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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA A TEORIA POLÍTICA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS: Em direção a um liberalismo político para uma sociedade democrática bem- ordenada Dissertação de Mestrado Walter Valdevino Oliveira Silva Orientador: Prof. Dr. Nythamar H. F. de Oliveira Jr. Porto Alegre 2005

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

A TEORIA POLÍTICA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS:

Em direção a um liberalismo político para uma sociedade democrática bem-ordenada

Dissertação de Mestrado

Walter Valdevino Oliveira Silva

Orientador: Prof. Dr. Nythamar H. F. de Oliveira Jr.

Porto Alegre

2005

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

A teoria política da justiça de John Rawls:

Em direção a um liberalismo político para uma sociedade democrática bem-ordenada

Dissertação de Mestrado

Walter Valdevino Oliveira Silva

Dissertação para obtenção do título de Mestre em Filosofia (Ética e Filosofia Política), defendida dia 6 de julho de 2005. Banca: Prof. Dr. Nythamar H. F. de Oliveira Jr. (orientador) Prof. Dr. Thadeu Weber Prof. Dr. Luiz Fernando Barzotto Agência de financiamento: CNPq

Porto Alegre

2005

3

“It does me no injury for my neighbour to say there are twenty gods, or no god.”

Thomas Jefferson (1743-1826),

Notes on the State of Virginia

4

Em memória de José Valdevino da Silva (1930-2004), meu pai,

a quem devo tudo.

5

Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao professor Nythamar de Oliveira pela amizade e

acompanhamento ao longo desse período de dois anos. Seus seminários também tiveram

grande importância tanto para definir melhor meus objetivos na dissertação, quanto para

dar uma visão mais unificada de vários aspectos da filosofia.

Esse período não teria sido tão proveitoso se não fosse a estrutura do Programa de

Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS, que se destaca pela alta produção docente,

realização de alguns dos mais importantes eventos de filosofia do país, realização de

diversos seminários e interação permanente com Departamentos de Filosofia no exterior.

O financiamento através do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico (CNPq) foi essencial.

Por fim, agradeço a todos os amigos que, mais diretamente ou mesmo sem saber,

contribuíram para que eu superasse os momentos difíceis ao longo desse período.

6

ÍNDICE

Siglas Utilizadas....................................................................................................................07 Resumo..................................................................................................................................08 Introdução.............................................................................................................................09

Capítulo 1 — A justiça como eqüidade

1.1. Surgimento da justiça como eqüidade........................................................................19 1.1.1. Método de justificação de ações morais..........................................................19 1.1.2. O contratualismo rawlsiano.............................................................................24 1.1.3. O utilitarismo...................................................................................................31 1.2. A teoria da justiça como eqüidade.............................................................................37

1.2.1. O papel da justiça............................................................................................38 1.2.2. A estrutura básica da sociedade.......................................................................43 1.2.3. Os princípios da justiça...................................................................................46 1.2.4. A questão da liberdade....................................................................................49 1.2.5. A estabilidade de uma sociedade bem-ordenada.............................................51 1.2.6. O senso de justiça............................................................................................55

Capítulo 2 — O liberalismo político

2.1. Principais mudanças...................................................................................................59 2.2. Elementos fundamentais do liberalismo político.......................................................66 2.2.1. Concepção política de justiça..........................................................................68

2.2.2. Concepção política de pessoa..........................................................................70 2.3. A idéia de um consenso sobreposto...........................................................................75 2.3.1. O construtivismo.............................................................................................78 2.3.2. As características do consenso sobreposto......................................................80 2.4. A prioridade do justo sobre o bem.............................................................................86 2.5. A idéia de razão pública.............................................................................................91

Conclusão..............................................................................................................................95 Bibliografia...........................................................................................................................99

7

SIGLAS UTILIZADAS

Liberalismo – Rawls, John. Political Liberalism. New York: Columbia University

Press, 1993. Tradução utilizada: O liberalismo político. São Paulo: Ática,

2000.

Teoria – Rawls, John. A Theory of Justice (Edição revisada de 1975). Cambridge:

Harvard University Press, 1999. Tradução utilizada: Uma Teoria da

Justiça. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000 (4ª ed.).

8

RESUMO

Nos anos que se seguiram à publicação de Uma Teoria da Justiça (1971), a

produção do filósofo americano John Rawls (1921-2002) foi intensa tanto no sentido de

responder às críticas feitas à sua obra, realizando algumas mudanças em sua teoria e

aprofundando a idéia kantiana de sua filosofia moral, bem como, num momento posterior,

no sentido de redefinir a concepção moral da teoria da justiça, modificando-a em direção a

uma concepção estritamente política.

Assim, meu objetivo é expor quais mudanças na teoria da justiça como eqüidade

(justice as fairness) foram feitas, e de que forma foram feitas, durante as décadas de 1970,

1980 e 1990. Para tanto, tomo como tema de análise a questão da redefinição do caráter

moral da teoria da justiça (como tinha sido exposto em Uma Teoria da Justiça) para a

adoção de uma teoria simplesmente política, exposta de modo sistemático em O

Liberalismo Político (1993).

Acredito que, a partir desse tema, é possível ter uma melhor compreensão não

somente de aspectos particulares da teoria rawlsiana, mas principalmente obter uma visão

mais clara de um dos problemas fundamentais das democracias contemporâneas: como

atingir a estabilidade e a unidade de um sistema social em meio ao pluralismo de doutrinas

morais, religiosas e filosóficas que, segundo o próprio Rawls, deve ser uma característica

intrínseca de qualquer sociedade democrática.

9

INTRODUÇÃO

Publicada em 1971, Uma Teoria da Justiça,1 resultado de estudos iniciados cerca de

duas décadas antes,2 rapidamente muda o panorama da teoria moral e política, tornando-se

obra de referência imprescindível em qualquer debate atual sobre questões sociais, justiça,

ética, racionalidade e método filosófico. Durante os anos que se seguem, uma quantidade

imensa de artigos que discutem a obra é publicada. Paralelamente — em parte por causa de

alguns desses artigos, em parte devido às próprias mudanças históricas e à presença cada

vez maior da questão do pluralismo no debate político — Rawls passa a tentar corrigir

inconsistências de sua teoria da justiça como eqüidade. As várias conferências nas quais sua

teoria é reformulada são reunidas e publicadas em forma de livro em 1993, com o título de

O Liberalismo Político.3

Mais do que simplesmente uma evolução teórica isolada, as mudanças da teoria de

Rawls são clara conseqüência das transformações ocorridas na agenda dos debates políticos

contemporâneos, sobretudo nos Estados Unidos da América.

1 Rawls, John. A Theory of Justice (Edição revisada de 1975). Cambridge: Harvard University Press, 1999. Tradução utilizada: Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000 (4ª ed.). De agora em diante, citada apenas como Teoria. 2 Os principais artigos publicados por John Ralws antes de 1971 são: "Outline of a Decision Procedure for Ethics." The Philosophical Review (Abril de 1951), 60(2): 177-197, "Two Concepts of Rules." The Philosophical Review (Janeiro de 1955), 64(1): 3-32, “Justice as Fairness”, The Philosophical Review, vol. 57 (1958); “Distributive Justice: Some Addenda”, Natural Law Forum, vol. 13 (1968); “Constitutional Liberty and the Concept of Justice”, Nomos VI: Justice, org., C. J. Friedrich e John Chapman (Nova York, Atherton Press, 1963); “Distributive Justice”, Philosophy, Politics and Society, Third Series, org. Peter Laslett e W. G. Runciman (Oxford, Basil Blackwell, 1967); “The Justification o Civil Disobedience”, Civil Disobedience, org. H. A. Bedau (Nova York, Pegasus, 1969); “The Sense of Justice”, The Philosophy Review, vol. 62 (1963). Todos esses artigos podem ser encontrados conjuntamente em Rawls, John. Collected Papers (Org. Samuel Freeman). Cambridge: Harvard University Press, 1999. 3 Rawls, John. Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 1993. Tradução utilizada: O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000. De agora em diante, citado apenas como Liberalismo.

10

Desde a infância em Baltimore — que contava com uma população negra de cerca

de 40%, e também por acompanhar a luta de sua mãe em defesa dos direitos das mulheres

— Rawls toma consciência dos problemas da desigualdade e injustiça social.4 Durante a

década de 1960, período de intensa atividade intelectual, Rawls já estava dando aula na

Universidade de Harvard e presenciou a discussão sobre a Guerra do Vietnam. O

questionamento recaía sobre a validade das decisões de um governo, ou de uma classe

política, que ascendia ao poder devido à riqueza e que acabava por impor seus interesses

particulares nas decisões do governo, como a de ingressar na guerra.

Juntamente com essa intensa discussão política, os anos 1950 e 1960 presenciaram

uma considerável modificação nos debates sobre filosofia política, da qual Teoria pode ser

considerada como uma das obras sintetizadoras. A argumentação em favor dos direitos

passa a ocupar um lugar importante no debate acadêmico, sendo que a apropriação de

algumas idéias marxistas amplia as reivindicações não só por liberdades civis e políticas,

mas também por igual distribuição de renda e riquezas, educação, oportunidade de trabalho,

assistência médica e outras medidas com o objetivo de beneficiar os menos favorecidos.

De acordo com Amy Gutmann, Teoria pode ser vista, ao rejeitar a predominância

dos interesses de classe ou grupos, como uma tentativa de “integração da crítica socialista

na teoria liberal.”5 Isso estaria claro nos dois princípios de justiça, responsáveis pela

ordenação das principais instituições da sociedade, propostos por Rawls: o primeiro

princípio, o da igual liberdade, assegura as liberdades liberais básicas: liberdade de

pensamento, consciência, discurso, reunião, voto universal, de estar livre de ser preso sem

motivo e liberdade de poder concorrer a cargos públicos. Mas ausentes dessa lista estão as

4 Cf.: Richardson, Henry & Weithman, Paul. The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice. New York: Garland Publishing, 1999, p. 3-4. 5 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 17

11

liberdades de mercado capitalistas: direito de ter propriedade comercial, direito de se

apropriar do excedente de produção, direito de herança, etc. Como as partes contratantes da

teoria da justiça como eqüidade não conhecem sua riqueza e posição social, não sabendo se

são trabalhadores ou proprietários dos meios de produção, escolherão os princípios de

justiça apenas preocupadas com que todos, independente da classe social e da riqueza,

tenham as condições mínimas necessárias que garantam uma vida decente.

Por outro lado, o segundo princípio de justiça justifica somente desigualdades

econômicas e sociais que beneficiam os cidadãos menos favorecidos (princípio da

diferença) e também defende a igualdade eqüitativa de oportunidades e de chances de vida,

independente da renda e da classe social, e não somente a igualdade formal de

oportunidades. A conseqüência deste segundo princípio de justiça é que será necessário, por

exemplo, adotar esquemas de educação compensatória e evitar grandes desigualdades de

riquezas que, como se sabe, são o principal causador de desigualdades políticas e de poder.6

Mesmo assim, embora tentando compatibilizar a crítica socialista com ideais

liberais fundamentais, defendendo uma política mais igualitária do que a lockeana e, em

certo sentido, mais libertária do que o marxismo, Rawls é criticado por ambos os lados:

“Liberais que acreditam na distribuição de acordo com o mercado ou com o mérito individual (ou ambos) têm criticado Rawls por não considerar a liberdade de se apropriar dos frutos do próprio trabalho como estando entre as liberdades básicas. Socialistas que acreditam que

6 Em um interessante trecho sobre as implicações dos dois princípios de justiça, Philippe van Parijs compara a teoria de Rawls com a de Marx: “Essas reservas não impedem, entretanto, que Rawls seja, sob certos aspectos, mais ‘igualitarista’ que Marx, por exemplo. Desse modo, o princípio ‘A cada um segundo seu trabalho’, que, segundo Marx, deve reger a distribuição dos lucros sócio-econômicos no primeiro estágio da sociedade comunista, tolera as desigualdades ligadas à quantidade, à intensidade e talvez ao grau de qualificação do trabalho prestado, o que o princípio da diferença não necessariamente legitimaria. E o mesmo acontece com o princípio ‘A cada um segundo suas necessidades’, que corresponde ao estágio superior da sociedade comunista, se bem que aqui (...) as desigualdades de lucros sócio-econômicos podem ser concebidas como não fazendo mais do que compensar as desigualdades preexistentes e, portanto, como que se increvendo elas mesmas em uma perspectiva igualitarista.” (Fondements d’une théorie de la justice, p. 31).

12

a propriedade capitalista de empresas de larga escala seja uma forma pós-feudal de governo privado têm criticado Rawls por deixar a escolha entre propriedade privada e coletiva da indústria de longa escala aberta à argumentação empírica, ao invés de estabelecê-la sobre fundamentos morais”.7

Em 1975, Rawls revisa o texto original da primeira edição de Teoria para a

publicação da edição alemã.8 O núcleo central da obra é mantido, mas algumas mudanças

importantes são realizadas. A primeira delas diz respeito à questão da liberdade9 e a

segunda diz respeito à análise dos bens primários, que são as coisas que as pessoas

racionais desejam, independentemente de quaisquer outras coisas que desejam.10

Além dessas mudanças, resultantes de críticas feitas logo em seguida da publicação

de Teoria, na segunda metade da década de 1970 Rawls começa a perceber inconsistências

na Terceira Parte de sua obra, especificamente no que dizia respeito à questão da

estabilidade de uma “sociedade bem-ordenada”. Essa Terceira Parte não estaria coerente

com a visão da teoria da justiça como eqüidade em sua totalidade. A idéia de sociedade

bem-ordenada, da forma como exposta em Teoria, dava a entender que todos os cidadãos

endossariam a concepção de justiça como eqüidade como se ela fosse uma doutrina

filosófica abrangente (comprehensive), ou seja, uma doutrina que diz respeito a vários —

senão a todos — aspectos da vida humana: religiosos, morais, filosóficos, etc.

7 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 17 8 Eine Theorie der Gerechtigkeit. Frankfurt: Suhrkamp, 1975. 9 Essas mudanças foram feitas devido às críticas de H.L.A. Hart, publicadas no artigo “Rawls on Liberty and Its Priority”, University of Chicago Law Review”, vol. 40 (1973), p. 534-555. Rawls afirma, entretanto, que uma resposta mais adequada para as críticas de Hart pode se encontrada no artigo “Basic Liberties and Their Priority”, ("The Basic Liberties and Their Priority." In Sterling M. McMurrin, ed., The Tanner Lectures on Human Values, III (1982), p. 1-87. Salt Lake City: University of Utah Press; Cambridge: Cambridge University Press, 1982), tradução brasileira: “As liberdades básicas e sua prioridade”, in Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 141. 10 Como no caso da liberdade, Rawls afirma que somente no artigo “Social Unity and Primary Goods” (Collected Papers, p. 359) a questão dos bens primários será melhor esclarecida.

13

Não que essa inconsistência estivesse clara em Teoria — mesmo porque nesta obra

ainda não havia distinção entre doutrinas abrangentes e não-abrangentes —, mas o

problema era que a apropriação do contrato social, como aparece em Teoria, parecia fazer

parte de uma filosofia moral (também não havia distinção entre filosofia moral e filosofia

política). A teoria da justiça como eqüidade não era vista como uma concepção

estritamente política de justiça, ou seja, voltada somente para objetivos políticos. A

importante limitação ao campo do político não tinha sido feita, o que dava margem à

interpretação de que Rawls estaria elaborando uma teoria moral completa ou parcialmente

completa, que pudesse estabelecer diretrizes morais para variados aspectos da vida

humana; para além do campo político, portanto.

Como veremos detalhadamente no Capítulo 2, essa restrição ao campo do político é

o segundo grande motivo das críticas feitas contra o filósofo.11 Com as modificações em

sua teoria da justiça, Rawls passa a considerar seriamente a questão do pluralismo de

doutrinas religiosas, filosóficas e morais abrangentes existentes nos regimes democráticos

contemporâneos. Para ele, é preciso reconhecer que a existência deste “pluralismo

razoável” de doutrinas abrangentes é uma conseqüência normal do exercício da razão

humana em sociedades livres e democráticas. Seria muito pouco realista acreditar que os

cidadãos de uma mesma sociedade democrática constitucional defendessem uma única

doutrina abrangente. Por isso, o objetivo de Rawls é formular uma concepção de justiça

política para um regime democrático constitucional que possa ser endossada pelas diversas

doutrinas razoáveis existentes nesse regime, sem que essas mesmas doutrinas precisem ser

substituídas ou receber novos fundamentos.

11 O primeiro é sobre a concepção da posição original de escolha dos princípios de justiça.

14

Assim, reconhecer o fato do pluralismo razoável como fundamental para garantir a

estabilidade social é considerar uma questão que, para o filósofo, exerceu um papel de

pouco destaque na história da filosofia moral.12

Após essas reformulações, os questionamentos do liberalismo político passam a ser:

“... como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. Em outras palavras: como é possível que doutrinas abrangentes profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de um regime constitucional? Qual é a estrutura e o teor de uma concepção política que conquista o apoio de um tal consenso sobreposto?”13

Partindo desses questionamentos, gostaria de enfatizar dois aspectos importantes.

Um deles remete a uma questão central das democracias contemporâneas; o outro, à própria

história da filosofia, especificamente no que diz respeito ao desenvolvimento das

concepções liberais.

O primeiro aspecto relaciona-se às origens e implicações do que usualmente é

chamado de construtivismo político. Com a modernidade, e cada vez mais atualmente,

ganha força a idéia de que as instituições humanas e os princípios que as regem devem ser o

resultado — agora que não se depende mais da idéia de uma ordem superior, divina ou de

qualquer outra espécie — de uma construção, elaborada pelos cidadãos enquanto seres

autônomos e possuidores de razão. Por este motivo, Rawls está interessado em propor a

construção de uma base de justificação pública que seja amplamente aceita pelos cidadãos,

já que ela diz respeito a questões fundamentais, em relação às quais todos sabem que devem

opinar e ter um posicionamento. Percebe-se, portanto, a importância da necessidade de

12 Cf. Liberalismo, Introdução, p. 25. 13 Liberalismo, Introdução, p. 25-26.

15

distinção entre a razão pública, ou ponto de vista público, e as diversas razões ou pontos de

vista não-públicos.

Nesse sentido, Rawls confere importância central, como veremos no Capítulo 2, para

a distinção entre o razoável e o racional:

“... o liberalismo político, em vez de se referir à sua concepção política de justiça como correta, refere-se a ela como uma concepção razoável. Não se trata apenas de uma questão semântica, pois duas implicações decorrem disso. Em primeiro lugar, ‘razoável’ indica um ponto de vista mais limitado da concepção política, que aqui articula valores políticos apenas, e não todos os valores, ao mesmo tempo que apresenta uma base pública de justificação. Em segundo lugar, o termo indica que os princípios e ideais da concepção política baseiam-se nos princípios da razão prática, conjugados a concepções de sociedade e pessoa que advêm, também elas, da razão prática. Tais concepções especificam o arcabouço no interior do qual os princípios da razão prática se aplicam.”14

Serão razoáveis, assim, os princípios derivados de um procedimento adequado de

construção realizado por pessoas racionais submetidas a condições razoáveis. Esses

princípios constituirão a base para a discussão pública de questões políticas fundamentais.

Como espero que fique claro ao longo do texto, desde os primeiros artigos Rawls está

tentando elaborar um procedimento construtivista.

O segundo aspecto importante a ser enfatizado diz respeito à história da filosofia

política e ao surgimento e desenvolvimento do conceito de tolerância e pluralismo,

vinculados mais significativamente ao surgimento do período moderno que, segundo Rawls,

rompe com os ideais dos antigos principalmente depois de três processos históricos: 1) A

Reforma Protestante do século XVI, que levou ao pluralismo religioso; 2) O surgimento do

Estado moderno, que centralizou a administração e inicialmente é controlado por monarcas

absolutos; 3) O desenvolvimento da ciência moderna, que Rawls entende como “o

14 Liberalismo, Introdução, p. 28.

16

desenvolvimento da astronomia com Copérnico e Kepler, assim como a física newtoniana; e

também, é preciso enfatizar, o desenvolvimento da análise matemática (cálculo) por Newton

e Leibniz.”15

Assim, para Rawls:

“... a origem histórica do liberalismo político (e do liberalismo em geral) está na Reforma e em suas conseqüências, com as longas controvérsias sobre a tolerância religiosa nos séculos XVI e XVII. Foi a partir daí que teve início algo parecido com a noção moderna de liberdade de consciência e de pensamento. Como Hegel sabia muito bem, o pluralismo possibilitou a liberdade religiosa, algo que certamente não era intenção de Lutero, nem de Calvino. É claro que outras controvérsias também tiveram uma importância crucial, como aquelas versando sobre a limitação dos poderes dos monarcas absolutos por princípios adequados e de traçado constitucional, visando a proteger direitos e liberdades básicas.”16

Com a modernidade, portanto, a questão da convivência estável e harmoniosa em

sociedade passa a ser um problema de justiça política, e não mais um problema sobre o bem

supremo.

Embora preocupado, em Teoria, com propor alternativas para a resolução de

problemas políticos específicos, sobretudo aqueles relacionados ao conflito clássico na

história do pensamento liberal entre igualdade e liberdade, Rawls não dedica atenção

necessária ao fato do pluralismo de doutrinas abrangentes que, cada vez mais, constituem

um aspecto político fundamental das sociedades contemporâneas. Se a consideração desses

fatores, como veremos, levou a várias reformulações na teoria da justiça como eqüidade, por

outro lado, acredito que Rawls passa a elaborar uma visão muito mais coerente com, e

adequada às, sociedades democráticas contemporâneas.

15 Liberalismo, Introdução, p. 31. 16 Liberalismo, Introdução, p. 32.

17

Para concluir esta Introdução, gostaria de mencionar rapidamente um último aspecto

que, embora não seja analisado no texto com mais detalhes devido à sua abrangência, deve

ser considerado como um pressuposto para compreender a teoria rawlsiana e sobretudo as

críticas feitas em relação a Liberalismo (voltarei a esse ponto novamente na Conclusão).

Trata-se da apropriação que Rawls realiza da teoria kantiana. No conhecido §40 de Teoria

(A interpretação kantiana da justiça como eqüidade17) o filósofo pretende deixar claro que

sua concepção da justiça se baseia na noção de autonomia kantiana e nos principais aspectos

relacionados a ela, como a idéia de escolha racional, e de seres racionais iguais e livres.

Assim, a posição original de escolha dos princípios de justiça, juntamente com o véu de

ignorância — que priva as partes contratantes de qualquer conhecimento de sua situação

social, como classe, renda e riqueza — e demais restrições, estariam muito próximos da

doutrina de Kant “pelo menos quando se tem uma visão global de seus escritos sobre a

ética.”18 Nesse sentido, agir de acordo com os princípios de justiça escolhidos na posição

original seria equivalente a agir com base em imperativos categóricos, já que a descrição da

posição original seria equivalente ao ponto de vista do eu em si, ou nôumeno, no que se

refere ao significado de um ser racional igual e livre.

