelo rimário. A regência e condução da poiesis seguem gerência musal. Cadencia-se

pelo compassar concertante e consonante de uma execução sem notação, sem solfejo,

sem teoria: harmoniosa afinação com a essência do ser. Arranjos de acordes em

contrapontos concordes a tanger o movimento que rege o desconcerto do mundo. O

uníssono em sintonia a soar e entoar nos intervalos do universo a polifonia do silêncio.

O retinir do diapasão da poiesis em surdina a percutir um timbre a vibrar muito mais

que sustenidos ou bemóis em sintonia com o assobiar de sabiás.

Dentro da mata no entardecer o canto dos pássaros é sinfônico

(CCAPSA). Que importância há de ter isto?

As coisas sem importância são bens de poesia (MP). Im/portar é o ato de

trazer para dentro, para si, como para um abrigo, uma recolha que se reúna em um

interior guardado sob proteção. Entretanto, o que importa em um mundo que admite em

166

seu introduzir somente o repositório de pertences é o realce da noção de bem que

reveste o conceito antes atinente a princípios propícios ao aperfeiçoar ético com uma

dissímil significância. Esta não se dissocia mais da concepção do seu inverso, o mal,

nem sequer se ousa associar, por exemplo, à fruição fortuita do tempo, que se converte

em investimento imediato, mas anseia pela posse do que é valioso, vultoso, quantioso.

O bem não mais se singulariza, pois a multiplicação dos interesses distorce o conceito

do ser na condicionante coercitiva do ter em que o adicionar torna-se o cerne da

vivência. As ações ao invés de intenções do sujeito da proposição passam a se constituir

em índices de cotações em um incessante movimento cuja preocupação é somente a

oscilação e liquidez da bolsa. Investimentos só contam com a segurança dos benefícios.

Desse modo a audição do silêncio, tal qual a estesia desinteressada na apreciação seja de

uma sinfonia ou de um pássaro, assinala-se como desperdício.

Na cidade o silêncio avilta-se (CCAPSA). No transacionar de valores pelo

qual passou a se regular a existência, o juízo cede à exigência de valência de uma

aplicação como sinal de caução contra qualquer prejuízo. Não se concede recibo de

quitação a quem emite ações ordinárias de poesia... O poema é antes de tudo um

inutensílio (APA).

Poesia, s.f. Designa também a armação de objetos lúdicos com emprego de

palavras imagens cores sons etc. geralmente feitos por crianças pessoas esquisitas

loucos e bêbados (APA).

O desimportante a que o poeta atenta atina para o que é tido como desútil,

como o brincar das crianças. Este ainda não se atém ao divisionário de um margear que

delimita o contorno que confina o acessório ao centro do que se decide como

necessário. A criança exerce o criar, o produzir, o fazer, a poiesis como instância

indissociável do seu constituir intrínseco e não se policia por uma conceituação que

167

estabeleça o domínio do inadmissível sobre a supremacia do ser. Adversos a isso por

não se sujeitarem ao compromissivo da consciência com o princípio da realidade

reagem os que se entregam ao êxtase ebriático, aqueles que se colocam na posição do

que seja excêntrico e os que se fascinam com o alucinar e aluamento dos lunáticos. O

imaginário não é somente uma atribuição passageira a que se tem de superar para

conceder espaço à vigência do necessário à sobrevivência, mas se constitui como

propriedade essencial do ser. Por perseverarem nessa disposição avessa ao alinhar

consensual e receberem a qualificação de desviantes a estes se associa o poeta. Como

fazedor de sandices, necedades, tolices e parvoíces alia-se aos alienados alijados da

produção em resistência e defesa da necessidade da invenção. Artífice da palavra

articula um outro discurso que prefere correr para diversas partes e em várias direções

do que se imobilizar no fixativo e no categórico. Ancípite comparticipa

simultaneamente do léxico e do invernáculo que em permanente diálogo sustém a

linguagem em um movimento dialético entre o dizível do possível e o concebível do

imaginável. Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no

mercado como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve para poesia (MP).

168

4.4- AO ALINHAVAR DAS PALAVRAS

era de profissão encantador de palavras (GEC).

Na avessia do producente, enquanto serventia pela eficiência, praticidade,

prestância e valência, o poeta professa um desconcordante fazer. Desavém com o

consenciente para religar o que se relegou ao desterro. O menosprezável, o despiciente,

o menoscabável que padecem o desmazelo do deferimento geral por exercerem a

contraversão ao consentâneo revertem-se sob o auspiciar da poesia. Se o poeta ressalva

e salvaguarda o vilipendiado, também expurga o plausível não para a corrigenda do que

seja erradio, mas para modificar (moderar) e acendrar a assimetria do mundo.

Mundificante é o seu agir por um detergir no ágio da linguagem que se desajunta, então,

de seu aspecto dispendioso e se avém ao vagir em desvario.

Não quero a boa razão das coisas. / Quero o feitiço das palavras (RAQC).

O pre/dizer poético do vate não se atém ao profetizar, mas a um pro/duzir

encantamentos diante do que se di/visa como realidade. Pre/vê e ad/verte à dominância

do circunstancial a importância do circunvagante em errância de um reverso dizer que

a/ventura o sortilégio do imaginante. Como pro/vocativo con/voca um desalinhamento

lexical para alinhavar uma pro/visória dis/posição do dizer em uso que se altera na

alternância de um incessante transfazer. Nessa adulteração do designado pro/move o

re/visar do con/diciona(riza)do não para a assolação do con/firmativo ou sequer a

subjugação ao intimidativo, mas tenciona restituir o dubitativo do supositício à instância

infirmativa do pensar. Entretanto, o novedio desse enovelamento nocivo ao

conformístico não reedita o raciocinativo como atribuição categórica do ser, e sim,

solicita a pro/cedência do imaginativo. O arrebatamento via linguagem alicia um

169

en/cantar contrário ao contar enquanto calculação e a qualquer ilação conclusiva.

Consigna, assim, como insígnia não a redita do signi/ficativo, mas esquiva-se por um

outro desígnio: o inventivo sem divisa.

Palavras fazem misérias inclusive músicas! (MP). No invencionar

insubmisso o vate palavreia um ventejar proximal do musicante. Sou puxado por ventos

e palavras (LI). Ao ir e vir ventígeno das palavras o poeta adeja em um multiplicativo

de claves qual ave em voejo sem azo ao azulejar do alvorecer. Na vertigem do devanear

os vocábulos em revoada aviam um indelével devir. Não tem margens a palavra (APA).

Muito além do glossário o poético não se rege pelo cogito especulativo, mas por um

impresumível dizimento que não se confrange ao limitâneo do inteligível e sim por um

linguajar circunjacente ao musical. Mais que um melodiar anódino, aliviante e paliativo

a poiesis se pauta pela dissonância ao concordável enquanto dominância do apático.

Infenso a isso o dizer poético se vale do léxico para re/volver ao início em que a

simbiose entre o simbólico e o sonoro/ imagético ainda não se dissolvera no conclusivo.

Eu escrevo o rumor das palavras (LI).

Reverencial ao silêncio o poeta ausculta o múrmur que cada vocábulo

consoa em um cadenciar que esboça a sussurração do ser. Em poesia, então, translada o

que é inaudível ao perceptivo prosaico e transmuta-o acordante ao tanger da lira e

incôndito ao monitorar da gramática. Quebranta o regular para recuperar o

inaugurativo que se prenuncia a cada pronunciação. Cônsono ao passarinhar em

cantilena ilumina-se ao plumário de cada poema.

Mas pode uma palavra chegar à perfeição de se tornar um pássaro?

(CCAPSA). Se a toda palavra convém um significar, o esvoaçar que lhe seja possível há

que preterir qualquer vínculo ao crível para que a modulação poética alcance sustenidos

acima do soez. Soabra-se assim em quase asafia a desentoação ao dizer cotidianizado

170

reduzível à alalia. Advincular ao lídimo lexial a palavra avezada não é voante nem

sonante, portanto, ao pássaro não pode se assemelhar ou sequer ser comparável.

Todavia se ao condizente imperativo do arrazoar se ouse uma desaliança do cogitável

então é pensável, senão o perficiente, mas o perfectível, o possível de um adejo.

Há que apenas saber errar bem o seu idioma (LI).

Humana e não atinente à animália, a linguagem, domicílio do ser, necessita

de uma reinvenção para que se alcance a qualidade volateante. Se o impreciso do

devanear não é preciso tal qual o matematicístico, outro pensável se pretenso ao

altitudinal precisa se destituir do gravitacional para se evolar. O enlevamento possível

ao poeta se constitui, então, pelo desatino em relação à vigilância da língua. Libertário

em um fazer ao revesso o dizer, tanto o lambuzado pelo vulgo como o vigente nas

gaiolas dos gabinetes, o poeta elege o errático. A deviação do convenível ao convivial,

no entanto, menos que um destrutível ato de desintegração do linguajar, postula uma

retroação à essência do ser pela reabilitação da capacidade de vagueação.

Notei que descobrir novos lados de uma palavra era descobrir novos lados

do Ser (CCAPSA).

No achamento ao se tornear e se internar no véu de uma palavra desvela-se

não somente o ser, mas o multilátero da linguagem. Vagar é andar errante e também

estar vazio, ser livre; ser isento de (tarefa, responsabilidade etc.); ter tempo para.

