A SEMIOSE DA ESCRITA E SUA … Victoria... · PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Isabel Victoria Galleguillos Jungk
A SEMIOSE DA ESCRITA
E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA
Uma análise semiótico-sistêmica
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
2011
3
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Isabel Victoria Galleguillos Jungk
A SEMIOSE DA ESCRITA
E SUA RECONFIGURAÇÃO NA HIPERMÍDIA
Uma análise semiótico-sistêmica
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Comunicação e Semiótica, sob
orientação da Profa. Dra. Maria Lucia
Santaella Braga.
São Paulo - 2011
4
BANCA EXAMINADORA
5
P ra Haresh, Diana e Arthur
6
AGRADECIMENTOS
Cada realização é um mosaico único de inspiração, superação e
aprendizado, para o qual tantos contribuem de tantas formas. Esta pesquisa
não poderia ser diferente. E pela felicidade de ter chegado ao fim desta
jornada, agradeço sinceramente àqueles que a tornaram possível:
À professora e orientadora Lucia Santaella, com quem tanto aprendi,
pelo incentivo generoso e constante. Minha profunda admiração.
À professora e orientadora Leda Tenório da Motta, pela amizade que
me dedicou e pelo apoio inestimável. Minha eterna gratidão.
Ao professor Winfried Nöth, pelos textos e apontamentos
fundamentais para os rumos desta pesquisa. Ao professor Fernando
Andacht, pelo estímulo e sugestões valiosas durante a qualificação.
Aos professores do programa em Comunicação e Semiótica, Jorge
Albuquerque Vieira, por descortinar um mundo de possibilidades
epistemológicas; Ivo Assad Ibri, por compartilhar seu conhecimento em aulas
inspiradoras; e Arlindo Machado, pela ajuda e compreensão durante o
seminário de pesquisa. Ao professor Claudio César Montoto, por ter me
mostrado o caminho para este trabalho, ainda no curso de especialização.
À minha mãe, pela presença e colaboração incondicionais. A meu pai,
por praticar e me ensinar o significado da palavra resiliência.
A meu esposo e nossos filhos, pela ajuda carinhosa e paciência
sempre renovadas. À minha irmã, pelos ensinamentos em conversas
gratificantes.
A meus amigos e familiares, cujos nomes não cabem aqui, mas que
estão gravados em meu coração, por toda a ajuda e incentivo que de mil
maneiras fizeram tanta diferença.
A Deus, pois “é bom lembrar que cada uma das verdades científicas é
devida à afinidade da alma humana com a alma do universo, por imperfeita
que seja esta afinidade” (CP 5.47).
Ao CNPq, pela bolsa concedida que grandemente contribuiu para a
concretização deste projeto.
7
“De fato, homens e palavras educam-se
mutuamente; cada aumento de informação humana
envolve e é envolvido por um aumento de informação das
palavras.”
“Todo pensamento se dá por meio de signos; e os
ignorantes também usam signos. Mas, talvez, eles
raramente pensem neles como signos. Fazê-lo é,
evidentemente, um segundo passo no uso da linguagem.”
Charles Sanders Peirce
(CP 5.313; 5.534)
8
RESUMO
Com o advento da Internet e das tecnologias hipermidiáticas de
transmissão de texto, novas grafias de palavras do léxico estão se tornando
usuais, como forma de adaptação da linguagem escrita aos suportes digitais
e suas peculiaridades. Esta pesquisa tem como principal objetivo investigar
as manifestações e as potencialidades da palavra escrita a partir dessas
novas grafias caracterizadas por um grau considerável de hibridismo e
complexidade.
Parte-se do pressuposto de que a análise semiótica da palavra no
interior do sistema da língua e da palavra escrita reconfigurada na hipermídia,
dada a natureza eminentemente híbrida que adquire, pode ser facilitada pelo
uso da classificação dos signos idealizada por Charles S. Peirce, e da
distinção apontada entre a palavra como lei geral e a sua efetiva aplicação.
Visando ao exame teórico do contexto em que as mudanças têm
ocorrido, adotamos um enfoque sistêmico, tanto do sistema de escrita quanto
da hipermídia, segundo a Teoria Geral dos Sistemas, como elaborada por
Jorge A. Vieira. Questões concernentes aos desafios que esse novo tipo de
escrita representa para a escrita convencional são levantadas por meio de
bibliografia especializada sobre a linguagem verbal na hipermídia, auxiliar na
contextualização lingüística do problema.
O corpus constitui-se de exemplos práticos das transmutações da
natureza semiótica da escrita e das novas grafias. A análise do corpus é feita
por meio da aplicação dos conceitos semióticos, especialmente aqueles
extraídos da teoria e classificação dos signos operacionalizados em função
das necessidades que o objeto da pesquisa impõe.
Espera-se que os resultados da pesquisa nos levem a uma
compreensão criticamente fundada dos processos evolutivos da escrita.
Palavras-chave: semiótica peirceana; teoria sistêmica; escrita digital; novas
grafias.
9
ABSTRACT
With the advent of Internet and hypermedia technologies for text
transmission, new spellings of words of the lexicon are becoming common as
a form of adaptation of written language to digital media and its peculiarities.
The main target of the present research is to investigate the manifestations
and potentials of the written word in these new spelling characterized by a
considerable degree of hybridism and complexity.
The starting point is the assumption that the semiotic analysis of the
word within the language system and of the written word reconfigured in
hypermedia, given its eminently hybrid features, can be facilitated by using
the classification of signs devised by Charles S. Peirce and by the distinction
drawn between the word as a general law and its effective application.
Aiming to examine the theoretical context in which changes have
occurred, a systemic approach to the writing system as well as to hypermedia
is adopted, according to the general systems theory as developed by Jorge A.
Vieira.
Questions concerning the challenges posed by this new kind of writing
to conventional writing are raised through specialized bibliography on verbal
language at hypermedia, auxiliary of the problem contextualization.
The corpus consists of practical examples of the transmutations of the
semiotic nature of writing and of new spellings. Corpus analysis is done by
means of semiotic concepts appropriately operationalized to the needs
required by the research object.
It is expected that the research results will lead to a critically founded
understanding of evolutionary processes of writing.
Keywords: peircean semiotics; systems theory; digital writing; new spellings.
10
ABREVIATURAS UTILIZADAS
CP Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Hartshorne, C.; Weiss, P.
(Eds.) V. I-IV; BURKS, W. (ed) v. VII-VIII. Cambridge: Harward University
Press. A forma usual de citação dos Collected Papers é CP, seguido do
número do volume, ponto e o número do parágrafo.
SS Semiotic and Significs. The correspondence between Charles S. Peirce
and Victoria Lady Welby. Ed. Charles S. Hardwick. (1977) Indiana university
Press.
MS The Charles S. Peirce Papers. Peirce Edition Project, cf. Annotated
Catalogue of the Papers of Charles S. Peirce, Richard Robin, Amherst:
university of Massachussets Press, 1967.
W Writings of Charles S. Peirce, vols. 1 a 6. Edição cronológica. Peirce
Edition Project. Blomington: Indiana University Press, 1980-2000.
CLG Cours de linguistique générale. Ferdinand de Saussure (1906-1911),
organizado por C.Bally, A.Sechehaye, e A.Riedlinger, publicado em 1915
(1ª.ed.). Tradução para o português de A.Chelini, J.P. Paes, I.Blikstein. São
Paulo, Cultrix, 2006.
11
SUMÁRIO
RESUMO, 8 ABSTRACT, 9 ABREVIATURAS, 10 INTRODUÇÃO, 14 Capítulo 1 - TEORIA PEIRCEANA
1. AS CATEGORIAS E A TEORIA GERAL DOS SIGNOS ................................................... 18
1.1. Primeiridade, 22
1.2. Secundidade, 24
1.3. Terceiridade, 24
1.4. Interdependência entre as categorias, 26
2. O CONCEITO DE SIGNO .................................................................................................. 27
2.1. Representamen, 29
2.2. Objeto do signo, 30
2.3. Interpretante, 31
3. CLASSIFICAÇÃO DOS SIGNOS ...................................................................................... 34
3.1. As três tricotomias, 34
1ª. tricotomia: o signo em relação a si mesmo, 35
2ª. tricotomia: a relação signo-objeto dinâmico, 36
3ª. tricotomia: a relação signo-interpretante final, 39
3.2. As dez classes de signos, 41
4. A SEMIOSE OU AÇÃO DO SIGNO .................................................................................. 45
4.1.Relações de implicação entre os signos, 47
Capítulo 2 - MANIFESTAÇÕES SÍGNICAS DA PALAVRA
1. A PALAVRA: SIGNO LINGÜÍSTICO POR EXCELÊNCIA ................................... 51
1.1. A palavra multifacetada, 55
2. A PALAVRA COMO LEGISSIGNO ...................................................................... 57
2.1. Convenção: fundamento do legissigno, 57
2.2. Legissigno e objeto dinâmico, 58
2.3. Objeto dinâmico, necessidade e a motivação da palavra, 59
12
2.4. Onipresença e recursividade das categorias, 61
2.5. Combinação de signos: necessidade lógica, 62
2.6. Legissignos indiciais, 64
2.7. Legissignos simbólicos, 68
2.8. Legissignos icônicos, 75
3. A PALAVRA COMO SINSIGNO ........................................................................... 80
4. A PALAVRA COMO QUALISSIGNO .................................................................... 84
Capítulo 3 - LINGUAGEM VERBAL: CONJUNTO DE SISTEMAS SÍGNICOS 1. VISÃO SISTÊMICA ............................................................................................... 88
1.1. Ontologia Sistêmica e Semiótica, 88
1.2. Sistemas abertos e parâmetros sistêmicos fundamentais, 92
1.3. Evolução da linguagem verbal, 95
2. UM CONJUNTO SISTÊMICO VERBIVOCOVISUAL ........................................... 97
2.1. Sistemas sígnicos: as três matrizes, 101
2.2. Funções dos signos nos sistemas de escrita, 105
Capítulo 4 - ESCRITA E HIPERMÍDIA
1. TECNOLOGIA E HIPERMÍDIA ........................................................................... 115
2. HIPERMÍDIA: SISTEMA AMBIENTE DA ESCRITA ........................................... 117
3. HIPERMÍDIA E HIPERTEXTO ............................................................................ 118
4. SUPORTE MULTIDIMENSIONAL DA ESCRITA ............................................... 122
5. LINGUAGEM VERBAL E ESCRITA HIPERMIDIÁTICA ..................................... 125
6. ICONICIDADE DA ESCRITA EM AMBIENTES HIPERMIDIÁTICOS ................. 129
Capítulo 5 - RECONFIGURAÇÃO DA ESCRITA: NOVAS GRAFIAS 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................. 135
2. PRECURSORES ................................................................................................ 138
2.1. Edgar Allan Poe, 139
2.2. Stéphane Mallarmé, 142
2.3. Poesia concreta, 142
2.4. E-poetry, 146
13
3. NOVAS GRAFIAS .............................................................................................. 149
3.1. Economia de caracteres, 151
3.2. Omissão vocálica, 151
3.3. Grafia silábica, 152
3.4. Sinais semográficos, 154
3.5. Rébus e grafias híbridas, 154
3.6. Números e letras, 155
4. SOBRE OS EMOTICONS .................................................................................. 156
5. CONEXÃO LEXICAL: A PALAVRA PERFEITA .................................................. 160
Capítulo 6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. ALGUMAS CONCLUSÕES ................................................................................ 163
2. O FUTURO DA ESCRITA ................................................................................... 168
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 172
14
INTRODUÇÃO
A proposta do presente estudo é lançar luz sobre o fenômeno
multifacetado da reconfiguração da escrita em ambientes hipermidiáticos.
A linguagem verbal passa por um momento único. As inovações nos
suportes da escrita determinam mudanças sensíveis na grafia convencional,
em função de princípios como economia, velocidade, oralidade, que antes
ficavam restritos à linguagem verbal oral, e que vão sendo incorporados à
linguagem verbal escrita com rapidez crescente. Questões como a natureza
dos suportes e do próprio sistema de escrita não se fazem esperar.
Como abordar um fenômeno com implicações de tamanha magnitude
para o sistema de escrita atual? A metodologia foi um grande desafio neste
estudo. Como concatenar a miríade de aspectos e relações envolvidas
buscando clareza sem deixar de contemplar detalhes significativos foi
igualmente um caminho árduo.
O primeiro passo foi adotar a semiótica idealizada por Charles
Sanders Peirce, dado o pressuposto de que, devido ao seu poder de análise
dos mais diversos tipos de signos, ela poderia revelar sutilezas e diferenças
entre a palavra como lei geral e a palavra escrita que, via de regra, passam
despercebidas. Para a consecução desse fim, buscou-se uma definição de
palavra como unidade autônoma, possibilitando sua análise pela aplicação
das classes de signos e suas relações semiósicas.
A contribuição de Peirce para a linguagem verbal é impar. Seus
exemplos e aplicações da teoria semiótica ao signo lingüístico (que à sua
época ainda estava por receber essa denominação) são incontáveis, e seu
valor, inaquilatável. No entanto, seu interesse não estava na estrutura
gramática, tendo ele deixado essa tarefa a futuros pesquisadores.
“Peirce interessava-se intensamente por língua e gramática, mas não pode
ser considerado um lingüista no sentido moderno. Por isso, mesmo quando
ele fala de palavras ou de significado ao explicar as conseqüências de sua
15
teoria dos signos e interpretantes, Peirce não investiga a estrutura gramática
(...). Não é de surpreender, portanto, que ele tenha deixado a tarefa de
aplicar e ampliar sua teoria a campos como a lingüística para futuras
gerações de pesquisadores.” (SHAPIRO 1988: 124)
A semiótica peirceana foi concebida com um caráter extremamente
geral e abstrato, pois as categorias são onipresentes, e um mesmo signo
pode exibir uma pluralidade de faces ao mesmo tempo. Isso torna muito difícil
a tarefa de aplicá-la com proveito a processos concretos de linguagens, e
determina a necessidade de estabelecer os caminhos pelos quais as
aplicações se fazem possíveis.
