A tecnologia e o futuro da educação: um olhar neurocientífico

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R EVISTA DA ESPM SETEMBRO / OUTUBRO DE 2011 112 P OR B ILLY E. M. N ASCIMENTO ASSUNTO em pauta Imaginar como será nosso fu- turo é sempre um trabalho ár- duo e invariavelmente impreciso. Entretanto, em uma sociedade altamente tecnocrática, tentar compreender os efeitos que as criaturas de silício exercem so- bre seus mestres de carbono se torna cada vez mais importante. A tecnologia e o futuro da educação: um olhar neurocientífico Oleg Zhevelev

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Po r B i l ly E . M. Na s c i M E N to

ASSUNTOem pauta

Imaginar como será nosso fu-turo é sempre um traba lho ár-duo e invar iavelmente impreciso. Entretanto, em uma sociedade a l tamente tecnocrát ica , tenta r compreender os efe i tos que as cr iaturas de s i l ício exercem so-bre seus mestres de carbono se torna cada vez mais impor tante.

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oe fato estamos vivendo em um tempo onde tudo envolve tecnologia, interfa-ces, comunicação e informação. A todo

instante interagimos com estas máquinas que se dispõem a nos prestar tarefas subservientes embaladas em promessas de um mundo melhor. Mas qual será o efeito das tecnologias sobre nossa forma de pensar? Como nosso cérebro reage a esse crescente número de interfaces tecnológicas que nos afastam, de maneira contundente, da Savana Original?

Os efeitos da tecnologia sobre nossa forma de pensar e educar promovem uma reflexão sobre o próprio papel da educação em nossa socieda-de. É notória a origem industrialista da escola, assim como a conhecemos, com suas divisões de classes, normatização de aprendizado, horários rigidamente cronometrados e a sirene fabril para as trocas de turno. Concebida em um contexto de profunda mudança promovida pela Revolução Industrial, a escola contemporânea tinha objetivos claros de educar segundo uma nova forma de con-ceber o mundo, seguindo os preceitos da fábrica.

Entender os efeitos das novas tecnologias em nosso cérebro, e como elas podem interferir com a educação, passa pela compreensão da nova revolução imposta nos últimos anos, a Revolução da Tecnologia da Informação e Comunicação. A escola do futuro será aquela que melhor se adaptar a esta nova forma de mundo, permitindo o desenvolvimento das potencialidades que hoje são mandatórias. Grande parte da nossa crítica ou aprovação para um novo mundo de possibilidades tecnológicas passa pela compreensão da quebra de paradigmas que a civilização humana promove hoje. A fábrica morreu, e ainda estamos tentando entender quem é sua herdeira.

Enquanto ciências neófitas, as neurociências fo-ram constituídas também em um contexto de pro-funda mudança, graças às descobertas de como o cérebro funciona. É justamente a possibilidade de verificarmos alterações ou mesmo promovermos intencionalmente mudanças no cérebro, que faz das neurociências uma das ferramentas mais

interessantes para entendermos e refletirmos sobre o futuro da escola e da educação no novo mundo digital.

Em um artigo escrito na revista Neuron de se-tembro de 2010 por Dephne Bavelier, C. Shawn Gree e Matthew W. G. Dye, pesquisadores nas Universidades de Rochester, Minnesota e Illinois, respectivamente, os autores discorrem sobre a importância de avaliarmos as respostas cerebrais dentro de um contexto adequado, em relação ao uso de tecnologias. O paralelo que os autores fazem sobre as perguntas que devem ser feitas com relação à influência da tecnologia no cérebro é o mesmo que fazemos sobre a influência da alimentação em nosso estado físico.

Se nos fizéssemos essa pergunta, compreendería-mos que a qualidade e quantidade são essenciais para verificarmos os impactos da alimentação na saúde. O mesmo poderia ser dito sobre a tecnolo-gia. Entender sua influência é tentar compreender, do ponto de vista qualitativo, (qual tipo de tec-nologia e conteúdo), e quantitativo (quantidade do tipo de conteúdo que eu absorvo), como o nosso cérebro funciona e se altera quando somos expostos às mídias digitais.

Estudos sobre a influência da tecnologia na edu-cação se aplicam a qualquer tipo de interface ligada ao consumo de informação e entretenimento. Uma das mais antigas tecnologias que influen-

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Podemos definir o conceito de interface como o conjunto de meios planejadamente dispostos, sejam eles físicos ou lógicos, com vista à adaptação entre dois sistemas, cujo objeto final possui características de ambos. O conceito pode ser exemplificado por um relógio, cujo fim é contar um tempo, e uma dinamite, cujo fim é causar uma explosão. Após a adaptação dos sistemas, ou após interfaceados, o usuário obterá um sistema conjugado cujo fim é causar uma explosão num tempo determinado.