Desvelar é ficar sem dormir ou retirar o véu. Tornear tanto remete a torneio, justa como

dar a volta ou ainda modelar ao torno. Justa pode ser uma disputa, uma taça e a noção

de justeza. O deslindamento vocabular se não desvenda a proveniência, motivação

perseguida por outras ciências, intenta (estende) para outra tenção: o enramar indefesso

e envesso ao engessar dos sentidos. No secesso de um significado instaura-se um

secionamento que rebenta em um ramificar ininterrupto na expectação do recolhimento

171

de uma colheita. Para frutescer o poemático a estrumação ao semear se intima como

condicionante ao poetificar.

Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao fóssil, ao ouro que

trazem da boca do chão (GA).

A semeadura do poético aduz ao entranhar no reconditório de cada palavra.

O paradoxal de um dizer que aspire ao áleo versar pelo embrenhar no breu de cada

brotamento verbal se desencerra pela recognição do elo interjacente entre o terrâneo da

significação e o celífluo da invenção. O contraditório se concilia no complementário do

que é opositivo e o físsil entre a levitação da plúmula e o abscôndito do terreal se

equaciona, sob o inventivo poetizado, no esvoaçar da palavra feito papagaio de papel a

alçar o céu atado a uma linha que permanece no solo. A tarefa do impoético, por sua

vez, não compactua com a ambigüidade, pois firma a certificação da inequivocidade.

Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria

(LSN). Por ser poética quanto mais dista do certificativo mais congraça as disposições

em contrário. Concebe que o circunferente dizer a se curvejar ao a/ludir, discrepante do

retilíneo referir, comparticipa do quadrático que crisma o desalegre. Confluente ao siso

a ajuizar em circunspecção vige o divertir (divertère) cujo divergir, separar-se, ir-se

embora, ser diferente do engravecer constitui-se não como anverso ou reverso do

numismal, mas por um nivelado valedio em que o exergo em cada lado conforma-se

como bifacial. A obvenção de um fazer, a poiesis, que se convém na adjunção do que é

incompatível, não transige, entretanto, com um proceder gerenciado pela lucratividade

do utilitário, feito o fabrico armamentístico. O que, no entanto, não lhe confisca o

condão que lhe concede lograr o que se constrange como severo e alegar de modo

fingidiço, alegrativo e lúdicro, o que se revela como suscetível de se avizinhar ao vero.

172

O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas

desúteis (LSN).

A lida do poeta é um i/ludir e não um litigar, um laborar ou um labutar que

se reduza a um quefazer. Ser lido no entrelinhamento palimpséstico avia-se como alvo

de um dizer no qual inscreve as palavras não como um afazer azafamado, porém afeito

ao criar de uma criança. A desutilidade da poiesis não é mensurável quanto à valia, pois

que sequer se condiciona a qualquer dimensionar, mas por ser inservível enquanto um

condizer controverso a conduzir a nada.

Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a de equivocar o sentido

das palavras (EF).

O nascível através da poesia é uma nulidade para todo saber que alicia o

asseverativo como óbice à dubitação. O convívio do inafirmativo com o precisar em

tensa conferência no dubitativo infirma no poético qualquer fim que se queira justificar

ao inquirir. Resultar não se exige como imposição à poetização que se vale do dúbio, do

indeciso e do infindo, pois menos que o pontuar testificante importa mais o con/fundir, a

imisção de sentidos. No pomar do poematizado não se mantém quedo o signi/ficar visto

que em seu território quais aves migratórias as palavras não cansam nem descansam,

pois estão sempre de passagem a viajar nas asas da linguagem.

Ao fazer vadiagens com letras posso ver quanto é branco o silêncio do

orvalho (RAQC).

O exercício da desocupação a que a poesia persuade anuncia um ocupar às

avessas: o apoderar-se, o assenhorar-se do direito de não se sujeitar. (Objetivo quase

inglório meio a uma sociedade regida pelo agendar de todos afazeres). O poeta sequer

se apossa das palavras, pois estas pertencem a todos e a ninguém por serem erradias.

Por não se radicarem no sedentário de um saber arraigado ao irrevogável as palavras

173

induzem ao multívago da poesia. O artifício desta não consiste em uma ocupação no

sentido de ofício, mas em um oficiar no qual a urgência a que o tempo se reduz se

preencha de vaziez. Vacuidade que designe tanto o que nada contém como o que está

disponível a ser livre. O interregno entre a renúncia ao reinado do real e a instauração de

uma impossível utopia, o poeta impregna com o dilatar do inter/lúdio. Decide, então,

e/ludir o legitimável que sonda o olhar a realidade pela con/versão do indúctil das

palavras ao reduto do in/crível.

A poesia está guardada nas palavras – é tudo o que sei (TGGI).

Sabedor que seu realizar não se abaliza pela regência do existir e sim pela

vigência do in/existente, do in/exeqüível e do in/exato como con/viventes na

ambi/valência do que é coalescente ao que há em co/essência, o poeta não reduz o real

nem ao cálculo ou ao lexicalizado, mas aduz à florescência de cada palavra. A

efluência desta não se dá pela absência e sim pela confluência multivalente de sentidos.

Nesta proliferação a poesia encontra seu cultivo que o poeta há de saber semear, mesmo

que arredio ao sulcar, pois que ciente das in/significâncias atenta que seu fazer é um

mero brincar a sério com o intangível fingir das palavras.

Agora só espero a despalavra: a palavra nascida para o canto – desde os

pássaros (RAQC).

174

4.5- DIDÁTICA AO AVESSO

O chão é um ensino (APA).

Por desatinar ao que as palavras condicionam e vasculhar o restolho que

delas se desacolhe o poeta expecta a despalavra com que há de compor seu cântico.

Como alcançar o pipilar próximo ao de um pássaro? Pelo imitativo? Essa é a senda dos

que somente percebem o que aparece no que é soante e não no que se constitui como

intrínseco ao cantar. Outra ensinança faz-se necessária para se chegar ao estatuto

cantante. Há que se abrir ao germinante, ao brotamento e ao desabrochamento para se

apreender o inaudível ao perceptivo. A lecionação que o chão providencia aos que se

dispõem à aprendizagem exige o desprender, a deslembrança e o dessaber como

primícias.

- O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, das pedras. Sua gramática

se apóia em contaminações sintáticas. Ele está contaminado de pássaros, de árvores,

de rãs (GEC).

Para desaprender o poeta torna-se cúmplice de tudo que é animado,

vegetante ou mineralizado. Ao se promiscuir ao inumano enjeita a racionabilidade que

impinge à linguagem o desimaginativo como absoluto suporte ao sentir e pensar. Por

isso desalgema-se de qualquer sensaboria encenada na ensinação oficial. O gramaticídio

de seu desdizer infringe o semântico, desvertebra o sintáxico, descoordena o oracional e

insubordina o discursivo. Esta conspurcação do vernacular, mácula à gramatiquice,

ponderada sob outro ângulo evidencia a expurgação dos preceitos que regulamentam o

normológio da linguagem dominante. No desaviamento ao que é confim ao corretivo

175

reverencia o que não se acorrenta ao enclausurar do glossário e da língua para

desemudecer o humano e reconduzi-lo à sua índole mais sublime.

Não tive estudamentos de tomos. / Só conheço as ciências que analfabetam

(LSN).

A gnose que a poiesis possibilita pressupõe o descondicionamento de todo

saber pretenso ao estabelecimento da estabilidade. Finítima à ignoração da infância

move-se na oscilação entre o desconhecer e o vivenciar. Este, contudo, participa do

imaginativo que não se concede à sistematização metódica do científico. Fundamenta-se

este no comprovativo da universalidade de leis inconciliáveis com o subjetivo, enquanto

o poético dessujeito do sistemático constitui-se na presciência e no adivinhar.

Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. /

Os sabiás divinam (LSN).

A informação desperdiçou o sentido da ação de formar e fazer para se

transformar em con/formação ao confirmativo. A poesia deforma e infirma o afirmativo

do saber como sinonímia da retenção do conceitual para se obstinar na consecução do

incompossível. Da confinança ao provável da ciência é diferençável pelo divinatório

que, no entanto não se cativa ao previsível enquanto o esperável concordante com o

cognoscível, mas ao antecipatório do improvável. Antecede por um pressentir em uma

antevisão que não se determina como prognóstico na observação dos fatos, pois

ultrapassa o visível do expectável por uma compreensão insciente do sentencial.

(...) os poetas podem compreender o mundo sem conceitos (EF).

A instrução que o poeta prenuncia funda-se na premissa do desensinamento

de tudo que possa se tornar impediente ao ser. Para desobstrução disto é defensor de um

conhecer não submissivo ao conceito que se torna uma contenção quando interceptante

do que possa ser germinado. O poeta testemunha que o universo pode ser apreensível

176

pelo versejar e que este é conversível ao agnicional contanto que este se distancie da

dimensão conceitualizante.

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá / mas não pode

medir seus encantos (LSN).

Desmesurar e desbatizar conjuram a práxis desta didática ao avesso.

Reeducar-se pelo assistemático para reabilitar a condição precedente ao semiótico

en/volve uma retrocessão ao primevo. Esse retornamento à anterioridade ao retórico

pressupõe, por sua vez, o avançamento em direção à reeducação dos sentidos. A

exoneração do palavroso evita a cultivação, amanhação e medrança de uma servência ao

compreensível pela via do denominativo. Ressuscita-se, dessarte, o amanhecente

comparecente ao ser.

Para enxergar as coisas sem feitio é preciso não saber nada (RAQC).