Em contrapartida, as peculiaridades hipermidiáticas pediam uma
reflexão cuidadosa, tanto quanto as peculiaridades sígnicas dos sistemas de
escrita, o que não poderia ser feito por intermédio somente da teoria
peirceana. No entanto, o ecletismo teórico neste caso, não só é bem vindo
como é necessário para abordar particularidades impossíveis de analisar
somente sob conceitos gerais e abstratos como os de Peirce, e para
conhecer a semiose específica que se busca compreender.
“É evidente que para tudo isso, o mapa lógico peirceano precisa,
veementemente necessita, da interação com outras teorias específicas da
semiose sob exame (o ecletismo teórico, quando se trabalha com os
diagramas de Peirce, é não apenas bem-vindo, mas também indispensável).
Além disso, como todo mapa, este também precisa do contato estreito com
seu objeto; exige a familiaridade e intimidade do analista com a semiose
específica que ele quer compreender.” (SANTAELLA 1992a: 200)
A visão peirceana, em todas as áreas em que seu pensamento se
desenvolveu, é sistêmica, os conceitos formando uma rede complexa de
interconexões, o que possibilitou sua ponte com os conceitos da Teoria Geral
dos Sistemas, conforme elaboração de J.A.Vieira. Na intersecção entre esses
dois quadros teóricos, a hipermídia e os sistemas de escrita puderam ser
abordados de forma a iluminar o contexto das transformações em curso.
16
Por outro lado, a semiótica peirceana não estabelece relações
estanques, já que um continuum de gradações, regressões e progressões
infinitas são justamente o que seu arcabouço filosófico busca evidenciar.
Coerentemente, optamos por justapor a seus conceitos uma classificação
dos sistemas de escrita em função da natureza de seus signos elaborada por
R.Bringhurst, que além de estar em prefeita consonância com as tipologias
mais conhecidas, se apresenta de forma diagramática e contínua.
Os conceitos peirceanos, ao serem aplicados, apresentam um grau de
dificuldade diretamente proporcional ao nível de esclarecimento a que se
pretende chegar na análise de um determinado fenômeno, esforço
certamente recompensado pelo potencial que uma teoria dessa envergadura
representa para o progresso epistemológico humano.
Por meio desse caminho metodológico, acreditamos então, ter
abordado os principais fatores e características das novas formas de
utilização da escrita em contexto hipermidiático, que exigiram, para sua
compreensão, uma análise cuidadosa de todos os seus aspectos envolvidos:
semióticos, sistêmicos e lingüísticos.
No primeiro capítulo, a teoria peirceana é apresentada com vistas à
elucidação dos conceitos teóricos que serão utilizados nas análises. Os
conceitos da semiótica são apresentados dentro do quadro categorial de
Peirce e no contexto de sua arquitetura filosófica. Ao final, diagramas
explicativos do processo de semiose foram elaborados para facilitar sua
visualização e compreensão.
Já no segundo capítulo, as manifestações sígnicas da palavra como
unidade autônoma são analisadas segundo o quadro conceitual da semiótica,
a fim de estabelecer a distinção entre a palavra como lei geral e a sua efetiva
aplicação, bem como demonstrar sua capacidade de se manifestar
17
iconicamente, motivadamente, desmontando antigos conceitos e
preconceitos oriundos da tradição saussureana.
No terceiro capítulo, é enfocada a linguagem verbal como conjunto
de sistemas sígnicos. Conceitos da Teoria Geral dos Sistemas são
expostos e aplicados para a compreensão das inter-relações entre os
diversos sistemas sígnicos que compõem o todo da linguagem verbal e de
sua evolução. As funções dos signos no interior dos sistemas de escrita são
consideradas em detalhes.
O quarto capítulo, a fim de contextualizar as mudanças que se
processam, trata das relações entre escrita e hipermídia sob diversos
ângulos: tecnologia, sistema ambiente, sistema hipertextual, suporte
multidimensional. Ao final, as relações entre linguagem verbal e escrita
hipermidiática são estabelecidas, e sua crescente iconicidade é analisada.
No quinto capítulo, a reconfiguração da escrita em novas grafias é
considerada sob a influência de alguns fatores determinantes, alguns
precursores relevantes são apontados, e as novas grafias e suas
peculiaridades são exemplificadas e teoricamente analisadas.
No sexto e último capítulo, considerações finais são tecidas;
algumas conclusões são depreendidas do percurso de estudo e análise, bem
como são apontadas possíveis tendências do desenvolvimento da escrita no
futuro.
Este estudo busca, dessa forma, elucidar as novas reconfigurações da
escrita desvendando o funcionamento de seus processos sígnicos, aliado a
um enfoque sistêmico e lingüístico. Sem a pretensão de esgotar o assunto,
esperamos que seus resultados sejam frutíferos para outros pesquisadores
tanto quanto foi percorrer o caminho de sua pesquisa.
18
Capítulo 1 - TEORIA PEIRCEANA
“Tento uma análise do que aparece no mundo.
Aquilo com que estamos lidando não é metafísica: é logica, apenas.” (CP 2.84)
“A lógica deve, para a realização de sua idéia seminal, ser l’art de penser.
L’art de penser! Que sublime concepção! (CP 4.46)
1. AS CATEGORIAS E A TEORIA GERAL DOS SIGNOS
Para compreender a lógica das ciências e seus métodos de raciocínio,
foco dos estudos peirceanos (SANTAELLA 2001:32), toda sua Lógica foi
concebida dentro de uma teoria geral dos signos ou Semiótica (SANTAELLA,
1983:20), que em sua arquitetura científico-filosófica1, mantinha uma posição
de dependência em relação à Faneroscopia2, dela extraindo todos os seus
princípios. Seu sonho era elaborar
“uma filosofia como aquela de Aristóteles, quer dizer, delinear uma teoria tão
abrangente que, por um longo tempo, o trabalho inteiro da razão humana, na
filosofia de todas as escolas e espécies, na matemática, na psicologia, nas
ciências físicas, na história, na sociologia, e em qualquer outro departamento
que possa haver, deve aparecer como o preenchimento de seus detalhes. O
primeiro passo para isso é encontrar conceitos simples, aplicáveis a
qualquer objeto.” (CP 1,p.vii)
Nessa medida, para compreendermos a Semiótica, faz-se necessário
compreender primeiramente a Faneroscopia, como ciência da observação,
geral e abstrata, dedicada a estudar o phaneron, ou fenômeno, e cuja função
1 Peirce dialogou com toda a tradição filosófica ocidental para construir uma abrangente e coerente arquitetura classificatória das ciências e de suas inter‐relações. Conseqüentemente, para ele, as ciências podiam ser divididas em ciências 1) da descoberta, 2) da digestão e 3) aplicadas, as mais gerais fornecendo princípios norteadores para as mais específicas, e estas, por sua vez, fornecendo dados para as mais gerais. As ciências da descoberta (Matemática, Filosofia e Ideoscopia) estão num tal nível de generalidade, que são consideradas ciências da observação. Dentro da Filosofia, encontraremos a Faneroscopia juntamente com as Ciências Normativas (Estética, Ética e Lógica considerada como Semiótica) e a Metafísica (SANTAELLA 1983:23‐27). 2 Faneroscopia foi o nome dado por Peirce a sua Fenomenologia por volta de 1902, quando da construção arquitetônica de seu sistema (SANTAELLA 1983:27).
19
era a de “realizar a mais radical análise de todas as experiências possíveis”
(SANTAELLA 1983:28), já que Peirce entendia fenômeno3 no sentido mais
amplo que se pode conceber, simplesmente como tudo aquilo que se
apresenta à percepção e à mente, independentemente de ser um evento
externo ou uma idéia, sonho ou abstração, sendo a primeira tarefa da
Filosofia, e, portanto, da Faneroscopia, a de desenvolver uma doutrina de
categorias formais, gerais e abstratas, absolutamente universais, no sentido
de que fosse possível observá-las em todo e qualquer fenômeno, sem excluir
nem mesmo conflitar com outras tantas categorias materiais e particulares
possíveis de ser encontradas em todas as coisas.
Tais categorias não poderiam brotar nem da língua, como as de
Aristóteles, nem da lógica da proposição, como as de Kant (SANTAELLA
1983: 28; CP 5.294), mas somente do exame agudo da própria experiência.
Para Peirce,
“... a palavra Categoria possui substancialmente o mesmo significado em
todos os filósofos. (...) a categoria é um elemento dos fenômenos com uma
generalidade de primeira ordem. Segue-se daí que as categorias são poucas
(...). A tarefa da fenomenologia é traçar um catálogo de categorias, provar
sua eficiência, afastar uma possível redundância, compor as características
de cada uma e mostrar as relações entre elas. (...) As categorias universais,
de seu lado, pertencem a todo fenômeno, talvez sendo uma mais
proeminente que a outra num aspecto do fenômeno, mas todas pertencendo
a qualquer fenômeno.” (CP 5.43)
Peirce chegou à conclusão que toda a diversidade fenomênica era
redutível a três, e não mais que três modos de ser, que, sendo universais,
3 O fenômeno pertence à categoria do real, do existente, da secundidade, daquilo que pode forçar‐se sobre nossa percepção a despeito daquilo que sobre ele possamos pensar, mas que pode ser investigado pela nossa mente. Para Peirce: “Há coisas Reais, cujos caracteres independem por completo de nossas opiniões a respeito delas; esses Reais afetam nossos sentidos segundo leis regulares e conquanto nossas sensações sejam tão diversas quanto nossas relações com os objetos, poderemos, valendo‐nos das leis de percepção, averiguar, através do raciocínio, como efetiva e verdadeiramente as coisas são; e todo homem, desde que tenha experiência bastante e raciocine suficientemente acerca do assunto, será levado à conclusão única e Verdadeira. A concepção nova que se introduz é a de Realidade.” (CP 5.384)
20
deveriam ser observáveis em todo e qualquer fenômeno, ainda que em
diferentes graus de proeminência:
“Minha opinião é que existem três modos do ser. Afirmo que podemos
observá-los diretamente nos elementos de tudo que está a qualquer
momento presente à mente de qualquer maneira. São o ser da possibilidade
qualitativa positiva, o ser do fato atual, e o ser da lei que governará os fatos
no futuro.” (CP 1.23)
Esses modos de ser são o fundamento de uma lógica ternária cujas
categorias são tão abstratas que podem ser consideradas intangíveis,
simples matizes de conceitos4, mas que, no entanto, ganham força nas
relações de interdependência em que estão envolvidas, gerando uma
combinatória que, na Semiótica, dá origem às diversas classificações de
signos.
Esses três elementos formais, no seu grau de abstração máxima,
devem ser entendidos como mônada, relação diádica e relação triádica,
respectivamente:
“Terceiridade, no sentido de categoria é o mesmo que mediação. Por essa
razão, pura díada é um ato de vontade arbitrária ou força cega; pois se
houver alguma razão ou lei governando-a [a díada], ela [a razão ou lei] se
constitui em mediação [da díada] entre os dois sujeitos trazendo a tona sua
conexão. A díada é um fato individual, já que ela é existencialmente, não
possuindo qualquer generalidade. O ser de uma qualidade monádica é uma
mera potencialidade, sem existência. Existência é puramente diádica.” (CP
1.328)
Por esses motivos, buscando expressar conceitos sem precedentes,
que se constituem em substratos lógico-formais universais, Peirce batizou-os
como categorias ceno-pitagóricas (CP 2.87), em virtude de suas conexões
com os números, chamando-as de primeiridade (firstness), secundidade
(secondness) e terceiridade (thirdness). Em suma,
4 “Talvez nem se devesse chamar as categorias de concepções; são tão intangíveis que mais parecem timbres ou matizes dos conceitos...” (CP 1.353)
21
“Por serem tão universais a ponto de se presentificarem em tudo e qualquer
coisa, Peirce resolveu esvaziar os termos de qualquer conteúdo material,
reduzindo-os à sua natureza puramente lógica. Daí as categorias passarem
a ser designadas por (1) primeiridade = mônada, (2) secundidade = relação
diádica e (3) terceiridade = relação triádica. Em cada fenômeno particular, a
roupagem aparente dessas categorias se modifica, mas o substrato lógico
sempre permanece.” (SANTAELLA 2001:15)
O fundamento para a compreensão das categorias está, portanto, na
compreensão do substrato lógico-formal de cada uma delas, substratos
esses que se mantêm inalterados, apesar da “roupagem” de que se revestem
quando observados na variabilidade material de cada fenômeno específico.
Para Peirce, a lista de categorias “é uma tábua de concepções extraída da
análise lógica do pensamento, aplicáveis ao ser” (CP 1.300). Dessa forma,
podemos observar que
“O primeiro esta aliado às idéias de acaso, indeterminação, frescor,
originalidade, espontaneidade, potencialidade, qualidade, presentidade,
imediaticidade, mônada... O segundo às idéias de força bruta, ação- reação,
conflito, aqui e agora, esforço e resistência, díada... O terceiro esta ligado às
idéias de generalidade, continuidade, crescimento, representação,
mediação, tríada...” (SANTAELLA 2000:8)
As categorias poderão ser, então, compreendidas em si mesmas,
como modos de apreensão dos fenômenos, a saber: qualidade de sentimento
(primeiridade), ação e reação (secundidade) e mediação (terceiridade), ou
ainda como modos de ser, tanto dos fenômenos do universo físico, bem
como da mente ou consciência, como é possível observar nas passagens a
seguir:
“Peirce concluiu que tudo que nossa mente é capaz de apreender, tudo que
aparece à consciência, assim o faz numa gradação de três e não mais do
que três elementos formais: (1) qualidade de sentimento, (2) ação e reação e
(3) mediação. Suas conclusões, contudo, foram ainda além disso. Esses
modos de apreensão não são, para ele, apenas elementos presentes no ato
de apreender os fenômenos, e, portanto, fatores devidos à natureza peculiar
da nossa mente, mas são também elementos formais de todo e qualquer
22
fenômeno (...) Nos fenômenos, a gradação dos elementos se expressa
como: (1) qualidade, (2) reação, (3) representação.(...)