Essa apropriação da doutrina kantiana, sobretudo por eliminar as dicotomias entre

necessário e contingente, a forma e o conteúdo, a razão e o desejo, os nôumenos e os

fenômenos, sempre foi objeto de várias críticas. Com as modificações propostas em

Liberalismo, Rawls ainda mantém que sua teoria tem uma vinculação clara com a doutrina

kantiana. Continua, embora com algumas especificações, mantendo o vínculo apresentado

acima entre posição original e a doutrina kantiana, mas passa a dar mais ênfase para a idéia

17 Teoria, §40, p. 275-83. 18 Teoria, §40, p. 277.

18

de interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia, para a idéia de

construtivismo e para a importante distinção entre o razoável e o racional. A idéia de

prioridade do justo sobre o bem, que coloca Rawls na mesma linha de teóricos

deontológicos em que Kant se situa, também tem grande importância para compreendermos

em que sentido Rawls é um autor essencial nas discussões contemporâneas sobre

normatividade.

19

CAPÍTULO 1 – A justiça como eqüidade

1.1. Surgimento da justiça como eqüidade

1.1.1. Método de justificação de ações morais

Iniciar a leitura de Teoria sem possuir maiores referências sobre o contexto do

debate político americano ou sobre a trajetória teórica do autor antes de 1971 pode levar a

alguns estranhamentos. Se é verdade que Rawls passa a ter um amplo reconhecimento após

a publicação de Teoria, é preciso lembrar também que desde 1951 o filósofo já estava

publicando importantes artigos acadêmicos, interessado, por exemplo, nos debates sobre o

utilitarismo e o procedimentalismo.1

Não se tratando somente de reconstituir o percurso intelectual de Rawls, mas com o

objetivo de mostrar até mesmo que suas reflexões apresentadas em Liberalismo já

encontram a origem de sua formulação nos textos anteriores a 1971, é preciso entender de

que modo sua concepção particular de contrato social tomou forma até ganhar uma

elaboração mais definitiva em Teoria.2 Como afirma Henry S. Richardson, “seria

aconselhável, para qualquer tentativa de chegar a um inteiro entendimento da justiça como

1 Para referência a esses artigos, ver nota 2, p. 9. 2 Esse percurso fica claro através da própria explicação de Rawls no prefácio à primeira edição de Teoria: “Ao apresentar Uma Teoria da Justiça, tentei reunir em uma visão coerente as idéias veiculadas nos artigos que escrevi ao longo dos últimos doze anos aproximadamente. Todos os tópicos centrais desses artigos são retomados, de modo geral com mais detalhamento. As outras questões necessárias para completar a teoria também são discutidas. A exposição se divide em três partes: A primeira parte cobre, com muito maior elaboração, o mesmo terreno de “Justice as Fairness” [“Justiça como eqüidade”] (1958) e “Distributive Justice: Some Addenda” [“Justiça distributiva: alguns adendos”] (1968), enquanto os três capítulos da segunda parte correspondem, respectivamente, mas com muitos acréscimos, aos tópicos de “Constitutional Liberty” [“Liberdade constitucional”] (1963), “Distributive Justice” [“Justiça distributiva”] (1967) e “Civil Disobedience” [“Desobediência civil”] (1966). O segundo capítulo da última parte cobre os temas de “The Sense of Justice” [“O senso de justiça”] (1963). Exceto em uns poucos lugares, os outros capítulos dessa parte não são paralelos aos ensaios publicados. Embora as idéias principais sejam em grande parte as mesmas, tentei eliminar inconsistências e completar e fortalecer o argumento em muitos pontos.” (Teoria, Prefácio, p. XXI)

20

eqüidade, considerar a evolução dos primeiros pontos de vista de Rawls e o contexto no

qual eles foram originados.”3

Desde o artigo “Outline of a Decision Procedure for Ethics”, de 1951, Rawls se

mostra interessado em elaborar alguma forma de procedimentalismo para resolver questões

morais.4 Como veremos, a intenção procedimentalista de Rawls é clara, já indicando idéias

que, depois, serão expressas através da concepção de equilíbrio reflexivo. Como afirma

Amy Gutmann, Rawls argumentará que “não temos melhor modo de justificar princípios

que satisfazem padrões mínimos de razão moral (consistência lógica, generalidade, e

assim por diante) do que traduzindo os princípios em práticas sociais e julgando se as

práticas são consistentes com nossas convicções morais”.5 Embora deslocando o foco de

sua teoria da moral para a política, Rawls tentará sempre se manter dentro desta perspectiva

teórica.

Com este objetivo, a intenção de Rawls neste artigo de 1951 é investigar se

“existe um procedimento de decisão razoável que seja suficientemente forte, pelo menos em alguns casos, para determinar a maneira pela qual interesses concorrentes deveriam ser julgados, e, em instâncias de conflito, um interesse ter preferência sobre outro; e, além disso, pode a existência desse procedimento, como também sua racionalidade, ser estabelecido por métodos racionais de investigação?”6

Ou seja, o objetivo é verificar a possibilidade de constituição de um método baseado

em princípios racionais que seja capaz de avaliar se decisões morais são válidas ou não.

Para tanto, Rawls elabora um “procedimento razoável” ou “método razoável”. O que de

fato é interessante neste artigo, sobretudo para compreendermos as formulações rawlsianas 3 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. ix. 4 Em Teoria, ao fazer algumas considerações sobre a teoria moral (§9, p. 49), ou seja, considerações sobre como funciona nosso senso de justiça, Rawls segue o ponto de vista geral de “Outline of a Decision Procedure for Ethics”, como ele mesmo deixa claro em nota (Teoria, p. 663, n. 24). 5 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 20. 6 Collected Papers, p. 1. Todas as citações dessa obra são traduzidas por mim.

21

posteriores, é a aproximação entre o seu procedimento razoável e o método da lógica

indutiva, o mesmo que estabelece os critérios para verificar a objetividade do conhecimento

científico.7 Neste caso, Rawls quer elaborar um procedimento semelhante, baseado nos

mesmos critérios, para verificar a objetividade das regras morais.

O primeiro passo na elaboração desse procedimento razoável é a escolha da classe

de juízes morais competentes. Um juiz moral competente deveria possuir quatro

características: 1) ter um certo grau de inteligência que esteja dentro de um padrão de

normalidade; 2) ter o conhecimento do funcionamento das coisas à sua volta e das

conseqüências das ações de modo geral, bem como das peculiaridades dos fatos que irá

julgar; 3) ser um homem razoável, sendo que isso significa a) basear-se em critérios da

lógica indutiva para saber em que acreditar, b) mostrar interesse em considerar todos os

lados das questões que lhe são apresentadas, c) considerar sempre a possibilidade de rever

sua posição no caso da apresentação de evidências adicionais e d) estar atento para não

ceder a inclinações pessoais; 4) ter um conhecimento complacente dos interesses humanos

que levam à exigência de tomar decisões morais.8

Rawls também toma cuidado para deixar de lado aspetos ideológicos, ou seja, juízes

morais competentes devem evitar que ideologias — que são monopólio do conhecimento e

da verdade nas mãos de algum grupo, raça, instituição ou classe social — influenciem suas

decisões.

Colocados esses pressupostos, é importante destacar que Rawls, desde este artigo de

1951, está preocupado com o problema da circularidade, que depois terá que enfrentar e

7 Vale a pena lembrar uma importante frase de Rawls no início de Teoria: “A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento” (Teoria, §1, p. 3). 8 Cf. Collected Papers, p. 2.

22

que, portanto, é um aspecto relevante a ser considerado para entender o desenvolvimento de

sua teoria da justiça:

“A competência é determinada somente pela posse de certas características, algumas das quais podem ser ditas capacidades e realizações (inteligência e conhecimento), enquanto outras podem ser ditas virtudes (portanto, as virtudes intelectuais de racionalidade). Ficará claro em seções posteriores por que não podemos definir um juiz competente, pelo menos no começo de nossa investigação, como alguém que aceita certos princípios. A razão é que desejamos dizer de alguns princípios para decidir interesses que um fundamento para aceitá-los como princípios razoáveis é que juízes competentes parecem aplicá-los intuitivamente para decidir questões morais. Obviamente, se um juiz competente fosse definido como alguém que aplica esses princípios, esse raciocínio seria circular. Assim, um juiz competente não deve ser definido em termos do que diz ou por quais princípios usa.”9

Estabelecidas as condições necessárias para avaliar a classe dos juízes morais

competentes, o próximo passo é estabelecer a classe dos julgamentos morais ponderados.

Para tanto, certas características deverão ser cumpridas: 1) os juízes morais não podem ser

punidos pelas decisões que tomam; 2) a integridade do juiz deve ser mantida e ele não pode

obter ganhos com sua decisão (pois o medo e a parcialidade prejudicam decisões justas); 3)

os casos apresentados devem ser tais que envolvam somente conflitos de interesse reais,

excluindo casos hipotéticos. Isso garante que os casos sejam aqueles que costumam surgir

na vida comum e sobre os quais as pessoas tiveram a capacidade de refletir; 4) o juiz deve

ter acesso a todos os fatos sobre o caso, podendo ouvir todas as partes envolvidas; 5) o juiz

deve ter certeza sobre sua decisão, não pode estar em dúvida sobre ela; 6) o julgamento deve

ser estável, ou seja, em outras épocas juízes morais devem ter tomado as mesmas decisões

para casos similares; 7) o juiz deve aplicar intuitivamente os princípios éticos, sendo que um

julgamento intuitivo não significa impulsividade ou instintividade, mas uma reflexão sobre

9 Collected Papers, p. 4.

23

o caso e sobre os possíveis efeitos de decisões diferentes e até mesmo a aplicação do senso

comum.10

Como podemos ver ao longo de todo o artigo, a intenção de Rawls é fazer com que

se criem certas restrições que tornarão as decisões morais justas: formulação clara das

decisões, semelhança entre decisões sobre questões semelhantes, resultados baseados em

discussão clara e aberta dos fatores em jogo, e, sobretudo, necessidade de que se trabalhe

passo a passo considerando a possibilidade de efetivação prática — sempre, é claro, com a

intenção de comprovar a razoabilidade de princípios éticos do mesmo modo que se

comprova a razoabilidade de critérios indutivos. O pressuposto aqui é que, se os homens

têm a capacidade de distinguir o certo do errado através do método indutivo aplicado nas

ciências, eles também terão esta mesma capacidade para distinguir o verdadeiro do falso em

julgamentos morais.

Além disso, um julgamento moral em um caso particular só poderá ter sua

racionalidade verificada se estiver de acordo com um princípio justificável ou conjunto de

princípios justificáveis. Embora Rawls esteja tratando aqui somente de julgamentos para

ações morais, é clara a semelhança deste procedimento com a adoção dos princípios de

justiça em Teoria. São oito os princípios de justiça propostos,11 todos eles procurando

seguir as normas da lógica indutiva e especificando restrições.

Por fim, Rawls conclui o artigo lembrando que o processo por ele descrito não pode

ser encarado como um “modo de descobrir princípios éticos justificáveis”,12 pois não

existem métodos precisos para realizar tal tarefa. Para ele, pressupor isso seria muita

10 Collected Papers, p. 5-6. 11 Cf. Collected Papers, p. 14-15. 12 Cf. Collected Papers, p. 18.

24

ingenuidade. O que ele propõe, então, é que o processo seja utilizado de maneira inversa,

ou seja, para justificar julgamentos feitos em determinados casos, e não como um método

que estabeleça critérios para que se realize um julgamento justo. Assim, se alguém fosse

justificar sua ação em determinado caso, deveria mostrar que ela pode ser explicada pelos

princípios da justiça e ainda estar de acordo com o maior número possível de circunstâncias

expostas por Rawls. Em outras palavras, o procedimento proposto no artigo deveria ter

como objetivo principal ser uma medida para saber se determinadas decisões estariam

dentro dos padrões necessários para serem consideradas morais. Como veremos mais

adiante, esse aspecto do procedimentalismo rawlsiano é fundamental para compreendermos

a intenção do autor ao elaborar seu contrato social e a teoria da justiça como eqüidade

enquanto um procedimento hipotético que pode ser evocado a qualquer momento, por

qualquer pessoa racional, para julgar o quanto uma sociedade está próxima ou afastada dos

princípios de justiça.

1.1.2. O contratualismo rawlsiano

Por que ter iniciado com essa exposição dos objetivos de Rawls em seu artigo de

1951? A razão disso ficará clara a partir do destaque de alguns tópicos dos artigos “Justice

as Fairness” (1958), “Constitucional Liberty and the Concept of Justice” (1963), “The

Sense of Justice” (1963) e “Distributive Justice” (1967): mostrar que, progressivamente,

Rawls reformula sua concepção do que seria uma situação ideal — e, portanto, justa — de

estabelecimento, primeiro, de juízos morais e, depois, de princípios de justiça.

Como veremos, essas reformulações são feitas no sentido de aumentar cada vez

mais as restrições impostas às partes que escolherão os princípios justos para regular o

25

funcionamento de uma sociedade. Com isso, Rawls chegará à elaboração de uma posição

original totalmente abstrata, onde as partes estarão submetidas a um véu de ignorância

limitador do seu conhecimento a respeito de todos os fatos particulares de suas vidas (que,

num sentido kantiano, poderiam fazer com que elas tomassem decisões heterônomas). A

originalidade dessa formulação teórica conferirá grande força à Teoria. Mais do que isso,

apesar das modificações propostas em Liberalismo, a posição original será mantida na

teoria liberal de Rawls como fase indispensável para o estabelecimento dos princípios de

uma sociedade democrática justa e estável.

Em “Justice as Fairness”, o objetivo geral de Rawls é mostrar que a idéia

fundamental do conceito de justiça é a eqüidade, e que, portanto, o utilitarismo não daria

conta desse aspecto, impasse que poderia ser solucionado recorrendo a uma teoria do

contrato social. Nesse sentido, Rawls chama atenção para o fato de estar interessado, ao

contrário do proposto em “Outline of a Decision Procedure for Ethics”, somente na justiça

enquanto virtude de instituições sociais, ou o que ele chama de práticas,13 e não mais

enquanto justiça de ações morais particulares. Nota-se, portanto, um primeiro deslocamento

da teoria de Rawls no sentido de restringir o âmbito de aplicação de sua construção

procedimentalista, ou seja, passando a considerar que o procedimentalismo, para ter

sucesso, precisa ser aplicado a âmbitos limitados. Encontraremos essa restrição elaborada

mais fortemente quando Rawls especificar que sua teoria da justiça tem como objetivo

somente a estrutura básica da sociedade.

13 “Uso a palavra ‘prática’ [practice] em todos os lugares como uma espécie de termo técnico significando qualquer forma de atividade especificada por um sistema de regras que define cargos, funções, mudanças, penalidades, defesas e assim por diante, e que dá a estrutura para uma atividade. Como exemplos, pode-se pensar em jogos e rituais, julgamentos ou parlamentos, mercados e sistemas de propriedade.” (Collected Papers, p. 47),

26

Estabelecido isso, Rawls passa diretamente para a formulação dos dois princípios de

justiça:

“primeiro, cada pessoa que participa de uma prática ou é afetada por ela tem um direito igual à liberdade mais extensa compatível com uma igual liberdade para todos; e segundo, desigualdades são arbitrárias a menos que seja razoável esperar que elas funcionarão para a vantagem de todos e — dadas as posições e cargos que elas atribuem ou os cargos e posições que podem ser ganhos a partir delas — são abertos a todos.”14

Vemos, portanto, a primeira formulação dos clássicos princípios de justiça que serão

a estrutura de Teoria, publicada três anos depois. Embora um pouco diferentes das

posteriores formulações elaboradas por Rawls, os dois princípios sempre irão manter

praticamente o mesmo conteúdo.

O importante aqui, entretanto, não são tanto as particularidades dos dois princípios

de justiça, mas constatar as condições que Rawls elabora para a escolha dos dois princípios.

A primeira característica dessa primeira formulação de posição original é a de que seja

imaginada “uma sociedade de pessoas entre as quais um certo sistema de práticas já esteja

bem estabelecido”15 e que estas pessoas sejam mutuamente auto-interessadas quando

participam de práticas comuns. Além de mostrar que Rawls já pressupõe algo que terá um

papel fundamental na sua formulação posterior da teoria da justiça como eqüidade (o mútuo

auto-interesse), essa primeira característica mostra que, diferentemente de Teoria, ainda não

se trata de uma situação abstrata e hipotética. Aliás, é justamente o caráter histórico e

fictício do contrato social que Rawls quer evitar neste artigo de 1958.16

14 Collected Papers, p. 48. 15 Collected Papers, p. 52. 16 Cf. Collected Papers, p. 59.

27

Rawls — ainda claramente seguindo os parâmetros de “Outline of a Decision

Procedure in Ethics” — estabelece que as pessoas dessa sociedade devem ser racionais, ou

seja:

“elas conhecem seus próprios interesses mais ou menos de modo preciso; elas são capazes de prever as conseqüências possíveis de adotar uma prática no lugar de outra, elas são capazes de aderir a um curso de ação, uma vez que tenham decidido por isso; elas podem resistir a tentações momentâneas e às seduções do ganho imediato; e o mero conhecimento ou percepção da diferença entre sua condição e aquelas dos outros não é, dentro de certos limites e em si, uma fonte de grande descontentamento.”17

Para garantir o convívio pacífico dessas pessoas racionais em sociedade, também é

preciso pressupor que elas possuam interesses e necessidades similares ou complementares e

que não haja grandes diferenças de poder e habilidades entre elas.

Nesta primeira formulação da situação de escolha dos princípios da justiça, estes

serão escolhidos quando as pessoas racionais discutirem sobre o funcionamento das

instituições estabelecidas de sua sociedade, sendo que naturalmente do fato da cooperação e

da necessidade de reciprocidade surgiriam restrições: “as restrições que assim surgiriam

podem ser pensadas como aquelas que uma pessoa teria em mente se estivesse elaborando

uma prática na qual seu inimigo devesse lhe atribuir o seu lugar.”18

A idéia de Rawls, ao elaborar essa situação de escolha dos princípios de justiça, é a

de que, para se ter uma moralidade, é necessário o reconhecimento de princípios imparciais,

que limitem ou refreiem os interesses particulares: “os princípios de justiça podem, então,

ser vistos como os princípios que surgem quando os refreamentos de ter uma moralidade

são impostos a partes nas circunstâncias típicas de justiça”.19

17 Collected Papers, p. 52. 18 Collected Papers, p. 54. 19 Collected Papers, p. 55.

28

Devido às características dessa posição geral (general position) de escolha dos

princípios de justiça, Rawls dá ênfase ao que ele chama de dever prima facie (prima facie

duty)20 e ao jogo justo (fair play), ambos relacionados com a capacidade de reconhecer as

outras pessoas também como portadoras de interesses e sentimentos similares, sobretudo

quando engajadas em atividades conjuntas.

Já em “Constitucional Liberty and the Concept of Justice”, de 1963, Rawls passa a

deixar claro que seu interesse ao falar de justiça é considerá-la enquanto se aplica somente

a instituições políticas, ou seja, sistemas de regras reconhecidas publicamente que definem

cargos e posições, direitos e deveres, privilégios e penalidades, e que dão forma e estrutura

para a atividade social. Não se trata mais, portanto, da justiça aplicada a pessoas

particulares e suas ações. Percebe-se, neste artigo, uma separação mais clara ainda das duas

esferas, sobretudo porque Rawls está interessado em discutir somente as liberdades

constitucionais fundamentais e sua justificação.

Neste artigo, Rawls ainda mantém as principais características da situação de

escolha dos princípios de justiça apresentadas em “Justice as Fairness”: um procedimento

no qual pessoas racionais (com as características de racionalidade já apresentadas),

mutuamente auto-interessadas, escolhem os princípios que deverão coordenar um sistema

de práticas já estabelecido. A diferença, entretanto, está nas condições que passam a ser

formuladas para que as pessoas proponham seus princípios de justiça: é necessário que cada

parte possa propor livremente seus princípios, mas levando em conta os princípios dos

outros, sendo que todos devem estar cientes de que deverão seguir os princípios acordados.

20 “...se os participantes de uma prática aceitam suas regras como justas, e, portanto, não têm nenhuma queixa a apresentar contra ela, surge então um dever prima facie (e um correspondente direito prima facie) das partes em relação umas às outras de agir de acordo com a prática quando elas a adotam para ser cumprida” (Collected Papers, p. 60).

29

Nesse sentido, o primeiro princípio de justiça seria escolhido porque não haveria modo de

se chegar a um acordo que permitisse que cada um ou alguns recebessem mais vantagens;

todos escolhem, portanto, como princípio inicial, o princípio de igual liberdade.

Já em favor da aceitação do segundo princípio, Rawls desenvolve uma

argumentação mais complexa com o objetivo de mostrar que, se existem desigualdades

sociais que funcionam como razão para promover maiores esforços dos cidadãos, essas

desigualdades seriam aceitas, desde que as vantagens decorrentes dessa situação promovam

o ganho de todos, e não somente de alguns.

Aqui, Rawls recorre à possível situação hipotética na qual as pessoas

desconheceriam suas habilidades e talentos. Seu objetivo é mostrar por que um sistema de

casta não seria escolhido como princípio estruturador da sociedade, caso as pessoas

estivessem escolhendo os princípios sem saber que lugar ocupariam posteriormente nessa

sociedade. Se as pessoas desconhecessem seus talentos e habilidades mas, mesmo assim,

por alguma razão, escolhessem o sistema de castas, a chance de pertencerem a uma casta

mais alta seria bastante reduzida devido simplesmente ao fator numérico (poucos

indivíduos nas castas mais privilegiadas e muitos nas castas inferiores); por outro lado, se

elas conhecessem seus talentos e habilidades, escolhendo esse sistema de castas, também

seria grande a chance de pertencerem a uma casta inferior e, portanto, de não serem capazes

de utilizar essas habilidades para ascender socialmente. Em ambos os casos, as partes

seriam levadas, como única alternativa, a escolher uma sociedade aberta (open society), de

acordo com o segundo princípio de justiça.

30

Como vemos, a abstração de desconhecer talentos e habilidades é apresentada aqui

somente como contra-argumento a um possível questionamento sobre a escolha do segundo

princípio de justiça, e não como integrante do próprio processo de escolha.21

Já em 1963, no artigo “The Sense of Justice”, Rawls faz uma longa consideração

sobre o que leva as pessoas a cooperarem socialmente e a seguirem os dois princípios de

justiça escolhidos por elas mesmas. Para tanto, realiza uma contrução psicológica

(psychological construction) procurando mostrar a importância dos sentimentos morais,

dos laços de amizade, afeição e confiança mútua, e destacando a necessidade de que os

cidadãos possuam a capacidade de ter um senso de justiça.