A didática do insabido não se funda pela aniquilação da contradição, pois

afiança o inverossímil, o invivido, o inconexo, o incogitável, o inclassificável, o

incaracterizável, o inaveriguável, o inauferível, o impronunciável, o improducente, o

improcedente, o impresumível, o impercebido, o ignorável. Intolerável a esse

conhecimento torna-se a incoexistência dos adversos, pois que tudo é implexo. Se nada

é incomplexo a poesia interverte o modo reducente da sapiência incomplacente com o

incognoscível da intuição e não intercepta o impendente, o incausado e o ilusivo.

Se a dissensão ao assertivo da designação sucede pelo negacear tal não

significa, no entanto, o anulamento da positivação e sim que esta é compleicional com

sua antítese em uma dialética complementar. Assim o incaracterístico não consiste na

simples negação do que qualifica o caráter distintivo como centro absolutizante a definir

o caracterizante e sim como um traço diferencial diversificante que, entretanto, se

177

constitui como o mesmo somente que na alternância da alteridade. O verso e o reverso

se consubstanciam em uma unidade indivorciável.

Só quem está em estado de palavra pode enxergar as coisas sem feitio

(RAQC).

O indistinguível, o que é indivisível, inseparável se revela ao fazer que

realiza um movimento inversor de retrocessão ao inceptivo. Tresandar ao indesfeito

compreende o que provém da poiesis. Avista-se por este sendeiro muito mais que o

indiciário do dicionário. Vestígios e laivos do ilegível se desvendam ao ultrapassar o

vestíbulo do vocabular. No entanto, sob a mascaragem que esconde o estado larvar da

linguagem especta-se o espectral do signo. Somente empós a transposição do átrio da

designação estigmática atinge-se o nervo da palavra e se entrevê o inviso do inexistente.

Súpero ao obsidiar lexicográfico o visionário torna-se internúncio do que é interdito ao

entender habituante.

Acho que a gente deveria dar mais espaço para esse tipo de saber. / O

saber que tem força de fontes (RAQC).

Dispensável ao adquirente de um aprendizado prestante, porque profícuo,

todo palestrar, feito a luta com palavras, torna-se postulante à superfluidade. A demasia

da poesia qualifica-se como insipiência, pois não possui prestabilidade ao mercanciar. O

conhecer compreende-se na acepção do adquirir, porém não pelo acrescentar e sim

como um investimento visante a uma aproveitação rentável. O poeta intercede por uma

perquirição do manancial, do fontanal e do original virgíneo ao estatuir designante

atingível por um desfazer retroativo em que a reentrância no recolhimento solicita o

reavivamento recuperativo do resguardado sob as camadas de cascas da palavra.

Um homem que estudava formigas e tendia para pedras me disse no

ÚLTIMO DOMICÍLIO CONHECIDO: Só me preocupo com as coisas inúteis (APA).

178

A solicitude da erudição em zelar pelo axiomático simula em ciência o

primordialmente coexistente com a arte. A cisão daquilo que desde nascença vigeu em

conjunção delegou ao poético a regalia da invencionice. Se esta se incapacitava à

remoção da ignorância prescreveu-se-lhe a propriedade da impostura. Ao científico,

então, competiu o inteligível e ao estético o sensível em deliração. Remover tal

sentenciar envolve não somente o ato de erradicar a erronia de nosso pensar, mas em

promover o óbvio: o imaginativo não apenas como qualificativo do sensitivo, mas do

próprio ser.

Desarrazoar o arranjado para que surja do raso o raro rumoreja o poeta e

sua asofia. Cerceia o decisório para içar nos interstícios o lançado à força ao silêncio.

Alça ao aparecente o clandestino sigilado como insidioso e no desassombro a que

assoma o insurgente alumia-se a pétala do poema. Despoetizado o vivenciamento a que

sujeitam o ser arroja-se o versejador na vivenda do desassossego para revivescência do

invenal: a linguagem inventiva.

Há muitas importâncias sem ciência (LPC).

Inconhecíveis há saberes que não se decifram ao compreensível da ciência.

Extricável ao poeta o impensante não se torna tradutível ao nível do legível, pois pênsil

entre o creditável e o desacreditante transmuta-se em volante alegoria. Na lacuna do

legislável enviesa-se o perceptível ao dimensível em multidimensional ocorrência em

que o deperecimento do temporâneo se enlaça à supervivência do intemporal.

Exercível como ocupação incompreensível a escritura poética se compraz

no excursivo a que nada conduz, pois por não se estremar ao confim de uma exegese

tudo lhe é permissível. Contanto que não se atenha ao consecratório do probativo e do

contumaz nem ao mimético do realizável a poesia habilita-se a aventurança por

esconderijos os mais inexpugnáveis ao sapiente.

179

Uma singular assiduidade se faz necessária: não a freqüentação da língua,

mas a vigília à linguagem das crianças.

Como não voltar para onde a invenção está virgem? (TGGI).

180

4.6- NA FONTE DA INFÂNCIA

Para voltar a infância, os poetas precisariam também de reaprender a

errar a língua (GA).

O desestudo do prescritivo é requisito à desdoutrinação do que está sujeito.

A deseducação do somatório de saber desnecessário orienta o sentido direcional do

liberatório. Disposição inaugural à fazedura de tal propositura se constrói pelo

desformar todo confortativo da falação convencionada. Desescolarizar a língua pelo

desensino pleiteia aquele que flana pela linguagem. Concubino desta, entretanto, o poeta

descumpre a fidelidade marital prometida à língua e insemina ambas de uma estranhável

espécie de discurso.

O errôneo se rotula como tal somente se relativo à norma dizível, pois o

metamorfosear permanente impede a língua de se estatuar no paralisante. Ao não

adversar o impermanente, portanto, o Poeta procede conforme a dinâmica da própria

língua. O desjeito de seu dialeto não se perfila à guardiania do manutenível e imutável a

que se aferram os conservantes do mofento e do mumificante. Tal dialetar, entretanto,

convele (abala) o normativo, êmulo (rival) do movível, para devolver à linguagem o que

se legislou como desviante. Por isso o aproximativo ao infante, ao não falante.

Para volver à ineloqüência contemplante a que se recolhe a criança a

desvinculação do gramatiquismo é obrigamento de quem queira transpor as balizas do

desentendimento. Com o licenciamento acessível ao ininteligível aquele que se desveste

do nomenclatural atinge o estágio de elucidação do ainda não inscritível. Por

181

ignorantismo da etiquetagem decretada a tudo o infantil é um convite à reinvenção do

universo não pelo refazimento do perfectivo e sim pela engendração do inascível.

As crianças desescrevem a língua. Arrombam as gramáticas (LPC).

Escrevinhar o descaracterizado sem o talhar da usança consigna a alocução

da criança. Sem qualquer preleção sobre a validação do designativo em relação ao

experienciar ela transpassa qualquer impedição ao conhecer. Em seu maisquerer os

haveres aos deveres as crianças acatam um princípio: haurir até exaurir o diversivo do

viver. Sem consciência da noção de impedição elas ensinam à condição perecível dos

viventes a proeminência da vividez. Se de cada semínula se insemina outro ser como

envencilhar o vivificativo à mortalha do mortiço?

O falar infantil patenteia o purificatório não infectado pela gramaticidade a

ceifar o falante. Este terso (vernáculo) repositório, entretanto, não tem como se

preservar do perfilhamento ao préstito de atribuições que se outorgam às palavras com o

decorrer do tempo. O desafio a que os poetas se afinam é o de não afiançar o fungível

que definha o indefinível das palavras. Desaviam da habitude servidiça à dizibilidade

pactuante e segam o indevassável para colimar (visar) o diversicolor do

indicionarizável. Qual prestidigitador a coligir o resistivo incólume ao maculável do

vocabulário a criança prefere a propagação centrífuga da infringência ao panléxico a ter

que embelecer a fealdade centrípeta do redito. Ao desavir com o involucriforme do

vocabularizável não reitera a inflicção à inflorescência da inventividade. Na retiração do

empecível à imaginatividade o poeta aproxima-se da criança a desafear o feiúme do

fazível preceitual. Dizedores de coisas prestemente a se obliterar em deslinguamento,

de acordo com a perspectivação dominante, ambos se abraçam como prestímanos em

reconhecença mutual.

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças (LI).

182

O traço convergente entre falácia, impostura, trapaça e o falsídico costuma

costurar-se ao poetizar no que tange à exatoria auferível da veracidade exigível aos

relatórios. Todavia, o poeta urde um tecidual residuário e policromático de sentidos em

uma irmanação impossível ao nominável mascarado de verídico. O denominacional ao

acumpliciar-se com o comunicativo como vacina preventiva ao vírus do fantasioso

alicia o revelável ao reduto do conhecível. A criança ao desinvernar o inominável

confere ao excepcionável a aura do inauferível que a credencia à exorbitância. O vareio

imaturo, entretanto, é tempolábil e logo é coagido ao corretivo pelos legisperitos do

marasmático.

Áugure do que é incriável o vate invenciona o invernáculo. Acriança-se sob

a égide da ageometria ao agerar um aluvial de vocábulos a confabular e involuir até a

silabação. Aluzir o obscurante à clarividência até o aluzecer da língua. O ingerminável

transmutativo no végeto aviventa o despertamento no vernante de cada verso. No

alcândor, cimo onde não alcança a horda em ordenança sob mordaça viabiliza-se, então,

o horático. Na dizimação da adultícia o poeta encontra a criança que fora. Torna-se apto

ao poemático.

