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A SOLIDÃO DOS MORIBUNDOS "H á várias maneiras de li- dar com o fato de que todas as vidas, incluí- das as das pessoas que amamos, têm um fim". As- sim, Nobert Elias introduz a temática do livro "A Soli- dão dos Moribundos", cujo interesse maior parece ser a discussão, numa perspectiva ao mesmo tempo filosófica e psicanalítica, acerca da morte enquan- to tabu nas sociedades ocidentais tidas como "avançadas", ou a morte enquanto problema, sobretudo, para os vivos. Ou para os quase vivos - pois que aí se incluem aqueles que estão na condição de moribundos. Primeiramente, fica claro que o modo como os vivos pensam a morte ou o ato de morrer diz das crenças, dos valores e das ideo- logias que orientam a organização da sociedade na qual essas pessoas se incluem. Viajando no tempo ou no espaço, tais concepções vão vari- ando, umas revelando certa intimidade no que diz respeito à existência desse fim, outras se encobrindo de verdadeira distância e pavor no que tange à lembrança do mesmo. Elias vai mostrar primeiramente que, des- sas várias maneiras de lidar com a finitude da vida humana, a mitologia que prega a idéia de uma outra vida após a morte, seja no "Hades" ou no "Valhalla", no "Inferno" ou no "Paraíso" sobressai entre as demais. Essa talvez seja uma das formas mais conhecidas entre tantas cultu- ras de orientação distinta que há no mundo. Forma "comum" e "antiga" que, em certa medi- da, não chega a negar a existência de um possí- vel fim para a vida do homem, mas tende a amenizar o impacto da finitude com a noção de "passagem", de "transfor- mação" ou mesmo de iní- cio de uma "permanência" espiritual. Lado a lado com a DE NOBERT EUAS A Solidão dos Moribundos Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. POR JOCENY PINHEIRO' Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. 122 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v.33 N.1 enorme crença nessa mor- te mitologizada, outra for- ma de encará-Ia se reveste da tentativa de evitar a idéia do fim simplesmente afastando sua noção do pensamento, não o verbalizando ou, como escreve Elias, "assumindo uma cren- ça inabalável em nossa própria imortalidade". Alguma identificação com o nosso mundo so- cial? Talvez. O fato é que, nesse caso, fica vetada a possibilidade de se reconhecer o pro- cesso de envelhecimento e morte dos indiví- duos. Enfim, não se permite enrugar a face, ou faz-se o máximo possível para adiar tal enrugamento, sequer admitindo que se há mil estratégias para encobrir a velhice, poucas são aquelas que garantem, de fato, a imunidade à morte. Entretanto, há ainda uma terceira maneira de olhar para a morte, estranha a nós, quem sabe, pelo fato de entender esse fim como parte da existência humana. Trata-se de uma forma importante, necessária até, pois saber que "a coisa mais certa da vida é a morte" pode nos levar a um ajuste em nossas próprias vidas, pela cons- ciência de que elas têm uma duração limitada. Esse ajuste se refere, principalmente, ao modo como nos comportamos em relação às outras pessoas, às que vivem como nós ou àquelas que quase deixam de fazê-lo - porque passaram pelo processo de envelhecimento ou porque, simples- 2002

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A SOLIDÃO DOS MORIBUNDOS

"H á várias maneiras de li-dar com o fato de quetodas as vidas, incluí-

das as das pessoas queamamos, têm um fim". As-sim, Nobert Elias introduza temática do livro "A Soli-dão dos Moribundos", cujointeresse maior parece sera discussão, numa perspectiva ao mesmo tempofilosófica e psicanalítica, acerca da morte enquan-to tabu nas sociedades ocidentais tidas como"avançadas", ou a morte enquanto problema,sobretudo, para os vivos. Ou para os quase vivos- pois que aí se incluem aqueles que estão nacondição de moribundos.

Primeiramente, fica claro que o modocomo os vivos pensam a morte ou o ato demorrer diz das crenças, dos valores e das ideo-logias que orientam a organização da sociedadena qual essas pessoas se incluem. Viajando notempo ou no espaço, tais concepções vão vari-ando, umas revelando certa intimidade no quediz respeito à existência desse fim, outras seencobrindo de verdadeira distância e pavor noque tange à lembrança do mesmo.