Se tomarmos o acaso do universo físico, como um outro exemplo, nele, as
categorias aparecerão sob a forma de (1) acaso, (2) leis mecânicas e (3) a
tendência evolutiva do universo para adquirir novos hábitos.” (SANTAELLA
2001:15)
“Aqui, portanto, temos indubitavelmente três elementos radicalmente
diferentes da consciência, só estes e nenhum outro. E eles estão
evidentemente ligados às idéias de um-dois-três. Sentimento imediato é a
consciência do primeiro; o sentido da polaridade é a consciência do
segundo; e consciência sintética é a consciência do terceiro ou meio.” (CP
1.382)
As categorias peirceanas não são, dessa forma, noções estáticas ou
terminais; elas são dinâmicas e interdependentes, formais, onipresentes e,
portanto, universais. Assim, “não substituem, não excluem, nem entram em
atrito com a infinita variedade de outras tantas categorias materiais e
particulares que podem ser encontradas em todas as coisas” (SANTAELLA
2001: 36).
1.1. Primeiridade
A categoria da primeiridade também foi chamada de Presentidade
(presentness, CP 5.44), bem como de Originalidade (CP 2.89) ou Oriência. A
primeiridade é o modo de ser daquilo que é tal como ele é, sem referência a
qualquer outra coisa (CP 8.328). Essa pura qualidade positiva é o primeiro
modo de ser, e enquanto tal, está presente em todo e qualquer fenômeno. É
o ser da possibilidade qualitativa positiva (SANTAELLA 2001: 35; CP 1.304),
é mera potencialidade (CP 1.328), e, portanto, originalidade e liberdade.
“Primeiridade é a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva,
seu frescor, originalidade irrepetível e liberdade. Não liberdade em relação a
uma determinação física, pois que isso seria uma proposição metafísica,
mas liberdade em relação a qualquer elemento segundo.” (SANTAELLA
1983:50)
23
Essa qualidade monádica do fenômeno é difícil de ser percebida, uma
vez que ao pensarmos, já não é mais possível captá-la em sua
imediaticidade, já que pensamento é mediação (SANTAELLA 1983: 43). Para
captá-la é preciso suspender o fluxo do pensamento, estar com a consciência
aberta, porosa, disponível para aquilo que a ela se apresenta sem relação
com nada mais. Peirce diz que o modo como o artista vê o mundo é aquele
capaz de captar as qualidades do mundo fenomênico (CP 5.41), e afirma que
a pura qualidade de sentimento que experienciamos quando estamos com a
percepção completamente aberta ao fenômeno é a representante psíquica da
primeiridade.
“Quando algo se apresenta ao espírito, qual é a primeira característica que
se nota (...)? A sua presentidade, certamente. (...) O presente é o que é, não
determinado pelo ausente, passado e futuro. É como tal, ignorando
totalmente qualquer outra coisa. (...) Imaginemos, se quisermos, uma
consciência onde não existe nenhuma comparação, relação, nenhuma
multiplicidade reconhecida (uma vez que partes não seriam o todo),
nenhuma mudança, nenhuma imaginação de qualquer modificação daquilo
que está positivamente lá, nenhuma reflexão, - nada além de uma simples
característica. Tal consciência pode ser simples odor, por exemplo, essência
de rosas; ou uma contínua dor de cabeça, infinita (...). Em suma, qualquer
qualidade de sentimento, simples e positiva, preenche a nossa descrição
daquilo que é tal como é, absolutamente sem relação com nenhuma outra
coisa. A qualidade de sentimento é a verdadeira representante psíquica da
primeira categoria do imediato em sua imediaticidade, do presente em sua
presentidade.” (CP 5.44)
Como exemplo de uma qualidade em si mesma, um poder ser não
necessariamente realizado (CP 1.303), pura primeiridade, podemos pensar “a
mera qualidade em si mesma da vermelhidão, sem relação com nenhuma
outra coisa, antes que qualquer coisa no mundo seja vermelha” (SANTAELLA
2001:35), lembrando que uma qualidade em si nunca é objeto de
observação; ela é produto de reflexões lógicas:
“Uma qualidade, como tal, nunca é objeto de observação. Olhando, vemos
que uma coisa é azul ou verde, mas a qualidade de ser azul e a qualidade
de ser verde não são coisas que possamos ver; são produtos de reflexões
lógicas.” (CP 5.369)
24
1.2. Secundidade
Assim como as outras, esta categoria recebeu diferentes nomes ao
longo da obra de Peirce, tais como Conflito (CP 5.45), Obsistência (CP 2.89),
Binariedade (CP 2.79).
“Obsistência (sugerindo obviar, objeto, obstinado, obstáculo, insistência,
resistência, etc.) é aquilo no que a secundidade difere da primeiridade; ou é
aquele elemento que, tomado em conexão com a Originalidade, faz de uma
coisa aquilo que uma outra a obriga a ser.” (CP 2.89)
Onde há um fenômeno, há uma qualidade (primeiridade) que não é
senão parte desse fenômeno, e que para ganhar existência tem de,
necessariamente, incorporar-se, “materializar-se” num singular. É nesta
corporificação que se dá a secundidade, já que existência é puramente
diádica (CP 1.328). A díada é, portanto, um “fato individual, existencial; não
tem generalidade” (CP 1.328), sendo “a ação mútua de duas coisas sem
relação com um terceiro, ou medium, e sem levar em conta qualquer lei da
ação” (CP 1.322), isto é, “sem o governo da camada mediadora da
intencionalidade, razão ou lei” (SANTAELLA 1983:51). Nesse sentido, temos
como exemplo, “a qualidade sui generis do vermelho no céu de um certo
entardecer de outubro” (SANTAELLA 2001: 35).
Para a consciência, que está em constante reagir com o mundo, o
aspecto diádico de todo fenômeno ou secundidade é o momento da surpresa
(CP 5.52), do choque, do conflito. É quando, inesperadamente, algo diferente
de nossas expectativas se força sobre nossa percepção.
1.3. Terceiridade
Como terceiridade, no sentido categorial, é o mesmo que mediação
(CP 1.328), ela também foi chamada de Transuasão, no sentido de
“modificação da primeiridade e da secundidade” (CP 2.89), já que
terceiridade é o modo de ser daquilo que coloca em relação recíproca um
primeiro e um segundo “numa síntese intelectual” ou “elaboração cognitiva”.
(SANTAELLA 2001: 51). Dessa forma, é possível observar que, assim como
25
a primeiridade sempre está contida na secundidade, ambas, primeiridade e
secundidade estão sempre presentes na terceiridade.
De fato, a forma mais típica da terceiridade encontra-se na noção do
signo. O signo é, portanto, uma relação triádica, na qual a ação do signo ou
semiose, que é a ação de ser interpretado em outro signo, realiza-se.
“A forma mais simples de terceiridade é a noção de signo. Se o universo do
signo é o território legítimo da semiótica, esta já tem início dentro da própria
fenomenologia, ou mais precisamente, a terceira categoria fenomenológica
já é uma categoria semiótica.” (SANTAELLA 2001: 36)
E como Peirce defende a idéia de que não há pensamento sem signos
(CP 5.283), e isto equivale a dizer que pensamento é representação, a
categoria da terceiridade é o modo de ser da mente, do pensamento, enfim,
de toda inteligência:
“Então, estes são esses três modos de ser: primeiro, o ser de um
sentimento, em si mesmo, não ligado a qualquer sujeito, que é uma mera
possibilidade atmosférica, uma possibilidade flutuando in vacuo, não racional
porém capaz de racionalização; segundo, o ser que consiste na arbitrária e
bruta ação sobre outras coisas, não somente irracional, mas também anti-
racional, já que racionalizá-lo seria destruir seu ser; e terceiro, há uma
inteligência viva da qual toda realidade e todo poder são derivados; que é
necessidade e necessitação racionais.” (CP 6.342)5
A categoria da terceiridade pode, ainda, ser considerada a categoria
do próprio homem, já que em mais de uma passagem, Peirce afirmou que o
homem é signo, “pois o homem é o pensamento” e o pensamento é signo
(CP 5.314), sendo os signos as únicas coisas com as quais um ser humano
pode ter qualquer relação.
“Signos, as únicas coisas com as quais um ser humano pode, sem com isso
inferiorizar-se, admitir ter qualquer relação, sendo ele mesmo um signo, são
triádicos; uma vez que um signo denota um sujeito, e significa uma forma de
fato, que posteriormente ele conecta com o primeiro.” (CP 6.344)
5 No original: “... which is rational necessity and necessitation.” (CP 6.342)
26
1.4. Interdependência entre as categorias
As categorias formam uma tríade lógica, invariavelmente
interdependentes umas das outras. Isso implica dizer que toda vez que nos
referirmos a alguma das categorias, podemos supô-la sem as demais, no
entanto, sem poder dissociá-la completamente das outras duas. Da mesma
forma, as categorias não podem ser distinguidas totalmente umas das outras.
O princípio a determinar a lógica das categorias é o principio da
prescisão. Peirce fala em graus de separabilidade de uma idéia em relação a
outra, constituindo-se a prescisão no grau de separabilidade a elas aplicável,
pelo qual a “categoria do primeiro pode ser prescindida do segundo e
terceiro, e o segundo prescindindo do terceiro. Mas o segundo não pode ser
prescindido do primeiro, nem o terceiro do segundo” (CP 1.353). Essas
relações de prescisão entre as categorias, por outro lado, evidenciam um
crescente de complexidade à medida que o primeiro, necessariamente, se
faz presente no segundo, e o primeiro e o segundo no terceiro,
conseqüentemente. Peirce dá exemplos claros de como manejar a
dependência de uma categoria em relação a outra:
“Na minha primeira tentativa de trabalhá-las [as categorias] lancei mão de
três graus de separabilidade de uma idéia em relação a outra. Em primeiro
lugar, duas idéias podem estar tão pouco ligadas que uma pode achar-se
presente à consciência como imagem que de forma alguma conterá a outra;
neste sentido, podemos imaginar vermelho sem imaginar azul e vice-versa;
podemos também imaginar som sem melodia, mas não melodia sem som.
Chamo esta espécie de separação de dissociação. Em segundo lugar,
mesmo em casos em que duas concepções não possam ser separadas na
imaginação, podemos freqüentemente supor uma sem a outra, assim
podemos supor um espaço não colorido, embora não possamos dissociar o
espaço da cor. Chamo este modo de separação de prescisão. Em terceiro
lugar, mesmo quando um elemento supõe o outro, podem distinguir-se
muitas vezes. Assim, mais alto supõe mais baixo, mas pode-se distinguir o
mais baixo do mais alto. É a distinção. Ora as categorias não podem ser
dissociadas umas das outras na imaginação (nem das outras idéias).” (CP
1.353)
27
Em outra passagem, Peirce esclarece esse tipo de separação mental,
a chamada prescisão, em termos de atenção e negligência:
“um tipo particular de separação mental, nomeadamente, aquele por atenção
a um ponto e negligência em relação a outro. Aquele ao qual atenta-se é
chamado de prescindido; e aquele que é negligenciado é dito abstraído. (...)
Atenção é uma concepção definida ou suposição de um elemento da
consciência, sem nenhuma suposição positiva da outra.” (W1:518 [1866])
Dessa forma, se por um lado as categorias são indissociáveis,
interdependentes, é justamente neste sutil grau de separabilidade a elas
aplicável, que l’art de penser ganha força, força na qual está assentado todo
o edifício filosófico de Peirce, sua classificação das ciências e,
conseqüentemente, sua lógica ou semiótica e toda a classificação dos
signos.
2. O CONCEITO DE SIGNO
A Faneroscopia define terceiridade como a categoria da generalidade,
continuidade, crescimento e inteligência, já que ela pode ser entendida como
o modo de ser daquilo que coloca em relação um primeiro e um segundo
“numa síntese intelectual, [que] corresponde à camada de inteligibilidade, ou
pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o
mundo” (SANTAELLA 1983: 51).
Na Semiótica ou Lógica, que tem por função classificar e descrever
todos os tipos de signos logicamente possíveis (SANTAELLA 1983: 29),
encontramos a forma mais simples de terceiridade, a noção de signo, já que
ele se constitui numa relação triádica, na qual a ação do signo ou semiose,
que é a ação de ser interpretado em outro signo, realiza-se.
Conseqüentemente, o signo é definido como uma estrutura
irredutivelmente triádica formada pelo representamen, pelo objeto, e pelo
interpretante do signo.
“Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo,
representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa
pessoa, um signo equivalente, ou talvez, um signo mais desenvolvido. Ao
28
signo assim criado, denomino interpretante do primeiro signo. O signo
representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos
os seus aspectos, mas com referência a um tipo de idéia que eu, por vezes,
denominei fundamento do representamen.” (CP 2.228)
Devido a essa estrutura triádica, o signo pode ser analisado sob
diversos aspectos, ou seja, o signo pode ser considerado em relação a um,
dois ou aos seus três componentes ou correlatos.