Propício à infância o poeta torna-se um dizente: desguarnecido das azevãs,

lanças dos que pelejam com palavras sequer as exuma em seu dessistema de arborescer

o dessinalado. Desconsagra o vernaculizado para venerar o impecunioso na periferia do

locucional. O peculato ao domínio público se doloso sob a jurisdição da língua, contudo

estabelece jurisprudência que lhe concede habeas corpus e livre translação entre o

diafásico e a afasia do dizer. Desiluso do ditatório prescribente ao dizível, no entanto

não infama a anciania que sela o vocabulismo, pois resgata o proemial anteprimeiro ao

fúngico dicionarizável.

183

Uma palavra está nascendo / Na boca de uma criança: / Mais atrasada do

que um murmúrio. / Não tem história nem letras - / Está entre o coaxo e o arrulo

(CCAPSA).

Pendular entre a tartamudez e o balbuciar o parolar da meninice

sobreexcede o lexicológico pelo rechaço ao habitudinário das definidades. A

infecundidade destas embarga o improferível inatingível pelo repetitório talhante da

potência infinitiva do linguageiro. Tanto a vaniloqüência ecoante da logomaquia a

expungir neologismos e a derriscar o inconjugável, como o costumaz ao característico

repelem a infringência ao consolidante e a deferência ao incaptável. O recondicionável

ao incaracterizável auna o des/fazer do poeta ao ludismo da criança.

Se inexcedível parece o ossário de palavras com que o sorvedouro diário

nos assovina, adulterante constitui-se a auscultação da criança dormente no ábdito

emanante do ser, pois propicia tanto o desregramento emancipável como a

reflorescência do consciencial. Obsediante até a infinitude o poeta repulsa o inventário

consuetudinário, pois sempre beirante à fímbria do movediço aquista a indenidade de

descativar o indenegável que se desanuvia a quem se determine a preterir o pretérito

pelo inconquistado. Rodeante o caroço onde a criança ainda adormece volteia divagante

ao encontro de si. Voltívolo se contrastável ao professoral o poeta desabriga o proferível

para preferir o profanante ao reconfortante. Viajor a desarranjar o viário sagra a

rotulagem de farsante vinculativa ao seu fazer para viabilizar o inviolável. Ao negatório

da inverossimilitude a perscrutar o textuário poético inviscera de incendimentos o que

há de desvincar o dicionarizado e aclamar a criancice do eternal sempre começante.

Eu queria avançar para o começo. / Chegar ao criançamento das palavras

(LSN).

184

O começamento da poesia se dá pelo ensimesmamento na imensidade

silencial em que se adensa o adentramento no envoltório da palavra. Rasura-se o

residuário assíduo do tradicionário sublinhado no dissuasivo do silogístico para escamar

o velado sob o palimpsesto lingual. A camuflagem significante que simula em

veridicidade o impositor designar dissimula o insignificativo subjacente a qualquer juízo

e obstrui o alcançamento do nucléolo medular além do signo. A inverdade residente no

nomenclatório não é locatária da linguagem, pois esta por não ser conciliante com o

intitulativo não o lisonjeia nem o adula apenas o maneja com a parcimônia da

intemeratez frente ao corrosível.

O verbo em condição de brinquinharia retroverte à primazia do criável a

que o poeta qual um primigesto esmerila até o ponto de engendro de engenharias e

quinquilharias inusuais. O poeta empece o engelhar e o desverdecer ao proteger das

intempéries o pendulifólio das palavras. No esquadrinhamento do inescrutável abrange

tanto a desclaridade quanto o inescurecível do ainda inescrito. Qual um anequim

inerrante ainda impúbere o poeta sempre em improvisata veda a louvaminha ao inérveo

da palavra in vitro. Inerudito em seu esmiuçamento inertiza o perecedouro do enegrecer

da impressão no alvorejante da página ao extrapolar pela perpetuidade da

impermanecência de uma significação absolutizável.

Ao principiar uma palavra o poeta desaproxima-se do silenciário inercial

para desabrir um silabar inúbil e ainda acréu. Dessubstanciado de qualquer sentido

ainda póstero cada vocábulo em gestação gravita as cercanias do que é insueto. Na

desnudez do ainda indicionarizado o umbílico do inominado insurge desmarginando o

germinal de uma nominata. E assim se verseja...

Nos resíduos das primeiras falas eu cisco meu verso (APA).

185

O incisório divisor do sensível e do inteligível pelo pensamentear ocidental

designou como inomogêneo o que se constitui como complementário. O poeta pretere

tal escaramuça ao preferir o dialogal entre o díssono e o consorciado. Retroage até o

embrionário da palavra para desvestir o instituído como inconciliante e investir no

paradoxar. Este transvaza o descostume ao oximoro a que se arraigou a raciocinação da

dominância por se constituir anterior ao franjamento delineativo da pensabilidade. Se

esta apensa ao apoético matematístico e temente de qualquer aporia labiríntica acautela-

se diante do reticente, no entanto, não se torna obstáculo ao poeta desejador de restituir

ao ser a condição originária conciliante entre o sentir e o pensar. A desfreqüência ao

cogitativo, entretanto não implica em uma refração do razoável frente ao irracionável,

mas uma diligência a zelar pela anterioridade à divisória entre o afirmante e o negatório.

Na vigência do meninil alumia-se o impermisto ainda a qualquer segmentação. Guarido

e absolto dessa exclusividade o poeta amalgama o desconsentido e inocula no senso

comum a avessidade da infância incondicionada ao delimitativo. Nessa recantação do

incontaminado em que se aninha a infância a poesia se compraz no cerzimento dos

restos e retalhos do que se encontra sob a sujeição da razão. Sobrepujar a esta somente

se abeirante ao universo–ilha em que transvoa o sonhável encantoar das crianças. Estas

resguardam tudo o que se encontra dessujeito frente à perempção da tecnicidade

maquinal a desalojar o imaginário ao exílio do delirioso. Sob o tilintar da relojoaria e o

arrotar do maquinário tudo o que favoreça ao desavezo incrimina-se como suspeição de

aluamento. O poeta, aluarado, apenas tenta uma aprendizagem do resistivo ao olvidável

e recusante à adestração das palavras. Elege, antes, o delirado. Crianças em pleno uso

da poesia funcionavam sem apertar o botão.(MP).

186

4.7- O DELINQÜIR DO DELÍRIO

Poesia é a loucura das palavras (CPUP).

Loucura não como alienação, seja enquanto transferência de um bem ou

direito a outrem ou o processo em que a consciência se torna estranha a si mesma, mas

como delírio. Este se de/fine como uma convicção sustentável apenas por uma pessoa

adversa ao pensar prevalecente, que sustém ilações que não são intrínsecas ao que se

conhece como realidade e que certifica seu asseverar somente em crenças ínsitas. A

distinção do delírio em relação ao alucinar se estabelece por não depender das

impressões sensoriais e por se apoiar em concepções que se sustentam mais em um crer,

pessoal e contrário ao consenso coletivo, que no com/provar. Delirar tem por etimologia

o apartar-se do sulco da charrua, veículo de tração animal para o transporte de pessoas

socialmente importantes e que na Gália medieval passou a ter a função de rasgar o solo

com o fim de revolver e afofar a leiva, a elevação de terra entre sulcos. Daí o sentido de

sair da linha, da ranhura humana, que posteriormente passa a significar a eversão da

razão.

A poesia, ao menos a que se denomina como moderna, não se conforma ao

senso usual ao qual subsume a definição convencionada de delírio, pois não somente

recusa uma autonomia em relação ao sensorial, que seria o traço diferencial entre o

delirante e o alucinatório, assim como parece congraçar com o alienamento, enquanto

um sentir/pensar, no qual a consciência se torna estranha a si mesma. Se estranho

significa o que é de fora, portanto, o que não pertence ao que se situa dentro de um

interior encerrado em seus limites, tal acepção confere atributos que separam

diferencialmente o outro situado fora do círculo como o alheio, o insólito, o inusitado, o

187

que seja passível de suspicácia. Esse excluir, não deixar entrar, remete à centralidade

do identitário como fundação, pela exclusão, do que seja separado como excêntrico, ou

seja, o que se situa fora do centro, quando não coincidem os centros de dois círculos.

A poiesis enquanto fazer não se estreita ao domínio do produzir, executar,

realizar. Estes, por sua vez, diferenciam-se do fazer poético quanto à concepção

dominante que prega o realizar atinente à concretização efetiva no existir, o produzir,

não como um conduzir para diante, mas um executar utilitário como um efetuar, levar a

efeito, produzido por uma causa. Este divergir da poiesis, o não se vergar ao jugo do

que é vantajoso pois que infrutuoso e fantasioso, o restringe à margem do decisivo, do

imperativo e do injuntivo que dirige o existente sob um dominioso perfazer enquanto

conclusiva execução de um produzir proveitoso e lucrativo. Existir, no entanto, é elevar-

se acima de, aparecer, deixar-se ver, mostrar-se; sair de, provir de, nascer de;

apresentar-se, manifestar-se; ser; consistir, resultar. O elevamento acima do

ordenamento objetivo, ação de colocar adiante, que rege o mundo funda o deixar-se ver

da poiesis como um a/presentar-se, um resultar não como efeito resultativo ou

conclusão lógica, mas um saltar para trás que é um não concordar com, não caber em,

não se ajustar com; resistir e opor-se. Daí o estranhar-se a si mesmo que constitui o

modo alienante do poético enquanto delirante consistir sob a ótica dominante. A poiesis

nesse resistir à mundanidade do que é imperioso responde em seu mostrar-se como uma

delusão. Se esta é uma ilusão afetiva, sensitiva ou intelectual, uma perturbação, uma

alucinação, um engano, um logro, um delírio avesso à razão, o i/ludir não se subjuga

somente ao que causa ilusão como um enganar-se mas o jogar com, o divertir-se, o

recrear. Portanto, o imaginar. O poeta é um fingidor e como tal joga com o imaginante

por não se ajustar à regência do real enquanto administração (não a ação de prestação de

ajuda) e gerenciamento do produtível, do haurível e do exeqüível. Gerir, entretanto, é

188

andar com, ter consigo, produzir, criar, fazer. Tal recolha acolhe um outro viger que se

junta à poiesis pelo viés do imaginal. E não do agir como um operar produtivo. Assim

tanto o desvio do linear traçado do sulco no lavrar como o alienar (afastar) da ratio seja

enquanto cálculo, conta e registro ou um metódico e seqüencial cogitar definem-se

como delírio. O deliramento do devaneante é um divagar e neste vagar (concorde com a

etimologia...) voga um estar vazio de quem não possui ocupação e é um ser livre. A

vaziez do ser vagante não concerne (mistura-se) ao lineamento de um saber que abjura o

sabor (o senso, o sentido...) em proveito de um télos cuja linha somente aponta para um

único direcionar: a seguridade dos conceitos. Estes significam tanto a ação de conter

como o ato de receber, a germinação, o fruto, o feto, o pensamento.

Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina. No osso da fala

dos loucos há lírios (GA).

A contenção do conceitual pode ser entendida como contenda ou o

encerrar. O conceituado cerra a passagem de qualquer diversidade de sentido que se

diferencie do centro de concepção da ação de conter. Então a recepção, como

fundamento para que frutifique o motivo do pensar, se estabelece por um contender

contra o que contém aquilo que não consolide o saber como um conhecer seguro, sólido

e sóbrio. A cautela e precaução do conceituar, entretanto, terminam por transformar o

pensamento em um acervo de certezas.

O jurisdicionar do dicionário se atém ao contido, retido e conservado no

conceitual. O poeta, no avesso desse saber, prova não para aprovar e comprovar a

propriedade sapiencial, mas experienciar a sensação como o fato de compreender e não

do prender a que se atém o conter. Assim passa a língua em seu sorver na voracidade

de quem sente através de um perceber e observar não servil à continuação contida na

189

impressão do conceituar, a impresciência do impressentido de um outro pensar. Por não

com/participar da celebração que con/corre no en/cerrar do conceitear o poeta alucina.

Alucin(o)- é um elemento de composição derivante do grego alúo, estar

fora de si, perplexo, vaguear. O estar fora de si é similar à consciência que se torna

estranha a si mesma tanto no ato de se conhecer assim como o ser que não se reconhece

mais na identidade fixa do identificado na conceitualidade do identitário. Perplexa é a

atitude do poeta diante de tudo, daí o espanto como um pasmo (a ação de puxar a

espada) diante do irresoluto, não como o que não se resolveu, mas como o indissolúvel

que não se pode desunir. O sinuoso da poiesis é um hesitar confuso, que con/funde, por

não se deter diante do lucidar enquanto um esclarecer que não vela o re/velar como um

complexo (que cerca e abarca) intercalar com a ocultação que se dissimula, que se finge

em seu dizer. Daí o indeciso entre o ser e o não ser do vaguear, do estar vazio.

Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos – O verbo

tem que pegar delírio (LI).

Poesia no dizer barrosiano é voz. Se esta é no designar do dicionário o som

em vibrações, e estas são a ação de brandir, que por sua vez significa mostrar uma arma

de modo ameaçador e que se origina do radical germânico brand, tição e por extensão

lâmina da espada, no entanto a vocação poética é um convite não ao bradar do tagarelar

ou à intimação ao digladiar, mas ao vocativo, o dirigir a palavra a alguém. Vibrar, então,

não se circunscreve ao lançar do dardejamento e sim o agitar rapidamente, sacudir,

tremer, luzir, cintilar. Ao luzido de centelhas de sons resplandece o ser humano. A

phoné que se irradia, que toca com os raios dos fonemas o cerne de outro ser, repercute

como símbolo: sinal de reconhecimento entre as personas que acende no ato de cada

elocução o ascender de fagulhas do iluminativo que se manifesta no palavrear como um

re/velar, um des/vendar. Sílaba tanto é a ação de conceber como uma combinação. Se

190

concepção é a ação de conter, então o encerrar sentidos em um feixe de sons que se

com/binam caracteriza-se como uma marcação de sinais em uma união. Se o silabário

ressoa como simbólico que ecoa o unívoco, no entanto, somente quando se separa do

acordar sancionado possibilita-se ecoar o multívoco. Este é o fazer do poetar: semear,

produzir acordes que destituam o inequívoco para que no comparecente da aparição do

símbolo dissemine-se não a segurança mas a inquietação, o desassossego e a agitação a

soar.

Assim como no revelar vige o velar, no desvendar o vendar, o

iluminamento pela poiesis se dá não pela via da lógica excludente, mas converge o

divergente em um complemento indissolúvel de seu próprio oponente. O fazer poético

constitui-se como nascente de sentidos não apreensíveis pela cognição que se guia pelo

conduzir retilíneo cujo télos seja somente a dilucidação enquanto um desenrolar,

desenredar, desembaraçar, um concluir. Os atributos definitórios e classificatórios que

conformam os ditames e determinações de um saber alicerçado no cercear da

imaginação, cuja tenção seja a destituição de qualquer sabor, não se constituem como

propriedades intrínsecas ao dizer poético. Este se qualifica pela in/exatidão em que há

de se con/vir um con/viver em que o conjugante seja: a tensão, o ambíguo, o dúbio, o

dubitativo, o flutuante, o hesitante, o incerto, o indeciso, o indefinido, o indeterminado,

o nutante, o oscilante, o titubeante, o vacilante, o vago e o vário. Neste multifário

condizer aniquila-se qualquer motivação que impeça o dizer poético de se conter no

recôndito, não como recolha, mas enquanto encerrado em um ponto concludente. Deste

modo o verbo há que delirar... Não ser ancilar da razão que rege rigidamente o ocidente

a conduzir nosso agir torna-se então promissão propulsiva de um incessante pulsar mais

que o que se conhece como pensar. Deixar este de ser um pesar para ser um

contro/verso pensar ainda assim torna-se instância apensa da ratio. O poetar, enquanto

191

um pro/duzir diverso do utilitário de acordo com a concepção platônica diverge do

modus operandi para restituir aquilo que é próprio não apenas ao poeta, mas pertencente

à imanência do ser: a linguagem em sua origem.

Se poesia é voz de fazer nascimentos, de aparecimento do que vem ao

mundo, do acontecer, a concepção disso se gera em um despontar que ultrapassa o

inventável. O possível de ser inventado é causação do realizável que se envencilha ao

factível. A poiesis excede a vigilância que a intelecção exerce sobre o imaginar e

engendra no próprio ventre do inventariável o divagar do devaneante. A vagueação não

esma nem estima um concluimento epilogal, mas se consubstancia em um eterno

retornar a um começo que persevera na permanência do inaugural. Desalinha-se assim

do sulcar lineal obedecente à razão aprisionada ao siso, ao bom senso, ao juízo e

convizinha-se em conluio com o designado delirioso. O delíquio da razão é tido, então,

como um delinqüir por não excluir o paradoxal e nem ser advocatício do que adere em

inconsciente obediência à coerência. A conexão do que é coesivo há que congeminar o

que é díspar, desigual e diferente. Só assim há de ser humano o ser não mais sujeito.

Poema é o lugar onde a gente pode afirmar que o delírio é uma sensatez

(RAQC).

192

4.8- OS DESLIMITES DO SUJEITO

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis (LI).

Adversa ao undíssono a redimir o insuave do vivente reduzido a

inequiângulos de esquadrias e aço a emoldurar a contabilização de cifrões e estatísticas,

a cesura do versificar acende relâmpagos de rimas a vagalumear no escurejar do

abjetivo o incendioso do poemático. Sob a ardência dessa acendalha incendida a radiar

luzernas que desobscurecem o desalumiado o poeta desassisado aspira alforriar o

sujeitado à razoabilidade prevalente. Contrário ao senatório inquisitorial do

raciocinamento, o visar poético desatina ao querer desafixar a fixidade das definições.

Através da mediação travestida em transparência a platitude reinante compagina o

receituário de certezas para impedir o derruir desse ossário pelo sismo de um significar

fugidio. Mascara-se o inextricável de cada coisa com o selo certificatório e conceituoso

como represamento do desponderado passível de se insurgir. Avaliza-se assim a

conformatividade submissiva à encenação das aparências disfarçáveis sob o velário a

ocultar o cenário erguido em terreno movediço. Repulsar o dubitável aliciatório de

incertezas a disseminar a incessância de um devir revogante de quaisquer convicções e

perempções torna-se emblemático do poderio tecnicista, belicista e financista. Agrega-

se o dispersante inclassificável e incomensurável do real às amarras da logicidade como

meio de enredear a instabilidade da cognoscibilidade a um ajuizamento apaziguante.

Deste convencimento de ilusões dissimuladas em formulações e assertivas

fundamentadas na rigorosidade científica o poeta alija-se na defensoria da insânia. O

desatino desta, entretanto, entenda-se pelo desatendimento ao compromissivo com o

193

entendimento atinente ao cerebrino. Se este constringe a compreensibilidade do mundo

à conceitualidade excludente do fantasístico o poeta recua para o irraciocinado.