É neste artigo que Rawls passa a formular pela primeira vez a posição original

efetivamente como um procedimento de abstração submetido às restrições que ele

defenderá até seus últimos textos:

“Nesta posição assume-se que há uma ausência de informação; em particular, assume-se que as partes não conhecem sua posição social, nem conhecem seus talentos e habilidades peculiares — ou seja, seus dons inatos. Em suma, elas não sabem se foram bem sucedidas na loteria natural. (...) Assume-se que as partes na posição original sejam pessoas morais abstraídas de certos tipos de conhecimento sobre si e sua situação.”22

Em 1967, no artigo “Distributive Justice”, no qual Rawls desenvolve algumas

implicações do artigo “Justice as Fairness”, a expressão véu de ignorância é adotada pela

primeira vez como parte essencial da construção hipotética da posição original e com o

objetivo de se aproximar da formulação kantiana do imperativo categórico:

21 Segundo Rawls, “no caso das características básicas do sistema social em que cada um inicia (a constituição e os principais sistemas econômicos e sociais), os dois princípios devem ser satisfeitos. Na ausência de decisões reais de pessoas racionais sob condições de igual liberdade, deve-se se guiar por aqueles princípios que se pode mostrar que pessoas racionais, quando submetidas às restrições da moralidade, reconheceriam. Os princípios de arranjos hipotéticos com os quais as pessoas poderiam concordar sob condições de riscos reais são irrelevantes” (Collected Papers, p. 85, grifo meu). 22 Collected Papers, p. 113.

31

“O véu de ignorância impede qualquer um de ter vantagem ou desvantagem devido às contingências da classe social e da fortuna; e, portanto, os problemas de barganha que surgem na vida diária devido à posse desse conhecimento não afetam a escolha dos princípios. Pois a doutrina do contrato, a teoria da justiça e, sem dúvida, a própria ética são parte da teoria geral de escolha racional, um fato perfeitamente claro na sua formulação kantiana.”23

1.1.3. O utilitarismo

Antes de passar para uma exposição do conteúdo de Teoria que possa tornar

inteligível o motivo pelo qual Rawls, alguns anos após a publicação da obra, afirma haver

inconsistências relativas à estabilidade na Terceira Parte, gostaria — ainda como

introdução, mas também já adiantando aspectos importantes da obra — de fazer algumas

considerações sobre o utilitarismo. Rawls não avalia em detalhes nem a evolução da teoria

utilitarista nem seus principais autores, somente toma como objeto de crítica a idéia

utilitarista geral de que uma sociedade bem-ordenada seria aquela cujas instituições

funcionam de modo a atingir o maior saldo líquido de satisfação resultante da soma das

participações individuais de todos os seus membros.24 É importante ficar claro a razão pela

qual Rawls toma o utilitarismo como objeto de crítica: para ele, obviamente não é o caso

que a teoria utilitarista é dominante no mundo anglo-saxão porque a maioria das pessoas

aderiu a ela simplesmente, mas pelo fato de que todas as tentativas teóricas de explicação

23 Collected Papers, p. 132. 24 Em nota (Teoria, p. 25, nota 9, remetendo à página 659), Rawls cita os principais autores e obras utilitaristas clássicos em oposição aos quais ele está escrevendo. São eles: Henry Sidgwick, com The Method of Ethics (7ª ed. Londres, 1907), Principles of Political Economy (Londres, 1883) e Outline of the History of Ethics (5ª ed. Londres, 1902); A. C. Pigou, The Economics of Welfare (Londres, Macmillan, 1920); Shaftsbury, com An Inquiry Concerning Virtue and Merit (1711); Hutcheson, com An Inquiry Concerning Moral Good and Evil (1725); Hume, com A Treatise of Human Nature (1739), e An Inquiry Concerning the Principles of Morals (1751); Adam Smith, com A Theory of the Moral Sentiments (1759); Bentham, com The Principles of Morals and Legislation (1789); J. S. Mill, com Utilitarianism (1863); Edgeworth, com Mathematical Psychics (1888). Além dos autores clássicos, Rawls também cita, nessa mesma nota já mencionada, comentadores contemporâneos da tradição utilitarista.

32

da moralidade caíram em alguma espécie de utilitarismo. Essas tentativas certamente

receberam muitas críticas, mas nenhuma consistente o suficiente para enfraquecer seus

argumentos principais. Como exemplo recente não de teoria explicativa da moralidade, mas

de adoção de critérios com justificação utilitarista, temos, após os ataques de 11 de

setembro de 2001, várias tentativas da parte do governo americano de restringir as

liberdades básicas dos cidadãos em nome do “benefício de toda a sociedade”.

Como continuaremos a ver, Rawls é um contratualista e quer, com isso, deixar

claro que sua posição é contrária a qualquer tipo de teoria teleológica ou intuicionista. Se

isso ficou claro em Teoria, as mudanças realizadas posteriormente em Liberalismo abriram

espaço para críticas que afirmam que Rawls acabou por enfraquecer, como um todo, sua

argumentação contra o utilitarismo, que seria mais consistente na obra de 1971 — mesmo

que Rawls sempre tenha se mantido na posição contrária ao utilitarismo, no campo da

teoria contratualista deontológica.25

Entretanto, é preciso notar que a intenção principal de Rawls em Teoria é elaborar

uma teoria que dê conta da distribuição desigual das vantagens da cooperação social —

desde direitos e liberdades, até ocupação de cargos e posições e, principalmente, rendas e

riquezas. Nesse sentido, o embate de uma teoria deontológica contra outra teleológica

(utilitarismo defendendo a utilidade como critério de escolha) é evidente. Isso não ocorre

com a mesma intensidade nas discussões levantadas em Liberalismo, obra na qual o

filósofo dá como pressuposta a escolha dos princípios de justiça (e, portanto, como

25 “... o utilitarismo é uma teoria teleológica ao passo que a justiça como eqüidade não o é. Por definição, portanto, a segunda é uma teoria deontológica, que ou não especifica o bem independentemente do justo, ou não interpreta o justo como maximizador do bem. (Deve-se notar que as teorias deontológicas se definem como não teleológicas, e como entendimentos que não caracterizam a justeza de instituições e atos independentemente de suas conseqüências. Todas as doutrinas éticas merecedoras de nossa atenção levam em consideração as conseqüências no julgamento da justeza. Aquela que não o fizesse seria simplesmente irracional, inservível). A justiça como eqüidade é uma teoria deontológica no segundo sentido.” (Teoria, §6, p. 32,).

33

pressuposta toda a justificativa anti-utilitarista já exposta em Teoria). Nesta obra, Rawls

está interessado na questão da tolerância e com o fato do pluralismo razoável de

concepções morais, religiosas e filosóficas de uma democracia constitucional, ou seja, o

centro do debate passa a ser a questão consenso político e não mais — ou pelo menos não

com a mesma ênfase — a questão da justiça distributiva.

Já em 1955, no artigo “Two Concepts of Rules”, Rawls deixa clara sua relação com

a teoria utilitarista. Nas décadas anteriores ao início do esboço das principais idéias

apresentadas de forma sistemática em Teoria, o utilitarismo tinha grande influência dentro

e fora do meio acadêmico. Mas ainda existia uma resistência daqueles que defendiam que

os direitos individuais não poderiam ser relegados a segundo plano em troca de se atingir a

maximização dos benefícios sociais (o que, segundo Rawls, acaba por ser a conseqüência

inevitável de todas as teorias utilitaristas). Entretanto, essa resistência era desarticulada e

não apresentava argumentos filosoficamente consistentes. Além disso, os defensores dos

direitos individuais também não encontravam possibilidade de diálogo com outro

importante grupo, o dos marxistas, que, de forma geral, tinham a tendência — o que

provavelmente tenha sido um dos maiores equívocos desse movimento — de vincular até

mesmo os direitos fundamentais do homem (em oposição ao que Marx chama de “direitos

do cidadão”) com a luta pelo “interesse de classe da burguesia”.

Mas, a partir da década de 1950, o pensamento político na academia muda, segundo

Amy Gutmann, em três sentidos:

“primeiro, a maioria dos defensores dos direitos aproveita parte da crítica marxista e defende não apenas a tradicional lista de liberdades civis e políticas, mas também uma distribuição mais igual de renda, riqueza, educação, oportunidade de trabalho, assistência médica, e

34

outros bens essenciais para garantir o bem-estar e a dignidade dos desprovidos. Segundo, muitos filósofos políticos proeminentes passam a ser teóricos dos direitos. O utilitarismo está em toda a parte na defensiva. Terceiro, a grande teoria política está novamente viva na academia.”26

Para esse comentador, a obra de Rawls, além de fazer parte dessa mudança, é uma

de suas principais inspiradoras. A intenção de Rawls, de acordo com a interpretação de

Michel Meyer, é a de corrigir as falhas do marxismo e do utilitarismo, que tentaram sem

sucesso elaborar critérios de justiça sócio-econômica:27

“Ele [Rawls] se insere entre o marxismo que fala negativamente da justiça, dizendo o que ela não é o que deveria ser, sem nos dizer, por outro lado, como ela poderia ser o que deveria ser, e o utilitarismo, que, embora mais concreto na sua aproximação de um optimum de bem-estar coletivo, trata a justiça sem se preocupar muito com as falhas nem mesmo com a igualdade que não seja apenas formal”.28 Como já destacamos, o primeiro princípio da justiça dá prioridade para assegurar

liberdades básicas, mas não estabelece liberdades capitalistas de mercado, como o direito a

ter bens de produção, a se apropriar do trabalho alheio etc. Já o segundo, dividido em duas

partes, defende que as desigualdades sociais e econômicas só são justificáveis se

maximizarem os benefícios dos menos privilegiados e se houver igualdade justa de

oportunidade para todos, que é uma exigência maior do que simplesmente a de “carreiras

abertas a talentos”, defendida pelo liberalismo clássico; ou seja, para que ela seja cumprida

é preciso limitar de alguma forma as desigualdades econômicas e promover esquemas

compensatórios, como, por exemplo, na educação.

26 The philosophy of Rawls — Vol. 1. Development and Main Outlines of Rawls's Theory of Justice, p. 16. 27 Para uma tentativa de aproximação entre Rawls e Marx no contexto de uma teoria normativa contra uma teoria meta-ética, ver Haarscher, Guy. “Rawls, Marx et la question de la justice” in Fondements d’une théorie de la justice, p. 104-28. 28 Meyer, Michel. “Rawls, les fondements de la justice distributive et l’égalité” in Fondements d’une théorie de la justice, p. 55.

35

Mas, evidentemente, a teoria de Rawls não é prontamente aceita, e surgem objeções

e críticas de vários grupos: socialistas e liberais radicais, libertários, socialistas

democráticos, comunitaristas.

Além de conseguir dar uma nova perspectiva à teoria liberal, Rawls também tem o

mérito igualmente importante — ao propor sua teoria como contraposta ao utilitarismo —

de dar preferência aos direitos, colocando a utilidade em uma posição secundária, o que fica

evidenciado pelos dois princípios da justiça e suas implicações.

Resumidamente, a posição de Rawls contra o utilitarismo, expressa em detalhes em

Teoria, é a de que o individualismo no sentido dos diretos garantidos pela justiça a todo

cidadão não pode ser violado de forma alguma em troca de interesses políticos,

econômicos, sociais ou de qualquer outra espécie. Com isso, Rawls quer resgatar os valores

liberais fundamentais, desenvolvendo uma teoria da justiça que ele considera implícita na

concepção dos direitos naturais representada pela tradição contratualista:

“minha intenção foi formular uma concepção de justiça que fornecesse uma alternativa razoavelmente sistemática ao utilitarismo, que, de uma forma ou de outra, dominou por um longo tempo a tradição anglo-saxã do pensamento político. A razão principal para buscar essa alternativa é, no meu modo de pensar, a fragilidade da doutrina utilitarista como fundamento das instituições da democracia constitucional. Em particular, não acredito que o utilitarismo possa explicar as liberdades e direitos básicos dos cidadãos como pessoas livres e iguais, uma exigência de importância absolutamente primordial para uma consideração das instituições democráticas.”29

O utilitarismo teve tanta influência sobre a teoria moral, segundo Rawls, por ser uma

teoria elaborada por grandes pensadores tais como Hume, Adam Smith, Bentham e Mill.

Rawls tenta dar uma natureza kantiana à teoria da justiça, generalizando e elevando a uma

29 Teoria, Prefácio à edição brasileira, p. XIV.

36

ordem mais alta de abstração a teoria contratualista. Fazendo isso, ele espera fornecer uma

alternativa à teoria utilitarista dominante na tradição.30

Mas não seria razoável fazer uma comparação dos princípios de justiça para as

sociedades com as escolhas individuais que fazemos, ou seja, considerar a maximização do

bem-estar como objetivo tanto pessoal quanto social? Adotando esse raciocínio e seguindo a

teoria utilitarista, chegaríamos à situação de uma sociedade bem-ordenada quando fosse

atingida a maximização do saldo líquido de satisfações individuais. Por que, então, não

defender princípios de justiça que adotam o bem-estar — no sentido de satisfação racional

dos desejos — como princípio superior ao justo, já que se trata de pensar a sociedade como

um conjunto voltado para a realização teleológica de fins?

Princípios teleológicos utilitaristas desse tipo poderiam, segundo Rawls, ser adotados

se não houvesse importantes objeções contra eles. A mais importante delas é a que de as

visões utilitaristas não levam em consideração — a não ser indiretamente — a maneira pela

qual as distribuições são feitas entre os indivíduos, já que o objetivo é seguir critérios que

garantam a máxima satisfação geral. Um problema, portanto, é instaurado:

“Assim em princípio não há razão para que os benefícios maiores de alguns não devam compensar as perdas menores de outros; ou, mais importante, para que a violação da liberdade de alguns não possa ser justificada por um bem maior partilhado por muitos. Simplesmente acontece que em muitíssimas situações, pelo menos num estágio razoavelmente avançado da civilização, a maior soma de vantagens não é obtida desse modo. Não há dúvida de que o rigor dos preceitos de justiça ditados pelo senso comum têm uma certa utilidade na limitação das tendências humanas para a injustiça e para as ações socialmente ofensivas; mas o utilitarista acredita que seja um erro afirmar esse rigor como um princípio básico de costumes morais.”31

30 Cf. Teoria, Prefácio, p. XXII. 31 Teoria, p. 28.

37

Rawls, elaborando uma teoria deontológica, certamente não aceita essas

conseqüências do utilitarismo. Para ele, são necessários critérios fixos, baseados na justiça,

que regulem a distribuição das vantagens da cooperação social de modo que seja levada a

sério a diferença entre as pessoas.

Em última instância, o que Rawls quer enfatizar ao destacar as diferenças entre a

justiça como eqüidade e o utilitarismo é a própria diferença entre as concepções

fundamentais de sociedade pressupostas por essa duas teorias: na primeira, a sociedade é

um sistema de cooperação regulado por princípios escolhidos numa posição inicial

eqüitativa, na qual a prioridade do justo sobre o bem é a característica reguladora central;

na segunda, trata-se de uma sociedade como modo eficiente de maximizar a satisfação dos

desejos. Ambas são concepções sobre a distribuição dos benefícios da cooperação social,

mas são visões radicalmente distintas.

1.2. A teoria da justiça como eqüidade

Cabe agora retomar os pontos principais de Teoria. Farei isso tentando apresentar

concisamente as principais idéias da obra, completando, assim, o que já foi apresentado

sobre os artigos anteriores a 1971, com o objetivo de deixar claro por que Rawls precisa dar

uma “fundamentação mais sólida”32 à teoria da justiça na Terceira Parte da obra e,

conseqüentemente, também procurando mostrar por que posteriormente ele irá achar que

essa fundamentação não será suficiente para garantir a estabilidade de uma sociedade bem-

ordenada.

32 Cf.: Teoria, p. 437.

38

Assim, destaco os seguintes pontos: a importância da justiça para a cooperação

social; a concepção de justiça como devendo ser aplicada à estrutura básica da sociedade;

características mais específicas da posição original onde são escolhidos os princípios de

justiça; e, por fim, considerações sobre a racionalidade, teorias do bem, senso de justiça e

equilíbrio da teoria da justiça, estas últimas já como pressupostos para compreender as

mudanças realizadas em Liberalismo.

1.2.1. O papel da justiça

Como já vimos, a preocupação central de Rawls, sobretudo por oposição ao

utilitarismo, é o papel da justiça em uma teoria sobre o funcionamento de uma democracia

constitucional. A intenção é buscar princípios que ordenem de maneira justa a distribuição

das vantagens da cooperação social. Evidentemente — e Rawls deixa isso bem claro —

deve-se buscar princípios reguladores porque é um fato normal que qualquer sociedade é,

primeiro, uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que aceitam, e em

geral cumprem, determinadas regras que organizam suas condutas. E, segundo, uma

sociedade é marcada por um conflito e uma identidade de interesses:

“Há uma identidade de interesses porque a cooperação social possibilita que todos tenham uma vida melhor da que teria qualquer um dos membros se cada um dependesse de seus próprios esforços. Há um conflito de interesses porque as pessoas não são indiferentes no que se refere a como os benefícios maiores produzidos pela colaboração mútua são distribuídos, pois para perseguir seus fins cada um prefere uma participação maior a uma menor.”33

33 Teoria, p. 4-5.

39

Vemos, portanto, mais uma vez, que a preocupação de Rawls é com a questão da

distribuição dos benefícios e encargos da cooperação social.

Como o problema da distribuição pode ser resolvido? Como as pessoas que

participam da cooperação social podem chegar a um acordo sobre a questão da distribuição

das vantagens dessa cooperação? Como já sabemos, Rawls propõe uma situação abstrata de

contrato social na qual as pessoas, livres, iguais e racionais, escolheriam os princípios que

regulariam a distribuição em sua sociedade. Aqui, Rawls deixa claro que a posição original

não é nem uma situação histórica real, nem uma condição primitiva da cultura. Trata-se

simplesmente de uma situação hipotética de contrato social (mais abstrata do que as

doutrinas contratualistas tradicionais) que tem por função levar à escolha de princípios de

justiça quando as partes são privadas de qualquer conhecimento sobre seu lugar na

sociedade, a posição de sua classe social, sua sorte na distribuição de dotes e habilidades

naturais, inteligência, força e todas as demais características que poderiam resultar em

qualquer diferenciação entre os cidadãos, seja pelas contingências sociais, seja pelo acaso

da distribuição de dotes, ou seja, aspectos que são arbitrários do ponto de vista moral. São

essas as restrições do véu de ignorância.

O que ocorre, portanto, é que as partes contratantes devem escolher entre

alternativas possíveis de acordo com uma conduta que seja o resultado de preferências e

obstáculos, semelhante ao que ocorre em uma situação de equilíbrio entre mercados

competitivos, no qual os indivíduos fazem concessões uns aos outros de modo a atingir a

melhor situação. Essas alternativas possíveis são encontradas em uma lista de concepções

tradicionais de justiça, historicamente relevantes.

Como já foi mostrado, na situação de escolha dos princípios, Rawls está mais

preocupado com o segundo princípio de justiça. O primeiro princípio, o da maior liberdade

40

igual, é tido como uma escolha natural à qual as partes chegariam quando submetidas às

restrições da posição original. As alternativas apresentadas ao segundo princípio, o

princípio da diferença, são as seguintes: variações do princípio da utilidade média,34

concepções teleológicas clássicas (utilidade ou perfeição), concepções intuicionistas e

concepções egoísticas.35

É importante notar que, ao mencionar as circunstâncias de justiça,36 Rawls coloca a

condição de escassez moderada (ou seja, os bens materiais de uma sociedade não são

ilimitados) como circunstância objetiva, e o conflito de interesses a respeito da distribuição

dos benefícios sociais como circunstância subjetiva. Ambos seriam fatos naturais que não

podem ser contornados (devem, inclusive, ser conhecidos na posição original). Vemos,

assim, que a discordância entre os indivíduos que procura ser solucionada não é a que diz

respeito a diferentes concepções do bem, mas a que diz respeito à questão distributiva.

Embora reconheça como natural que os cidadãos possuam concepções do bem,

Rawls parece deixar de lado a questão como algo que simplesmente deve ser evitado de

modo a não atrapalhar o consenso na escolha dos princípios de justiça:

“Deve-se notar que eu não faço nenhuma suposição restritiva a respeito das concepções que as partes têm do bem, exceto que elas são planos racionais a longo prazo. Embora esses planos determinem os objetivos e interesses de uma determinada pessoa, os objetivos e interesses presumivelmente não são egoísticos ou interesseiros. Decidir se esse é ou não o caso depende dos tipos de objetivos perseguidos por alguém. Se a riqueza, a posição, a influência, bem como as honras do prestígio social, são os propósitos finais de uma pessoa, então com certeza a sua concepção do bem é egoística. Seus interesses dominantes estão centrados em si mesmo, e não são simplesmente, como devem sempre ser, os interesses de um eu. Não há inconsistência, portanto, em supormos

34 Para uma explicação detalhada de por que, na posição original, os princípios de justiça são escolhidos de acordo com o critério maximin, ao invés de serem escolhidos a igualdade estrita ou o princípio da utilidade média, ver o artigo “Some reasons for the maximin criterion” (Collected Papers, p. 225-31). 35 Cf.: Teoria, §21, p. 133-4. 36 Cf.: Teoria, §22, p. 136.

41

que, removido o véu de ignorância, as partes descobrem que têm vínculos de sentimento e afeição, e desejam promover os interesses dos outros e ver os seus objetivos atingidos. Mas o postulado da indiferença mútua na posição original visa a assegurar que os princípios da justiça não dependem de suposições muito exigentes. Lembremo-nos de que a posição original tem por objetivo incorporar condições amplamente partilhadas e, também, pouco pretensiosas. Uma concepção da justiça não deve pressupor, então, laços abrangentes de sentimento natural. Na base da teoria, tentamos presumir o mínimo possível.”37

Para Rawls, é preciso que a posição original incorpore o que ele chama de

“restrições formais do conceito de justo”:38 são restrições que devem se aplicar a qualquer

situação de escolha de princípios — como, por exemplo, princípios éticos — e não somente

à escolha dos princípios de justiça no caso da posição original. As restrições devem ser de

cinco tipos: 1) os princípios devem ser gerais em sua formulação; 2) os princípios devem

ser gerais em sua aplicação; 3) os princípios devem ser públicos (a publicidade é uma

característica fundamental de uma teoria contratualista e está de acordo com a noção

kantiana de lei moral39); 4) uma concepção de justo deve impor às reivindicações

conflitantes uma ordenação; 5) os princípios têm caráter terminativo, ou seja, devem ser a

última instância de apelação do raciocínio prático.