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ciou muitas gerações e inventou toda uma nova forma de comunicar foi a televisão. Grandes de-bates já se desenvolveram para mostrar o poder da televisão de afetar a capacidade de aprendi-zado de crianças. Mas estaria isso ocorrendo somente pela forma de apresentar informação ou o conteúdo também poderia influenciar o desenvolvimento cognitivo de crianças?

Pesquisadores da Universidade da Pennsylvania e Kansas estudaram crianças que assistiam a pro-gramas infantis como Teletubbies, Vila Sésamo e Dora a Aventureira. O resultado indicou que as crianças de dois anos que assistiam ao Telletu-bies tinham menos vocabulário comparado com programas infantis mais participativos, como Vila Sésamo e Dora a Aventureira (veiculado aqui no Brasil pelo Canal Cultura) (Linebarger Walker 2005). Vila Sésamo, que começou a ser veiculado nos EUA na década de 60, já foi associado a diver-sos benefícios para as crianças, como preparo es-colar, tamanho do vocabulário e habilidades com números (Zill et al., 1994; Fisch Truglio, 2001). Essas evidências demonstram que a influência da

tecnologia na educação tem muito mais a ver com o conteúdo transmitido, que pelo meio de comu-nicação em si. Dessa maneira, não seria a televisão uma grande vilã para o processo de aprendizado, e sim o conteúdo transmitido. A grande diferença encontrada entre os programas que aumentam as capacidades cognitivas das crianças é a interação que eles provocam, estimulando a participação por meio de perguntas e pausas programadas para as crianças responderem.

A influência do conteúdo de mídia para o desenvol-vimento psicológico e educacional sempre foi muito debatido, principalmente para produtos de entreteni-mento, como os videogames. Estudos mostram que 94% dos videogames classificados para adolescentes contêm algum tipo de violência (Haninger et al. 2004). Muito já foi dito sobre a relação entre o con-sumo de videogames violentos e o desenvolvimento de comportamentos agressivos. Alguns trabalhos científicos já mostraram a relação entre a exposição a conteúdos de violência e tendências antissociais (Huesmann, 2009), porém esse assunto não é total-mente esclarecido. Outros estudos já encontraram a ausência de efeitos para comportamentos agressivos quando adolescentes são expostos a conteúdos de violência (Fergunson CJ, 2007).

Outro problema que se origina a partir do contato com essas interfaces tecnológicas é a dependência. Mesmo que ainda não tenha sido classificado como transtorno psiquiátrico, o vício de internet, por exemplo, pode assolar 2% dos jovens (Johans-son; Götestam, 2004). Casos pavorosos como um casal coreano que deixou seu bebê de três meses morrer de fome após ficar mais de 12 horas num cyber-café criando uma criança virtual em um jogo de RPG chamado “Prius On-line” chamam

} A escola do futuro será aquela que melhor se adaptar a esta nova forma de mundo, per-mit indo o desenvolvimento das potencia l idades que hoje são mandatór ias .~

A utilização de ferramentas neurocientíficas em pesquisas de comportamento de con-sumo vem sendo adotada pelas principais corporações ao redor do mundo. Utilizando eletrodos, fios, géis ou mesmo máquinas que custam 3 milhões de dólares, estas empresas coletam informações preciosas sobre a ativi-dade cerebral e corporal de consumidores quando são expostos à propaganda, produtos ou embalagens.

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a atenção sobre o poder que a tecnologia tem de favorecer o aparecimento de transtornos ligados à dependência. Circuitos cerebrais frontoestriatais, ativados em comportamentos de dependência, são ativados quando adolescentes jogam videoga-mes (Koepp et al. 1998), o que pode explicar o desenvolvimento de comportamentos aditivos. Embora esses estudos demonstrem o poder devastador que a tecnologia pode ter sobre crianças e adolescentes, vemos uma relação que é muito mais pautada no conteúdo do que da mídia em si. De fato outros trabalhos já mostraram melhoras no processamento visuoespacial e cognitivo de adolescentes que utilizavam videogames de ação, por exemplo. (Green; Bavelier, 2008).