A gente se negava corromper-se aos bons costumes (RAQC).

A contradita ao raciocinar não significa dar guarida ao irracionável e sim a

postulação de um pensar desconcorde, divergente e diverso do encadeamento lógico.

Não somente desviante da predominação deste, mas principalmente uma destronização

do aprovatório aos valores que o senso comungante pela maioria impõe: o crível, o

aceitável, o reconhecível, o insuspeitado. Desacorrentar-se de tal mediania confortante e

subjugante aduz aquele que desaceita a conivência e complacência com o paliável

diante do inquietante de um questionar irrespondível. O poeta desbrida-se do

vinculativo ao asseverativo e do conveniado com o resultativo para favonear o

adveniente que nunca sobrevém. Irroga ao perluxo de todo afirmatório terminal a

desdiferenciação, ou seja, o acendramento, a lixiviação do acumulativo enciclopédico

para que aflore o inconhecível. Por inconivência com o limitante o poeta quebranta o

concordatário para que no desbrilho do esconso reslumbre o transluzimento da poesia.

Dessela a assinação das cognominações pactuárias com o dessentir por dissentir de uma

discência adestrável ao atermar do descobrível. No desiderato de siderar a licitude

eclipsante do quimerizar aluvia a presúria do pensar com o declivoso do imetódico. Ao

apensamento à península do pensar sistemático o poeta antepõe o impulsar ao

inidentificável. Se o despercebimento ao preveniente do antedito firmou-se como o

preceituário do que é hodierno e ordinário, no entanto é no antedia da poesia que

deperece o preventivo ao vaticínio. Imperecedoura há de ser a palavra recusadora de

qualquer valorativo escravizante ao contingencial. Para tanto se desataviar dos

resquícios escamados sobre as crostas, côdeas e carapaças a escudar o existir faz-se

urgente.

194

O tempo dele era só para não fazer as mesmas coisas todos os dias (APA).

O poeta, ostiário do atemporal, desacompanha o cadencioso de ampulhetas,

clepsidras ou dos dígitos movidos por quartzos pois desguarnecido de bússola e

astrolábio segue a escandir mais que o silábico das horas para colher no olho da ostra da

noite uma lasca de lua a lacrimejar uma gota de orvalho. Na crista das palavras, grinalda

de entrelinhas por onde trilha o estro poético, crispa-se a crina da escrita a esporear o

esperadouro de axiomas. Por isso o poeta decanta o calcário sedimentado e incrustado

na cavernosidade de cada sentido para então descascar as estrias das histórias cravadas

nas cavidades do calendário. Feito isto resta deslembrar e espanejar o passadiço para

restituir a invigilância ao olvidamento e paralisar o ponteiro sobre o instante de cada

momento. Desindexado de horários o poeta se despoja da armadura da rotinização para

agasalhar-se com a farraparia de niquices que enriquece o ermitágio onde vive a

vagamundear. Ao adentrar o ermamento das desoras, no qual não espreita o

desesperante sob a guarita do patronato, estira-se na espaçaria da paginação alvejante e

se alimenta de prenúncios, especiaria dos deseclipsados. Feito trânsfuga abdicante de

bagagens, convizinho da vesânia, exila-se no desértico onde o miraginal da inexistência

exagita-se. Ao se desgramaticalizar de letradices, letraduras e letramentos o poeta

neófito está apto ao desavezar em que se aveza a poesia. Convivente com o desviver e

desamigo do convinhável reinventa avelórios com que guarnece seu dispensário de

tenções inecessárias à prestância. A poesia é o meio agnicional pelo qual se desafeiçoa o

inestudioso da conhecença consociada em avença com o que é validante. O poeta

auxilia a extrapassar o mediocrático de cada dia e a consoar o inconsonante ao qual é

costumária a habituação à modelação do pensar, do sentir, do agir.

195

Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que

olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis,

que vê a uva etc. etc. (RAQC).

O poetar dissipou-se meio ao crepitar da estivação e ao crocitar das

admonições ao desgarre dos avessados às endentações da maquinaria. Para eludir este

legislatório há que se profaçar o sacrilégio à linguagem, professar o sacrificatório do

paradigmático e indeferir o proibitivo. Liberativo do compromissário com o sujeitável o

aluimento poético coadjuva no derruimento de qualquer gerência sobre o arbítrio para

transfigurar na medrança do incondicionado o que se desfigurou em cerimonioso.

Insubordinável às vicissitudes o poetizar impulsiona o alvedrio ao insucessível do que é

acrônico. Ao insubstancial transacionado como relicário oferece o regalório de palavras

ainda não aprisionadas aos dicionários. Sobremaravilhado todo aquele que frente à

acrimônia da sobrevivência insubmergível a cada sobremanhã admira a ressurgência da

poesia. O afazer desta se afina ao faiar, seja afanar (azafamar, furtar) ou entrelinhar

naquilo que é findável o tesaurizado disfarçado em açofra no mercado. Sobrelevante ao

condicional sem indulgência o poético, acólito de qualquer antelóquio a cada esquinar,

deslinda no que é sólito o insueto. Sob a tutela do que é contábil absume-se o penseroso

na adicionação de quantificações que são abduzidas pela sanha de consumar o ser ao

consumir. Ao poeta, dispenseiro de pendências e pensionista de demências, interessa o

sagitar direcionável ao ocluso onde se imiscui o incalculável ainda inconcluso. O poeta

mais que pensamenta, não desalenta diante da aleivosia e imizade difusa ao viver e

descerebrado espelha-se no deluso do miraculado. A obtusidade do carimbar

burocrático é obturada com o versífico adversante do falso quilate da doctiloquia

coagulante.

196

Coisa adejante, se infira, é o sujeito que se quebra até de encontro com

uma palavra (APA).

Capitulante diante do vestigial que arrasta cada vocábulo também é o leitor

acompanhante do poeta feito Dante a Virgílio. A palavra marca qual um estigma, muito

mais que um signo, ígnea flamância a cintilar na língua. Se o deslembrativo acomete o

ocorrido, entretanto este permanece imperecível no poema a preservar o que o momento

leteu quer deletar. O silente sentido de um verso assemelha-se ao correr do rio: não

repetível e, no entanto sempre semelhável em seu incessante ir. Neste confluir entre o

escrevente e o leitoral, a afluência do sonante e da silencialidade em um versar

contraditor não tradutível ao objetivístico torna-se provocativa de um abalamento não

somente do parecer sobre o mundo, mas do próprio parecente que se apresenta como

presente. O pensar sujeitador ao convir das conveniências inverte-se em um remoinhoso

ruir de certezas frente à correnteza da poesia. Quebranta-se o acorrentamento ao

persuadível desse pensar quando o sujeitado ao dominativo situa-se confronte ao

contraditório a ecoar no oco de cada vocábulo. Íncola ao desabrigo do significativo

antes abrigante de insuspeição, a palavra sob a radiância da poesia reenvia ao erradio o

recusativo à seguração. Não mais lacaio de escólios a querer estilar o que é

indeslindável ou fâmulo de amarâncias no que é mêmore, o leitor, assecla do

aventuroso, lança-se ao solaz e ao letífico de uma leitura insubmissa ao dogmático.

Mais que o descascável das significâncias, o poeta desensina a inerrância de qualquer

ciência para aquiescer ao esvoaçamento do ainda insonhável. Perante o enjugamento

serviçal ao nominativo determinante e nomenclador do princípio da realidade, a poesia,

no entanto, não é concedente com a aliviança do enlevo alienante, mas preferente do

logodedálico alucinante que enlaiva o perimétrico isolante com o avessar iluminante.

Meu desnome é Antonio Ninguém. Eu pareço com nada parecido (LSN).

197

Desiluminar o lúmen artificioso da cientificidade é insuficiente para o

poeta, sentenciado ao inoficioso, fazer reamanhecer a luminescência da poesia. Precisa-

se pressupor o noturnal do indescortinável compartilhante do luminar nomeante,

desservir à indiciação do inconclusivo contrariante ao sagital do silogismo e desinçar

qualquer rotulação à complexão do ilogismo. Entretanto, se é inerente a submissão à

condicionalidade designativa, implicativa do que é modificativo, portanto, refratária ao

verídico, a inobediência ao logicismo e o desincentivo à racionalidade são impotentes e

inermes diante do imperativo do pensar. Este, no entanto, não há que ser subjugável seja

à linearização ou ao próprio designar e sim exorbitante do condenatório ao paradoxismo

para que este restaure o que é intrínseco ao ser: o devanear. A poesia apenas recupera o

que se encontra soterrado sob os escombros do edifício da razão. A retrocessão ao

incoativo antecessor da conceituação requisita a devolução do imaginativo ao que não

se admite mais sujeitável à dominação da inteligência infensa ao emocionar. Sob o

prismático poético divisado sob a instância multiplexar do resistível ao divisional

insurge-se o dessujeito ao coagir do senso comum. Desimplicado de tudo o poeta atinge

a nueza do nada na qual desvestido de si mesmo desidentifica-se com o espelhante e o

especulativo para anuir ao vaziamento do nugativo e ressurgir dessujo, nuelo e

desluzido do indutivo e do dedutivo. A desdar os nódulos ilaqueados ao refletivo o

poeta desdenha o permissível do que é paliável e autonomeia-se delituoso a exorar não o

remissível ao penitenciário, mas o exílico ao aprisionável passível de autonomizar o

sujeito ao que é insubjugável.