“Um Representamen é o Primeiro Correlato de uma relação triádica, o
Segundo Correlato sendo chamado de seu Objeto, e o possível Terceiro
Correlato, chamado de seu Interpretante, por cuja relação triádica o possível
Interpretante é determinado como sendo o Primeiro Correlato da mesma
relação triádica para o mesmo Objeto e para algum possível Interpretante.”
(CP 2.242)
Esses correlatos passam ainda por algumas subdivisões. O objeto se
divide em objeto dinâmico e objeto imediato, e o interpretante, por sua vez,
se divide em interpretante imediato, interpretante dinâmico, e interpretante
final ou em si (in itself), conforme o diagrama do signo a seguir (SANTAELLA
1983:59):
Objeto dinâmico
Objeto Imediato
Fundamento
SSIIGGNNOO
Interpretante Imediato
Interpretante dinâmico
(intérprete)
Interpretante final ou em si
29
Importante distinção que o diagrama do signo aponta é a de que nem
todas as subdivisões dos correlatos do signo se encontram no signo
propriamente dito. Como veremos mais adiante, o signo é formado
internamente pelo seu fundamento, pelo objeto imediato, e pelo interpretante
imediato, enquanto permanece inexoravelmente ligado, embora
exteriormente, ao seu objeto dinâmico e aos interpretantes dinâmico e final.
2.1. Representamen
Na irredutível relação triádica do signo, o representamen desempenha
o lugar de um primeiro. Em algumas passagens dos textos peirceanos, ele
também foi chamado simplesmente de signo, palavra que, então, passou a
ter duas acepções:
“Antes de tudo, deve-se levar em conta que a palavra signo pode ser tomada
sob dois sentidos: um geral e um específico. (...) a palavra signo pode se
referir tanto à relação triádica, signo-objeto-interpretante, quanto ao primeiro
membro dessa relação. Algumas vezes, Peirce utilizou o termo
representamen, no lugar de signo, para designar o primeiro membro da
tríade.” (SANTAELLA 2001:191)
Por representamen entende-se aquilo que funciona como signo para
quem o percebe. É o signo considerado em relação a si mesmo, ao seu
fundamento, ou seja, àquilo que o faz funcionar como signo, qualidade essa
que somente poderá ser percebida por abstração, já que ela não aparece
isoladamente, e sim, constitui-se num modo pelo qual o representamen
substitui o objeto.
“Tão somente por algum aspecto ou modo que lhe é próprio, o
Representamen ficará no lugar do objeto. A esse aspecto ou modo, Peirce
aqui denomina fundamento do representamen. Sendo o fundamento alguma
qualidade do signo, somente será captada distintamente por via de
abstração.” (SILVEIRA 2007: 31)
Para Peirce, tudo pode ser signo, qualquer coisa pode funcionar como
signo, sendo necessário, no entanto, identificar nessa potencialidade sígnica
30
dos fenômenos, o quê ou qual aspecto do representamen está funcionando
como signo na semiose, ou seja, o seu fundamento.
“Qualquer coisa que seja, pode ser um signo, isto é, pode funcionar nesse
papel; mas para que faça isso, deve ter algum caráter em virtude do qual
pode assim funcionar. Esse caráter é o que constitui o fundamento ou razão
de sua capacidade para ser signo, embora ele não seja realmente um signo
enquanto não for interpretado como tal.” (RANSDELL 1966:80 apud
SANTAELLA 2000:21)
2.2. Objeto do signo
Por objeto do signo entende-se aquilo que é representado pelo signo,
aquilo no lugar do qual o signo está.
“Um signo intenta representar, em parte (pelo menos), um objeto que é,
portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o
signo represente o objeto falsamente.” (CP 6.347)
Sendo um segundo, do qual o representamen é um primeiro, o objeto
se dividirá em: objeto dinâmico, aquele que determina o signo e permanece
fora dele, ou ainda, aquilo que o signo substitui, e objeto imediato, que é o
objeto interno ao signo, ou o modo como o objeto dinâmico está representado
no signo.
“Resta observar que normalmente há dois tipos de Objetos [...]. Isto é, temos
de distinguir o Objeto Imediato, que é o Objeto tal como o próprio Signo o
representa, e cujo Ser depende assim de sua representação no Signo, e o
Objeto Dinâmico, que é a Realidade que, de alguma forma, realiza a
atribuição do Signo à sua Representação.” (CP 4.536)
O objeto dinâmico é o objeto em si próprio, a coisa em si, o existente,
sendo que para Peirce, mesmo sonhos e coisas in abstracto são
consideradas existentes. O objeto dinâmico é sempre multideterminado,
permanecendo o signo sempre incompleto em relação a ele, já que não é
possível capturá-lo em um único signo. No entanto, é ele que se impõe,
conferindo aos signos que a ele se conformam em algum grau ou aspecto,
31
um valor de verdade, que nunca é absoluto, mas sempre passível de
aperfeiçoamento. Mas é justamente essa incompletude do signo que
determina uma semiose ad infinitum, na tentativa de sempre apreender e
conhecer o objeto dinâmico com mais precisão.
O objeto imediato funciona como mediação entre o signo e o objeto
dinâmico, exterior a ele. É o objeto tal como está representado, ou ainda,
aquele aspecto que o signo recorta do objeto dinâmico ao representá-lo. O
objeto imediato está dentro do signo, no próprio signo.
“O objeto dinâmico, portanto, tem autonomia, enquanto que o
imediato só existe dentro do signo. Mas uma vez que não temos acesso ao
objeto dinâmico a não ser pela mediação do signo, é o objeto imediato, de
fato, aquele que está dentro do signo, que nos apresenta o objeto dinâmico.
O objeto dinâmico, como o próprio nome diz, não cabe dentro de um só
signo. Por isso mesmo pode ser representado de uma infinidade de
maneiras, através dos mais diversos tipos de signos. (...) O objeto dinâmico
é infinitamente determinado. Cada signo representa apenas algumas de
suas determinações.” (SANTAELLA 1998: 48,49)
2.3. Interpretante
O interpretante não pode ser confundido com o intérprete. Ele é o
efeito que o signo está destinado a causar naquele ou naquilo que o
interpreta. Também é preciso ressaltar que a teoria peirceana não é
logocêntrica. Seu conceito de mente interpretadora, i.e., passível de sofrer a
ação do signo, não se restringe à mente humana, sendo tão abrangente a
ponto de Peirce considerar como dotados de mente científica, aquela capaz
de aprender com a experiência, não somente animais e insetos, mas
inclusive os cristais6.
Como visto, é a incompletude do signo em relação a seu objeto que
gera sempre um novo signo, ou seja, um novo interpretante, tornando o
processo da semiose infinito.
6 “O pensamento não está necessariamente conexo a um cérebro. Ele aparece no trabalho das abelhas, dos cristais, e em meio ao mundo puramente físico; e ninguém mais pode duvidar que ele esteja realmente lá, tanto como estão as cores, as formas, etc. dos objetos. (...) Não somente o pensamento se encontra no mundo orgânico, mas nele se desenvolve.” (CP 4.551)
32
“Mas dizer que ele [signo] representa seu objeto implica que ele afete uma
mente, de tal modo que, de certa maneira, determina, naquela mente, algo
que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa
imediata ou determinante é o signo e da qual a causa mediada é o objeto
pode ser chamada de interpretante.” (CP 6.347)
O interpretante é um terceiro determinado pelo signo, um primeiro, e
por sua vez, se divide em imediato, dinâmico, e final. Embora existam
diversas classificações e nomenclaturas para as subdivisões de
interpretantes, esta primeira divisão é bastante elucidativa para a
compreensão do conceito de signo, pois trata-se mais de diferentes graus ou
níveis na geração do interpretante do que de diferentes tipos de
interpretantes.
“O segundo princípio de divisão do interpretante (...) está baseado na
fenomenologia ou teoria das categorias, correspondendo à divisão triádica do
interpretante em imediato (primeiridade), dinâmico (secundidade) e final
(terceiridade). Esta divisão diz respeito aos níveis por que passa o
interpretante até se converter em um outro signo, caminhando para o
interpretante em si ou interpretante final. Esta divisão não corresponde, de
modo algum, a três interpretantes, vistos como coisas separadas, mas, ao
contrário, são graus ou níveis do interpretante, ou melhor, diferentes
aspectos ou estágios na geração do interpretante.” (SANTAELLA 2000: 67)
O interpretante imediato é o potencial interpretativo do signo
independentemente do efeito que será produzido na mente do intérprete,
sendo esse potencial do signo que torna possível sua interpretação. É a
interpretabilidade do signo. O interpretante dinâmico é externo ao signo e
refere-se ao efeito efetivo, singular, produzido em uma mente interpretadora
(intérprete), dependendo desta para sua realização. Já o interpretante final,
seria o resultado interpretativo último, caso o processo da semiose fosse
levado até o fim, e corresponderia à coincidência total sempre adiada, entre
interpretante e objeto dinâmico, anunciando um fim nunca alcançado da
semiose e da mediação signo. Essa correspondência ideal equivaleria à
revelação completa do real, o que é impossível, já que da verdade só
podemos nos aproximar assintoticamente.
33
Com referência ao interpretante, este ainda pode dividir-se em
emocional, energético e lógico. No interpretante emocional, o signo produz
apenas uma qualidade de sentimento, sem produzir cognição. No
interpretante energético, há um esforço envolvido, seja ele físico ou mental.
No interpretante lógico, uma regra interpretativa vai comandar a associação
de idéias para que o signo possa ser interpretado. Há dissensões sobre esta
divisão, se ela seria aplicável aos três níveis de interpretante, ou se ficaria
restrita somente ao interpretante dinâmico, ou se ela seria equivalente aos
interpretantes imediato, dinâmico e lógico, respectivamente.
“O primeiro efeito significado de um signo é o sentimento por ele provocado.
Na maior parte das vezes existe um sentimento que interpretamos como
prova de que compreendemos o efeito específico de um signo, embora a
base da verdade neste caso seja freqüentemente muito leve. Este
‘Interpretante emocional’, como o denomino, pode importar em algo mais do
que o sentimento de recognição; e, em alguns casos, é o único efeito
significado que o signo produz (...) Se um signo produz ainda algum efeito
desejado, fá-lo-á através da mediação de um interpretante emocional, e tal
efeito envolverá sempre um esforço. Denomino-o ‘Interpretante energético’.
O esforço pode ser muscular (...), mas é usualmente um exercer do mundo
interior, um esforço mental. Não pode ser nunca o significado de um conceito
intelectual, uma vez que é um ato singular (...) Mas que espécie de efeito
pode ainda haver? (...) Vou denominá-lo ‘interpretante lógico’. (...) Devemos
dizer que este efeito pode ser um pensamento, o que quer dizer, um signo
mental? Sem dúvida pode sê-lo; só que se esse signo for de natureza
intelectual - como teria de ser - tem de possuir um interpretante lógico; de
forma que possa ser o derradeiro interpretante lógico do conceito.” (CP
5.475-76)
Há ainda uma última subdivisão da qual trataremos quando
abordarmos a terceira tricotomia da classificação dos signos, aquela que
divide os interpretantes em rema, dicente e argumento. Também neste caso
encontramos divergências7 de opinião, sendo essa subdivisão considerada
aplicável ao interpretante lógico por alguns, e ao interpretante final, por
outros.
7 Para uma abordagem detalhada das posições sustentadas por diversos autores em relação à teoria dos interpretantes de Peirce, ver SANTAELLA 2000: 61‐88.
34
3. CLASSIFICAÇÃO DOS SIGNOS
Da principal classificação de signos elaborada por Peirce decorrem
dez classes de signos a partir de três tricotomias. Essa classificação
apresenta um considerável grau de complexidade na análise dos signos,
podendo nos dar uma contribuição importante na análise da palavra escrita.
A base desta classificação é o princípio de prescisão ou implicação
que rege as categorias, aquele segundo o qual o primeiro prescinde do
segundo e do terceiro, e o segundo do terceiro, sendo que todo terceiro
implica o segundo e o primeiro. É também esse princípio lógico que vai
mostrar porque, enquanto são possíveis 27 combinações sígnicas, somente
10 são válidas.
“As relações de implicação mantidas entre as categorias nortearão todo o
processo classificatório. A categoria da terceiridade, e tudo que por ela for
caracterizado, implicará nas realizações que se fizerem na instância da
categoria de secundidade, e essas, por sua vez, dependerão do que se der
ao nível da categoria da primeiridade.” (SILVEIRA 2007:65)
Observando detalhadamente esta classificação e justapondo-a ao
diagrama do signo, é possível notar que ela se baseia no fundamento do
signo e na relação deste com duas subdivisões de seus correlatos que
permanecem fora do signo: o objeto dinâmico e o interpretante final. Para
melhor compreendermos os elementos que a compõe, é oportuno descrever
a natureza das três divisões de signos a partir das quais as classes são
formadas.
3.1. As três tricotomias
As dez classes de signos foram obtidas por Peirce pela combinação
lógica das três categorias fenomenológicas (primeiridade, secundidade e
terceiridade) com as três tricotomias estabelecidas pela consideração do
signo em função de três aspectos:
35
1º) o signo em relação a si mesmo (fundamento ou representamen)
2º) a relação do signo com seu objeto dinâmico
3º) a relação do signo com o interpretante final
Em cada um desses aspectos será possível observar a ação das
categorias, o que resultará em três tricotomias de signos de acordo com as
relações entre os correlatos do signo, conforme quadro8 a seguir:
Cate- gorias
Representamen
(fundamento)
Objeto dinâmico
(relação S-OD)
Interpretante final
(relação S- IF)
1º QUALISSIGNO ÍCONE (Hipoícones:
Imagem, Diagrama, Metáfora)
REMA
2º SINSIGNO ÍNDICE DICENTE
3º LEGISSIGNO SÍMBOLO ARGUMENTO
1ª tricotomia: o signo em relação a si mesmo
A primeira tricotomia será formada pela consideração do signo em
relação a si mesmo, ou ainda, pela ação das categorias sobre seu
fundamento (ground). É o modo de apreensão do signo em si mesmo.