A idéia de véu de ignorância, portanto, é ser uma situação que garanta a aplicação

dessas restrições formais do conceito de justo, fazendo com que as partes ignorem uma lista

de fatos particulares:

“Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição de classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim por diante. Também ninguém conhece a sua concepção do bem, as particularidades de seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços característicos de sua psicologia, como por exemplo, a sua aversão ao risco ou sua tendência ao otimismo ou ao pessimismo. Mais

37 Teoria, §22 p. 139-40. 38 Cf.: Teoria, §23, p. 140. 39 Cf.: Teoria, p. 667, n. 8.

42

ainda, admito que as partes não conhecem as circunstâncias particulares de sua própria sociedade. Ou seja, não conhecem a posição econômica e política dessa sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi capaz de atingir. As pessoas na posição original não têm informação sobre a qual geração pertencem.” (...) “Na medida do possível, o único fato particular que as partes conhecem é que a sua sociedade está sujeita às circunstâncias da justiça e a qualquer conseqüência que possa decorrer disso. Entretanto, considera-se como um dado que elas conhecem os fatos genéricos sobre a sociedade humana. Elas entendem as relações políticas e os princípios da teoria econômica; conhecem a base da organização social e as leis que regem a psicologia humana. De fato, presume-se que as partes conhecem quaisquer fatos genéricos que afetem a escolha dos princípios de justiça.”40

Para Rawls, a importância das restrições impostas às informações particulares na

posição original é tal que, sem elas, a própria idéia de teoria da justiça estaria inviabilizada.

Não seria possível solucionar o problema da negociação na posição original. Se as partes

contratantes não estivessem situadas de forma eqüitativa e não fossem tratadas de forma

igual como pessoas éticas, inevitavelmente contingências arbitrárias, naturais do mundo,

influenciariam na escolha dos princípios.41

É preciso assinalar que Rawls já concebe as pessoas na posição original como sendo

racionais, mas não conhecendo sua própria concepção de bem. Assim, elas serão levadas a

tomar a decisão a favor dos dois princípios simplesmente porque possuem uma explicação

do que são os bens primários: essas pessoas preferem sempre ter uma quantidade maior a

uma menor desses bens.

Além de racionais, é preciso pressupor também que as partes possuem um senso de

justiça, o que significa dizer que há uma confiança mútua entre elas de que todas agirão

conforme os princípios escolhidos. Central para a compreensão de como funciona a

40 Teoria, § 24, p. 147-148. 41 Para especificações mais detalhadas sobre as restrições e características da posição original, tais como a ausência de inveja, egoísmo e conhecimento de fatos genéricos, ver Teoria, §§ 23, 24 e 25.

43

estabilidade de uma sociedade bem-ordenada pelos princípios de justiça, os

desdobramentos da idéia de senso de justiça serão analisados logo adiante.

1.2.2. A estrutura básica da sociedade

Embora a idéia de uma teoria da justiça para a estrutura básica da sociedade —

devido à insistência do próprio Rawls — tenha passado a ser melhor compreendida,

inicialmente ela foi alvo de críticas e incompreensões. Não foram poucos os críticos que

quiseram ver nos princípios de justiça uma concepção que poderia ser aplicada aos casos de

justiça em geral. Aqui, trata-se apenas da justiça social. Os princípios de justiça não se

aplicam a organizações como igrejas, universidades e nem mesmo às relações internas

dentro da família:42

“Para nós o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social. Por instituições mais importantes quero dizer a constituição política e os principais acordos econômicos e sociais. Assim, a proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, a propriedade particular no âmbito dos meios de produção e a família monogâmica

42 Sobre isso, Rawls, na nota 48 do §50 de Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, comenta uma crítica de Sandel: “Michael Sandel, em Liberalism and the Limits of Justice (Cambridge: Cambridge University Press, 1982), p. 33, considera a situação em que a família harmoniosa se vê abalada por dissensões. Os afetos e a franqueza dos tempos passados dão lugar a demandas de eqüidade e direitos. Ele imagina os bons sentimentos passados sendo substituídos por uma integridade e judiciosidade inquestionáveis, para que jamais prevaleça a injustiça. “Pais e filhos refletem de forma ponderada, submetem-se zelosa embora carrancudamente aos dois princípios de justiça, até onde conseguem instalar as condições de estabilidade e congruência para que o bem da justiça se realize em seu lar”. Um dos erros aqui é que ele supõe que os dois princípios valem de forma geral para todas as associações, quando na verdade eles só valem para a estrutura básica. Outro erro é que aparentemente, a seu ver, a justiça como eqüidade diz que o estabelecimento da justiça plena restauraria o caráter moral da família. Isto a justiça como eqüidade não diz. Existem, de fato, algumas concepções de justiça consideradas apropriadas para a família, bem como para outras associações e casos de justiça local. Tais concepções — geralmente uma para cada tipo de associação — são necessárias, embora de forma alguma suficientes, para restaurar o caráter moral da família. Não se deve atribuir à função fundamental da justiça básica mais do que ela é.” (Justiça como Eqüidade: Uma Reformulação, p. 234.)

44

constituem exemplos das instituições sociais mais importantes. Tomadas em conjunto como um único esquema, as instituições sociais mais importantes definem os direitos e deveres dos homens e influenciam seus projetos de vida, o que eles podem esperar vir a ser e o bem-estar econômico que podem almejar. A estrutura básica é o objeto primário da justiça porque seus efeitos são profundos e estão presentes desde o começo.”43

Ou seja, a estrutura básica da sociedade é constituída por suas principais instituições

políticas, econômicas e sociais, e sua importância está no modo pelo qual essas instituições

distribuem direitos e deveres, oportunidades e riquezas. Assim, Rawls não pretende adotar

uma teoria completa do contrato social, que escolhe um sistema ético mais ou menos

completo de princípios sobre todas as virtudes. O foco da teoria da justiça como eqüidade é

somente a questão da justiça social e a maneira pela qual ela pode ser garantida em uma

sociedade bem-ordenada.

Ora, em uma sociedade complexa como as atuais democracias constitucionais, é

impossível pensar a distribuição dos bens e serviços sociais sem pensar numa estrutura

institucional básica que promova esses elementos da cooperação social. Devido a esse

papel fundamental, a influência dessas instituições perpassa toda a sociedade, tem

repercussões nas mais variadas áreas sociais.

Mas não somente isso: a existência de uma estrutura básica é fundamental para

garantir uma sociedade justa ao longo do tempo, ou o que Rawls chama de “condições de

fundo justas”,44 pois é altamente provável que, mesmo estabelecendo uma situação inicial

justa, as condições, ao longo do tempo, se deteriorem, comprometendo a situação de

justiça. Portanto, mais do que uma simples característica da teoria da justiça como eqüidade

que tem por objetivo definir a justiça para um âmbito limitado de instituições, a restrição à

43 Teoria, p. 7-8. 44 Liberalismo, Parte III, VII, §4, p. 318.

45

estrutura básica mostra os fundamentos da justificativa rawlsiana para não cair num

libertarianismo do tipo que, por exemplo, é defendido por Robert Nozick45. É necessário

algum tipo de intervenção e os motivos são esclarecidos em Liberalismo:

“...as condições necessárias para a justiça básica podem ser solapadas, mesmo que ninguém aja de forma injusta ou tenha consciência de como o resultado global de muitas trocas distintas afeta as oportunidades dos outros. Não há regras viáveis que se possa exigir que os agentes econômicos obedeçam em suas transações cotidianas visando a evitar essas conseqüências indesejáveis. Tais conseqüências se manifestam num futuro tão remoto, ou são tão indiretas, que a tentativa de prevê-las como normas restritivas que se apliquem aos indivíduos representaria uma carga excessiva, se não impossível.”46 Percebe-se, assim, em que sentido e em que dimensão podemos compreender a

“defesa intervencionista” de Rawls. Sua visão pressupõe que somente instituições da

estrutura básica da sociedade podem controlar os acordos entre os cidadãos, pois não há

como definir se eles são justos ou eqüitativos antecipadamente. O objetivo aqui é favorecer

uma mistura de supervisão e liberdade entre os indivíduos e associações, ou seja, deixá-los

livres para buscar seus fins dentro da estrutura social, mas ao mesmo tempo dando a

certeza de que sempre estarão sendo tomadas medidas necessárias para corrigir a justiça

básica.

Ora, uma conseqüência inevitável de uma estrutura como essa é que os cidadãos

sejam afetados em relação ao que são e ao que querem ser, que seus planos de vida sejam

inevitavelmente moldados pelas opções que lhes são oferecidas e pelas normas que

precisam respeitar. Na verdade, como sabemos, qualquer estrutura social — justa ou injusta

— tem um papel determinante na forma de produzir e reproduzir a concepção das pessoas

sobre a sociedade e sobre si próprias. O que Rawls está propondo é que isso seja feito de

45 Nozick, Robert. Anarchy, State and Utopia. New York: Basic Books, 1974. Edição brasileira: Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991. 46 Liberalismo, Parte III, VII, §4, p. 318-9.

46

modo a garantir uma situação de justiça que esteja de acordo com os princípios escolhidos

pelos cidadãos como os mais justos.

Por fim, para que o funcionamento social seja adequado, é um pressuposto

necessário que cada cidadão conheça as instituições básicas de sua sociedade, para que

saiba o que elas exigem e o que podem exigir delas; também deve ter certeza que os outros

cidadãos também possuem esse mesmo conhecimento. Como Rawls sempre irá enfatizar, o

critério de publicidade é essencial para o funcionamento de uma sociedade bem-ordenada.47

1.2.3. Os princípios de justiça

Dadas as condições da posição original, quais seriam os princípios de justiça

escolhidos pelas partes contratantes? Passo diretamente para a formulação final dos

princípios apresentada em Teoria:48

“Primeiro Princípio Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para todos.

Segundo Princípio As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo: a) tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa, e b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades.”49

47 Para mais detalhes sobre as instituições da estrutura básica da sociedade, casos de justiça, compatibilidade entre justiça formal (aquela garantida pelo estado de direito) e justiça substancial (justiça de fato cumprida, não só garantida formalmente), ver Teoria, §10 — “As instituições e a justiça formal”, p. 57. 48 Teoria, §46, p. 333. 49 A primeira formulação é feita no §11, p. 64 e a segunda, no §13, p. 88.

47

Algumas especificações a respeito desses princípios precisam ser destacadas. A

primeira delas é que é necessário compreender a estrutura social como possuindo dois

aspectos: um que define e assegura as liberdades básicas iguais,50 e o outro que especifica e

estabelece as desigualdades econômicas e sociais. Cada princípio, portanto, será aplicado a

um aspecto social.

Uma segunda importante especificação é a de que os dois princípios devem ser

entendidos e aplicados em ordem serial:51 o primeiro princípio tem prioridade sobre o

segundo e, dentro do segundo, a segunda parte tem prioridade sobre a primeira

(considerando, evidentemente, a ordenação apresentada em Teoria). Isso significa que o

primeiro princípio, o da igual liberdade para todos, tem prioridade sobre o princípio que

regula as desigualdades sociais e econômicas, ou seja, a estrutura básica deve regular as

desigualdades de distribuição de riqueza e autoridade de modo consistente com as liberdades

exigidas pelo primeiro princípio.

O objetivo principal de Rawls ao estabelecer a ordem serial é fazer com que não seja

possível trocar certas liberdades fundamentais, por exemplo, por ganhos econômicos e/ou

sociais. Poderíamos pensar no caso de um governo ditatorial que eleva as condições de vida

da população, embora não permita eleições ou impeça a liberdade de imprensa. De acordo

com os dois princípios da justiça, isso não seria permitido.

Um terceiro esclarecimento sobre os dois princípios de justiça diz respeito aos seus

quatro estágios de aplicação, inspirados, como o próprio Rawls afirma, pela constituição e

pela história dos Estados Unidos da América. Os quatro estágios são: 50 Para Rawls, as liberdades básicas mais importantes são: “a liberdade política (o direito de votar e ocupar um cargo público) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de consciência e de pensamento; as liberdades da pessoa, que incluem a proteção contra a opressão psicológica e a agressão física (integridade da pessoa); o direito à propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, de acordo com o conceito de estado de direito.” (Teoria, §11 p. 65). 51 Para mais detalhes, Teoria, §8, p. 46, incluindo a nota 23 que remete à p. 662.

48

1) estágio da posição original, com todas as características já apresentadas.

2) estágio da convenção constitucional, logo após a escolha dos princípios de

justiça.52 Nesse estágio, algumas restrições do véu de ignorância são retiradas: as partes

passam a conhecer os princípios da teoria social e os fatos genéricos relevantes sobre a

sociedade onde vivem (recursos naturais, situação econômica, social, política, cultura, etc),

embora continuem sem conhecer sua posição como indivíduos específicos (posição social,

riqueza, concepção do bem). O objetivo é elaborar a constituição justa mais eficaz de acordo

com os princípios da justiça, levando em conta os aspectos sociais.

3) estágio legislativo, onde todo o conjunto de fatos econômicos e sociais de caráter

geral entra em jogo com o objetivo de fazer com que as políticas econômicas e sociais

maximizem as expectativas de oportunidades a longo prazo das camadas menos favorecidas

(evidentemente, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades e de acordo com a

garantia das liberdades iguais).

4) estágio da aplicação das regras a casos particulares por juízes e administradores e

da observância dessas regras gerais pelos cidadãos. Evidentemente, neste estágio há um

conhecimento completo de todos os fatos.

Os quatro estágios são uma espécie de continuação da situação hipotética da posição

original, com o objetivo de pensar a aplicação dos princípios de justiça. Não se trata,

52 Rawls esclarece: “É importante distinguir a seqüência de quatro estágios e sua concepção de uma convenção constituinte, separando-a da visão da escolha constituinte encontrada na teoria social e exemplificada por J. M. Buchanan e Gordon Tullock, The Calculus of Consent (Ann Arbor, University of Michigan Press, 1963). A idéia da seqüência de quatro estágios é parte de uma teoria moral e não serve como uma explicação do funcionamento de constituições concretas, exceto na medida em que organismos políticos são influenciados pela concepção da justiça em questão. Na doutrina contratualista, os princípios da justiça já foram acordados, e a nossa dificuldade consiste em formular um esquema que nos ajude na sua aplicação. O objetivo é o de caracterizar uma constituição justa e não o de verificar que tipo de constituição seria adotado ou consentido, com base em presunções mais ou menos realistas (embora simplificadas) a respeito da vida política, e muito menos com base em presunções individualistas típicas da teoria econômica” (Teoria, p. 674, n. 2).

49

portanto, de uma explicação de como funcionam na prática instituições constituintes,

legislativas ou judiciais.

1.2.4. A questão da liberdade

Embora o segundo princípio — o princípio da diferença — seja o mais controverso,

envolvendo discussões sobre justiça entre gerações, poupança justa, critérios para definir os

menos favorecidos etc.,53 o primeiro princípio também provoca objeções que são

importantes para esclarecer mais detalhadamente o que Rawls entende por liberdade e por

que faz desse princípio o primeiro na sua ordem lexical de aplicações dos princípios de

justiça. A principal crítica já foi mencionada aqui: trata-se das objeções levantadas por

H.L.A. Hart54, reconhecidas por Rawls, e que levaram à reformulação do primeiro

princípio, com a substituição da expressão “o mais abrangente sistema total de liberdades

básicas” por “esquema plenamente adequado de liberdades básicas”.55 Essa mudança

mostra que Rawls quer se referir a um conjunto fundamental de liberdades civis e políticas

tradicionais na história das democracias ocidentais, e não a uma idéia abstrata, única ou

sem conteúdo de liberdade que deveria simplesmente ser maximizada.

53 Para análises específicas sobre o segundo princípio de justiça, ver o capítulo “The Difference Principle”, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, com artigos de Amartya Sen (“Welfare Inequalities and Rawlsian Axiomatics”, p. 85-104), Wolfgang Leininger (“Rawls’ Maximin Criterion and Time-Consistency: Further Results”, p. 105-13), Paul Voice (“Rawls’s Difference Principle and a Problem of Sacrifice”, p. 114-17), Philippe Van Parijs (“Social Justice and Individual Ethics”, p. 118-41) e G.A. Cohen (“Where the Action Is: On the Site of Distributive Justice”, p. 143-170). O capítulo 4 de Pogge, Thomas. Realizing Rawls, p. 161-207, também aborda o segundo princípio. 54 “Rawls on Liberty and Its Priority”, University of Chicago Law Review”, vol. 40 (1973), p. 534-555. Reproduzido em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 2-23. 55 Na forma como é encontrado na sua formulação final em Rawls, John. Justiça como Eqüidade – Uma reformulação, §13, p. 60.

50

A crítica de Hart diz respeito à possibilidade de aplicação prática da idéia de

liberdade56. Sua crítica parte de duas expressões utilizadas por Rawls na primeira edição de

Teoria: “o princípio da maior liberdade igual” e “a liberdade pode ser restringida apenas em

troca da liberdade”. Todo o problema, para Hart, está em uma ambigüidade: ao mesmo

tempo em que Rawls apresenta uma lista específica de liberdades fundamentais,57 insiste

em falar em liberdade de modo abstrato, como “sistema mais amplo”, “maior liberdade”

etc.

Assim, após o próprio Rawls ter reconhecido essa falha, fica claro que sua intenção,

como Hart também indica, era de fato usar a lista de liberdades básicas como o critério para

definir o sentido do termo “liberdade”. Sem dúvida, a revisão que Rawls se vê obrigado a

fazer — tentando eliminar possíveis conotações metafísicas ou até mesmo imprecisões

devido à utilização de “liberdade”, para adotar uma lista determinada de liberdades básicas

historicamente reconhecidas — pode ser vista como um primeiro passo para todas as

mudanças posteriores no sentido de retirar o conteúdo metafísico da teoria ao adotar uma

lista precisa e bem especificada de liberdades civis e políticas que possam garantir a maior

variedade possível de planos de vida aos cidadãos:58 “Não se atribui nenhuma prioridade à

56 A maioria das críticas feitas a Rawls em relação aos princípios de justiça na verdade extrapolam o âmbito da teoria ideal e dizem respeito à possibilidade social de execução dos princípios. Um interessante artigo a respeito da relação entre os dois princípios de justiça é o de Norman Daniels: “Equal Liberty and Unequal Worth of Liberty, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 25-53, no qual Daniels, que segue uma orientação com inclinação marxista, tenta mostrar que de fato não há uma incompatibilidade lógica entre o primeiro princípio das liberdades e o segundo, que permite desigualdades, mas sim um problema de “possibilidade social” de articulação entre os dois. O mesmo tópico, abordado de forma diferente e numa análise mais minuciosa, é discutido por Brian Barry: “John Rawls and the Priority of Liberty”, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 172-188. 57 Para a lista de liberdades fundamentais, ver nota 50, p. 47. 58 Thomas Pogge faz uma interessante interpretação do princípio da liberdade em Rawls, afirmando que os valores fundamentais que o filósofo propõe são os da liberdade, igualdade e participação (“The interpretation of Rawls’ first principle of justice”, em The philosophy of Rawls, Vol 2 - The two principles and their justification, p. 55-83).

51

liberdade como tal, como se o exercício de algo chamado ‘liberdade’ tivesse um valor

preeminente e fosse a principal, senão a única, finalidade da justiça política e social.”59

Obviamente, a discussão do tema nos leva a pensar sobre a fundamentação da

prioridade da liberdade. Rawls, em Liberalismo, esclarece que essa fundamentação está

baseada em dois pressupostos: a concepção dos cidadãos enquanto pessoas livres e iguais,

ou seja, uma concepção liberal de pessoa, e a idéia de bens primários — que serão

analisadas mais adiante. Além disso, a opção por uma lista de liberdades fundamentais, ao

invés de definições gerais e princípios primeiros e abrangentes, tem por objetivo dar uma

compreensão mais eficaz do que aquela apresentada pelos princípios primeiros do

utilitarismo, do perfeccionismo ou do intuicionismo60.

1.2.5. A estabilidade de uma sociedade bem-ordenada

Ao tratar de questões como a psicologia moral, aquisição do sentimento de justiça,

teoria do bem e valores sociais, o objetivo geral de Rawls, na Terceira Parte de Teoria, é

mostrar que, em uma sociedade bem-ordenada, existe uma congruência entre a justiça e o

bem.

A primeira condição para compreendermos não só a argumentação de Teoria, mas

principalmente as reformulações realizadas em Liberalismo, é entender a distinção entre o

que Rawls chama de teoria restrita e teoria plena do bem: a teoria restrita está relacionada

aos bens primários (coisas que as pessoas racionais desejam, independentemente de

59 Liberalismo, VIII, §1, p. 345. 60 Para uma visão unificada da posição de Rawls sobre a questão da liberdade, ver a última conferência de Liberalismo, VIII – As liberdades fundamentais e sua prioridade, p. 343-430. O fato de fechar a obra com essa conferência indica o papel central da questão da liberdade na teoria da justiça como eqüidade, com Rawls mostrando de que forma toda a teoria se articula para garantir certos valores fundamentais.

52

quaisquer outras coisas que elas desejem) e tem por objetivo assegurar que as premissas a

respeito desses bens são necessárias para se chegar aos princípios da justiça. Por sua vez, a

teoria plena do bem implica uma interpretação mais ampla do bem, o que envolve

considerações relacionadas ao bem no sentido de objetivos finais, inclusive no que diz

respeito à disposição dos cidadãos em agir de acordo com a concepção pública de justiça na

esfera das instituições sociais. Para Rawls, no sentido da teoria restrita, possuir um senso de

justiça é um bem fundamental para garantir a estabilidade em uma sociedade bem-ordenada.

O segundo ponto que deve ser compreendido é o significado do bem para os planos

de vida de uma pessoa, sendo que um plano racional de vida para uma pessoa determina o

que é o bem para ela. Por sua vez, um plano de vida é racional se obedece a dois critérios: 1)

ser um dos planos consistentes com os princípios de escolha racional quando aplicado a

todas as características relevantes da situação desse plano; 2) é o plano que seria escolhido

com racionalidade deliberativa plena (total consciência dos fatos relevantes e cuidadosa

avaliação das conseqüências). Além disso, os interesses e objetivos de alguém só são

racionais se merecerem ser encorajados e forem previstos pelo plano de vida que é racional

para essa pessoa.61 O importante é compreender que os bens primários são essenciais para

que se possa realizar efetivamente planos de vida, seja qual for sua natureza e objetivos. A

intenção de Rawls, portanto, é mostrar que existe uma profunda relação entre os planos de

vida que escolhemos e o modo pelo qual nossa sociedade é regulada: “As convicções sobre

que tipo de pessoa devemos ser também estão, de forma semelhante, implícitas na aceitação

dos princípios da justiça.”62

61 Para uma definição mais completa do que seja um plano de vida racional e o princípio de escolha racional, ver Teoria, §63, p. 452-60. 62 Teoria, §63, p. 460.