Para ser escravo da natureza o homem precisa de ser independente

(CCAPSA)

198

4.9- ENTRE O PERMANECENTE E O TRANSITIVO

(Atribuir-se natureza vegetal aos pregos para que eles brotem nas

primaveras... Isso é fazer natureza. Transfazer) (LPC).

A Natureza confrange-se em um franjar que se desdobra em caleidoscópio

a girar uma mensagem em código que o poeta se recusa a decifrar. Ou até mesmo a

cifrar o que não se des-vela nem se re-vela, mas vela que se incende a um novo in-

ventar que recende ao que esplende e não se esvanece mesmo ao ventanejar. Vela o vate

um oráculo que se mantém intacto ao contacto de qualquer mácula, de cálculo que

ofusque o lusco-fusco do crepúsculo em hóstia a expectar o espetáculo que óculos que

escondem olhos agnósticos não explicam. O complicar (enrolar, enroscar, dobrar

enrolando) não compete ao poetar que procede apenas por um plicar que é réplica que

exclama e conclama pelo clamar de tudo que eclode em contínuo conectar. O poeta

então não especula, tal qual sentinela e atalaia a auscultar o inexplicável, mas vigia o

que vige em vigor a conjuminar o que germina e o que vermina em um geminar

interminável. O que não se nomina o poeta não desimagina nem desanima nem alentece

o seu tear, pois continua a tentar contar o que não termina, mas cognomina um

compaginar que adjunta tudo que há ou que há de advir. O seu exordiar solicita e acode

um concorde recordar que é um ressurtir, ressaltar o que dorme e que urge a/cordar

como clarim a criar uma clareira. Este clarejar implica em um entrelaçar posto que no

oco de cada vocábulo ecoa um conclamar que invoca tanto o equívoco como o que se

aquieta no desígnio de cada significar em cada signo. Como um sino, pêndulo ou

címbalo a embalar o que oculta cada símbolo cada poema revela aquilo que demanda

mais que o conhecer para des/velar.

199

A naturança, entretanto, teima em falar. Como a entender? O poeta ausculta

o que se esquiva ao nosso escasso perceber. O jorramento ininterrupto de tudo constitui

o mundo e o poeta busca restituir ao constante a instância complementar do que é

inconstante. Nutre, então, o que brota e o que apodrece como atença de um fiar que se

assemelha, não como cópia ou espelho, a isso que nosso intervir não descortina. O que

se esconde onde nosso perscrutar se esquina e se aniquila sem traduzir aquilo que nunca

se reduz a qualquer nomenclatura? Percebe-se que nosso tatear não se aproxima do que

insta, ou seja, em suspenso, do que seria o falar da naturaleza. Não seria então um

equívoco ousar reduzir a um signo tudo aquilo que não signi/fica enquanto acordo tácito

no nomear de cada coisa? Posto que a imprecisão do viver oponha-se ao preciso do

navegar, ao poetar o primeiro prescinde de certezas, pois prima por crismar de dúvidas

tanto o crivo do incréu, do crédulo como do indiferente.

Como então falar do que não fala? Barros cata cada migalha que se espalha

pelos cantos do pantanal e não tenta batizar o que tartamudeia em um outro linguajar. A

garça, o gorgolejar do riacho ou a garganta que canta em uníssono ao luar tudo é fonte a

jorrar em linguagem. O poeta, um quase escriba, anota o que desentende de seu atentar,

pois que transcende a um audifalante que sabe primar pela ignorância. Esta é promessa

de quem se supõe um aprendiz frente ao santuário no qual se presencia, despido do

saber insípido que a ciência nos ensina, o principiar de tudo: a eclosão e o erodir.

Mistifório que não se há de explanar por um retilíneo narrar, assim tudo converge para

uma multíplice rarefação: a de ser quem parteja. Como tal, portanto, não interfere o

regrar que constitui o decifrar da natureza com vistas ao negociável, mas acatar o que

está escrito em cifra e enigma a des/vendar mas a não se re/velar, mas re/cifrar o que

deve permanecer em estado de ad/miração e enlevo. Estes são os pressupostos do poetar

que transcreve o que está subscrito nas entrelinhas das estrelas, das estalagmites, dos

200

estalidos de galhos a rebentar e dos galos a costurar cada alvorecer. Este transcrever,

entretanto, não se suponha um traduzir, mas uma transcriação que enovela mais que

revela, pois que ao poeta impõe-se um limite, ou seja, o de não ousar a subsunção ao

domínio do signo. Seguir além para trazer o que está aquém de nossa concepção. O

posto pelo poeta ante nosso olhar diverge do que se representa, então compete ao leitor

mais que o alfabeto e sim um dispor a enveredar pelo rastilho que o bardo deixa em seu

rastejar. Tarefa que reclama um outro ofício que não o de mero leitor...

Mergulhar e ruminar nas ruínas dos reinos das palavras tal qual larvas a

lavrar os restos que o poeta varre para debaixo das páginas dos livros. Livrar-nos, então,

do entulho que nos cativa e que nos condena ao degredo de letrados analfabatizados no

hábito de folhear o livro da vida sem decifrar o sentido. Por mais que se insista, mesmo

ao desvelejar, em uma travessia entre o dito e o lido, ainda assim o entrevisto não é o

imprevisto nem sequer o impermisto, mas somente o permisto que é trasvisto.

Como entender o que um córrego discorre? Este corre, percorre um curso

que não morre, pois que o retorno torna-se não um tornear e sim um incorrer que não

torna, pois que o tempo decorre... Enrola-se, desenrola-se a corrente que arrasta e

carreia cada ente e nem a e/vidência dos eventos ao ventanear evita o escorrer que

nunca recorre, mas apenas transcorre. O flume, ainda que diminua de volume, não

revertível mesmamente continua. E de modo inverso, permanente não permanece

idêntico, pois dessemelhante espelha a si mesmo em constante movimento que jamais

retorna à fonte que se esvai em jorro em ininterrupta torrente que se desfaz na foz o

arroio ao amarar. A constante inconstância que nos ensina a decorrente permeação entre

o permanecente e o transitivo constitui a sabença que nos instrui o curso de um riacho,

um ribeiro, um regato, um rio. Mirabolância que é condição sine qua non de quem é

sintônico com o admirábil de um derivar a emanar a imanência do que é aquátil. Inábil

201

diante do que é móbil e volátil é nossa inclinação daí o juízo precário frente ao quase de

uma prece do fazer vígil da poiesis. O rio sem retornança retorce nosso perceber,

observar e considerar e sem serventia ad/verte para a costumança de se antepor como

ad/verso tudo que é constitutivo de uma complexão sem controvérsia, posto que tudo é

anexo, conexo, implexo.

A mutabilidade em acorde eviterno com o conservativo é propriedade

também daquilo que é imóvel, como o arvorejar. Entretanto tudo o que brota, rebenta,

desabrocha em concomitância míngua, emurchece, desvive. Assim a prenhez de tudo

carreia consigo o desmancho, no florir o desflorar, no frutificativo o putrefaciente, na

vivificação e vigorar o enfracamento e perfazimento. Na arborescência o vicejar da

viridência vindica uma atitude contemplante e envolvente que conjugue em consonância

o obverso, ou seja, ao observar o irrompimento do verdecer atentar que o dissolvente é

partícipe do mesmo. Do despetalar até a ultimação prima a presença de um liame

irrompível que não se entrelaça por um pontilhar linearizado na sucedaneidade da

fenomenalidade, mas em um conjurar entre o ser e o nada. Assim a despertez que zela

o vigente avizinha-se a jungir o desvigiar da soturnidade ao dormitivo como o florar e o

emurchecer avançam não somente na similitude do flechar e sim na simulcadência do

correspondido. Tal é o legislar no planisférico condicionante de nosso percebimento

que, entretanto, obnubila-se por um visionar divisório e disjuntivo corolário de um

modus vivendi fundado na partição entre o sensível e o inteligível. Se ao sensivo cumpre

transigir na determinação do que é perecível, no entanto, o condicionante físico carreia

consigo, qual um signo, um desígnio em seu designar. Isto significa que no cerne do

compassar entre o sensorial e o inteligível consigna-se um pacto coeterno que o fazer

visivo da poiesis adjaz em univalência. Não se exclui, portanto, do peremptório, do

terminativo e do condicionado o perenal, o superno e o intérmino.

202

A poética barrosiana adjunta aquilo que parece fugir a qualquer injunção.

Seja no vagaroso lesmar, no alvorejar de garças, no caminhante encaramujar, no

passaredo unissonante e em tudo que abocanha convizinha-se à vontade um dizer que o

poeta sequer ousa traduzir, mas simplesmente diligencia não descrever e sim

transcrever. Sem, contudo, sujeitar-se à tentação da cópia. Antes, remove de seu

observar a dissensão entre sujeito e objeto para objetar com um como/ver ao que se

impõe como separativo. Imperativo ao poeta, antes de tudo, antes de nada, antes de

antes, cumpre transverberar o que é suscetivo de se mostrar, de dar a ver, de indicar.

Perfazer um saber, através do fazer, sem exigir um assentimento ao conhecer que se

institui não como um re/velar mas como certificativo certificante de certezas. Diante

disto e do que a natura ensina no seu enunciar há que se emudecer para que a atenção

advirta-se para o silêncio, o repouso e a escuridade como parelha indissolvível do

soante, do movente e da resplandecência. E não como mera antonímia a dissociar.