No fundamento do signo, considerado um primeiro, operam as três
categorias, havendo, a esse respeito, três tipos de signos: qualissignos,
sinsignos e legissignos, que também receberam o nome de tones, tokens (ou
réplicas) e types (tipos), respectivamente. Surge aqui a primeira tricotomia do
signo.
Nos qualissignos, são as meras qualidades que, apresentando-se à
percepção, funcionam como signos. Aqui encontramos sons, cores, formas,
entre outras formas de primeiridade, funcionando como representamina.
“Um Qualissigno (por exemplo, o sentimento [feeling] de vermelho) é uma
qualidade qualquer, na medida em que é um signo.” (CP 2.254)
8 Este quadro foi elaborado com base em SANTAELLA 1983:62. Foram feitas algumas modificações para adequá‐lo ao presente trabalho.
36
Já os sinsignos constituem-se por existentes, individuais e singulares
que, na sua secundidade, funcionam como signos para quem os percebe.
“... um sinsigno (onde a sílaba sin é tomada como significando ‘sendo uma
única vez’, como em singular, em simples, no latim: semel) é uma coisa ou
evento existente que é um signo.” (CP 2.245)
Os legissignos, por sua vez, constituem-se de tipos gerais, hábitos,
convenções e leis, entre outras formas de terceiridade, que funcionam como
signos para aquele ou aquilo que os percebe
“Um legissigno é uma lei que é um Signo. (…) Não é um objeto singular, mas
um tipo geral que, há concordância a respeito, será significante.” (CP 2.246)
2ª tricotomia: a relação signo-objeto dinâmico
Na determinação das dez principais classes de signos, é na relação
entre o signo (S) seu objeto dinâmico (OD) que aparece a segunda tricotomia
de signos, onde igualmente operam as três categorias fenomenológicas.
Essa tricotomia, que relaciona o signo ao objeto representado, exterior a ele,
e que divide os signos em ícones, índices e símbolos, é, provavelmente, a
mais conhecida de Peirce, sendo ela uma das tricotomias que ficou mais
claramente definida em sua extensa obra.
Na passagem a seguir, fica evidente quão diferentes podem ser as
representações de um mesmo e único objeto, e as diferentes relações que
um signo pode manter com seu objeto dinâmico.
“Esclareçamos: o signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu
objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de
representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o
objeto. Ele apenas está no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar
esse objeto de um certo modo e numa certa capacidade. Por exemplo: a
palavra casa, a pintura de uma casa, o desenho de uma casa, a fotografia de
uma casa, o esboço de uma casa, um filme de uma casa, a planta baixa de
uma casa, a maquete de uma casa, ou mesmo o seu olhar para uma casa,
são todos signos do objeto casa. Não são a própria casa, nem a idéia geral
que temos de uma casa. Substituem-na, apenas, cada um deles de um certo
modo que depende da natureza do próprio signo. A natureza de uma
fotografia não é a mesma de uma planta baixa.” (SANTAELLA 1983:58)
37
Um signo será um ícone quando ele partilhar de alguma das
qualidades de seu objeto dinâmico, e a relação que com ele manterá será de
semelhança (likeness).
“Eu chamo um signo que está para alguma coisa simplesmente porque ele
se assemelha a ela, um ícone. Ícones são tão completamente substituíveis
pelos seus objetos que dificilmente são distinguidos deles.” (CP 3.362)
Ícones puros, por pertencerem unicamente à categoria da
primeiridade, são meras possibilidades. Assim, para existirem efetivamente,
os ícones precisam encontrar sustentação no universo da experiência,
passando a ser denominados hipoícones por Peirce (CP 2.276-277), e
subdividindo-se em imagens (primeiridade), diagramas (secundidade) e
metáforas (terceiridade). Estes já são signos genuinamente triádicos que
representam seus objetos dinâmicos e que mantêm relações de semelhança
com os objetos representados: semelhança na aparência, nas relações
internas e no significado, respectivamente. Importante ressaltar que, como a
lógica categorial determina, a terceiridade compreende a secundidade e esta,
a primeiridade, levando a que metáforas encapsulem diagramas, e estes
envolvam imagens.
“As imagens propriamente ditas participam de simples qualidades ou
Primeiras Primeiridades. Essa definição de imagem, à primeira vista
enigmática, fica mais simples quando se traduz ‘primeiras primeiridades’ por
similaridade na aparência. As imagens representam seus objetos porque
apresentam similaridades ao nível de qualidade. (...) Os diagramas
representam as relações - principalmente as relações diádicas ou relações
assim consideradas - das partes de uma coisa, utilizando-se de relações
análogas em suas próprias partes. Assim sendo, os diagramas representam
por similaridade nas relações internas entre signo e objeto... As metáforas
representam o caráter representativo de um signo, traçando-lhe um
paralelismo com algo diverso (CP 2.277). É por isso que a metáfora faz um
paralelo entre o caráter representativo do signo, isto é, seu significado, e
algo diverso dele. (...) Pela lógica peirceana, no entanto, quando passamos
da imagem para o diagrama, este embute aquela, assim como a metáfora
38
engloba, dentro de si, tanto o diagrama quanto a imagem.” (SANTAELLA e
NÖTH 1999: 62)
Os índices, por pertencerem à categoria da secundidade, estão numa
relação de fato, existencial, com seus respectivos objetos.
“O índice não afirma nada; ele somente diz ‘Lá!’ Ele toma conta de seus
olhos, e os dirige para um objeto em particular, e lá ele pára.” (CP 3.361)
O índice indica, aponta seu objeto dinâmico em função da conexão
dinâmica que estabelece com ele. Índices são, dessa forma, necessários a
toda forma de apresentação e representação para que estas se conformem a
um particular. Um índice poderá ter como fundamento um sinsigno ou um
legissigno.
Os símbolos, por sua vez, estão relacionados a seus objetos em
virtude uma lei, convenção ou hábito de associação, e funcionam em virtude
dessa associação de idéias que produzem em razão de uma regra
interpretativa já ter sido estabelecida a priori.
“Essa mesma lógica de encapsulamento dos níveis mais simples pelo mais
complexo também vai ocorrer nas relações entre ícone, índice e símbolo. É
por isso que o símbolo não é senão uma síntese dos três níveis sígnicos: o
icônico, o indicial e o simbólico.” (SANTAELLA e NÖTH 1999: 62)
Há um exemplo bastante simples e elucidativo. Pensemos numa
nuvem: se toda coisa pode ser signo, o que é uma nuvem, em termos
semióticos? A melhor resposta é: depende. Depende do aspecto pelo qual a
coisa está sendo tomada como signo. Se ficarmos olhando as nuvens e
imaginando com o quê elas se parecem, elas estarão funcionando como
ícones para nós. Já se observarmos as nuvens procurando indicações sobre
se choverá esta tarde ou não, então elas estarão funcionando como índices.
Mas para um físico, que conhece as leis de formação das nuvens, elas são
símbolos. Assim fica claro como e porque qualquer coisa, ou ainda, como
qualquer existente, pode funcionar como signo, inclusive como diversos tipos
de signo, sem, no entanto, deixar de ser aquilo que é.
39
Ícones e índices não crescem em significado; o índice porque aponta
para um objeto particular e nele se detém; e o ícone porque sua
referencialidade é mera possibilidade em função de semelhanças
qualitativas, e a ponte com o objeto dinâmico deverá ser sempre construída
pela mente interpretadora no ato da interpretação. Já o símbolo é sempre
maior do que a interpretação que se tem dele, pois ele é uma soma geral, um
acúmulo de interpretantes, estando em contínuo crescimento, sendo
suscetível também de mudanças. No entanto, assim como qualquer outro
signo, não é capaz de esgotar o objeto dinâmico.
“Um signo plenamente geral deverá ser um símbolo produzido por via
argumentativa, por uma estrita necessidade lógica. Signos cujo interpretante
é determinado por necessidade lógica crescem, indefinidamente, como o
pensamento por sua própria virtude. São genuinamente capazes de se auto-
organizarem sem qualquer limitação, representando, em constante
crescimento e evolução, toda classe de fenômenos. Por esta razão,
conferem a todo pensamento uma dimensão cósmica e assumem a forma de
uma rede em infinita expansão.” (SILVEIRA 2007:45)
Assim, ícones representam em função de uma relação de semelhança,
sendo seu objeto e seu interpretante meras possibilidades, a serem
estabelecidos pela mente interpretadora. Já o índice funciona em função de
uma conexão dinâmica com seu objeto, sem a qual não subsistiria, podendo
ter como interpretante tanto uma existência (secundidade) como uma
possibilidade (terceiridade). Já o símbolo, signo genuinamente triádico,
carrega em si a regra (lei ou hábito) segundo a qual ele será interpretado de
determinada forma.
3ª tricotomia: a relação signo-interpretante final
É na relação entre o signo e seu interpretante final (IF) que surge a
terceira tricotomia. Essa relação pode ser entendida como a natureza da
influência de um signo, que poderá ser de possibilidade (primeiridade),
existência (secundidade) ou lei (terceiridade). Sob esse aspecto, um signo
40
poderá ser um rema, um dicente, ou um argumento, respectivamente, em
função da categoria fenomenológica que predominar em cada relação.
Um rema é uma mera possibilidade lógica, um termo, um signo de
essência. Um dicente é uma proposição, um signo que diz algo da existência
concreta de seu objeto. Um argumento pode ser exemplificado por um
silogismo, duas premissas das quais segue uma conclusão.
“Um Rema é um Signo que, para seu Interpretante, é um Signo de
Possibilidade qualitativa, ou seja, entendido como representando tal e tal
espécie de Objeto possível. Todo Rema fornecerá, talvez, alguma
informação; mas não é interpretado como destinado a fazê-lo.
Um Dicente é um Signo que, para seu Interpretante é Signo de existência
concreta. Não pode, conseqüentemente, ser um ícone, porque este não
fornece base para sua interpretação, como referindo-se a uma existência
concreta. Um Dicisigno envolve, como parte dele e necessariamente um
Rema para descrever o fato que se entende que indique. Trata-se, porém,
de uma peculiar espécie de Rema; e embora seja essencial para o Dicisigno,
de nenhuma forma o constitui.
Um Argumento é um Signo que, para seu Interpretante é Signo de lei.
Podemos dizer que um Rema é um signo que se entende representar seu
objeto simplesmente em seus caracteres; que o Dicisigno é um signo que se
entende representar seu objeto com referência à existência concreta; e que
um Argumento é um Signo que se entende representar seu Objeto em seu
caráter de Signo.” (CP 2.250-253)
No tocante a essa relação signo-interpretante final, portanto, teremos,
novamente, que o argumento (lei) incorporará o dicente (existência) e o rema
(possibilidade), e o dicente envolverá somente o rema.
Outro importante ponto a observar, é o de que a relação de
interpretante nunca poderá ser mais “forte”, i.e., pertencer a uma categoria de
ordem superior na escala categorial, do que a relação de objeto, e esta, por
sua vez, não poderá ser superior à relação de representamen (SILVEIRA
2007: 62).
41
3.2. As dez classes de signos
Nesta classificação, a combinação não é aleatória, pois as divisões e
subdivisões do signo não são independentes; ela segue uma seqüência
rigorosa baseada na lógica das categorias. Como conseqüência, temos
apenas 10 classes principais de signos, e não 27 como decorreriam da
combinação independente das subdivisões das tricotomias. Todas as demais
combinações possíveis entre essas tríades inexistem por inconsistência
lógica. Vale observar que essa classificação foi claramente elaborada e
explicada por Peirce, o que a torna uma ferramenta extremamente útil para
qualquer análise sígnica.
A seguir, são apresentadas sucintamente as definições das dez
classes de signos, resultantes da combinação das três tricotomias descritas.
Esse detalhamento nos será útil tanto na análise da natureza semiótica da
escrita, como também das transformações da escrita na hipermídia, pois nele
observamos claramente a crescente complexificação dos signos na medida
em que cada classe incorpora elementos das anteriores.
I) Qualissigno icônico remático: é uma qualidade qualquer que
funciona como signo, em virtude de alguma semelhança com o objeto
denotado (CP 2.254).
II) Sinsigno icônico remático: é qualquer objeto de experiência, ou
seja, um existente, que determina a idéia de um objeto em função de alguma
de suas qualidades, i.e., ele incorpora um qualissigno (CP 2.255).
III) Sinsigno indicial remático: é qualquer objeto de experiência direta
que direciona a atenção para um objeto pelo qual sua presença encontra sua
causa. Envolve um sinsigno icônico (CP 2.256).
IV) Sinsigno indicial dicente: qualquer objeto de experiência que,
sendo realmente afetado pelo seu objeto, fornece informação no que diz
respeito a ele. Envolve um sinsigno icônico para incorporar a informação e
um sinsigno indicativo remático para indicar o objeto ao qual a informação se
refere (CP 2.257).
42
V) Legissigno icônico remático: qualquer lei ou tipo que em cada uma
de suas instâncias incorpora uma determinada qualidade que o torna capaz
de suscitar idéias de objetos a ela semelhantes. Suas réplicas serão
sinsignos icônicos de tipo especial (CP 2.258).
VI) Legissigno indicial remático: também um tipo geral ou lei, que
independentemente de como tenha sido estabelecido, requer que cada uma
de suas instâncias seja de fato afetada por seu objeto de modo a chamar a
atenção sobre esse mesmo objeto. Suas réplicas serão sinsignos indiciais de
tipo especial, e para seu interpretante, ele funcionará como um legissigno
icônico (CP 2.259).