Elias vai mostrar primeiramente que, des-sas várias maneiras de lidar com a finitude davida humana, a mitologia que prega a idéia deuma outra vida após a morte, seja no "Hades"ou no "Valhalla", no "Inferno" ou no "Paraíso"sobressai entre as demais. Essa talvez seja umadas formas mais conhecidas entre tantas cultu-ras de orientação distinta que há no mundo.Forma "comum" e "antiga" que, em certa medi-da, não chega a negar a existência de um possí-vel fim para a vida do homem, mas tende a

amenizar o impacto dafinitude com a noção de"passagem", de "transfor-mação" ou mesmo de iní-cio de uma "permanência"espiritual.

Lado a lado com a

DE NOBERT EUAS

A Solidão dos MoribundosRio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

POR JOCENY PINHEIRO'

Mestre em Sociologia pelo Programa dePós-Graduação em Sociologia daUniversidade Federal do Ceará.

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enorme crença nessa mor-te mitologizada, outra for-

ma de encará-Ia se reveste da tentativa deevitar a idéia do fim simplesmente afastandosua noção do pensamento, não o verbalizandoou, como escreve Elias, "assumindo uma cren-ça inabalável em nossa própria imortalidade".Alguma identificação com o nosso mundo so-cial? Talvez. O fato é que, nesse caso, ficavetada a possibilidade de se reconhecer o pro-cesso de envelhecimento e morte dos indiví-duos. Enfim, não se permite enrugar a face,ou faz-se o máximo possível para adiar talenrugamento, sequer admitindo que se há milestratégias para encobrir a velhice, poucas sãoaquelas que garantem, de fato, a imunidadeà morte.

Entretanto, há ainda uma terceira maneirade olhar para a morte, estranha a nós, quemsabe, pelo fato de entender esse fim como parteda existência humana. Trata-se de uma formaimportante, necessária até, pois saber que "a coisamais certa da vida é a morte" pode nos levar aum ajuste em nossas próprias vidas, pela cons-ciência de que elas têm uma duração limitada.Esse ajuste se refere, principalmente, ao modocomo nos comportamos em relação às outraspessoas, às que vivem como nós ou àquelas quequase deixam de fazê-lo - porque passaram peloprocesso de envelhecimento ou porque, simples-

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mente, mesmo não sendo velhos, estão prestesa morrer.

Elias pensa a segunda forma, peculiar aouniverso das sociedades consideradas "avança-das", como um modo problemático de convi-vência entre uns e outros; jovens e adultos noauge da vitalidade, velhos e doentes que vêem,ao seu redor, o vácuo se formar. Nesse contex-to, aponta para a terceira opção como alternati-va capaz de propiciar uma possível identificaçãoentre vivos e moribundos, o que livraria os últi-mos da morte simbólica - morte social - a queestão condenados mesmo em vida.

Ora, quem pode estar imune ou entorpe-cido o suficiente para não sentir a dificuldadeque é sobreviver diante da ausência ou do afrou-xamento dos vínculos sociais e laços afetivos?

Isso é o mais dificil - o isolamento tácito dosvelhos e dos moribundos da comunidade dosvivos, o gradual esfriameruo de suas relaçõescom pessoas a que eram afeiçoados, a separa-ção em relação aos seres humanos em geral,tudo que lhes dava sentido e segurança. Osanos de decadência são penosos não só paraos que sofrem, mas para os que são deixadossós (Elias, 2001:8).

Elias chama atenção também para umaquestão que poucas vezes vem à tona quandose pensa na duração limitada de uma vida hu-mana. Chama atenção para o fato de que nãoestamos acostumados a pensar no outro quemorre, mas sim no sentimento de falta - ou nalembrança da nossa própria falibilidade - quea morte desse outro pode causar em nós. Afi-nal, se tudo concorre para encobrir ou paranos fazer esquecer que logo mais, logo menos,envelheceremos e morreremos, o fim da vidade um ente querido sempre reavivará a idéiaindesejada de que um dia iremos nós, para acova, certamente.

Aqui encontramos, sobforma extrema, um dosproblemas mais gerais de nossa época - nossaincapacidade de dar aos moribundos nossaajuda e afeição de que mais que nunca preci-

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sam quando se despedem dos outros homens,exatamente porque a morte do outro é umalembrança de nossa própria morte (Elias,2001:16).