Assim o compósito multifário que se batiza como natureza propicia o

deslinde em seu mostrar de um dizer que assinala uma parecença entre as oposições que

não se demarca por um mero assemelhar-se ou por uma eqüidade homogeneizante do

que é diferencial, mas por uma similaridade constituinte e intrínseca ao modo de ser

complementar das coisas. Tal é a lição a ser decifrada na escritura que se esconde em

cada criatura. Deste modo o criar poético condiz não com o esclarecimento no sentido

de desencantamento do mundo, mas com uma con/versão da inscrição secreta que a

natureza a/presenta em um re/criar que se satisfaz não em desfazer mas em fazer de

novo o mesmo sob o encantar das palavras. Ou seja, sob uma ótica do humano não em

sua instância prática, mas na equiponderância entre a essência e aparência. Se este

qualificar opositivo revela-se ainda tributário de um pensar estrito ao dicotômico no

qual um dos pólos demarca-se pela centralidade hierárquica, entretanto o fazer

203

barrosiano desinveste-se de tal convenção, pois que urde um entrelaçar entre os opostos

atremados em síntese. No aparecer da garça com/parece um con/graçar que aniquila

qualquer secção que se suponha entre o transcendente do supranatural e o condicionante

do fenomenal. Na poesia de Manoel de Barros pre/valece o re/unir a procriar em

profusão um outro perceber.

É a pura imaginação de um outro universo. Que vai corromper, irromper,

irrigar e recompor a natureza (LPC).

204

4.10- FINS

A poesia de Manoel de Barros não se traça pela linearidade direta entre dois

pontos, mas pelo desvio de uma curva, de um meandro, de um desenredo. Antes que

uma solução o que se pondera neste texto não se refere à negação da razão como vereda

viável, mas antes uma outra via que destrince a poesia através de um outro escrever. A

norma acadêmica p/reza pela cartilha oficial de um pensar metódico que diverge do

poetar. Não se arvora aqui, entretanto, um discurso que faça da poiesis a tarefa do

criticar. Menos que isto, insiste-se em um outro, diverso postular que não se confranja

nas margens de um medido especular. A palavra poética dissente do contrato entre a

nomeação ditada pelo uso e a coisa observada, pois se imiscui entre um e outro fator a

desmesura que converte em rarefação o que é apresentado como peso. Por isso há que se

pensar um outro dizer a poesia mais que um mero traduzir. Mesmo do filosofar que se

instaura pelo constante questionar ainda assim a poesia resiste a um equiparar, posto que

o estado poético não se institui pelo rigor lógico-analítico. Entretanto a palavra poética

tem por razão a desrazão na qual sentidos transmigram em camadas de palimpsestos

que corroem o dizer estável dos relatórios, das prescrições, dos boletins e das verdades.

Se não um istmo entre o poetar e o filosofar o que se postula é o desvio da mão única da

razão vitoriosa que nos impõe setas onde somente deveria haver interrogações,

parênteses e reticências...

205

5- INCONCLUDÊNCIA DE UM COMEÇAMENTO...

Após tudo isto o que resta? Um istmo, um átimo ou uma hemodiálise do

texto? A poesia se diz a si mesma ou a voz do leitor a traduz para si os seus conjuntos

de signos particulares? Como abarcar o universo de um poeta que desfaz o significado

das palavras com o revestir de sentidos até o desfalecimento destes sentidos? Há que se

curvar ante o fio retilíneo da razão pragmática e rígida ou pode-se palmilhar o curso

poético através de um recurso ao próprio discurso com que nos deparamos? Tentemos,

antes que a norma irrompa e nos interrompa...

Saber o mundo é menos uma conquista de certezas do que uma viagem

errante que, no entanto termina por incorporar ao desacerto da errância a certidão da

incerteza. Sem prestação de contas, apenas um contar incerto como devoção à

insensatez de cada dia. Sons em que se transladam os sentidos além destes. O silenciar

de sinos ressoa na cabeça e coração de quem se dispõe a se exilar dos dicionários, das

gramáticas e dos compêndios. Aí então se pode ouvir o rugir das pedras ao acordar, o

roncar da barriga da noite a devorar as migalhas do dia e o ronronar de cada pétala de

nuvem a arrastar o vento pela cauda para alcançarem chuva rezadeira na estação dos

miosótis. A regência da poesia privilegia não o portanto, nem o logo, muito menos o

daí, mas o isto de cada coisa que se apresenta. Não como representação diante do olhar

viciado pelo horizonte das letras, mas com a lente que vislumbre o que se descortina aos

relâmpagos e relumes nos interstícios das fímbrias do agora. Há que desaprender o

ofício do pensar como uma reta que se alcança somente pelo silogismo da lógica. Se o

Ocidente nos legou tal crença, assim há que se efetuar o exercício da descrença como

um anti-lema a se instaurar a cada crivo da certeza.

206

Então desinventemos. Se a palavra verdade significa conformidade com o

real, exatidão, realidade (segundo a voz p/rouca do dicionário) há ainda assim uma

mentira que inspira isto. Pois, há que se perguntar o que é o real e porque o conceito de

verdade associa-se à exatidão. Na inexatidão não medra a verdade? Verdade e realidade

apenas conjugam uma rima sem sentido? Como ensina o poeta: utilizar palavras ainda

não asiladas em algum idioma. Todos sabemos que uma linha é o percurso mais lógico

entre dois pontos, mas, no entanto somente o poeta sabe que o sapo engole auroras.

Assim como a régua que traça o vôo da libélula não tem índice numérico, ou que o

riscado do bordado da aurora é desenhado com a linha do horizonte a descosturar a

sutura entre a noite e o dia...

Tudo isto parece não condizer com o que se batiza como verdade, segundo

reza a certeza da exatidão. Esta se prega com o martelo da verdade. Porém esta abrange

também, e primordialmente, a esfera do inexato, do impreciso e do insensato. É no

delírio do verbo que se ausculta a cor dos passarinhos, e para isto o verbo há que delirar.

Transmigrar de um senso a outro é achar-se no reino da invenção para se investir de

algo diverso da razão. Assim se faz emergir então o inviso.

Então se pode entender a aflição ou o silêncio das pedras (este não tem

mesura), o cheiro das árvores ou o esplendor de se estar amanhecendo a pássaros. A

razão da régua não é a via do entendimento único das coisas, mas apenas condição de

aplicabilidade utilitária. Serem olhadas de azul: assim desejam as coisas. Poesia, antes

que poema tem menos por definição qualquer conceito razoável que a própria anti-

conceituação do poeta: planar além do alado. Isto é o elogio da vertigem sonhada por

Ícaro: planar além do limite que a mesura nos determina. Poetar é não ter plano de vôo

ou de carreira assegurados na rota precisa dos que têm tudo a perder. É preciso navegar

sob a vigência do impreciso.

207

A poiesis como produto do verbo em sua instância destituída das amarras de

todo regrar insere-se vez por outra nos domínios da prescrição e da rigidez normativas.

Aí urge o fazer do POETA: ou seja, o desmonte da fixidez em prol do desguarnecido,

do inventivo e da maleabilidade e fluidez constante. Assim há que semear na arididade a

florescência da poesia. O poeta é antes de tudo desinventor de práticas costumeiras do

mesmo caminhar. Instaura a cada instante um outro olhar, outro saber/sabor, outro

dimensionar.

Na clareza e certeza das idéias distintas a delinear a reta do horizonte do

Ocidente reina uma razão que se determina pelo juízo afirmado pelo conhecimento e

discernimento das coisas com vistas à sua aplicabilidade. Assim, o discurso que sustenta

tal ordem há que repousar sobre a linearidade e exigência de clareza. Exclui-se,

portanto, o obtuso que se infirma nas regiões do enigma. À lógica que busca soluções

não interessa o enigma nem o insolúvel, pois tal modo de entendimento coordena-se

segundo as regras de um pensar decifrador do encantamento. Porém, há coisas que se

iluminam pelo opaco. Ou seja, aonde o iluminismo esclarecedor, concedente da certidão

de maioridade da humanidade através do desencantamento do mundo com vistas à

operacionalidade, não avança além das suas fronteiras e demarca tudo como

obscuridade a poesia revela a face reversa da instância do inapreensível sob as

grades da lógica linear. O discurso da ciência se apropria das coisas com o propósito de

catalogar, aprisionar, delimitar, circunscrever, cercear, objetivar, afirmar, confirmar...

Para Manoel de Barros a nomeação científica empobrece a imagem, pois retira dela o é

da coisa para revesti-la com uma nomenclatura que a amarra a um cadeado a impedir o

viajar erradio.

Ao poeta basta o necessário de uma centelha de palavras para tecer a

tapeçaria em que borda o rascunho da poesia. Antes a vigência do aventurar do que a

208

pretensão da afirmação conclusiva do conhecimento instituído pelo raciocinar

hegemônico. Consigna-se a finitude breviloqüente do existir à vigência indelével do ser.

Se a ideologia, a ciência, o dicionário e a gramática limitam a língua insta então

instaurar o deslimite e o desarrazoado como procedimento do poetar a conceber um

pensar no qual o opositivo inconciliável entre o repouso e o movimento, o verso e o

reverso, o inteligível e o sensível, o viger e o derruir, a eclosão e o erodir, o ordinário e

o extraordinário, o usitado e o excelso, o anojoso e o aliciante, o sonante e o dissonante,

o condicionado e o incondicionado, o contínuo e o descontínuo, o temporal e o

intemporal, o velar e o desvelar se conciliem em uma unidade dual indissociável a

conviver no conjugar do vivente morrente que é atinente ao humano, in/distinto

HUMANO.

209

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