53

Assim, para Rawls, o bem para uma pessoa é determinado pelo plano de vida que ela

adotaria com plena racionalidade deliberativa se seu futuro pudesse ser previsto e imaginado

com precisão. Fica clara, então, a importância dos princípios de justiça — que regulam a

sociedade de modo a torná-la bem-ordenada ao longo do tempo — em relação à escolha de

vida dos cidadãos. Mais do que isso: para Rawls,

“A estrutura básica da sociedade funciona de forma a encorajar e sustentar certos tipos de planos mais que outros, recompensando os seus membros pela contribuição para com o bem comum de maneiras que são consistentes com a justiça. Considerar essas contingências [o que inclui também os fatos genéricos que atuam sobre as escolhas individuais] limita a gama de planos alternativos de forma que o problema da decisão se torna, pelo menos em alguns casos, razoavelmente definido.”63

Outro fato que deve ser notado em Teoria são as características que Rawls quer

atribuir para a relação entre a concepção de justiça e as teorias do bem em geral e também

do bem moral. Para ele, a concepção da justiça escolhida na posição original é um guia para

definir as virtudes e os sentimentos morais:

“Uma boa pessoa (...) ou uma pessoa de valor moral, é aquela que tem, num grau maior que a média, os traços de caráter moral de cunho genérico que é racional que as pessoas na posição original queiram encontrar umas nas outras. Como os princípios da justiça foram escolhidos, e estamos supondo obediência estrita, cada um sabe que, em uma sociedade, ele desejará que os outros tenham os sentimentos morais que apóiam a obediência a esses padrões. Assim, poderíamos dizer, alternativamente, que uma boa pessoa tem os traços de caráter moral que é racional que os membros de uma sociedade bem-ordenada queiram encontrar em seus consócios.”64

Os princípios da justiça, portanto, são uma espécie de orientação para que se estenda

a definição do bem para questões mais amplas do bem moral. Nesse sentido, Rawls quer

tornar possível a transformação de uma teoria restrita numa teoria plena, através da posição

original. Fazendo essa transformação ou junção da teoria da justiça (teoria restrita) com a

63 Teoria, §65, p. 470. 64 Teoria, §66, p. 484.

54

teoria do bem (teoria plena) seria possível ter um bom critério para avaliar valores morais,

para saber se alguém é justo ou injusto, mau, perverso, etc.

Importante destacar também algumas diferenças estabelecidas entre o conceito de

justo e o conceito de bem. A primeira delas é que os princípios do justo são escolhidos na

posição original, como todas as características e implicações já conhecidas. Isso não se

aplica ao conceito de bem, à teoria do bem: não há acordo sobre os princípios da escolha

racional pelo simples fato de que as pessoas são livres para fazer suas próprias escolhas.

A segunda diferença é que Rawls considera um fato positivo que as concepções dos

indivíduos sobre o seu próprio bem devam divergir significativamente entre si, enquanto

isso não deve ocorrer com a concepção do justo.

A terceira diferença é metodológica: enquanto as aplicações dos princípios de

justiça são restringidas pelo véu de ignorância, as avaliações sobre o bem de uma pessoa

dependem do total conhecimento dos fatos, já que, evidentemente, nossos planos de vida

estão estritamente ligados com nossas circunstâncias de vida. Mesmo com essas distinções,

Rawls afirma que “nosso modo de vida, não importa quais sejam as circunstâncias

particulares, deve sempre estar de acordo com os princípios da justiça, que são definidos

independentemente.”65

65 Teoria, §68, p. 498.

55

1.2.6. O senso de justiça

Como veremos, existe uma íntima relação entre os conceitos de sociedade bem-

ordenada, senso de justiça, concepção do bem e estabilidade.

Para Rawls, uma sociedade bem-ordenada é:

“... aquela estruturada para promover o bem de seus membros e efetivamente regulada por uma concepção comum da justiça. Assim, trata-se de uma sociedade em que todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e cujas instituições sociais básicas satisfazem esses princípios, sendo esse fato publicamente reconhecido.”66

A publicidade dos princípios de justiça, portanto, é uma das características

principais de uma sociedade bem-ordenada. Outra característica de uma sociedade desse

tipo é que ela deve ser regulada por uma concepção pública de justiça. Isso significa uma

disposição dos cidadãos em agir de acordo com os princípios da justiça. Vemos, aqui, a

importância que Rawls atribui à idéia geral de aprendizado moral, ou seja, os cidadãos, ao

perceberem que vivem em uma sociedade justa, adquirem um senso de justiça que fará com

que desejem manter as instituições dessa sociedade, da mesma forma que, seguindo

princípios básicos das “leis psicológicas”, uma criança que cresce em um ambiente

educacional justo e com amparo desenvolverá naturalmente sentimentos de reconhecimento

e amor.

Para Rawls, a força de uma teoria da justiça deve ser medida de acordo com o

sucesso em promover esse senso de justiça nos cidadãos. E como uma sociedade é um

sistema de cooperação que perdura ao longo do tempo, uma teoria da justiça será preferível

a outras se for capaz de garantir a força desse senso de justiça ao longo do tempo. Essa é a

66 Teoria, §69, p. 504.

56

estabilidade, a situação de equilíbrio, na qual um determinado estado de coisas persiste

através do tempo sem ser perturbado por nenhuma força externa.

Para Rawls, os sentimentos morais são essenciais para garantir que a estrutura

básica de uma sociedade esteja de acordo com a justiça. De modo geral, independentemente

da tradição moral avaliada (empirismo utilitarista de Hume a Sidgwick, teoria da

aprendizagem moral de Freud, racionalismo de Rousseau e Kant),67 o aprendizado moral

pode ser caracterizado como as influências exercidas sobre nós que nos fazem adotar

condutas que beneficiam os outros e a sociedade, ao invés de prejudicá-los. Esse

aprendizado ocorre ao longo de nossas vidas, desde a infância (moralidade da autoridade)

com a educação que recebemos de nossos pais, passando pela moralidade de grupo, através

da qual adquirimos noções dos padrões morais que devemos seguir nas associações a que

pertencemos de modo que, à medida que mudamos de lugar durante a vida, adquirimos

noções mais complexas de moralidade, chegando ao que Rawls denomina moralidade de

princípios, que envolve noções como as de cidadania igual e de ser uma pessoa justa, ou

seja, ter conhecimento dos padrões de justiça.

Assim,

“Uma vez aceita uma moralidade de princípios (...), as atitudes morais deixam de estar unicamente ligadas ao bem-estar e à aprovação de indivíduos ou grupos específicos, e são moldados por uma concepção do justo escolhida independentemente dessas contingências. Nossos sentimentos morais manifestam uma independência em relação às circunstâncias acidentais de nosso mundo, sendo que o significado dessa independência é dado pela descrição da posição original e de sua interpretação kantiana.”68

Essa concepção está fundamentada sobre as três leis psicológicas da moral,

formuladas por Rawls da seguinte maneira:

67 Cf.: Teoria, §69, p. 508-12. 68 Teoria, §72, p. 527.

57

“Primeira lei: dado que as instituições familiares são justas, e que os pais amam a criança e expressam manifestamente esse amor preocupando-se com o seu bem, então a criança, reconhecendo o amor evidente que sentem por ela, aprende a amá-los. Segunda lei: dado que a capacidade de uma pessoa para o sentimento de companheirismo tornou-se uma realidade quando ela adquiriu vínculos de acordo com a primeira lei, e dado que uma organização social é justa e esse fato é publicamente reconhecido por todos, então essa pessoa desenvolve laços de amizade e confiança em relação aos outros na associação, à medida que estes, com evidente intenção, cumprem seus deveres e obrigações, e correspondem aos ideais de sua situação. Terceira lei: dado que a capacidade de uma pessoa para o sentimento de companheirismo foi realizada quando ela criou vínculos de acordo com as duas primeiras leis, e dado que as instituições de uma sociedade são justas e esse fato é publicamente reconhecido por todos, então essa pessoa adquire o senso de justiça correspondente, à medida que reconhece que ela e aqueles por quem se interessa se beneficiam dessas organizações.”69

A explicação sobre a estabilidade é completada por Rawls tentando mostrar que

existe uma congruência entre a justiça como eqüidade e o bem como racionalidade, ou seja,

em uma sociedade bem-ordenada, o plano racional de vida de uma pessoa sustenta e afirma

seu senso de justiça. Para que uma sociedade seja estável é necessário, portanto, que o

senso efetivo de justiça faça parte do bem dos indivíduos.

Rawls também adianta alguns pontos que serão centrais em Liberalismo. Um deles é

o fato de que a personalidade moral das pessoas é composta por duas aptidões: uma para a

concepção do bem, e outra para um senso de justiça, ou seja, para agir conforme os

princípios do justo. Nesse sentido, outro aspecto fundamental destacado é que toda a teoria

da justiça como eqüidade pressupõe a prioridade do justo sobre o bem. Mesmo assim, ainda

parece haver uma ligação às vezes sem limites bem estabelecidos entre as concepções do

bem e a idéia do justo, já que Rawls chega a considerar que a concepção do bem de uma

pessoa, definida por seu plano racional de vida, é um subplano do plano maior e mais

69 Teoria, §75, p. 544-5.

58

abrangente que regula a sociedade. Esse plano maior forneceria ideais e formas de vida

tanto para indivíduos como para associações de indivíduos, o que acabaria por ser algo

positivo no sentido de delimitar as possibilidades de escolha, contribuindo, inclusive, para

torná-las mais factíveis.70 Há, portanto, uma clara vinculação entre a concepção do justo e

as visões morais particulares dos cidadãos, vinculação que Rawls tentará depois eliminar.

Essa limitação de escolha dos planos racionais ao âmbito dos princípios de justiça

também é assinalada por André Berten:

“Os princípios de justiça e a sociedade bem-ordenada constituem o quadro que torna possível a execução de um plano racional de vida e, através disso, a elaboração de uma teoria completa do bem. Mas, fazendo isso, os princípios de justiça limitam a esfera do que pode ser considerado como uma satisfação do desejo racional. A prioridade do justo sobre o bem significa, portanto, que as finalidades não são indiferentes, mas devem corresponder a uma certa concepção da justiça.”71

Com essa explicação da idéia de senso de justiça, juntamente com a exposição que

Rawls faz sobre a felicidade,72 o hedonismo,73 entre outros trechos que discutem em detalhe

as questões morais, pode-se perceber que, de fato, não há uma nítida divisão entre o não-

político (ou seja, concepções morais, doutrinas religiosas e filosóficas, concepções do bem

etc.) e o que posteriormente será considerado estritamente político.

70 Cf.: Teoria, §85, p. 629. 71 Berten, André. “John Rawls, Jürgen Habermas et la rationalité des normes” in Fondements d’une théorie de la justice, p. 187. 72 Cf.: Teoria, §83, p. 610. 73 Cf.: Teoria, §84, p. 617.

59

CAPÍTULO 2 — O liberalismo político

2.1. Principais mudanças

Na década seguinte à publicação de Teoria, Rawls escreve vários artigos1 com o

objetivo de esclarecer alguns pontos da obra que não ficaram claros ou mesmo que ele

gostaria que tivessem mais destaque. Nesse sentido, procurou também rebater críticas e

reforçar o caráter kantiano de sua teoria da justiça como eqüidade.

Portanto, passo agora diretamente para o artigo que é considerado central para

avaliar que modificações são feitas na teoria da justiça e qual a nova interpretação que

Rawls apresenta: “A teoria da justiça como eqüidade: uma teoria política, e não metafísica”

(1985).2

Não se trata de um artigo voltado somente para resolver o que Rawls considera

inconsistências de sua teoria, mas também de um artigo que propõe mudanças significativas

1 Esses artigos são: “Some Reasons for the Maximin Criterion”, American Economic Review (Maio 1974), 64(2): 141-146 e Collected Papers, p. 225-231; “Reply to Alexander and Musgrave”. Quarterly Journal of Economics (Novembro 1974), 88(4): 633-655 e Collected Papers, p. 232-253; “A Kantian Conception of Equality” Cambridge Review [Londres] (Fevereiro 1975), 96(2225): 94-99 e Collected Papers, p. 254-266; “Fairness to Goodness” The Philosophical Review (Outubro 1975), 84(4): 536-554 e Collected Papers, p. 267-285; “The Independence of Moral Theory.” Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association (Novembro 1975), 48: 5-22 e Collected Papers, p. 286-302; “The Basic Structure as Subject”. American Philosophical Quarterly (Abril 1977), 14(2): 159-165 e Justiça e Democracia (“A estrutura básica como objeto”), p. 1-42 (tradução da versão revisada do artigo, publicada em 1978: “The Basic Structure as Subject.” In Alvin I. Goldman and Jaegwon Kim, eds., Values and Morals: Essays in Honor of William Frankena, Charles Stevenson, and Richard B. Brandt, pp. 47-71. Dordrecht, Holland & Boston: Reidel, 1978); “Kantian Constructivism in Moral Theory”. Journal of Philosophy (September 1980), 77(9): 515-572, Collected Papers, p. 303-358 e Justiça e Democracia (“O construtivismo kantiano na teoria moral”), p. 43-140; “Social Unity and Primary Goods”. In Amartya Sen and Bernard Williams, eds., Utilitarianism and Beyond, pp. 159-185. Cambridge: Cambridge University Press e Collected Papers, p. 359-387. “The Basic Liberties and Their Priority” In Sterling M. McMurrin, ed., The Tanner Lectures on Human Values, III (1982), pp. 1-87. Salt Lake City: University of Utah Press e Justiça e Democracia (“As liberdades básicas e sua prioridade”), p. 141-198. 2 “Justice as Fairness: Political not Metaphysical.” Philosophy & Public Affairs (Verão 1985), 14(3): 223-251, Collected Papers, p. 388-414 e Justiça e Democracia, p. 199-241.

60

tanto do ponto de vista do método filosófico quanto em relação ao que se espera que seja o

papel de uma filosofia política. Em “O construtivismo kantiano na teoria moral” (1980),

Rawls já tinha deixado claro que seu objetivo era elaborar uma fundamentação para uma

concepção de justiça enquanto tarefa social prática, e não enquanto teoria epistemológica

ou metafísica.

Nesse sentido, o artigo antecipa o que Rawls pretende que seja uma concepção

adequada de uma teoria liberal, ou seja, uma teoria que esteja voltada somente para o

aspecto político, o que, como vimos, será sua preocupação central em Liberalismo. Assim,

Rawls se aproxima mais da idéia de tolerância: abandonando as pretensões que poderiam

ser interpretadas, em Teoria, como universalistas, sua concepção liberal passa a tentar dar

conta da pluralidade de crenças individuais presentes nas sociedades democráticas

contemporâneas.

Obviamente Rawls estava consciente dessa pluralidade de crenças desde os seus

primeiros textos, como tentei mostrar com a breve exposição de seus primeiros artigos, até

chegar em Teoria. É importante não esquecer, quando se passa a uma leitura mais

específica de Liberalismo, que o fato do pluralismo e a incapacidade de concordar sobre

princípios de justiça fundamentais é justamente o que leva Rawls, em Teoria, a elaborar sua

original concepção de posição original na qual as partes contratantes ignoram suas crenças

pessoais. O que passa a ser questionado, portanto, é a amplitude e as condições de

possibilidade desse consenso. A diferença agora é que é preciso reconhecer seriamente que

não é possível mais chegar a um consenso numa sociedade liberal a não ser que essa

sociedade deixe de ser liberal, ou seja, que uma determinada concepção tente ser

estabelecida pelo uso da força.

61

O que resta, então? Para Rawls, é preciso — com o objetivo de não invadir o âmbito

particular de cada concepção moral, religiosa e filosófica, nem de privilegiar nenhuma

delas — abandonar o conceito de verdade em relação a uma teoria sobre a justiça e sobre as

concepções fundamentais que regulam o funcionamento social.3 Rawls adota, assim, um

“método de esquiva” (method of avoidance). O que deve ser buscado é um consenso

somente sobre os aspectos políticos essenciais da sociedade. Se esta é uma restrição

considerável, outra maior será feita quando Rawls insiste em deixar claro que o que ele está

fazendo é simplesmente tentando oferecer uma formulação mais precisa e consistente para

o funcionamento das nossas sociedades democráticas ocidentais.

O primeiro aspecto que deve ser destacado para compreendermos em que sentido a

teoria da justiça deve estar restrita ao âmbito do político é considerar que Rawls retoma

com muito mais força a idéia, já apresentada em Teoria, de que a concepção política da

justiça tem somente um único objetivo: a estrutura básica de uma sociedade democrática

constitucional, com suas instituições econômicas, sociais e políticas. Provavelmente como

uma das características mais importantes da teoria de Rawls — cuja má compreensão

certamente leva a equívocos —, esta restrição à estrutura básica precisa ser levada em

consideração:

“... saber se a teoria da justiça como eqüidade pode ser uma concepção política geral, estendendo-se a diferentes tipos de sociedades, em condições históricas e sociais diferentes, ou se ela pode ampliar-se e tornar-se uma concepção moral geral, ou pelo menos uma parte importante desta última são questões inteiramente distintas, sobre as quais evitarei me pronunciar de uma ou de outra maneira.”4

3 Para uma interessante análise — que mantém os pressupostos rawlsianos, mas ao mesmo tempo tenta ir além de sua argumentação — com o objetivo de mostrar que a teoria da justiça acaba por poder ser vista como uma teoria verdadeira, ver Raz, Joseph. “Facing Diversity: The Case of Epistemic Abstinence”, em The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 133-76. 4 Justiça e Democracia, p. 203-4.

62

O vínculo entre a idéia de estrutura básica e as concepções democráticas é

estabelecido: somente às instituições da estrutura básica da sociedade poderão ser aplicados

princípios que expressam as idéias intuitivas e tradicionais que fundamentam as instituições

políticas de um regime democrático constitucional. Estender essas idéias intuitivas e

tradicionais para além da estrutura básica é extrapolar as restrições de uma teoria

exclusivamente política. Essa especificação provavelmente surpreendeu alguns leitores de

Teoria, na qual eram propostos princípios de justiça para sociedades justas, sem maiores

restrições, portanto.

Evidentemente, por trás dessas idéias existe uma concepção do que é o papel da

filosofia política. Para Rawls, esse papel muda de acordo com épocas e circunstâncias

políticas e sociais. No contexto atual de democracias constitucionais, a filosofia política

deveria, segundo ele, investigar se existe uma base subjacente possível de acordo que

permita a cooperação política. Seria uma tentativa, portanto, de resolver especificamente

uma questão:

“O desenvolvimento do pensamento democrático desde cerca de dois séculos mostrou claramente que não existe acordo algum sobre a maneira de organizar as instituições básicas numa democracia caso elas devam especificar e garantir os direitos e as liberdades básicas dos cidadãos e responder às reivindicações da igualdade democrática — os cidadãos sendo concebidos como pessoas livres e iguais.”5

Para tanto, Rawls apresenta uma argumentação que, embora não conflitante com a

de Teoria,6 dá ênfase a outras questões: para ele, ao buscarmos princípios capazes de

regular a estrutura básica de nossa sociedade, é preciso primeiramente partir de convicções

5 Justiça e Democracia, p. 206. 6 Em nota, Rawls esclarece este ponto: “Ainda que TJ utilize essa idéia desde o começo (ela é introduzida a partir da p. 4), ali eu não insisto (como faço aqui e no “Kantian Constructivism”) no fato de as idéias básicas da teoria da justiça como eqüidade serem consideradas implícitas ou latentes na cultura pública de uma sociedade democrática.” (Justiça e Democracia, p. 213)

63

historicamente estabelecidas ao longo da tradição democrática, como a de tolerância

religiosa e de repúdio à escravidão. Depois, devemos considerar nossa própria cultura

política pública, com suas instituições e tradições, de modo que seja possível formular

princípios que expressem satisfatoriamente essas idéias. Nesse sentido, a tarefa de

encontrar uma base pública para um acordo político só é possível se a sociedade for vista

como um sistema de cooperação social eqüitativa entre pessoas livres e iguais e como

membros normais e integrais dessa sociedade durante toda a sua vida. Essa seria, segundo

Rawls, a questão central do debate entre liberais contra aristocratas, socialistas contra a

democracia constitucional liberal e liberais contra conservadores (atualmente): a

propriedade privada e a legitimidade ou eficácia dos programas sociais do chamado

“Estado-Providência”.

Isso nos leva a entender em que sentido a teoria rawlsiana é tanto prática quanto

filosófica: é filosófica porque exige uma complexa doutrina moral de justiça, mas, ao

mesmo tempo, é prática por estar preocupada em propor soluções que garantam a

estabilidade e a unidade social baseadas no consenso. A relação fica ainda mais clara

quando sabemos que Rawls, reiteradamente, insiste que o sucesso de uma teoria da justiça

deve ser medido por sua capacidade de se transformar em tarefa prática.