VII) Legissigno indicial dicente: é qualquer tipo geral ou lei que requer
que cada uma de suas instâncias seja de fato afetada pelo seu objeto de
maneira a fornecer informação definida a respeito desse mesmo objeto. Ele
envolverá um legissigno icônico para significar tal informação e um legissigno
indicial remático para denotar o sujeito dessa mesma informação. Suas
réplicas serão sinsignos dicentes de tipo especial (CP 2.260).
VIII) Legissigno simbólico remático: um tipo ou lei geral conexo a seu
objeto por uma associação geral de idéias de modo a suscitar uma imagem
na mente por ele afetada, imagem, que, em virtude de certos hábitos e
disposições daquela mente, tende a produzir um conceito geral. Suas
réplicas, sinsignos indiciais remáticos de tipo especial, serão interpretadas
como instâncias daquele conceito. Seu interpretante o representará como um
legissigno indicativo remático em algumas ocasiões, e em outras, como um
legissigno icônico (CP 2.261).
IX) Legissigno simbólico dicente: é uma proposição ordinária, um signo
conexo ao seu objeto por uma associação de idéias gerais, atuando de forma
semelhante a um símbolo remático, mas sendo a existência ou lei que ele
evoca realmente conexa ao objeto que ele indica. O interpretante vê o
símbolo dicente como um legissigno indicial dicente, que envolve um
legissigno indicial remático e um legissigno icônico como vimos. Sua réplica é
um sinsigno dicente de tipo especial (CP 2.262).
43
X) Legissigno simbólico argumentativo: ou simplesmente argumento, é
um signo cujo objeto é geral, e cujo interpretante representa seu objeto como
sendo um signo ulterior, em função da lei pela qual a passagem do conjunto
das premissas envolvidas para o das conclusões tende para a verdade. Sua
réplica será um sinsigno dicente (CP 2.263). Ele envolverá símbolos dicentes
e símbolos remáticos.
A seguir, apresentamos um quadro elaborado a partir dos exemplos
que Peirce (CP 2.254-263) nos dá de cada uma das classes:
Classe de signo Abrevia-tura
Exemplo
I Qualissigno icônico remático 111 um sentimento de vermelhidão
II Sinsigno icônico remático 211 um diagrama individual
III Sinsigno indicial remático 221 um grito espontâneo
IV Sinsigno indicial dicente 222 um catavento
V Legissigno icônico remático 311 um diagrama, abstraída sua individualidade
VI Legissigno indicial remático 321 um pronome demonstrativo
VII Legissigno indicial dicente 322 um pregão de rua
VIII Legissigno simbólico remático 331 um nome (substantivo) comum
IX Legissigno simbólico dicente 332 uma proposição
X Legissigno simbólico argumentativo
333 um silogismo
Dessa combinatória, temos que um qualissigno (111) só poderá ser
icônico e remático; um sinsigno icônico (211) será necessariamente remático;
e um legissigno icônico (311) também será sempre remático. Todo símbolo
44
(33_) será necessariamente um legissigno, e todo argumento (333), um
legissigno simbólico. Essas relações merecem atenção detalhada.
Todo qualissigno será necessariamente um ícone, uma vez que, tendo
como fundamento uma pura possibilidade, somente poderá se relacionar ao
seu objeto dinâmico também numa forma de primeiridade. Seu interpretante
também pertencerá, necessariamente, ao domínio da primeira categoria.
“Como a qualidade é, seja o que for, positivamente aquilo que é, só pode
denotar um objeto em virtude de algum ingrediente comum com o objeto ou
uma similaridade com ele; de tal modo que um Qualissigno é
necessariamente um ícone. E mais ainda, uma vez que uma qualidade é
uma mera possibilidade lógica, somente pode ser interpretada como um
signo de essência, isto é, um Rema.” (CP 2.254)
Já sinsignos são signos de existência, e serão necessários a todos os
outros tipos de signo para que estes possam ser incorporados em algum
existente, i.e., todo sinsigno incorporará qualidades (qualissignos), e toda
réplica de outros signos será um sinsigno de tipo especial. A essa relação
também foi dado o nome de type-token, em função da tríade legi-sin-
qualissigno ter sido chamada também de type-token-tone, respectivamente.
Por seu representamen pertencer ao domínio da secundidade, a
relação de um sinsigno com seu objeto poderá ser: indicial, quando apontar,
através de uma conexão dinâmica, para aquilo que representa; ou
meramente icônica, quando esta relação se restringir a uma mera associação
entre atributos qualitativos. Quanto ao seu interpretante, também este não
poderá ultrapassar a categoria do segundo, podendo ficar no nível dicente,
oferecendo informações concretas sobre seu objeto, ou restringir-se ao nível
conjectural, remático.
Os legissignos, cujo representamen ou fundamento já pertence à
categoria da terceiridade, implicarão em todas as realizações das categorias
anteriores. Poderão, assim, manter uma relação com seu objeto dinâmico em
qualquer um dos três níveis, icônico, indicial ou simbólico, sendo que neste
último representará seu objeto por força de um sistema de signos no interior
45
do qual estará determinado o seu funcionamento. Respeitando-se o nível em
que essa relação com o objeto se der, seu interpretante pertencerá: ao nível
do primeiro (rema), para os legissignos icônicos e indiciais; e ao domínio do
segundo (dicente), para legissignos simbólicos e indiciais; ficando o
interpretante de terceiridade (argumento) restrito a legissignos simbólicos.
Outro aspecto a destacar é a implicação entre as categorias, pela qual
signos mais gerais implicam signos menos gerais, resultando em que o geral
(terceiro) não pode prescindir do existente (segundo), e nem este do
potencial (primeiro). Esse princípio categorial, que poderá ser melhor
observado ao se estudar o processo semiósico,
“permite que se perceba tanto na relação do Representamen, onde o
primeiro correlato do signo é constituído, quanto na relação do
Representamen para com o Objeto, segundo correlato do signo, de que
modo o geral implica o existente e este, implica o potencial: o Legissigno
implica Sinsignos e estes implicam Qualissignos; enquanto que, os
Símbolos implicam Índices e Ícones a estes atribuíveis. (...) A classe dos
Argumentos, constituída pelos interpretantes de lei implicam Dicentes
como interpretantes de existência. Ambas as classes implicam, por sua vez,
Remas, como interpretantes de potencialidade.” (SILVEIRA 1996: 47)
4. A SEMIOSE OU AÇÃO DO SIGNO
Semiose significa processo sígnico ou ação do signo. Para Peirce,
todo pensamento se dá em signos, portanto é através do estudo dos
mecanismos sígnicos, através da teoria dos signos, ou semiótica entendida
como lógica, que podemos compreender mais amplamente a percepção, a
cognição e o raciocínio humanos. Como sempre, vale lembrar que os
conceitos de mente e pensamento em Peirce não são logocêntricos, não se
restringindo ao ser humano. No entanto, o presente trabalho foca
especificamente aspectos da linguagem humana, para os quais as
classificações sistemáticas de signos podem ser altamente elucidativas,
desde que não sejam tomadas como um esqueleto rígido de definições
estanques. As classificações de signos
46
“fornecem um padrão para análise sígnica compreensiva ao invés de
funcionar como uma classificação estrito senso. Esse padrão inclui todos os
aspectos epistemológicos e ontológicos do universo dos signos, o problema
da referência, da realidade e ficção, a questão da objetividade, a análise
lógica do significado, e o problema da verdade” (BUCZINSKA-GAREWICZ
1983:27 apud SANTAELLA 1992a: 55)
Em se tratando da percepção e cognição humanas, é mister dizer que
não temos acesso direto ao real, ao objeto dinâmico. Ele nos chega através
da medi(ação) sígnica, em que o signo, sempre incompleto em relação a seu
objeto (sendo por isso mesmo um signo), o representa parcialmente. A
apreensão do objeto em si, se dá somente por meio do objeto imediato, que é
o objeto semiótico tal como aparece na semiose, isto é, a maneira como o
objeto dinâmico está representativamente presente nesse processo. Assim, o
objeto, para nós sempre mediado, é aquele que pensamos ser, a coisa como
representada até então, não obstante se nosso pensamento sobre ele é falso
ou verdadeiro.
Dessa forma, a semiose ininterrupta, contínua do universo,
representará, através de signos, os objetos aos quais não temos acesso
direto, mas que, no entanto, através do signo, se imporão para determinar
interpretantes que se multiplicarão em novos signos, criando sempre na
mente interpretadora outros signos, mais desenvolvidos ou não, do seu
objeto. É nesse respeito que podemos concluir que o objeto imediato sempre
levará em conta a possibilidade de erro, enquanto o objeto dinâmico será
requerido para a concepção da verdade, sempre in futuro.
“Semiose quer dizer ação do signo. A ação que é própria ao signo é a de
determinar um interpretante, quer dizer, ação do signo é a ação de ser
interpretado num outro signo, pois o interpretante tem sempre a natureza de
um signo (mesmo que seja um signo rudimentar, um sentimento, por
exemplo, ou uma percepção ou uma ação física ou mental).” (SANTAELLA
2001: 43)
47
4.1. Relações de implicação entre os signos
A seguir, apresentamos as relações de implicação entre legissignos e
sinsignos, bem como alguns aspectos da sintaxe entre as dez classes de
signos, tendo parte delas sido apresentada com a descrição de cada classe
sígnica. A relação de implicação entre legi e sinsignos é também chamada de
instanciação ou de relação type-token. As instâncias de um tipo geral ou
legissigno corresponderão às suas réplicas ou ocorrências, ou ainda, a
sinsignos de tipo especial, que, por sua vez, incorporarão qualidades
(qualissignos).
“As réplicas dos Símbolos, como as de qualquer Legissigno, serão
constituídas por existentes - Sinsignos, na linguagem peirceana - dotados
de uma configuração tal que possam ser identificados para o exercício da
função de indicar a presença daquele Legissigno. Exercerão, como também
Peirce afirmava, o papel de ‘ocorrências’ (tokens) de um determinado ‘tipo’
(type). [CP 4.537 e CP 5.429].
A configuração distintiva das réplicas resultará do confronto de
determinadas qualidades de que devem ser dotados aqueles Sinsignos.
Estas qualidades, como potencialidades positivas necessárias para
constituição de qualquer signo, estarão no início de todo processo semiótico.
Qualidades que são signos, são denominadas por Peirce, Qualissignos.”
(SILVEIRA 1996: 47)
As relações entre as dez classes podem ser divididas em três grupos,
dependendo se elas forem relações de envolvimento, de “instanciação”
(“governar réplicas”), ou de interpretação (“seu interpretante representa-o
como...”). Essas relações estão baseadas nas relações entre as três
categorias, e descrevem como gerais (types) são instanciados num número
indeterminado de singulares e existentes (tokens) e como suas qualidades
(tones) são prescritas.
“Pode-se dividir em três grupos as relações acima descritas:
(i) ‘envolvimento’: 211>111, 221>211, 222>221, 222>211, 322>311,
322>321, 332>331, 332>321;
(ii) ‘governar réplicas’: 311>211, 321>221, 322>222, 331>221, 332>222,
48
333>222;
(iii) ‘seu interpretante representa-o como (...), e isso ele o é’ (compartilha da
natureza): 321>311, 331>321, 331>311, 332>322.” (QUEIROZ 2004:97)
Essas relações são acima indicadas de forma sucinta, usando-se os
nomes das classes abreviadamente, e podem ser descritas, conforme
Queiroz (2004:96) com base em Peirce (CP 2.254-263) como segue:
- um qualissigno (111) só poderá ser observado ao ganhar corpo num
existente, que será um sinsigno icônico (211) que o envolverá, e que por sua
vez será envolvido por um sinsigno indicial remático (221). Um sinsigno
indicial dicente (222) envolverá tanto um sinsigno icônico (211) como um
sinsigno indicial remático (221);
- um legissigno icônico (311) será replicado em sinsignos icônicos
(211). Um legissigno indicial remático (321) será replicado em sinsignos
indiciais remáticos (221); no entanto, será “em certa medida” para seu
interpretante, um legissigno icônico (311). Um legissigno indicial dicente (322)
envolverá um legissigno icônico (311) e um legissigno indicial remático (321),
mas será replicado em sinsignos indiciais dicentes (222);
- um símbolo remático (331) compartilha da natureza do legissigno
indicial remático (321) e do legissigno icônico (311), e será replicado em
sinsignos indiciais remáticos (221). Um símbolo dicente (332) atua como um
símbolo remático (331), embora seja um legissigno indicial dicente (322) para
seu interpretante; suas réplicas serão sinsignos indiciais dicentes (222).
Argumentos (333) serão replicados em sinsignos indiciais dicentes (222).
Outra relação entre as classes, sob um ponto de vista lógico,
determina que “o discurso consiste de argumentos [333], compostos de
proposições [332], e estas de termos gerais [331]” (MS 930:27 apud
SANTAELLA 2001: 279)
Para facilitar a compreensão e visualização de todas essas relações,
elaboramos dois diagramas, nos quais é possível observá-las
separadamente, e um esquema geral, em que todas são contempladas. No
49
primeiro, somente as diferentes relações de envolvimento e de instanciação
são retratadas, representadas pelas setas tracejadas e pelas setas simples,
respectivamente. Note-se que os sinsignos encontram-se dentro de uma
esfera, demonstrando que somente eles têm existência concreta:
No segundo diagrama, as relações de “interpretação” são mais
claramente observadas, onde fica evidenciado que símbolos dicentes são
interpretados como legissignos indiciais também dicentes, enquanto
legissignos remáticos relacionam-se entre si na relação de interpretação.