Medo e sentimento de culpa geram umaespécie de proibição em relação à expressão detudo que circunda a morte, proibição que sereflete na sua exclusão, junto com os moribun-dos, da vida social. Por essa razão, referências aesse conjunto (a morte e o que morre) são oculta-das, especialmente daqueles que nascem, daque-les que iniciam o processo de viver, das crianças.Quando vêem à tona - morte e moribundo cau-sam embaraço, constrangimento. Como tabu oucoisa estranha, o desconforto leva a uma espé-cie de silêncio ruidoso. A morte, o cadáver, asepultura, o corpo em decomposição não po-dem suscitar outra coisa senão a censura social.

Hospitais se revestem com o design e aambíentação de sbopping centers. Cemitérios sãoparques, jardins. Nomes e paisagens, aí, tendema evocar a idéia de "paz", "tranqüilidade" e atémesmo de "leveza". O ápice dessa ideologia quese coloca contra a lembrança da morte, da me-lancolia e do luto, está presente num exemploque Elias dá sobre uma brochura produzida porcoveiros na qual não se encontra uma só vez apalavra "morte".

Atitudes mais enérgicas, seguindo a mes-ma orientação, não são difíceis de ser encon-tradas bem perto de nós, pois há casos decemitérios pintados com cores supostamente"alegres", sob a alegativa de que se tornoudémodé a estética fúnebre, antes presente emtodo e qualquer espaço de sepultamento dosmortos.

O fato é que:

Nunca antes na história da humanidade fo-ram os moribundos afastados de maneira tãoasséptica para os bastidores da vida social;nunca antes os cadáveres humanos foramenviados de maneira tão inodora e com talperfeição técnica do leito de morte à sepultura(Elias, 2001:31).

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Isso diz do estágio de civilização peculiar,às sociedades ocidentais sobretudo, pois o con-tato, não só com a idéia de morte e com o mori-bundo, mas, mormente, com o próprio corpo domorto, ainda é significativamente observado emgrupos étnicos na América do Sul e América Cen-tral, além de povos que se encontram na África,na Ásia e na Oceania. Os bororo, situados noMato Grosso, são um exemplo de forma radical-mente oposta a que temos no tratamento da ques-tão. Seu ritual funerário rendeu escritos que aindahoje surpreendem estudiosos em todo o mundo.Neste, o contato com o corpo que se decompõeé intenso, o que causa pavor aos jovens estudan-tes brasileiros ou europeus que lêem ou ouvemsobre o fato, especialmente porque aqui os ritu-ais religiosos de morte, seculares, "foram esvazi-ados de sentimento e significado", tornando-seexpressões "pouco convincentes" (Elias, 2001 :36).

O pavor começa muito antes. Começa pelaindisposição ou incapacidade de expressar o queElias chama de "emoções fortes", seja na vida públi-ca ou na vida privada, principalmente em relaçãoao moribundo. Para o autor, a condenação quepaira sobre o "sentimento espontâneo e forte" tam-bém se configura como um tabu crescente da civi-lização. Assim, torna-se realmente difícil "apertar amão de um moribundo" ou "proporcionar-lhe umasensação de proteção e pertencimento". (Idem).

Gradativamente, os vivos tratam de isolardo seu espaço aqueles que lembram a vulnera-bilidade da vida humana, e esse afastamento sedá a partir da criação de certos espaços e ocu-pações - como se pode ver na imagem do do-ente que permanece no hospital até o últimodos seus dias, do velho que vive no asilo, daenfermeira e do médico que cuidam do primei-ro ou do assistente que se destina, de maneiramuito pragmática, a olhar pelo segundo.

Apenas as rotinas institucionalizadas dos hos-pitais dão alguma estruturação social para asituação de morrer. Essas, no entanto, são emsua maioria destituídas de sentimentos e aca-bam contribuindo para o isolamento dos mo-ribundos (2001:36).

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Até mesmo após o fim de cada uma des-sas vidas, o cadáver e a sepultura passam aoscuidados de profissionais remunerados. A famí-lia se distancia de todo o complexo que envolvea figura do morto. Por essa razão, Elias nos fazlembrar que "a Pietà de Michelangelo, a mãe emprantos com o corpo de seu filho, continua com-preensível como obra de arte, mas dificilmenteimaginável como situação real". Pelo simples fatode que os vivos, de maneira "semiconsciente",parecem sentir "que a morte é contagiosa e ame-açadora" (2001:37).