Assim, Rawls — numa das passagens fundamentais para entendermos suas

intenções — é explicitamente claro:

“... o objetivo da teoria da justiça como eqüidade não é metafísico nem epistemológico, mas prático. De fato, ela não se apresenta como uma concepção verdadeira, mas sim como uma base para um acordo político informado e totalmente voluntário entre cidadãos que são considerados como pessoas livres e iguais. Quando esse acordo está baseado solidamente em atitudes sociais e políticas públicas, ele garante o bem de todos os indivíduos e de todos os grupos que fazem parte de um regime democrático justo. Por isso tentamos evitar tanto quanto possível as questões filosóficas, assim como as morais e políticas que estejam sujeitas

64

à controvérsia. Não porque essas questões não têm importância ou porque nos são indiferentes, mas porque as consideramos como demasiado importantes e reconhecemos que não é possível resolvê-las no plano político. A única alternativa para o princípio da tolerância seria o recurso autocrático ao poder do Estado. É por isso que, falando filosoficamente, a teoria da justiça como eqüidade permanece na superfície. Dadas as profundas diferenças que existem entre as crenças e as concepções do bem a partir da Reforma, devemos reconhecer que, como no caso das questões de moral ou de religião, um acordo público sobre as questões filosóficas básicas não pode ser obtido sem que o Estado ofenda as liberdades fundamentais. A filosofia, enquanto busca da verdade no tocante a uma ordem moral e metafísica independente, não pode, a meu ver, proporcionar uma base comum e aplicável para uma concepção política da justiça numa democracia.”7

Mais do que isso, Rawls está, desse modo, tentando evitar recorrer a questões

filosóficas de fundo que não foram resolvidas, como, por exemplo, o que seria a concepção

metafísica de pessoa. Pois como querer que questões filosóficas controversas possam servir

de fundamento público para um Estado democrático? Só nos resta recorrer à tolerância e ao

respeito mútuo como os únicos critérios possíveis para colocar de lado questões

controversas e buscar o consenso sobre princípios fundamentais. Nesse sentido,

percebemos que, já em 1974, com o artigo “Reply to Alexander and Musgrave”, Rawls

desloca a discussão do âmbito de uma decisão sobre como melhor dividir os benefícios da

cooperação social para o âmbito da tolerância democrática: “é muito melhor olhar a noção

de uma sociedade bem-ordenada como uma extensão da idéia de tolerância religiosa do

que da idéia de uma economia competitiva”.8 No entanto, é fundamental perceber que as

mudanças feitas por Rawls no sentido de passar a abordar a justificação política, a questão

do realismo e a natureza prática da filosofia política de forma alguma significam uma

mudança substancial na sua concepção igualitária da teoria da justiça. Os valores

fundamentais da teoria da justiça como eqüidade — igual liberdade (representada sobretudo

7 Justiça e Democracia, p. 211-12. 8 Collected Papers, p 235.

65

pela liberdade política), igual oportunidade e eqüidade de distribuição — continuam

válidos. Como afirma Joshua Cohen, “O reconhecimento da diversidade ressaltado pela

noção de um consenso sobreposto não exclui a crítica do privilégio contida nos aspectos

igualitários do liberalismo igualitário.” 9

Mesmo assim, todas esses mudanças provocaram fortes reações críticas, como

explica Paul Weithman:

“Alguns vêm um ceticismo moral levemente velado na recusa de Rawls em declarar a verdade da justiça como eqüidade. A maioria vê em seus recentes ensaios uma desenfatização [de-emphasis] dos elementos kantianos tão proeminentes em Uma Teoria da Justiça e um movimento em direção à realpolitk de Hobbes ou o pragmatismo de Dewey. Mas o que traz à tona a mais forte reação tanto dos que aplaudem quanto dos que criticam o trabalho recente de Rawls é o que parece ser sua politização da filosofia política. A importância que Rawls atribui à consecução de um consenso sobreposto e à fundação de sua teoria em idéias amplamente compartilhadas sugeriu para alguns que o que Rawls realmente dá valor é para resultados políticos e não filosóficos — nas palavras de Jean Hampton, ‘paz e estabilidade ao mais baixo custo político’. Além disso, Rawls parece não estar interessado precisamente no tipo de justificação que os filósofos tradicionalmente buscam. Sua afirmação de que idéias implícitas na cultura democrática são o ponto de partida apropriado para a filosofia política e sua recusa em justificá-los aprofundando mais impressiona alguns como sendo inconsistente com a afirmação de que Rawls está engajado em filosofia e não na prática política.”10

O que está em jogo, portanto, são concepções distintas de qual deve ser o balanço

entre metafísica e política ao elaborar uma teoria de filosofia política. O próprio Paul

Weithman sugere uma interpretação que toma a tarefa rawlsiana em duplo sentido:

primeiro, como o desenvolvimento de uma teoria da justiça que deve mostrar-se adequada

9 Cohen, Joshua, “Moral pluralism and political consensus”, em The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 66. 10 Weithman, Paul. “Liberalism and the Political Character of Political Philosophy”, em The Pilosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 224. Neste artigo, Weithman elabora uma pertinente argumentação para mostrar que divisões muito estanques entre “filosofia política”, “teoria política”, “filosofia moral”, “teoria moral” etc. podem levar a uma interpretação inadequada da obra de Rawls e, por extensão, de muitos outros autores da tradição filosófica.

66

para determinada sociedade e, segundo, como a construção de um consenso sobreposto

sobre essa teoria, ou seja, um consenso que deve se mostrar passível de aceitação pelos

cidadãos. Uma fundamentação mais aprofundada da teoria está, assim, excluída. Esse tipo

de interpretação, segundo Weithman, responde tanto às críticas de que Rawls transformou a

filosofia política em política prática, quando às que de que a idéia de democracia, com

todos os seus pressupostos, superou a filosofia (no sentido de capacidade de formular

justificações). Outro tipo de interpretação à qual Weithman quer se opor é a que defende

que a única forma de se atingir o consenso sobreposto é através de argumentos políticos, e

não filosóficos, já que as formas de justificação se darão através da razão pública baseada

em valores políticos. Como veremos ao analisar as características mais específicas do

consenso sobreposto, essa de fato não parece ser a argumentação de Rawls.

2.2. Elementos fundamentais do liberalismo político

A mudança central que Rawls realiza, portanto, com a idéia de liberalismo político,

é a tentativa de demonstrar que uma sociedade bem-ordenada não pode ter por fundamento

crenças morais essenciais. Isso seria impossível nas sociedades democráticas atuais, onde o

que prevalece de modo geral é uma profunda divisão de concepções religiosas, filosóficas e

morais. Como já vimos, esse é um fato político, social e cultura que não pode ser negado.

Uma teoria política precisa levar realmente a sério essas condições — mais a sério do que

já se tenha tentado anteriormente em filosofia política. Para Rawls, é irrealista elaborar uma

67

teoria que seja “incoerente com a realização de seus princípios num cenário de alta

previsibilidade”.11

É importante constatar que Rawls mantém a estrutura geral de Teoria. Sua

inovadora idéia de posição original — com todas suas conseqüências, sobretudo a escolha

dos dois princípios de justiça — é mantida, pois Rawls continua insistindo no aspecto

liberal e igualitário dos dois princípios12.

Assim, o que vemos estruturado em Liberalismo são dois desafios: 1) manter as

idéias centrais de Teoria — que Rawls acredita ser a formulação mais adequada dos

princípios que devem estabelecer o funcionamento da estrutura básica de uma sociedade

democrática —, mas agora levando em conta o fato do pluralismo razoável; 2) elaborar

uma teoria política que seja plausível ao explicar como é possível que, através de um

consenso sobreposto, cidadãos com as mais diversas concepções morais, filosóficas e

religiosas possam chegar a um acordo sobre a mais justa concepção exclusivamente política

(portanto, nem moral, nem religiosa, nem filosófica) para um regime democrático-

constitucional, sem que suas concepções particulares sejam substituídas ou ganhem novos

fundamentos. Trata-se, em outras palavras, de garantir a existência de uma base de

justificação pública razoável sobre questões políticas fundamentais.

A questão que Rawls quer resolver é a junção desses dois desafios. Cito novamente

um trecho já reproduzido na Introdução, sobre o questionamento principal de Liberalismo:

“... como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis. Em

11 Liberalismo, Introdução, p. 25 12 Após comentar sobre o aspecto igualitário da teoria da justiça, Rawls afirma: “Faço esse comentário porque alguns pensaram que minha formulação das idéias do liberalismo político significava renunciar à concepção igualitária de Teoria. Não me lembro de nenhuma revisão que implique tal mudança e penso que essa conjectura não tem fundamento” (Liberalismo, I, §1, p. 49, nota 6).

68

outras palavras: como é possível que doutrinas abrangentes profundamente opostas, embora razoáveis, possam conviver e que todas endossem a concepção política de um regime constitucional? Qual é a estrutura e o teor de uma concepção política que conquista o apoio de um tal consenso sobreposto?”13

Uma exposição sobre a estrutura da obra pode ser feita destacando as três idéias que

o próprio Rawls considera como “centrais” para o liberalismo político, juntamente com

seus pressupostos e implicações. Primeiro, a idéia de um consenso sobreposto (2.3). Para

uma adequada compreensão dessa idéia é necessário destacar o que Rawls entende por

construtivismo político (2.3.1). Segundo, a idéia de prioridade do justo sobre o bem (2.4)

quando se trata de uma concepção política, o que também envolve a relação entre as

concepções de razoável e racional. Terceiro, a idéia de razão pública (2.5) e sua

importância para a democracia.

2.2.1. Concepção política de justiça

Porém, antes de passar a essas três idéias centrais, é preciso destacar alguns

conceitos e definições fundamentais para uma compreensão adequada do liberalismo

político rawlsiano. O primeiro deles é o significado do que é uma concepção política de

justiça — concepção, afinal, essencial para a argumentação de Liberalismo, sobretudo no

que se refere às diferenças deste livro em relação à Teoria.

Para Rawls, uma concepção política de justiça possui três características principais.

A primeira diz respeito ao objetivo. Trata-se de enfatizar mais uma vez que a concepção

política é voltada para a estrutura básica da sociedade, ou seja, para as principais

13 Liberalismo, Introdução, p. 25-6.

69

instituições políticas, sociais e econômicas de uma democracia constitucional moderna.

Evidentemente, aqui é preciso também considerar o modo pelo qual essas instituições

afetam o caráter e as atitudes dos cidadãos dessa sociedade.

A segunda característica de uma concepção política de justiça — e com isso se

estabelece a diferença em relação à Teoria — é a de que ela deve ser uma visão auto-

sustentada, ou seja, não deve depender da justificação em relação a uma ou mais doutrinas

abrangentes, não deve ter compromisso mais amplo com qualquer outra doutrina. Como

veremos ao longo deste texto, tornar essas considerações plausíveis é o objetivo central de

Liberalismo:

“Usando uma expressão em voga, a concepção política é um módulo, uma parte constitutiva essencial que se encaixa em várias doutrinas abrangentes razoáveis subsistentes na sociedade regulada por ela, podendo conquistar o apoio daquelas doutrinas. Isso significa que pode ser apresentada sem que se afirme, saiba ou se arrisque uma conjectura a respeito das doutrinas a que possa pertencer ou de qual delas poderá conquistar apoio”.14

A terceira característica de uma concepção política de justiça “é que seu conteúdo é

expresso por meio de certas idéias fundamentais, vistas como implícitas na cultura política

pública de uma sociedade democrática”.15 Notemos que, na definição de Rawls, ocorre

uma ampliação em relação à Teoria: a cultura pública não se resume mais somente ao que é

expresso pelos ideais da constituição democrática, mas agora ganha importância também a

interpretação das tradições públicas, textos e documentos históricos de conhecimento geral

e a “cultura de fundo” da sociedade civil, formada pelas diversas doutrinas abrangentes

professadas pelos cidadãos:

“É a cultura do social, não do político. É a cultura da vida cotidiana, de suas diversas associações: igrejas e universidades, sociedades de eruditos

14 Liberalismo, I, §2, p. 55 15 Liberalismo, I, §2, p. 56.

70

e cientistas, clubes e times, para citar apenas algumas. Numa sociedade democrática, há uma tradição de pensamento democrático cujo teor é, no mínimo, familiar e inteligível ao senso comum16 civilizado dos cidadãos em geral. As diversas instituições da sociedade, e as formas aceitas de interpretá-las, são vistas como um fundo de idéias e princípios implicitamente compartilhados”.17

Esse fundo de idéias e princípios implicitamente compartilhados — juntamente com

a idéia organizadora fundamental da justiça como eqüidade e da sociedade enquanto

sistema eqüitativo de cooperação no decorrer do tempo — deve conquistar um consenso

sobreposto.

2.2.2. Concepção política de pessoa

Se em Teoria Rawls não trata de doutrinas abrangentes, ou seja, das concepções

religiosas, morais e filosóficas professadas pelos cidadãos, em Liberalismo, como sabemos,

esse pluralismo será decisivo. Isso poderia significar que Rawls se voltaria para o cidadão

enquanto indivíduo, para uma análise das crenças individuais. No entanto, a posição de

Rawls é muito mais a de olhar o pluralismo simplesmente como um fato dado e irreversível

das sociedades democráticas contemporâneas. Sua análise não tem por objetivo os conflitos

e as características dessas diversas doutrinas ou seu significado histórico e moral — a não

ser, evidentemente, quando isso tem relação direta com seu objetivo central: saber como é

possível que cidadãos que professam as mais variadas doutrinas abrangentes possam chegar

a um acordo sobre princípios políticos fundamentais. Assim, podemos compreender, por

16 Para uma excelente análise da teoria da justiça como uma articulação e explicitação de noções compartilhadas latentes no senso comum, ver a primeira parte do artigo: Perelman, Chaim, “Les conceptions concrete et abstraite de la raison et de la justice” in Fondements d’une théorie de la justice, p. 195-211. 17 Liberalismo, I, §2, p. 56.

71

extensão, que a “idéia fundamental de pessoa” está ligada diretamente à idéia de “sociedade

enquanto sistema eqüitativo de cidadãos livres e iguais no decorrer do tempo”.

Mas, na verdade, a concepção de pessoa em Rawls evolui e é definida de modo

diferente ao longo de suas obras. No artigo “Constitutional Liberty and the concept of

justice” (1963), em uma breve passagem, a pessoa é definida como sujeito de direito, ou

seja, como pessoa jurídica:

“O termo ‘pessoa’ deve ser entendido de modo geral como um sujeito de reivindicações. Em alguns casos, ele significa indivíduos humanos, mas, em outros, se refere a nações, corporações, igrejas, times e assim por diante. Embora haja uma certa prioridade para o caso de indivíduos humanos, os princípios de justiça se aplicam para relações entre todos esses tipos de pessoas, e a noção de uma pessoa deve ser interpretada de acordo.”18

Em Teoria, essa concepção é abandonada e a pessoa passa a ser compreendida

como indivíduo humano ou, às vezes, como chefe de família (no sentido de representante

de interesses). Os indivíduos são considerados como portadores das mesmas capacidades

físicas e mentais e como possuidores de seus próprios planos de vida ou concepções do

bem — condições que necessariamente levarão ao conflito de opiniões sobre a divisão dos

benefícios da cooperação social. Já antecipando um aspecto importante de sua teoria,

Rawls também enfatiza que há uma “diversidade de crenças filosóficas e religiosas, e de

doutrinas políticas e sociais”. De qualquer forma, essa visão de pessoa ainda está ligada à

idéia fundamental de Teoria de se voltar para a resolução do problema da divisão dos

recursos naturais e sociais disponíveis.

Mas em 1980, em “Kantian Constructivism in Moral Theory”, Rawls já esboça uma

concepção de pessoa no sentido kantiano de sujeito moral livre, responsável e autônomo

que, a partir de então, será adotada ao longo de todas as obras seguintes:

18 Collected Papers, p. 75.

72

“No momento, entretanto, estou preocupado com as partes na posição original apenas como agentes racionalmente autônomos de construção que (como tais agentes) representam o aspecto da racionalidade que é parte da concepção da pessoa moral afirmada pelos cidadãos em uma sociedade bem-ordenada. A autonomia racional das partes na posição original contrasta com a autonomia total dos cidadãos na sociedade. Assim, a autonomia racional é aquela das partes como agentes de construção: é uma noção relativamente estreita, e tem um paralelo vago com a noção kantiana dos imperativos categóricos (ou com a noção de racionalidade encontrada na economia neoclássica); a autonomia total é aquela dos cidadãos na vida diária que pensam em si mesmos de um certo modo e afirmam e agem de acordo com o primeiro princípio de justiça que seria acordado.”19

Em Liberalismo, Rawls está interessado na pessoa enquanto alguém que pode ser

um cidadão, ou seja, um membro cooperativo da sociedade. Para isso, é necessário que as

pessoas possuam duas capacidades morais: 1) capacidade de ter senso de justiça; 2)

capacidade de ter uma concepção do bem:

“Senso de justiça é a capacidade de entender a concepção pública de justiça que caracteriza os termos eqüitativos da cooperação social, de aplicá-la e de agir de acordo com ela. Dada a natureza da concepção política de especificar uma base pública de justificação, o senso de justiça também expressa uma disposição, quando não o desejo, de agir em relação a outros em termos que eles também possam endossar publicamente. A capacidade de ter uma concepção do bem é a capacidade de formar, revisar e procurar concretizar racionalmente uma concepção de vantagem racional pessoal, ou bem”.20

Além dessas faculdades morais, as pessoas também devem ser reconhecidas como

tendo concepções do bem sobre aquilo que é importante na vida humana, ou seja, fins

últimos que queremos realizar. Trata-se, portanto, de um conjunto de características cujo

objetivo é somente apontar o que seria um cidadão de uma sociedade democrática. Isso fica

claro quando Rawls exclui casos eventuais, como, por exemplo, o de pessoas que, por

motivos como incapacidade física ou mental, não podem participar adequadamente da

19 Collected Papers, p. 308. 20 Liberalismo, I, §3, p. 62.

73

cooperação social, pois o que interessa na elaboração da teoria é somente um ideal de

cidadão que pode participar ativamente da vida social.

Nesse sentido, Rawls tenta se aproximar de uma concepção a mais “neutra” possível

de pessoa, o que percebemos se voltarmos a refletir sobre as condições da posição original

de escolha dos princípios de justiça: a idéia de véu de ignorância é elaborada simplesmente

como um artifício de representação e pretende não supor nenhuma concepção metafísica

particular de pessoa.21 A descrição das partes na posição original não é nem uma tentativa

de explicação da psicologia moral nem de como os cidadãos agem numa sociedade bem-

ordenada.22

O objetivo de Rawls é mostrar que os cidadãos devem ser concebidos apenas como

livres. E são livres em três sentidos. Primeiro, “concebem a si mesmos e aos outros como

indivíduos que têm a faculdade moral de ter uma concepção do bem”.23 Isso implica a

independência entre a sua identidade pública, como cidadão, e suas crenças específicas

sobre o bem ao longo da vida. Ou seja, abandonar uma crença religiosa (apostasia), não

muda em nada o papel de uma pessoa enquanto cidadã, sua identidade pública ou

21 Acusação feita, por exemplo, por Michael Sandel em Liberalism and the Limits os Justice (Cambridge: Cambridge University Press, 1982) e rebatida por Rawls. 22 Um importante nota de Rawls esclarece esse ponto: “Parte da dificuldade é que não há uma interpretação aceita do que seja uma doutrina metafísica. Pode-se dizer, como Paul Hoffman me sugeriu, que desenvolver uma concepção política de justiça sem pressupor, ou sem usar explicitamente, uma doutrina metafísica específica como, por exemplo, uma concepção metafísica de pessoa, já é pressupor uma tese metafísica, qual seja, que não se requer nenhuma doutrina metafísica para esse propósito. Também se pode dizer que nossa concepção corrente das pessoas como unidades básicas de deliberação e responsabilidade pressupõe, ou envolve de algum modo, certas teses metafísicas sobre a natureza das pessoas enquanto agentes morais ou políticos. Seguindo o método de esquiva, não quero negar essas proposições. O que se deve dizer é o seguinte: se examinarmos a apresentação da justiça como eqüidade e observarmos como é formulada, e observarmos as idéias e concepções que usa, nenhuma doutrina metafísica particular sobre a natureza das pessoas, distinta e contraposta a outras doutrinas metafísicas, aparece entre suas premissas, ou parece exigida pela argumentação. Se há pressupostos metafísicos envolvidos, talvez sejam tão gerais que não se distinguiriam entre as visões metafísicas — cartesiana, leibniziana ou kantiana; realista, idealista ou materialista — que constituem o objeto tradicional da filosofia. Nesse caso, não pareceriam relevantes para a estrutura e o conteúdo de uma concepção política de justiça” (Liberalismo, I, §5, p. 72, nota 31). 23 Liberalismo, I, §5, p. 73.

74

institucional. Essa mudança diz respeito somente à concepção particular do bem e,

portanto, essa pessoa não pode ser, de nenhuma forma, punida por essa mudança.

Segundo, os cidadãos são livres porque são “fontes auto-autenticadoras de

reivindicações válidas. Isto é, consideram-se no direito de fazer reivindicações a suas

instituições de modo a promover suas concepções do bem (desde que essas concepções

estejam incluídas no leque permitido pela concepção pública de justiça)”.24

Terceiro, os cidadãos são livres por serem capazes de assumir responsabilidades por

seus objetivos, o que influencia o modo como lidam com suas reivindicações.

Dadas essas características da concepção de pessoa relacionada ao papel do cidadão

na sociedade, fica mais fácil entender por que Rawls dá tanto destaque à diferença entre

sociedade democrática bem-ordenada, associação e comunidade (tipo especial de

associação, unida por uma doutrina abrangente, como uma igreja). A primeira diferença é

que uma sociedade democrática é um sistema social completo e fechado: é auto-suficiente e

tem espaço para todos os principais objetivos da vida humana, e, para fins metodológicos

(evitar casos específicos demais, de difícil solução, como a questão dos imigrantes), só se

entra nela pelo nascimento e só se sai com a morte. Essa característica permite diferenciar

uma sociedade bem-ordenada de uma associação porque nesta pode-se ingressar a qualquer

momento da vida. Na sociedade, não: nela nascemos e passamos toda a vida.

A segunda diferença entre sociedade bem-ordenada e associação talvez explique

melhor por que Rawls elabora sua teoria estabelecendo uma distinção total entre doutrinas

abrangentes que constituem o pluralismo razoável e a concepção estritamente política de

justiça. Trata-se do fato de que uma sociedade bem-ordenada não tem fins últimos da

mesma forma que as pessoas ou as associações têm:

24 Liberalismo, I, §5, p. 76.

75

“Muitas sociedades do passado pensavam de outra forma: consideravam como fins últimos a religião e a formação de impérios, a dominação e a glória; e os direitos e status dos indivíduos e classes dependiam de seu papel na realização desses fins. Nesse sentido, viam a si próprias como associações. Contrariamente a isso, uma sociedade democrática, com sua concepção política de justiça, não pode de modo algum conceber-se como uma associação. Não tem o direito, como as associações no interior da sociedade geralmente têm, de oferecer termos diferenciados a seus membros (nesse caso, àqueles nascidos nela), em função do valor de sua contribuição potencial para a sociedade como um todo, ou aos fins daqueles que já são membros dela. Se fazer isso é permissível no caso das associações, isso ocorre porque, nesse caso, os membros futuros ou possíveis já têm garantido o status de cidadãos livres e iguais, e as instituições de justiça de base da sociedade asseguram que outras alternativas estejam abertas para eles”.25

2.3. A idéia de um consenso sobreposto

Complementar à concepção de pessoa e seu papel numa sociedade bem-ordenada, a

distinção entre razoável e racional é fundamental para compreender a idéia de consenso

sobreposto e a sua exeqüibilidade — idéia que, como próprio Rawls afirma, é de inspiração

kantiana:

“A distinção entre o razoável e o racional remonta, creio eu, a Kant: é expressa em sua distinção entre o imperativo categórico e o hipotético em Foundations e em outros textos seus. O primeiro representa a razão prática pura, o segundo representa a razão prática empírica. Para os propósitos de uma concepção política de justiça, atribuo ao razoável um sentido mais restrito e associo a ele, primeiro, a disposição de propor e sujeitar-se a termos eqüitativos de cooperação e, segundo, à disposição de reconhecer os limites do juízo e de aceitar suas conseqüências.”26

Nesta linha kantiana, Rawls dirá que as pessoas são razoáveis quando são capazes

de escolher e seguir normas que poderão contribuir para a cooperação social, ou seja, serão

25 Liberalismo, I, §7, p. 85-6. 26 Liberalismo, II, §1, p. 92, nota 1.

76

aceitas por todos. A reciprocidade, portanto, é um elemento fundamental do razoável.