A seguir, apresentamos um quadro geral da semiose entre as dez
classes de signos, elaborado parcialmente a partir do modelo de Marty (apud
QUEIROZ 2004: 119), porém dando destaque às relações descritas por
Peirce (CP 2.254-263). Note-se que foram incluídas as relações entre os
argumentos (333) e os símbolos dicentes (332), e entre estes e os símbolos
remáticos (331):
50
51
Capítulo 2 - MANIFESTAÇÕES SÍGNICAS DA PALAVRA
“Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?”
Drummond de Andrade (1962: 187)
1. A PALAVRA: SIGNO LINGÜÍSTICO POR EXCELÊNCIA
Para compreender as mudanças que hoje se operam na escrita em
contextos hipermidiáticos, iniciaremos com uma análise das potencialidades
e manifestações sígnicas da palavra.
Especulações de todo tipo sobre a palavra têm estado presentes de
diferentes formas ao longo da história do conhecimento, nas mais diversas
épocas e ciências, a começar pela gramática tratada como parte da filosofia,
passando por outros campos das humanidades, tendo recebido, no século
XX, um tratamento específico dado pela lingüística, ciência iniciada por
Saussure, que considerou o signo lingüístico arbitrário, ou seja, sem ligação
necessária (no sentido filosófico) entre a imagem acústica e conceito.
A etimologia de palavra9 vem de sua origem grega parabole, que
significa “lançar ao lado de”, “ação de se desviar do caminho reto”, usada no
sentido de comparação, aproximação, semelhança. Isso mostra como
estamos sempre observando, conhecendo e tentando nos aproximar do real,
do existente10, e que a possibilidade de uma maior e melhor adequação entre
palavras e os objetos que elas designam é, portanto, uma busca humana
constante. A diversidade das línguas e palavras é gigantesca; ao buscar
9 Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.
52
transpor esse abismo entre os humanos e a realidade, produzimos uma
miríade de signos e combinações lingüísticas, pelas quais se transformam e
evoluem todas as línguas e seus correspondentes sistemas de escrita, e das
quais somos, como diz Peirce, a própria “encarnação”
“O homem denota qualquer objeto de sua atenção num momento dado.
Conota o que conhece ou sente sobre o objeto e é também a encarnação
desta forma ou espécie inteligível.” (CP 7.591)
Mas o que vem a ser uma palavra? Embora a resposta pareça óbvia,
ela demanda uma discussão sobre seu status na estrutura lingüística.
Primeiramente, palavra é um termo vago, impreciso, difícil de ser definido de
maneira a contemplar a diversidade de formas que ela incorpora na enorme
variedade das línguas, mormente no que tange às suas diferenças no âmbito
das línguas isolantes e aglutinantes11.
“Palavras são as típicas unidades da Lexicologia e Lexicografia. Isso parece
bastante óbvio, mas tem havido uma grande discussão acadêmica sobre o
status da palavra na estrutura lingüística. Alguns lingüistas evitam o termo
dando preferência ao morfema como a menor e mais básica unidade
gramatical (...) ‘palavra’ é um termo altamente ambíguo e difícil de definir de
uma forma válida para todas as línguas. Palavras são unidades no limite
entre a morfologia e a sintaxe servindo a importantes funções como
portadoras de informação tanto semântica como sintática, e como tais estão
sujeitas à variação tipológica. Em algumas línguas, as palavras parecem ser
mais claramente delimitadas e mais estáveis do que em outras.” (COULMAS
2003: 38)
Dessa maneira, temos, inicialmente, a palavra definida como a típica
unidade da lexicologia e lexicografia, como uma unidade portadora de
informação tanto sintática quanto semântica, ou seja, a palavra é uma
11 Isolante, em lingüística, diz‐se da língua cujas palavras tendem a ser ou são sujeitas a poucas variações, ou seja, nelas não se podem distinguir o radical e os elementos gramaticais (as funções e as categorias são expressas por palavras autônomas, preposições ou partículas). O principal exemplo de língua isolante é o chinês. Aglutinante, em lingüística, diz‐se de ou língua cujo mecanismo predominante de formação de palavra é a aglutinação, e cujas palavras podem ser segmentadas numa série de morfemas que permanecem nitidamente distintos. (cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa)
53
unidade significativa e gramaticalmente autônoma, e apesar de existirem
unidades mais básicas que a compõe, ela é a “menor unidade que pode
sustentar-se sozinha”, dotada de mobilidade posicional sem com isso afetar a
gramaticalidade da sentença em que está inserida. Vejamos:
“Apesar dessas dificuldades, lexicologistas concordam mais ou menos nas
unidades de sua pesquisa, embora eles possam diferir em alguns detalhes
de como distinguir palavras de outras unidades lingüísticas. Palavras são
significativas e são gramaticalmente autônomas. É verdade que há unidades
semânticas abaixo do nível das palavras - por exemplo, raízes verbais nas
línguas aglutinantes - bem como constituintes mínimos que consistem em
mais de uma palavra - por exemplo, expressões como ‘round the bend’, em
inglês, que significa ‘pirado’, maluco. Entretanto a palavra, tipicamente, é a
menor unidade que pode sustentar-se sozinha como uma emissão completa,
e que pode ser inserida, extraída, movida e disposta na sentença sem
destruir sua gramaticalidade. Mobilidade posicional, portanto, é uma
importante característica das palavras, que entre outras coisas, permite-lhes
serem retiradas de contextos e dispostas em listas.” (COULMAS 2003: 39)
Assim, as palavras são unidades lexicais, intuitivamente
compreensíveis, porém difíceis de “capturar” numa definição, por situarem-se
nos limites entre a morfologia e a sintaxe, e capazes de serem fixadas por
signos visíveis nos quais ganham corpo. Elas constituem-se, assim, em
“unidades analíticas da língua escrita”.
“Importante o fato de que palavras são unidades dadas intuitivamente, mas
difíceis de determinar. Uma vez fixadas por signos visíveis, elas adquirem
uma existência corporal. Deve ser lembrado que antes de mais nada as
palavras são unidades lexicais ou lemmata, isto é, unidades analíticas da
língua escrita.” (COULMAS 2003: 39)
Outro ponto sob o qual pode a unidade lexical ser observada é o
ortográfico, ou mesmo, tipográfico: a palavra é uma unidade limitada por
espaços na língua escrita. No entanto, esse critério também é bastante
impreciso, uma vez que há questões concernentes à separação e à
hifenização das palavras que precisam ser consideradas. O uso do hífen
54
varia bastante de uma língua para outra, mudando também no curso do
tempo dentro do sistema de cada língua.
“Claramente, não há nada universal sobre a separação de palavras. Em
algumas línguas, mas não em outras as palavras escritas são unidades
reconhecíveis de acordo com esse critério, e não é difícil encontrar exemplos
de quão inconsistentemente ele é aplicado numa dada língua. Almost
pareceria ser uma palavra ortográfica, all right são duas, e all-out não é nem
uma nem outra. O espaçamento entre palavras, além disso, não é somente
diferente em diferentes línguas, mas também contingente em função de
desenvolvimentos históricos.” (COULMAS 2003: 39,40)
Por todos esses fatores, é bastante difícil definir com precisão o que
seja uma ‘palavra’. Para o estudo dos sistemas de escrita, é imperioso notar
que ‘isso’, a que denominamos palavra, ou uma unidade claramente
delimitada, é muito mais um produto desse mesmo sistema de escrita do que
um pré-requisito para que ela seja grafada. Dessa forma, assumiremos, com
Saussure, que ela é uma unidade que “atinge a mente”, um conceito, ou seja,
que a palavra, como nos diz Pignatari (1979: 9), “é o signo lingüístico por
natureza”, ou ainda, o signo lingüístico por excelência.
“Para os propósitos presentes é apropriado trabalhar com uma simples e
pragmática noção da palavra, porque onde palavras são reconhecidas na
escrita isso não é o resultado de uma análise teórica da fala, mas uma
interpretação. Nós assumiremos que a palavra é uma unidade ‘que atinge a
mente’ no sentido em que Saussure aludiu, mas também assumiremos que
seu status como uma unidade claramente delimitada de uma determinada
língua é mais um resultado do que um pré-requisito da escrita.” (COULMAS
2003: 40)
As palavras são signos, e para Peirce todo pensamento se dá em
signos que são, na maior parte, “da mesma estrutura geral das palavras”,
além de contar com outros signos necessários para “melhorar os defeitos das
palavras”, constatando assim, a não suficiência dos símbolos, ou palavras de
caráter eminentemente simbólico, para exprimir o pensamento:
“... todo pensamento é conduzido em signos que são, na maioria, da mesma
estrutura geral das palavras; aqueles que não são assim, são daquela
55
natureza de signos dos quais nós, aqui e ali, em nossas conversas com
outros, necessitamos para melhorar os defeitos das palavras ou símbolos.
Esses signos-pensamento não-simbólicos são de dois tipos: primeiro, figuras
ou diagramas ou outras imagens (eu os chamo Ícones) tal como aqueles que
tem que ser usados para explicar o significado das palavras; e segundo,
signos mais ou menos análogos aos sintomas (eu os chamo Índices) dos
quais as observações colaterais, pelas quais sabemos sobre o que um
homem está falando, são exemplos. Os ícones ilustram principalmente a
significação dos pensamentos-predicado, os índices as denotações dos
pensamentos-sujeito. A substância dos pensamentos consiste dessas três
espécies de ingredientes.” (CP 6.338)
Essa constatação será esclarecedora quanto à riqueza das
manifestações que as palavras podem e precisam assumir para cumprir suas
funções representativas, sejam elas simbólicas, indexicais ou icônicas, e
quanto a todas as transformações pelas quais ela passa na hipermídia.
1.1. A palavra multifacetada
Apesar das dificuldades em estabelecer uma definição precisa do que
seja uma palavra, como vimos, ela é o signo lingüístico por excelência. Uma
das principais características de que ela é dotada é sua mobilidade
posicional, o que permite considerá-la um signo, de certa forma, autônomo,
não necessariamente inserido num texto: podemos encontrar palavras numa
lista, por. ex., ou ainda escritas sobre uma caixa, indicando seu conteúdo.
Ainda que as palavras estejam inseridas num texto, pode-se considerá-las
em sua individualidade.
Essa autonomia relativa das palavras sempre permitiu que elas se
manifestassem de forma multifacetada, o que fica ainda mais evidenciado no
contexto hipermidiático, em que elas aparecem de modo híbrido, renovado,
na forma de links e hotwords, por exemplo (ver capítulo V), e que torna
necessária uma análise minuciosa de suas manifestações sígnicas, o que, a
56
partir de agora, faremos por meio da aplicação da classificação peirceana
dos signos aos signos lingüísticos.
Nesta jornada que empreenderemos rumo a uma maior compreensão
dos atributos sígnicos das palavras, é imperioso lembrar a lógica das
categorias, pela qual cada uma delas está presente, indissociavelmente, em
todo e qualquer fenômeno, tornando impossível criar classificações
estanques. Um olhar plural faz-se, então, mister, para podermos enfocar o
grau de proeminência de cada categoria em cada signo de forma
enriquecedora para nossa compreensão e espírito investigativo.
“As categorias peirceanas são onipresentes o que significa que um mesmo
signo pode exibir uma pluralidade de faces ao mesmo tempo. Nessa medida
as classificações devem funcionar como meios para iluminar essa
pluralidade e não para fixar um signo dentro de uma distinção em detrimento
das outras. (...) Assim como para ser signo, algo não precisa deixar de ser
coisa, para ser um legissigno, um signo não precisa deixar de ser um
sinsigno e um qualisigno. Ao contrário, não pode deixar de ser esses três
aspectos ao mesmo tempo.” (SANTAELLA 2001: 53)
E o próprio Peirce é quem enfatiza a talvez impossível precisão
classificatória:
“Constitui interessante problema dizer a que classe pertence um dado signo,
pois que todas as circunstâncias do caso têm de merecer consideração.
Contudo, raramente se exige grande precisão, pois que se alguém não situa
o signo de modo adequado, pelo menos dele se aproximará, com facilidade,
o suficiente para caracterizá-lo com vistas a qualquer objetivo ordinário de
lógica.” (CP 2.265)
Dessa forma, contando com a compreensão peirceana das
dificuldades do caminho, examinaremos as facetas sígnicas da palavra.
57
2. A PALAVRA COMO LEGISSIGNO
A linguagem verbal constitui-se num típico sistema de legissignos. No
entanto, entre as dez principais classes sígnicas, há seis tipos de legissignos,
todos pertencentes ao domínio da terceiridade em função do seu
representamen ser uma lei, norma ou convenção, mas com possibilidades de
relacionar-se ao seu objeto dinâmico de formas tanto simbólicas, quanto
icônicas e indiciais. Como nos diz Santaella:
“Para começar é preciso considerar que nem todo legi-signo é
necessariamente simbólico, mas pode também ser indicial e icônico. O
universo lingüístico, desde o nível fonológico até o discursivo está repleto
deles.” (SANTAELLA 2001: 271)
Esse é um dos objetivos do presente estudo: investigar as
potencialidades sígnicas da palavra à luz das dez principais classes de
signos idealizadas por Peirce, que permitirão esmiuçar o signo lingüístico,
identificando nuanças que, de outra forma, passariam despercebidas.
2.1. Convenção: fundamento do legissigno
Tomando a palavra como signo na acepção peirceana do termo, se
considerada em relação ao seu representamen, em relação a si mesma,
como signo, i.e., seu fundamento, ela é um legissigno. Um legissigno é uma
lei, hábito ou convenção pela qual um signo será interpretado de determinada
maneira.
Essa classificação da palavra como convenção é a mais aceita, já que
na própria lingüística ela é assim considerada. Mas o que precisa ficar
evidenciado, e esse é o primeiro ponto importante que vai fundamentar as
análises buscadas neste estudo, é que essa convencionalidade se refere ao
seu fundamento, ao aspecto pela qual ela é tomada como signo. Desse
modo, é possível dizer que, a palavra, embora nasça como legissigno, posto
que nasce no interior do sistema da língua, não tem suas potencialidades
sígnicas restritas à convenção.