E se a neurociência é utilizada para tentarmos entender o poder das mídias e da tecnologia que utilizamos hoje, o que dizer das novas for-mas de interação cérebro-máquina que serão possíveis no futuro?

Diversas empresas estão criando as novas for-mas de entretenimento que utilizarão o poder da leitura da informação cerebral para gerar jogos, brinquedos e conteúdos controlados diretamente pelo cérebro.

Essa indústria neurotecnológica, hoje, se baseia primariamente na decodificação da atividade elétrica do cérebro, que pode ser captada e transformada em informação para o controle de diversas atividades. O uso dessa tecnologia para a educação pode ser visto no desenvolvimento de aplicativos neuroeducacionais desenvolvidos por empresas como a Neurosky Inc. e Advanced Brain Monitoring Inc, por exemplo.

Essas tecnologias têm como base a captura do si-nal eletroencefalográfico que, após ser processado e traduzido, pode auxiliar crianças e adolescentes a realizarem tarefas, geralmente jogos que, em última instância, podem ter objetivos educacio-nais. Os dados cerebrais são utilizados tanto para

o controle do jogo quanto para a monitoração do desempenho. Esse novo nível de informação disponível pode ser utilizado pelos professores como uma ferramenta extremamente poderosa para o desenvolvimento pedagógico do aluno, permitindo um controle personalizado das com-petências e dificuldades do estudante.

O que dizer então das possibilidades de implantes cerebrais, os chamados neurochips, que poderão interagir diretamente com a estrutura neuronal para facilitar o processamento cognitivo? Os implantes cerebrais hoje são utilizados para tra-tamento de doenças neurológicas e psiquiátricas, porém evidências já começam a mostrar que essa influência direta no cérebro pode ajudar a melhorar as capacidades humanas. Cientistas da University of Southern California conseguiram mostrar, por exemplo, como um implante de uma prótese neuronal pode melhorar a capacidade de memória em ratos (Berger et al. 2011).

Seja pelo uso intenso da comunicação, por meio de interfaces digitais, seja por influência direta no cérebro, a tecnologia está nos levando a um patamar nunca antes visto. O extremo controle sobre as bases da natureza humana poderão modificar de maneira contundente a forma como enxergamos a sociedade e as relações humanas.

Isso obviamente afetará a forma como entende-mos o papel da educação. O aprendizado poderá ser feito utilizando-se todo o conhecimento gerado por meio dessas novas interfaces tecno-lógicas. Iniciativas como a School of One (www.

As novas tecnologias de comuni-cação oferecem uma infraestrutura que nos permite a interação em rede de seus integrantes. Todo esse processo acabou por criar um novo paradigma, onde a informa-ção é a matéria-prima. A tecnologia passa, assim, a permear toda a atividade humana, aplicando sua lógica de redes em qualquer sistema ou conjunto de relações.

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schoolofone.org), que utiliza tecnologia para oferecer uma nova forma de conceber o ensino, alterarão o modo e a essência do que hoje somos levados a aprender. A School of One trabalha com algoritmos que identificam as dificuldades e potencialidades dos alunos, auxiliando na elaboração de conteúdo apropriado para cada estudante, que aprende em diversas formas, seja com o professor, com os colegas ou interagindo com interfaces computacionais.

O conhecimento sobre como o cérebro funciona tem permitido uma nova dimensão para repen-sarmos o modo como funciona o aprendizado e como os aparatos tecnológicos permitirão a cons-trução de uma escola melhor. Interfaces digitais para comunicação e informação aliados a neu-rochips, poderão, em um futuro não tão distante, alterar a maneira como concebemos a educação.

Mas a maior transformação virá da revolução do modelo de educação. Questionamentos que hoje são recorrentes, como a redução da capacidade de utilizar a memória factual, graças à internet ou à dificuldade encontrada por crianças e adolescentes em escrever com papel e caneta, deixarão de existir, pois uma nova maneira de entender as capacidades humanas será gerada. Passaremos pelo mesmo processo enfrentado nas revoluções que introduziram a escrita ou a imprensa mecânica. O que hoje é valorizado deixará de ser, e aquilo que ainda não é estimulado será cada vez mais necessário. No fim, teremos a tecnologia ocupando um lugar cada vez mais importante em relação ao ambiente em que vivemos. Mesmo sem saber como será esse novo futuro, temos certeza de que ele será completamente diferente do que hoje temos de padrão. Seja bem-vindo, amanhã.

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BILLY E. M. NASCIMENTODiretor Executivo Forebrain Neurotecnologia.

ESPM