Trata-se também, da idéia de uma concepção pública.

De modo distinto, a reciprocidade não está relacionada ao racional, que diz respeito

às ações dos agentes individualmente, na busca de seus interesses particulares e a todos os

aspectos dessa busca ou escolha de fins ou bens. Não é uma concepção pública, portanto.27

Assim, razoável e racional são duas idéias distintas e independentes e uma não pode

ser derivada da outra. Rawls nega sobretudo a derivação do razoável (princípios bem

definidos de justiça) a partir do racional (preferências e decisões dos agentes):28

“A justiça como eqüidade rejeita essa idéia. Não procura derivar o razoável do racional. Na verdade, a tentativa de fazer isso pode indicar que o razoável não é fundamental e necessita de uma base da qual o racional não precisa na mesma medida. Dentro da idéia da cooperação eqüitativa, o razoável e o racional são noções complementares. Ambos são elementos dessa idéia fundamental, e cada um deles conecta-se com uma faculdade moral distinta — respectivamente, com a capacidade de ter um senso de justiça e com a capacidade de ter uma concepção do bem. Ambos trabalham em conjunto para especificar a idéia de termos eqüitativos de cooperação, levando-se em conta o tipo de cooperação social em questão, a natureza das partes e a posição de cada uma em relação à outra”.29

27 Para uma lista completa dos elementos básicos da concepção dos cidadãos como razoáveis e racionais, ver Liberalismo, II, § 7, p. 126. 28 Nesse sentido, na posição inicial não ocorre uma derivação do razoável em relação ao racional: “Aqui corrijo uma observação de Teoria, p. 16, segundo a qual a teoria da justiça é uma parte da teoria da decisão racional. A partir do que acabamos de dizer, isso é simplesmente incorreto. O que deveria ter sido dito é que a interpretação das partes, e de seu raciocínio, usa a teoria da decisão racional, embora apenas de forma intuitiva. Essa teoria é, ela mesma, parte de uma concepção política de justiça, uma concepção que procura apresentar uma definição dos princípios razoáveis de justiça. Não há a menor intenção de derivar esses princípios do conceito de racionalidade como o único conceito normativo. Acredito que o texto de Teoria como um todo está de acordo com essa interpretação” (Liberalismo, II, §1, p. 96, nota 7). 29 Liberalismo, II, §1, p. 95-6.

77

Portanto, embora distintas, o razoável e o racional são complementares: agentes

puramente razoáveis não teriam fins próprios, e agentes puramente racionais não teriam

senso de justiça, inviabilizando, portanto, a cooperação social.30

Dada a definição de razoável, é possível agora especificar o que são doutrinas

abrangentes razoáveis. Para Rawls, elas possuem três características: 1) ser um exercício da

razão teórica, ou seja, estar relacionada aos principais aspectos religiosos, filosóficos e

morais da vida humana; 2) ser também um exercício da razão prática porque seleciona

valores e tenta equilibrá-los quando em conflito; 3) ser baseada numa tradição de

pensamento e doutrina.31

Assim, a existência de um pluralismo de doutrinas razoáveis abrangentes é um fato

normal de um regime democrático. Melhor dizendo, é um fato normal do pensamento

humano que pode ser desenvolvido em regimes democráticos que procuram garantir

especialmente a liberdade de expressão. E essas diversas doutrinas são razoáveis na medida

em que conseguem coexistir umas com as outras, num ambiente de tolerância e liberdade

de pensamento. Cada cidadão, com sua doutrina razoável, sabe que os outros são livres

para terem suas próprias doutrinas e que, portanto, não há espaço para qualquer tipo de

coação por alguém adotar qualquer tipo de doutrina, desde que ela seja razoável.

30 Para um entendimento do que Rawls chama de “limites do juízo” (burdens of judgement), ou seja, elementos que causam discordância entre as pessoas razoáveis, e que são de extrema importância para a idéia democrática de tolerância, ver “Os limites do juízo” (Liberalismo, II, §2). 31 Como a intenção de Rawls é elaborar uma teoria ideal, ele evita uma definição demasiadamente fechada de doutrina abrangente: “Essa definição de doutrinas abrangentes e razoáveis é deliberadamente vaga. Evitamos excluir doutrinas como não-razoáveis, a não ser que tenhamos razões sólidas para tanto, fundadas em aspectos claros do razoável propriamente dito. Caso contrário, nossa definição corre o risco de ser arbitrária e exclusiva. O liberalismo político considera razoáveis muitas das doutrinas conhecidas e tradicionais — religiosas, filosóficas e morais —, mesmo quando não as levamos seriamente em conta em termos pessoais, por pensarmos que dão peso excessivo a alguns valores e não reconhecem a importância de outros. Mas o liberalismo político não precisa de um critério mais rigoroso para seus propósitos”. (Liberalismo, II, §3, p. 103-4). Por outro lado, sua visão é bastante clara quando se trata de limitar doutrinas não-razoáveis: “A existência de doutrinas que negam uma ou mais liberdades democráticas é, por si, um fato permanente da vida, ou assim parece. Isso nos impõe a tarefa prática de contê-las — como se contém uma guerra ou uma doença —, para que não subvertam a justiça política”. (Liberalismo, II, §3, p. 108, nota 19).

78

Essa concepção de convivência entre doutrinas razoáveis tem por objetivo criar a

possibilidade de existência de uma base pública de justificação, através da qual os

cidadãos, embora com suas concepções particulares, possam chegar a um acordo sobre

questões políticas fundamentais.

Portanto, outro fator essencial para garantir uma base pública de justificação é o que

Rawls chama de “condição de publicidade”, com seus três níveis. O primeiro diz respeito

ao momento em que “a sociedade é efetivamente regulada por princípios públicos de

justiça: os cidadãos aceitam e sabem que os outros também aceitam esses princípios, e

essa percepção, por sua vez, é publicamente reconhecida.”32 O nível seguinte diz respeito

às crenças gerais, são as visões públicas do que é uma sociedade bem-ordenada. E o

terceiro nível diz respeito à justificação plena da concepção pública de justiça, presente na

cultura pública, no sistema jurídico, nas instituições políticas e nas tradições históricas.

Assim, é importante que uma estrutura básica apoiada em sanções coercitivas

(Estado como detentor do monopólio da força) satisfaça as condições do que Rawls chama

de “publicidade plena”, já que as instituições da estrutura básica devem resistir ao exame

público e os cidadãos devem ter claro para si mesmos o que essas instituições exigem e o

que podem exigir delas — instituições essas que são, afinal, responsáveis por moldar as

concepções dos cidadãos sobre si mesmos, seu caráter e seus fins.

2.3.1. O construtivismo

O aspecto kantiano da obra de Rawls apresenta, além da distinção entre razoável e

racional, um outro elemento: a concepção de que os princípios de justiça política devem ser

32 Liberalismo, II, §4, p. 110.

79

o resultado de um procedimento de construção. Esse processo construtivista tem por

objetivo atingir uma concepção adequada de objetividade e é a estrutura que gera o

conteúdo (os princípios de justiça):

“Nesse procedimento, modelado de acordo com a posição original, os agentes racionais, enquanto representantes dos cidadãos e sujeitos a condições razoáveis, selecionam os princípios públicos de justiça que devem regular a estrutura básica da sociedade. Esse procedimento, assim conjeturamos, sintetiza todos os requisitos relevantes da razão prática e mostra como os princípios de justiça resultam dos princípios da razão prática conjugados às concepções de sociedade e pessoa, também elas idéias da razão prática.”33

Fazendo uma distinção entre o construtivismo político e o realismo moral

representado pelo intuicionismo racional por um lado, e o construtivismo moral kantiano,

por outro lado,34 Rawls apresenta as quatro características principais do construtivismo

político. Primeiro, como já foi mencionado, o procedimento de construção é a estrutura que

elabora os princípios de justiça através da seleção feita pelas partes submetidas a condições

razoáveis.

Segundo, o procedimento de construção está baseado na razão prática, e não na

teórica, ou seja, está baseado na razão que — seguindo a definição de Kant — produz

objetos de acordo com a concepção desses objetos, como a concepção de um regime

constitucional justo como sendo o objetivo da atividade política; enquanto a razão teórica

está relacionada somente ao conhecimento dos objetos.

Terceiro, o construtivismo político recorre a uma concepção completa de pessoa e

de sociedade, de acordo com o já exposto, ou seja, as pessoas (com suas capacidades

33 Liberalismo, III, p. 134. 34 Cf. Liberalismo, III, §§ 1 e 2.

80

morais e concepções do bem) são vistas como membros de uma sociedade política que, por

sua vez, é vista como um sistema eqüitativo de cooperação social.

Por fim, em quarto lugar, o construtivismo não usa o conceito de verdade, mas sim

o de razoabilidade, de acordo com as características dessa concepção já vistas por nós.

Nesse sentido, o construtivismo político não gera nenhuma ordem de valores morais, pois

está preocupado somente com princípios de justiça. Essa e todas as demais características

estão relacionadas com a idéia de que os princípios de justiça devem estar de acordo com a

cooperação social baseada não em alguma verdade suprema ou autoridade externa, como,

por exemplo, a autoridade divina, mas em um acordo entre os próprios cidadãos sobre o

que promoverá o benefício mútuo. Em suma, é uma visão doutrinal autônoma porque não

depende de exigências morais — exteriores ou não (caso da heteronomia doutrinal).

Semelhantemente à concepção construtivista na matemática, o construtivismo político

adota a idéia de avaliação de todos os critérios relevantes para a escolha do raciocínio

correto, só assim é possível articular uma concepção política de justiça que possa ser

aceitável para todas as doutrinas abrangentes e razoáveis de uma sociedade.

2.3.2. As características do consenso sobreposto

Analisados todos esses elementos fundamentais, podemos passar agora para uma

caracterização mais detalhada da idéia de consenso sobreposto com o objetivo de seguir a

argumentação rawlsiana sobre a possibilidade de um tal consenso garantir a estabilidade e

unidade de uma sociedade democrática bem-ordenada — que não podem ser garantidas

através de uma doutrina abrangente. Trata-se, portanto, de saber como o liberalismo

político é possível, o que significa questionar como é possível que valores políticos possam

81

superar o conflito entre os valores não-políticos, e também o conflito desses valores com o

próprio valor político. O pressuposto de Rawls é que os cidadãos possuem a capacidade de

fazer uma distinção clara entre sua visão política e sua visão abrangente, cabendo a eles

próprios a tarefa de relacionar esses dois âmbitos. 35

Assim, uma sociedade será estável se cumprir duas condições, relacionadas,

respectivamente, com as duas questões principais do liberalismo político (estabelecer uma

concepção de justiça e lidar com o fato do pluralismo razoável):

“A estabilidade envolve duas questões: a primeira é saber se as pessoas que crescem em meio a instituições justas (como a concepção política as define) adquirem um senso de justiça suficiente, de modo a geralmente agirem de acordo com essas instituições. A segunda é saber se, em vista dos fatos gerais que caracterizam a cultura política e pública de uma democracia — e, em particular, o fato do pluralismo razoável —, a concepção política pode ser o foco de um consenso sobreposto. Pressuponho que esse consenso consista em doutrinas abrangentes e razoáveis que, em uma estrutura básica justa (como a concepção política a define), provavelmente persistirão e conquistarão adeptos no decorrer do tempo. Ambas as questões requerem uma resposta em separado. A primeira é respondida pela exposição da psicologia moral, de acordo com a qual os cidadãos de uma sociedade bem-ordenada adquirem um senso de justiça normalmente suficiente, de tal modo que agem de acordo com seus arranjos justos. A segunda é respondida pela idéia de um consenso sobreposto e pelo enfrentamento das várias dificuldades geradas por ele.”36

Em ambos os casos, será preciso recorrer à idéia de psicologia moral, já que se trata

de conquistar o apoio de cada cidadão.

Uma das importantes características destacadas por Rawls para que se entenda

exatamente em que consiste um consenso sobreposto é diferenciá-lo de um modus vivendi, 35 Jeremy Waldron, no artigo “Disagreements about justice” (The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 78-91), defende a tese de que é preciso especificar melhor a distinção entre desacordo sobre o bem e desacordo sobre a justiça, ou seja, sobre concepções de justiça. Waldron tenta mostrar que Rawls não leva em consideração esse último desacordo de uma forma adequada com a política e o processo constitucional de nossas sociedades. 36 Liberalismo, IV, §2, p. 187.

82

expressão utilizada para descrever um tratado entre dois Estados em conflito. O acordo só é

possível porque se chega a um equilíbrio de interesses que seja vantajoso para ambos. Essa

estabilidade será quebrada se um Estado, ou ambos, pressionarem no sentido de perseguir

seus interesses particulares. Portanto, o modus vivendi é uma situação de aparente

estabilidade, baseada em condições que não fornecem uma justificação satisfatória para a

tolerância. Como afirma Samuel Scheffler,

“... uma defesa da tolerância que se baseia inteiramente em fundamentos pragmáticos parece incapaz de dar conta do apelo moral da idéia de tolerância e, de qualquer forma, mantém a sua força apenas enquanto o balanço necessário de poder na sociedade é preservado. Se um grupo ganha força suficiente de modo que uma política de intolerância possa parecer tentadora, o argumento pragmático não fornece razões para resistir à tentação.”37 A função do consenso sobreposto é justamente diferenciar-se desse modus vivendi.

Para isso, o objetivo é que o acordo sobre os princípios políticos fundamentais venha de

cada uma das próprias visões abrangentes. Esse fato, juntamente com a idéia de uma

concepção política independente e que não contraria nenhuma doutrina abrangente, faz

com que o consenso sobreposto seja mantido mesmo que alguma doutrina abrangente

ganhe mais força na sociedade, diferentemente do que ocorre com um simples modus

vivendi.

O mérito do consenso sobreposto seria, portanto, combinar as vantagens da situação

de equilíbrio de um modus vivendi (a estabilidade) com as de uma concepção pluralista de

valor,38 mas evitando as falhas de ambas (precariedade da estabilidade e falta de

fundamentação para a tolerância). Isso é feito através de uma combinação do

37 Scheffler, Samuel. “The Appeal of Political Liberalism”, The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 95. 38 Uma concepção pluralista de valor pode ser um nome dado às teorias que afirmam que o que tem valor para as pessoas é algo irredutivelmente heterogêneo e, portanto, só resta tolerar os mais diversos modos de vida. É um tipo de teoria que, portanto, não oferece fundamentos mais profundos para a idéia de tolerância.

83

reconhecimento do desacordo e da diversidade presentes na sociedade e da tentativa de

evitar o conflito com qualquer argumentação moral controversa. Rawls procura

fundamentar sua argumentação somente nas razões morais que os cidadãos possuem e que

sustentam a sociedade liberal.

Uma segunda característica importante do consenso sobreposto é que ele não

defende nem nega qualquer doutrina abrangente. A questão sobre a verdade das doutrinas

abrangentes não pode ser objeto do consenso sobreposto. Só dessa forma é possível fazer

com que todos os cidadãos aceitem uma concepção política de justiça e, a parir de suas

próprias visões filosóficas, religiosas e morais, apóiem essa concepção. Sem isso, as

controvérsias seriam inevitáveis, e o consenso, impossível.

Evidentemente, essa concepção de Rawls é o aspecto mais problemático e de difícil

aceitação de todo o seu liberalismo político. Rawls apresenta quatro exemplos de tipos de

situações que poderiam levar a um consenso sobreposto. O primeiro seria o caso de adeptos

de uma doutrina religiosa que aceitariam o consenso porque defendem a livre expressão da

fé, o que é garantido pelas liberdades fundamentais de um regime constitucional em uma

sociedade regida pelos dois princípios de justiça. O segundo exemplo seria o de defensores

de doutrinas liberais abrangentes como as de Kant e de Stuart Mill; essas pessoas

chegariam ao consenso porque ele não contraria nenhuma de suas visões abrangentes

particulares. Uma das insistências de Rawls, portanto, é em diferenciar seu liberalismo

político desses tipos de liberalismos abrangentes. O terceiro exemplo seria, na verdade, o

mais freqüente em sociedades capitalistas com uma certa tradição democrática: pessoas que

não necessariamente possuem uma visão abrangente unificada, somente crenças sobre

concepções de justiça, juntamente com outros valores não políticos. Para Rawls, neste caso

não seria difícil chegar a um consenso sobreposto. O quarto exemplo é o mais

84

problemático: que adeptos de teorias utilitaristas aceitariam o consenso sobreposto. Ora,

toda a argumentação de Rawls sobre os dois princípios de justiça tem por objetivo ser uma

alternativa à teoria utilitarista, como já vimos estar bastante claro sobretudo em Teoria.

Como, então, adeptos do utilitarismo poderiam endossar um consenso sobreposto sobre os

princípios da justiça como eqüidade? Claro que a resposta de Rawls, até mesmo já

antecipada em Teoria, é a de que em condições sociais normais até mesmo um utilitarista

concordaria que os princípios de justiça seriam uma aproximação mais adequada do

princípio da utilidade. Mas essa resposta é satisfatória? É satisfatória para esse e também

para os demais casos de doutrinas abrangentes? E até que ponto a aceitação do consenso

sobreposto não força em direção a um enfraquecimento das doutrinas abrangentes?

Talvez uma resposta não possa ser dada especificamente para essas questões, mas

sim uma resposta em direção à outra forma pela qual um consenso sobreposto pode ser

alcançado. E essa resposta está justamente no terceiro exemplo mencionado logo acima:

que o comum em sociedades liberais que já internalizaram seus valores fundamentais é que

os cidadãos não sejam adeptos de doutrinas abrangentes totalmente articuladas, e sim que

defendam valores e convicções que variam em graus de generalidade. Isso remeteria para a

idéia de que um consenso sobreposto precisa ser compreendido como consenso entre

cidadãos e não entre adeptos de determinadas teorias abrangentes. Essa interpretação

estaria de acordo com a concepção rawlsiana de cidadão e de pessoa e das visões que esses

cidadãos precisam ter sobre a sociedade onde vivem.

Outro aspecto controverso é até que ponto os cidadãos que aceitam um consenso

sobreposto o vêem como uma concepção de fato política, ou seja, uma concepção que

sustenta a si mesma — portanto, não derivada de nenhuma doutrina abrangente — e é a

85

formulação de idéias implícitas na cultura política pública de uma sociedade. Como Samuel

Scheffler explica, trata-se de uma questão de nível de exigência:

“... pareceria insensato fazer disso [aceitar o consenso sobreposto como uma concepção política] um requisito para participar de um consenso sobreposto. Pois em quanto mais coisas as pessoas tenham que acreditar de forma a serem incluídas em tal consenso, mais difícil será para um consenso ser realmente alcançado. Em outras palavras, se a participação no consenso requer a afirmação não apenas de um conjunto particular de princípios de justiça, mas também de certas “metateses” [metatheses] sobre o status desses princípios, então, mantendo as outras coisas, se esperaria que o consenso incluísse menos pessoas.”39

Podemos considerar que uma possível resposta para esse problema estaria na idéia

de razão pública e no modo pela qual ela funciona de modo a dar apoio a uma idéia de

consenso sobreposto que seja compreendido como exclusivamente político. Veremos logo

em seguida que a distinção feita por Rawls entre visão inclusiva e visão exclusiva de razão

pública pode ajudar a esclarecer esse ponto.

Por fim, Rawls apresenta uma exposição do modo pelo qual um consenso

sobreposto se forma. A idéia é baseada em parte numa concepção que toma a história como

exemplo: num primeiro estágio, há um consenso constitucional sobre os princípios liberais

de justiça, inicialmente aceitos apenas como um modus vivendi. Por serem princípios

adotados na constituição, de alguma forma os cidadãos alterarão suas doutrinas abrangentes

caso elas sejam contrárias a esses princípios liberais.

A partir de então, alguns passos são dados em direção ao consenso sobreposto.

Primeiramente, os grupos políticos, de uma forma ou de outra, são forçados a participar da

discussão pública. Já que inevitavelmente haverá confrontos com outros grupos que não

apóiam a mesma doutrina abrangente, isso implica que é necessário elevar a discussão para

39 Scheffler, Samuel. “The Appeal of Political Liberalism”, The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 103.

86

o âmbito de concepções políticas de justiça mais amplas que possam ser justificadas

publicamente. Logo em seguida, surgem reivindicações relacionadas à extensão do

consenso, já que é preciso garantir que haja um certo nível mínimo de bem-estar material e

social que torne os cidadãos capazes de participar da sociedade como iguais. A idéia geral

de Rawls é a de que, ao longo do tempo, a partir de um modus vivendi instável, passando

por um consenso constitucional em direção, finalmente, a um consenso sobreposto, os

cidadãos ganham confiança uns nos outros e em todo o processo. Nesse sentido, passam a

ter respeito pelos limites da razão pública. Só assim é possível garantir uma harmonia entre

a concepção política e as visões abrangentes, conjuntamente com o reconhecimento público

das principais virtudes e valores políticos.

2.4. A prioridade do justo sobre o bem

Outro aspecto essencial para o liberalismo político é compreender os motivos e as

conseqüências da afirmação de que, na teoria da justiça como eqüidade, o justo tem

prioridade sobre o bem. Trata-se novamente de tornar claros os limites entre a concepção

política de justiça, restrita à estrutura básica da sociedade, e as diversas doutrinas

abrangentes — cada uma com significados próprios do que seja o bem — presentes na

sociedade:

“O significado específico da prioridade do justo é o de que as concepções abrangentes do bem são aceitáveis, ou pode-se procurar realizá-las na sociedade, apenas quando sua realização está em conformidade com a concepção política de justiça.”40

40 Liberalismo, V, §1, p. 223, nota 2.

87

Rawls cita cinco idéias de bem que são encontradas na justiça como eqüidade: 1) o

bem como racionalidade; 2) os bens primários; 3) o bem enquanto parte de doutrinas

abrangentes; 4) as virtudes políticas; 5) o bem numa sociedade bem-ordenada. Apenas faço

alguns comentários sobre as idéias que ilustram de forma mais esclarecedora a distinção

entre a concepção política de justiça e as doutrinas abrangentes.

Uma importante idéia de bem que precisa ser levada em consideração é a de bens

primários, que são escolhidos através de um entendimento político sobre o que deveria ser

publicamente reconhecido como as necessidades básicas dos cidadãos. O objetivo é chegar

a uma lista de bens primários que garanta que os cidadãos possam realizar seus projetos

racionais, ou seja, suas idéias do que seja o bem racional (primeiro tipo de bem citado

acima).