O morto já afastado do convívio familiar,já entregue às mãos de diversos especialistas doleito de morte à sepultura, só pode vir a sobre-viver na "lembrança dos vivos". Mas, a lembran-ça é, sobretudo, palavra que se pronuncia. Paralembrar é preciso verbalizar, é preciso dizer,narrar, pois a memória nunca foi um fenômenoque prescindisse da socialização ou da comuni-cação entre indivíduos.

Acontece que, aqui, também se encontraum problema: não se quer falar sobre a vida dequem morre ou sobre a morte de quem vive.Ainda naquela brochura escrita por coveiros, Eliasdiz que "o silêncio sobre a significação das se-pulturas como lugares onde pessoas mortas es-tão enterradas" é "quase total". Eu diria, assimcomo ele, que o silêncio - enquanto sinônimode coisa não dita - se coloca como regra diantedas mais diversas situaçôes que levam à refle-xão ou à consciência de que somos mortais oude que, malgrado todo o caminho empreendido(o qual muitos chamaram de "evolução"), jamaisnos livramos desse "aspecto embaraçoso daanimalidade humana" (2001:40). Ou seja, ape-sar do tele-encéfalo altamente desenvolvido edo polegar opositor, morremos facilmente comoos animais. Só não fazemos admiti-Ia.

Mas não reconhecer esse processo que levaà falência do corpo, da vida do indivíduo, é ates-tar que ainda hoje é difícil perceber a relação dedependência que há entre pessoas de uma socie-dade. Em suma, parece que ignoramos o fato deque "o sentido de tudo que uma pessoa faz" está

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-"no que ela significa para os outros, não apenaspara os que agora estão vivos, mas também paraas gerações futuras". Pela condição de indivídu-os mortais, somos todos dependentes de gera-ções que viveram no passado e que virão a viverno futuro. Não é raro, porém, que as pessoas sevejam como indivíduos isolados, independentesuns dos outros (2001:41). Pelo contrário,

Perseguir os próprios interesses - vistos isola-damente- parece então a coisa mais sensata egratificante que uma pessoa poderia fazer. (. ..)Raramente, e com dificuldade, as pessoas po-dem ver a si mesmas, em sua dependência dosoutros - uma dependência que pode ser mú-tua -, como elos limitados na cadeia de gera-ções, como quem carrega uma tocba numacorrida de revezamento, e que por fim a pas-sará ao seguinte (Elias, 2001:42).

A visão do indivíduo isolado, que se vêcomo autônomo ou auto-suficiente, é um sin-toma do reca1camento da idéia de "finitudeirreparável" do homem. Reca1camento queElias faz questão de não atribuir como peculi-aridade do século XX, mas, sim, de ver comoum encobrimento que, embora sendo antigoe sempre acompanhando a consciência huma-na, "mudou de maneira específica com o cor-rer do tempo" (2001:44).

É essa mudança que aqui nos interessaanalisar, pois, "em períodos anteriores, fantasiascoletivas eram o meio predominante de lidar coma noção de morte. Ainda hoje, é claro, desem-penham um importante papel", já que "o medode nossa própria transi.toriedade é amenizadocom ajuda de uma fantasia coletiva de vida eter-na em outro lugar". No entanto, não se podeocultar que "com a grande escalada daindividualização em tempos recentes, fantasiaspessoais e relativamente privadas de imortalida-de destacam-se mais freqüentemente da matrizcoletiva" e, por essa razão, acabam por chegarao "primeiro plano" (Elias, 2001:44).

Para Elias, o resultado dessa distorçãooperada na auto-imagem dos indivíduos é o sen-timento de solidão e isolamento emocional.

Acrescenta-se a isso uma série de característicascomuns ao universo das sociedades "altamentedesenvolvidas", tais como o "permanenteautocontrole" - que por ser tão internalizadopassa a ser "experimentado como uma muralhaque bloqueia o afeto e outros impulsos espon-tâneos na direção de outras pessoas e coisas,afastando-as como conseqüência". Em síntese,"essas características comuns incluem o alto graude individualização, a ampla e constante con-tenção de todos os impulsos instintivos e emo-cionais fortes e uma tendência ao isolamento"(Elias, 2001:66-67).

Tais atitudes são desencadeadas e valida-das por todos, incluindo os moribundos que,não raras vezes, eles próprios, crêem na idéiade que a "vida" evoca a noção de coletividade esociabilidade, mas que a "morte" é, sobrema-neira, um processo que se deve viver "sozinho",privadamente.

Seria incorreto falar de rejeição e reserva,induzidas pela civilização, dos vivos em rela-ção aos moribundos em sociedades, como anossa, sem indicar ao mesmo tempo opossívelembaraço e reserva dos próprios moribundosem relação aos vivos (2001:68).

Tal isolamento, em grande medida, é ali-mentado pela sensação de que eles, os moribun-dos, deixaram de ter sentido para os outros, paraaqueles com os quais outrora conviveram. Os cui-dados e gastos empreendidos pelos vivos, paraaliviar a dor física do corpo que morre ou propor-cionar qualquer espécie de conforto físico ao mo-ribundo não lhe devolvem a certeza de que têmimportância para o mundo social ou de que a vidaque lhe cabe ainda comporta algum sentido. Detodo jeito, não "é fácil mostrar aos que estão paramorrer que eles não perderam seu significado paraos outros. Se isso acontece, se uma pessoa sentirquando está morrendo que, embora ainda viva,deixou de ter significado para os outros, essa pes-soa está verdadeiramente só" (Elias, 2001:75).

Sentir-se só, portanto, é sentir que suaexistência não tem significado, social e afetivo,

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para a comunidade de viventes circundante.Ou seja: trata-se de uma existência empurradapara "os bastidores da vida social", uma exis-tência solta, no vácuo, sem se ligar a outras.Assim é a vida do moribundo. Uma vida quesó se liga à idéia de negação da própria exis-tência, uma contínua experiência de fim ante-cipado. Uma vida que parece estar sendopunida por algum crime antes cometido. Omoribundo é aquele condenado, por si e pe-los outros, à solitária. Seu crime é lembrar,com as marcas que estão impressas sobre oseu corpo, que a morte existe, é ameaçar aosvivos que, ao se alimentarem pelo delírio daimortalidade, não suportam a lembrança es-tampada no corpo do velho mortal.

Elias afirma que "talvez devêssemos falarmais aberta e claramente sobre a morte, mesmoque seja deixando de apresentá-Ia como ummistério". Segundo ele, "a morte não tem segre-dos. Não abre portas. É o fim de uma pessoa. Oque sobrevive é o que ela ou ele deu às outraspessoas, o que permanece nas memórias alhei-as" (Elias, 2001:77).

Na verdade, o tema da morte já foi objetode investigação, diversas vezes, seja na Sociolo-gia ou na Antropologia, do ponto de vista darepresentação social e da estruturação de umespaço reservado para a mesma nas sociedadesocidentais. Em determinado período, o indiví-duo tinha o seu lugar de entrada e saída na so-ciedade através da Igreja. Nascimento e mortelembravam a idéia de passagem do indivíduode um mundo para outro.

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É possível concluir que a morte, em si, nãoé simplesmente um evento, mas um processo so-cial de desapego do indivíduo ao mundo e às pes-soas, ela é anterior à morte física, essa sim, umevento preparado por meio do processo de rom-pimento gradual dos laços sociais que o indivíduoestabeleceu ao longo da sua existência. Em cadamomento no qual se dá a exclusão do moribundono espaço dos vivos, produtivos e ativos, um laçoa mais se desfaz e o desligamento total se aproxi-ma. Nesse sentido, o tempo vivido já não é maiscontemporâneo, mas extemporâneo. O velho, omoribundo, é, sobretudo, um "outsider" que nãose estabelecerá mais entre os vivos como antes.

•••Aqui se percebe que Elias é um sociólogo

dos processos e não dos eventos. Especificamenteneste livro, produzido sob a forma de um ensaio-conferência, o autor parece deixar ausente, em seutexto, a relação que há entre a noção moderna demorte e o desenvolvimento de uma sociedadecentrada no tempo presente e na idéia de produ-ção. Enfim, Elias parece preferir explicar a exclu-são da vida social do moribundo por meio de razõespsicológicas como o medo e a culpa diante damorte de si e dos outros. Assim, ele deixa de evi-denciar que nas chamadas "sociedades avançadas",os indivíduos valem pela sua capacidade de pro-duzir mercadorias. A mudança da mentalidade emrelação à morte e ao morto representa acomplementação de uma sociedade em que o va-lor da mercadoria, finalmente, alcançou uma es-pécie de triunfo em todas as suas dimensões.

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