Baseado em comparações interpessoais e levando em consideração o fato do

pluralismo razoável, Rawls propõe as seguintes categorias de bens primários:41

“a. os direitos e liberdades fundamentais, que também constituem uma lista; b. liberdade de movimento e livre escolha de ocupação num contexto de oportunidades diversificadas; c. poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas da estrutura básica; d. renda e riqueza; e. as bases sociais do auto-respeito.”42

Assim, essa idéia de bens razoáveis é uma concepção política que tem como

objetivo atender à idéia de bem como racionalidade. Os bens primários especificam as

necessidades dos cidadãos em relação às questões de justiça política. 41 Rawls chama atenção (Liberalismo, V, §3, p. 231-4) para as várias objeções levantadas sobre a questão dos bens primários (idéia já exposta em Teoria). Essas objeções dizem respeito à adequação dos bens primários à diversidade de capacidades morais, intelectuais, físicas (deficiências), à diversidade de concepções de bem, de gosto, de preferência, etc. Refutando essas objeções, digamos assim, contingentes, fica claro que Rawls está interessado somente numa formulação ideal da idéia dos bens primários. 42 Liberalismo, V, §3, p. 228.

88

Outro importante aspecto que precisa ser destacado são as observações de Rawls

sobre a questão da neutralidade:

“Historicamente, um tema comum do pensamento liberal é o de que o Estado não deve favorecer nenhuma doutrina abrangente, nem a concepção do bem associada a cada uma delas. Mas um tema igualmente comum de crítica ao liberalismo é o de que este não consegue pôr essa idéia em prática e, na verdade, tende arbitrariamente em favor de uma forma ou outra de individualismo. Como observei no início, pode parecer que a afirmação da prioridade do justo deixa a justiça como eqüidade (enquanto uma forma de liberalismo político) vulnerável a uma objeção semelhante.”43

Essa posição do liberalismo leva à necessidade de especificar em que sentidos a

teoria da justiça como eqüidade pode ser chamada de neutra. Rawls apresenta três sentidos

para o termo neutralidade: 1) neutralidade procedimental; 2) neutralidade de objetivos; 3)

neutralidade de influência. A neutralidade procedimental seria aquela pressuposta num

procedimento que não recorreria a qualquer valor moral. Rawls afirma que a justiça como

eqüidade não é neutra no sentido procedimental. Isso ocorre porque ela recorre, sim, a

princípios de justiça que são substantivos e a concepções determinadas de pessoa e de

sociedade.

Quanto à neutralidade de objetivos, Rawls enfatiza que a justiça como eqüidade só é

neutra em relação aos objetivos se isso significar não-interferência do Estado para

promover ou favorecer qualquer doutrina abrangente ou os que a seguem. Assim, não há

neutralidade de objetivo nem no sentido de promover qualquer doutrina abrangente

(somente as doutrinas que respeitam os princípios de justiça podem florescer), nem no

sentido de não exercer certa influência sobre doutrinas abrangentes que, afinal, devem

seguir os princípios da justiça:

43 Liberalismo, V, §5, p. 238.

89

“...podemos distinguir a neutralidade procedimental da neutralidade de objetivo; mas esta última não deve ser confundida com neutralidade de efeito ou de influência. Enquanto uma concepção política voltada para a estrutura básica, a justiça como eqüidade, considerada em seu todo, procura oferecer um terreno comum como objeto de um consenso sobreposto. E também espera satisfazer a neutralidade de objetivo, a fim de que as instituições básicas e a política pública não sejam planejadas para favorecer qualquer doutrina abrangente específica. O liberalismo político deixa de lado a neutralidade de efeito ou de influência como algo impraticável, e, como essa idéia é sugerida muito fortemente pelo próprio termo “neutralidade”, tem-se aí um motivo para evitá-lo. Embora o liberalismo político procure um terreno comum e seja neutro quanto ao objetivo, é importante enfatizar que, apesar disso, pode afirmar a superioridade de certas formas de caráter moral e encorajar certas virtudes morais. Assim sendo, a justiça como eqüidade inclui uma definição de certas virtudes políticas — as virtudes da cooperação social eqüitativa, tais como as virtudes da civilidade e da tolerância, da razoabilidade e do senso de justiça. O ponto crucial é que admitir essas virtudes no âmbito de uma concepção política não leva ao Estado perfeccionista de uma doutrina abrangente.”44

A idéia de Rawls, portanto, é a de que o Estado deve procurar somente seguir os

princípios mais razoáveis para garantir a cooperação social entre cidadãos livres e iguais.

Isso pode influenciar certas doutrinas abrangentes? Sim, mas este fato, para Rawls, não

pode ser evitado. Resta saber, então, se essa influência inevitável sobre doutrinas

abrangentes e modos de vida ligados a elas é justa. Para Rawls, essa influência parece ser

justa, dado que os dois casos em que há conflitos são resultado de doutrinas abrangentes

que, devido a suas reivindicações, não podem encontrar espaço numa sociedade

democrática: 1) doutrinas abrangentes que não concordam com os princípios de justiça (a

favor da escravidão, por exemplo) e 2) doutrinas abrangentes que, embora permissíveis,

não conquistam adeptos justamente por pregar idéias como a de controle do Estado ou a

intolerância. Recorrendo a Isaiah Berlin,45 Rawls afirma que é impossível uma sociedade

44 Liberalismo, V, §5, p. 242. 45 Cf. Liberalismo, V, §6, p. 245, nota 32.

90

que comporte absolutamente todas as visões de mundo, pois isso levaria ao caos. Alguma

perda sempre haverá.

Por fim, a última idéia de bem — o bem da sociedade política — esclarece de que

modo Rawls lida com as críticas de que seu liberalismo político não consegue ultrapassar a

concepção liberal clássica de “sociedade de fins individuais” ou “sociedade privada”, na

qual o que importa é somente a busca individual dos interesses de cada cidadão, ou seja,

onde não haveria uma “ideal de comunidade”. Para Rawls, se por “ideal de comunidade” se

entender um ideal social determinado por uma doutrina abrangente, de fato não há espaço

para esse ideal na sociedade proposta pelo seu liberalismo político. A única unidade social

possível é aquela derivada de um consenso sobreposto relativo a uma concepção política de

justiça para um regime constitucional. Não seria possível desejar mais do que esse

consenso sobreposto a respeito das questões políticas fundamentais:46

“A partir dessas suposições, podemos dizer que a sociedade bem-ordenada da justiça como eqüidade é um bem em dois sentidos. O primeiro é ser um bem para as pessoas individualmente, e por duas razões. Uma delas é que o exercício das duas capacidades morais é percebido como um bem. Trata-se de uma conseqüência da psicologia moral utilizada pela justiça como eqüidade. (...) Uma segunda razão para dizermos que a sociedade política é um bem para os cidadãos é que lhes garante o bem da justiça e das bases sociais de seu auto-respeito e do respeito mútuo. Assim sendo, ao assegurar iguais direitos e liberdades fundamentais, igualdade eqüitativa de oportunidades e assim por diante, a sociedade política garante os elementos essenciais do reconhecimento público das pessoas como cidadãos livres e iguais. Ao garantir essas coisas, a sociedade política satisfaz as necessidades fundamentais dos cidadãos.”47

46 Para complementar as explicações sobre o bem da sociedade política, ver as importantes considerações feitas por Rawls sobre o “republicanismo clássico” e o “humanismo cívico” em Liberalismo, V, §7, p. 253-5. 47 Liberalismo, V, §7, p. 251-2.

91

2.5. A idéia de razão pública

O último elemento a destacar no liberalismo político de Rawls é a importante idéia

de razão pública:

“A razão pública é característica de um povo democrático: é a razão de seus cidadãos, daqueles que compartilham o status da cidadania igual. O objeto dessa razão é o bem público: aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das instituições da sociedade e dos objetivos e fins a que devem servir. Portanto, a razão pública é pública em três sentidos: enquanto a razão dos cidadãos como tais, é a razão do público; seu objetivo é o bem do público e as questões de justiça fundamental; e sua natureza e conceito são públicos, sendo determinados pelos ideais e princípios expressos pela concepção de justiça política da sociedade e conduzidos à vista de todos sobre essa base.”48

Para Rawls, portanto, a razão pública está restrita aos “elementos constitucionais

essenciais”49 e às questões de justiça básica, mas não a todas questões políticas, mesmo que

sejam questões políticas públicas. Obviamente, também não se aplica às deliberações

pessoais ou de grupos (igrejas, universidades, sociedades científicas, grupos profissionais

etc., que possuem razões não públicas50) sobre questões políticas. O objetivo é evitar

controvérsias, tanto que Rawls exclui até mesmo o segundo princípio de justiça —

igualdade eqüitativa de oportunidades e o princípio da diferença — dos elementos

constitucionais essenciais por ele não ser uma questão tão pacífica quanto o primeiro

princípio que garante as liberdades básicas.

48 Liberalismo, VI, p. 261-2. 49 Os elementos constitucionais essenciais são de dois tipos: “a. os princípios fundamentais que especificam a estrutura geral do Estado e do processo político: as prerrogativas do legislativo, do executivo e do judiciário; o alcance da regra da maioria; b. os direitos e liberdades fundamentais e iguais de cidadania que as maiorias legislativas devem respeitar, tais como o direito ao voto e à participação na política, a liberdade de consciência, a liberdade de pensamento e de associação, assim como as garantias do império da lei.” (Liberalismo, VI, §5, p. 277). 50 Cf. Liberalismo, VI, §3, p. 269-72).

92

Com isso, Rawls quer deixar claro que os limites da razão pública devem ser

respeitados em qualquer discussão sobre questões políticas fundamentais, ou seja, não se

pode recorrer a uma concepção de verdade para resolver problemas políticos fundamentais.

Assim, os limites da razão pública são especificados precisamente: além de se voltar

exclusivamente para as questões políticas fundamentais, a razão pública deve se aplicar não

somente aos fóruns oficiais e àqueles que os ocupam, mas também aos cidadãos em geral.

Sem isso, a idéia de cooperação social ruiria e não haveria sentido em pensar os cidadãos

como detentores de igual poder político coercitivo:

“Enquanto razoáveis e racionais, e sabendo-se que endossam uma grande diversidade de doutrinas religiosas e filosóficas razoáveis, os cidadãos devem estar dispostos a explicar a base de suas ações uns para os outros em termos que cada qual razoavelmente espera que outros possam aceitar, por serem coerentes com a liberdade e igualdade dos cidadãos. Procurar satisfazer essa condição é uma das tarefas que esse ideal de política democrática exige de nós. Entender como se comportar enquanto cidadão democrático inclui entender um ideal de razão pública.”51

Obviamente, Rawls não desconsidera os problemas mais comuns enfrentados pela

razão pública, mostrando, assim, que ela não é um conceito “engessado”. É preciso levar

em consideração que às vezes não será possível chegar a um acordo muito grande na razão

pública, mas isso não pode significar um motivo para abandoná-la. A idéia central de

Rawls, aqui, é que não é necessário que todos aceitem os mesmos princípios de justiça, mas

que as discussões sejam conduzidas em termos de idéias sobre a concepção política que

todos aceitam, ou seja, através da qual possam justificar seu voto uns aos outros através de

argumentos razoáveis. Nesse sentido, estabelece-se uma clara diferença entre o que a razão

pública e uma doutrina abrangente dariam como resposta para uma determinada questão

política. Apenas o que se espera é que a resposta da razão pública esteja no que Rawls

51 Liberalismo, VI, §2, p. 267.

93

chama de “margem de segurança permitida por cada uma das doutrinas abrangentes e

razoáveis que constituem um consenso sobreposto”.52 Evidentemente, essa margem tem

que ser compreendida no sentido de que é preciso que as doutrinas abrangentes estejam de

acordo com a concepção política que é, afinal, uma expressão razoável das idéias políticas

fundamentais estabelecidas por cidadãos livres e iguais.

Além disso, Rawls estabelece a distinção entre “visão exclusiva” e “visão inclusiva”

da razão pública. A primeira afirma que as razões de doutrinas abrangentes não devem ser

introduzidas na razão pública; a segunda afirma que é permitido aos cidadãos apresentar os

valores políticos de doutrinas abrangentes em fóruns públicos, desde que isso sirva pra

fortalecer o próprio ideal de razão pública. A opinião de Rawls sobre esse ponto mostra

como sua concepção de razão pública é “flexível”, como ele mesmo afirma:

“A questão é, nesse caso, saber se devemos entender o ideal de razão pública de acordo com a visão exclusiva ou de acordo com a visão inclusiva. A resposta depende de qual das duas visões incentiva mais os cidadãos a respeitarem o ideal da razão pública, assegurando suas condições sociais ao longo prazo numa sociedade bem-ordenada. Aceitando-se isso, a visão inclusiva parece ser a melhor, pois em condições políticas e sociais diferentes, com diferentes famílias de doutrina e prática, o ideal deve certamente ser promovido e realizado de formas diferentes, às vezes pelo que parece ser uma visão exclusiva, outras vezes pelo que parece ser uma visão inclusiva. Aquelas condições determinam, portanto, a melhor maneira de atingir o ideal, tanto a curto quanto a longo prazo. A visão inclusiva admite essa variação e é mais flexível, quando isso é necessário para promover o ideal de razão pública.”53

Assim, a visão exclusiva seria mais adequada a uma sociedade bem-ordenada,

enquanto a inclusiva, a uma sociedade mais ou menos bem-ordenada. O exemplo que

Rawls dá é o do complexo conflito presente em várias discussões sobre o

52 Liberalismo, VI, §7, p. 297. 53 Liberalismo, VI, §8, p. 299.

94

multiculturalismo, a respeito da igualdade eqüitativa de oportunidades para a educação,

sobretudo em relação à intervenção do Estado em escolas que pertencem a igrejas. A

alternativa proposta é que os argumentos das doutrinas abrangentes sejam apresentados no

fórum público, de modo a mostrar a todos quais são os reais pressupostos da discussão e,

assim, mostrar que, embora conflitantes, as doutrinas abrangentes não estão em um mero

modus vivendi, ou seja, seus defensores querem respeitar um consenso sobreposto e realizar

a discussão em termos de razão pública.54

De modo semelhante, Rawls cita o exemplo dos protestos contra a escravidão antes

da Guerra Civil Americana. Vários dos abolicionistas defendiam o fim da escravidão com

argumentos religiosos, sobretudo o da igualdade entre os homens perante deus. Nesse caso,

os abolicionistas poderiam sem problemas apoiar os valores estritamente políticos da razão

pública — valores, portanto, não religiosos:55

“Isso aponta para o fato de que possivelmente, para que uma sociedade bem-ordenada, na qual a discussão pública consiste principalmente no apelo a valores políticos, venha a existir, as condições históricas prévias podem exigir que razões abrangentes sejam invocadas para fortalecer esses valores. Isso parece mais provável quando só há algumas poucas doutrinas abrangentes que, apesar de serem objeto de uma crença intensa, são similares em certos aspectos, e quando a diversidade das visões características dos tempos recentes ainda não se desenvolveu. A essas condições acrescente-se uma outra: a de que a idéia de razão pública, com seu dever de civilidade, ainda não tenha se expressado na cultura pública e permaneça desconhecida.”56

54 Para uma discussão bastante completa sobre razão pública, com uma visão crítica sobre a possibilidade de acordo sobre os elementos constitucionais essenciais, sobre a natureza e o problema dos princípios essenciais e sobre a dificuldade para estabelecer distinção entre elementos essenciais e não-essenciais, ver Greenawalt, Kent. “On Public Reason”, em The philosophy of Rawls, Vol 5 — Reasonable Pluralism, p. 247-267. 55 Evidentemente, esse exemplo trata de uma possibilidade, não de um fato histórico, mesmo porque, como o próprio Rawls reconhece (Liberalismo, VI, §8, p. 302), normalmente as pessoas não fazem uma distinção clara entre razões abrangentes e razões públicas. 56 Liberalismo, VI, §8, p. 303, nota 41.

95

CONCLUSÃO

Como conclusão, gostaria de destacar alguns tópicos tratados ao longo do texto com

o objetivo de deixar mais explícito meu percurso de análise da obra de Rawls, já que

procurei seguir o desenvolvimento e desdobramentos de seus textos desde 1951 até 1993.

Obviamente, essa escolha de percurso de análise voltada especificamente para alguns

tópicos e preocupada em encontrar linhas argumentativas ao longo dos textos implica

necessariamente uma limitação dos temas abordados. Como já mencionei, a obra de Rawls

tornou-se fundamental para qualquer discussão sobre filosofia política a partir dos anos

1970 até a atualidade. Conseqüentemente, são mais de 30 anos de comentários, artigos e

livros discutindo a obra do filósofo, implicações de sua teoria, sem contar as obras que

questionam sua visão, apontando ou não alternativas. Assim, dentro dos limites expositivos

de uma dissertação, procurei adotar alguns eixos de análise da obra de Rawls para mostrar

— como diz o subtítulo da dissertação — que a teoria rawlsiana evolui “em direção a um

liberalismo político para uma sociedade democrática bem-ordenada”.

O primeiro aspecto destacado — e que acaba perpassando toda a obra de Rawls — é

a evolução do seu procedimentalismo (1.1.1). Com o artigo “Outline of a Decision

Procedure for Ethics” (1951), Rawls apresenta um método de avaliar juízos e juízes morais

que pretende ser o mais imparcial possível. Como vimos, ao longo dos artigos seguintes

ocorrem restrições em dois sentidos: 1) um abandono das decisões morais em direção a

uma abordagem limitada somente aos princípios políticos e 2) uma restrição cada vez maior

em relação às condições de imparcialidade necessárias às partes contratantes. Como tentei

mostrar, esses dois tipos de restrições acabam por ser a origem da elaboração da original

teoria rawlsiana de contrato social, na qual as partes contratantes estão sob um véu de

96

ignorância que as priva de qualquer informação sobre sua condição particular dentro da

sociedade. Essa idéia — bastante criticada devido às implicações procedimentais e

metodológicas — permanecerá como o centro da teoria da justiça como eqüidade até os

últimos textos de Rawls.

O que muda, entretanto, é a ênfase no aspecto distributivo em Teoria para a ênfase

no aspecto de tolerância em Liberalismo. Na primeira obra, Rawls é bastante claro ao

especificar que está interessado em propor uma solução para o problema liberal clássico da

compatibilidade entre igualdade e liberdade. Isso está relacionado tanto com a distribuição

de direitos e liberdades fundamentais, quanto com a distribuição dos benefícios da

cooperação social relativos à renda, riquezas e oportunidades. Esse segundo aspecto

distributivo — relacionado ao segundo princípio de justiça —, como fica bastante

destacado, exerce um papel determinante no equilíbrio social.

Este, portanto, é o primeiro objetivo da teoria da justiça como eqüidade como um

todo: tratar da questão distributiva. Com a percepção de que a Terceira Parte de Teoria

apresentava inconsistências não em relação aos princípios de justiça que regulam a

estrutura básica da sociedade, mas em relação à aceitação desses princípios pelos

participantes do contrato social — sobretudo no que diz respeito às interferências dessas

concepções de justiça nos planos de vida individuais dos cidadãos —, Rawls passa a se

preocupar com o problema da diversidade de doutrinas morais, religiosas e filosóficas

presentes em qualquer sociedade democrática.

Assim, o segundo objetivo da teoria da justiça como eqüidade como um todo é tratar

da questão do pluralismo de visões de mundo dos cidadãos de sociedades democráticas.

Rawls tenta deixar essa dupla tarefa de sua teoria bem clara, o que torna difícil, mesmo para

os críticos que apresentam argumentos mais contundentes, apontar para um

97

enfraquecimento da teoria rawlsiana logo que as modificações em Teoria começaram a

ocorrer. Os pressupostos fundamentais de Teoria continuam válidos em Liberalismo.

Portanto, o que pode ser criticado pelos defensores de fundamentos liberais mais restritos e

limitados (ou seja, menos sensíveis às reivindicações multiculturais, religiosas e étnicas) é a

adequação dos novos pressupostos da obra de 1993 com os da obra de 1971, mas não se

pode dizer que há um abandono dos fundamentos já expostos em Teoria.

Da mesma forma que os pressupostos fundamentais, o aspecto kantiano da teoria da

justiça também é mantido. No conhecido §40 de Teoria, Rawls esclarece que sua

interpretação de Kant está baseada sobretudo na idéia de autonomia. Isso fica ainda mais

claro em Liberalismo quando é desenvolvida a concepção política de pessoa (2.2.2). É,

preciso, pois, antes de qualquer julgamento precipitado, compreender em que sentido

ocorre a apropriação da teoria kantiana. Como Rawls afirma,

“É um erro, na minha opinião, enfatizar o lugar da generalidade e da universalidade na ética de Kant. A afirmação de que os princípios morais são gerais e universais mal constitui uma novidade em sua obra; e, como vimos, essas condições de qualquer modo não nos levam muito longe. É impossível construir uma teoria moral sobre uma base tão exígua, e portanto restringir a discussão da doutrina de Kant a essas noções é reduzi-la a trivialidades. A verdadeira força de sua visão reside noutros pontos.”57

Assim, Rawls adota pressupostos kantianos quando afirma que os princípios devem

ser objeto de uma escolha racional, escolha essa feita por homens racionais iguais e livres,

agindo autonomamente — o que ele tenta estabelecer através das condições da posição

original, na qual a ignorância a respeito da posição social e das habilidades tem por

objetivo evitar qualquer tipo de heteronomia. O objetivo é levar realmente a sério a idéia de

que os cidadãos só serão livres e terão respeito uns pelos outros quando estabelecerem as

57 Teoria, IV, §40, p. 275.

98

suas próprias leis. Além disso, em Liberalismo fica ainda mais claro que a intenção de

Rawls é dar uma interpretação procedimental à idéia kantiana de autonomia.

Com essa apropriação de Kant, acredito que fica mais fácil compreender tanto a

continuidade e unidade da teoria da justiça como eqüidade, quanto as importantes

mudanças em relação ao papel da filosofia política que são conseqüência da obra de Rawls

— sobretudo a partir da adoção da teoria kantiana “dentro da estrutura de uma teoria

empírica.”58

Por fim, espero ter exposto satisfatoriamente as mudanças — ou redefinições —

realizadas por Rawls em sua teoria da justiça. Acredito que elas são importantes não

somente para a compreensão da obra de um dos mais importantes filósofos da segunda

metade do século passado, como também para ter uma visão mais clara do papel atual e

futuro da filosofia e do próprio pensamento político.

Creio que uma lição — entre muitas — que Rawls nos deixou é a de que talvez não

haja mais propósito em elaborar teorias filosóficas sobre o dever ser. Precisamos nos ater à

situação concreta de nossas sociedades para podermos avaliar adequadamente quais são os

problemas e suas possíveis soluções. O papel da filosofia política seria, então, o de

estabelecer critérios de avaliação para que, através de ações concretas, nos aproximemos

mais de ideais de justiça, eqüidade e igualdade.

58 Teoria, IV, §40, p. 281.

99

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