58
A convencionalidade das palavras é requisito para a comunicação. O
próprio Peirce, em seu conceito de mente, refere-se àquela mente que
consiste de tudo aquilo que dever ser bem compreendido entre emissor e
intérprete para que o signo cumpra sua função:
“mente na qual as mentes do emissor e do intérprete têm de se fundir a fim
de que qualquer comunicação possa ocorrer. Esta mente pode ser chamada
de Comens. Ela consiste de tudo aquilo que, de saída, é e deve ser bem
compreendido entre emissor e intérprete a fim de que o signo em questão
cumpra sua função.” (SS 196,197)
2.2. Legissigno e objeto dinâmico
Outro importante aspecto a ser considerado, que pode parecer mais
controverso em função de toda a tradição saussureana, é o do objeto ao qual
a palavra se refere. Lembrando que a lingüística não leva em conta o objeto
referido (referente), sendo que para ela o signo lingüístico relaciona somente
conceito (significado) e imagem acústica (significante) (CLG 81), a teoria
peirceana tem uma contribuição importante a fazer no que tange à questão
do objeto. Como vimos, para Peirce, o objeto do signo se divide em objeto
dinâmico e objeto imediato, e o objeto dinâmico sempre determinará o signo
visto que ele é sua causa (CP 4.531; 6.347).
Na classificação peirceana dos signos, fica evidente que a palavra é
sempre convencional12, e que essa convencionalidade refere-se ao
fundamento da palavra como signo que ela é, fazendo dela, invariavelmente,
um legissigno. Um legissigno, então, sendo uma lei ou convenção, poderá
ser, na sua relação com o objeto dinâmico, um ícone, um índice ou um
símbolo. Saussure não distinguiu essas nuances e considerou o signo
lingüístico arbitrário como um todo.
12 Note‐se que Peirce usa a palavra convenção ao se referir aos símbolos, que são invariavelmente legissignos: “Pois símbolos fundam‐se tanto sobre hábitos, que são, é claro, gerais, ou sobre convenções ou acordos, que são igualmente gerais.” (SS 70; ver também SS 33). Saussure, por outro lado, também usa a palavra hábito: “... a idéia de que a língua seja um hábito” (CLG 221).
59
Então a palavra, por sua vez, dentro do sistema da língua, sendo
invariavelmente um legissigno em relação ao seu fundamento, poderá
apresentar-se sob diferentes aspectos na sua relação signo-objeto dinâmico,
sem ficar restrita à sua função simbólica:
“a [afirmação] de que a palavra é pura e simplesmente símbolo é
decididamente equivocada.” (SANTAELLA e NÖTH 1999: 63)
Essa variação, que não afeta seu caráter convencional, possibilitará à
palavra, ao manifestar-se, que ela também o faça de formas icônicas e
indiciais, além das formas simbólicas já amplamente reconhecidas. Dessa
maneira, a palavra, nas suas manifestações sígnicas, poderá, dentro do
espectro das dez classes de signos, ser um:
- legissigno icônico,
- legissigno indicial, ou
- legissigno simbólico.
A distinção de como a palavra se relaciona com seu objeto dinâmico é
primordial para o melhor entendimento das mudanças pelas quais passa a
palavra escrita nos suportes eletrônicos. Analisando suas manifestações
simbólicas, indiciais e icônicas, bem como seus desmembramentos em
imagens, diagramas e metáforas, teremos uma compreensão ampliada das
relações sígnicas que a regem.
2.3. Objeto dinâmico, necessidade e a motivação da palavra
O signo lingüístico foi considerado arbitrário13, não motivado, por
Saussure, o que equivale a dizer que não há ligação necessária (no sentido
filosófico) entre a imagem acústica e conceito, muito menos entre imagem
acústica e o objeto do signo.
13 “... queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” (CLG 83).
60
De fato, não há (e provavelmente nunca haverá) ligação14 necessária15
entre um objeto e um signo lingüístico, seja de que língua for. Por
necessidade16 lógica entende-se uma relação onde uma causa sempre leva a
determinado efeito. Este é o principal argumento daqueles que, como
Saussure, postulam contra a motivação do signo lingüístico: não há nada que
determine que um dado objeto receberá necessariamente tal denominação,
sendo a própria diversidade das línguas a primeira e mais evidente prova de
tal argumento (CLG 81,82).
Mas a liberdade17 (filosoficamente, por livre entende-se aquilo que não
sofre determinação) na criação de diferentes palavras (signos) designando
um mesmo objeto, não impede que a palavra seja considerada motivada,
uma vez que não se trata de liberdade, mas sim, da variedade dos aspectos
passíveis de darem motivação ao surgimento de uma palavra.
A palavra, ou melhor, a forma que ela assume, é fruto da percepção
humana18, da captação, através do aparelho sensório, de diferentes aspectos
de um determinado objeto, ou melhor, de um determinado existente. Como
fruto da mediação sensória, ela é traduzida19 para a linguagem verbal a fim
de que o humano possa expressar-se. Nesse momento, ao ser cunhada, a
palavra visa a designar um determinado objeto, referindo-se a ele em função
de um determinado aspecto que se faz mais premente naquele momento.
Dessa maneira, a palavra se liga, por meio de uma das formas de
relação signo-objeto dinâmico (iconicidade, indexicalidade, simbolicidade), a
um dos aspectos do objeto, sendo impossível que uma palavra se ligue ao
14 “A língua , ao contrário, não está limitada por nada na escolha de seus meios, pois não se concebe o que nos impediria de associar uma idéia qualquer com uma seqüência qualquer de sons” (CLG 90). 15 “... não existem relações necessárias entre som e sentido” (CLG 220). 16 Necessário, em lógica e metafísica, falando de relações: 1)É dito necessário o encadeamento das causas e dos efeitos num sistema determinado; ou ainda, 2) é dita necessária a relação de um meio com um fim, de uma condição com um condicionado, se esse fim for atingido apenas por esse meio ou esse condicionado se puder realizar apenas sob essa condição (cf. LALANDE 1999: 726,727). 17 “Livre é o que não tem outro atrás de si determinando suas ações; (...) A liberdade só se manifesta na multiplicidade e na variedade incontrolada ...” (CP 1.302). 18 Cf. artigo “A palavra como mediação entre a percepção humana e o existente” (JUNGK: 2010). 19 Peirce nos dá um exemplo: “Substantivos comuns são primariamente (primitively) usados para denotar perceptos sensórios (sense‐percepts)...” (CP 2.353).
61
objeto que representa em todos os seus aspectos. Neste caso, ela teria que
ser o próprio objeto, e não sua representação. Daí a diversidade das línguas,
onde cada palavra nasce ligada somente a um dos aspectos do objeto
representado, ligação essa que muitas vezes se enfraquece com o tempo,
com a necessidade da convencionalidade, levando a uma aparente
arbitrariedade do signo lingüístico20.
Dito de outro modo, a palavra pode ser motivada em relação a seu
objeto de formas icônicas e indiciais, não somente simbólicas, captando, em
sua trama sígnica, um aspecto do seu objeto com mais evidência do que
outros, sem deixar de ser um legissigno, ou seja, sem contrariar a natureza
convencional que ela incorpora no interior do sistema da língua.
“Porque símbolo é coisa viva, e isto, sem usar figura retórica. O corpo do
símbolo muda lentamente, mas o significado cresce inevitavelmente,
incorpora novos elementos e deita fora elementos antigos. (...) Cada símbolo
é, em sua origem, ou imagem da idéia significada, ou reminiscência de
ocorrência individual, pessoa ou coisa, ligada com seu significado, ou é
metáfora.” (CP 2.222)
2.4. Onipresença e recursividade das categorias
Existem dois aspectos fenomenológicos que corroboram a abordagem
da palavra como legissigno icônico e indicial, além de simbólico: a
onipresença e a recursividade das três categorias, o que faz com que os
legissignos (terceiridade) possam relacionar-se aos seus respectivos objetos
dinâmicos tanto em nível de primeiridade (icônicos), de secundidade
(indiciais), como de terceiridade (simbólicos).
Por onipresença devemos entender que não é possível encontrar uma
categoria pura, isolada das outras. As três encontram-se sempre
relacionadas, em maior ou menor grau, dentro de um fenômeno e, portanto,
de um signo. Por isso, Peirce as chamou de categorias universais de toda e
qualquer experiência e pensamento (SANTAELLA 1983: 29).
20 Esse argumento foi levantado e analisado com mais detalhes, sob o ponto de vista da psicanálise, em trabalho anterior, intitulado “Modelos de Sensibilidade” (JUNGK 2009).
62
Por outro lado, o princípio da recursividade das categorias, que podem
ser utilizadas como “recursos formais diferenciadores”, nos diz que, dentro de
cada signo, primeiridade, secundidade e terceiridade voltam sempre a operar
repetidamente, “à maneira de uma caixa chinesa” (SANTAELLA 1992a: 122),
o que também pode ser claramente observado no caso do ícone, que
pertencendo predominantemente à categoria da primeiridade, subdivide-se
em imagens (primeiridade), diagramas (secundidade) e metáforas
(terceiridade).
2.5. Combinação de signos: necessidade lógica
Outro aspecto importante, de natureza eminentemente cognitiva, é o
da necessidade lógica, para a qual Peirce aponta com veemência, da
combinação de signos ligados às três categorias: símbolos, índices e ícones.
“Juntamente com a tese de que não há pensamento sem signos, ele [Peirce]
também defendeu a tese de que não há pensamento, linguagem ou
raciocínio que possa se desenvolver apenas por meio de símbolos, nem
mesmo o raciocínio puramente matemático, dedutivo. Há sempre uma
mistura de signos que é constitutiva de todo pensamento.” (SANTAELLA
2001:32)
O motivo para essa necessária combinação de signos é que cada um
deles serve para apresentar, perante a mente, ou seja, perante o
pensamento, um tipo especifico de objeto que os outros não apresentam.
“O próximo passo consiste em considerar porque os pensamentos devem
tomar essas três diferentes formas. Observar-se-á que cada tipo de signo
serve para trazer perante a mente objetos de diferentes tipos daqueles
revelados pelas outras espécies de signos.” (CP 6.339)
Para Peirce, um sistema de notação lógica, ou seja, uma linguagem, e,
portanto, uma língua, deve empregar signos desses três tipos para que os
raciocínios empreendidos possam ser completos. Nos símbolos, predominam
relações de terceiridade, especialmente a de generalidade, pela qual eles
63
apontam para conceitos mais ou menos gerais e abstratos que precisam que
uma conexão dinâmica com um existente venha a ser estabelecida a fim de
que tenham poder referencial. Este poder lhes é conferido pelos índices,
signos nos quais a relação com o objeto dinâmico é predominantemente uma
secundidade. Por outro lado, os símbolos precisam, para ter poder de
significação, de ícones que lhes forneçam seu conteúdo.
“Eu tive dificuldades para tornar clara minha distinção entre ícones, índices e
tokens21 [símbolos], a fim de enunciar esta proposição: num sistema perfeito
de notação lógica, signos desses vários tipos devem todos ser empregados.
Sem tokens não haveria generalidade nas declarações, por eles serem os
únicos signos gerais, e generalidade é essencial ao raciocínio. (...) Mas
somente tokens não estabelecem o tema de um discurso, que não pode, de
fato, ser descrito em termos gerais; somente pode ser indicado. O mundo
real não pode ser distinguido de um mundo imaginário por nenhuma
descrição. Daí a necessidade de pronomes e índices, e quanto mais
complicado for o assunto, maior é a necessidade deles. (...) Índices também
são necessários para mostrar de que maneira outros signos estão
conectados. Com esses dois tipos de signos somente, qualquer proposição
pode ser expressa, mas não pode ser raciocinada, pois o raciocínio consiste
na observação de que onde certas relações subsistem, certas outras são
encontradas, e isso, portanto, requer a exposição das relações raciocinadas
dentro de um ícone.” (CP 3.363)
A partir disso, podemos compreender como, num discurso, os
símbolos servem à generalidade e inteligibilidade do raciocínio; os índices
exercem a função referencial e denotativa que lhes é própria, além de
servirem como conectores entre outros tipos de signos; e finalmente como os
ícones, sem os quais o discurso perderia qualquer poder de significação,
contribuem para a compreensão da proposição expressa pelos símbolos e
índices, fornecendo-lhes seu conteúdo. Peirce reforça o caráter indispensável
da ação conjunta dessa tríade de signos para todo raciocínio:
21 Peirce usou diversos termos para denominar seus tipos sígnicos até chegar a uma nomenclatura um pouco mais definida. Na passagem citada, a palavra token foi usada como sinônimo de símbolo. Posteriormente, token é tomado como sinônimo de sinsigno, na equivalência entre as tríades qualissigno‐sinsigno‐legissigno e tone‐token‐type (ver capítulo I).
64
“Uma tríade muito importante é a seguinte: encontraram-se três espécies de
signos que são absolutamente indispensáveis em todo raciocínio; a primeira
é o signo diagramático ou ícone, a qual exibe uma semelhança ou analogia
com o sujeito do discurso; a segunda é o índice que, semelhante a um
pronome demonstrativo ou relativo, força a atenção sobre o objeto particular
pretendido sem descrevê-lo; a terceira (ou símbolo) é o nome geral ou
descrição que significa seu objeto por meio de uma associação de idéias ou
conexão habitual entre o nome e o caráter significado.” (CP 1.369)
Dessa forma, é possível inferir que, por meio de ícones, índices e
símbolos, toda língua e seu correspondente sistema de escrita notam,
denotam e conotam, sons e significados entretecidos numa sintaxe para
expressar o que a mente humana é capaz de conhecer.
“Instrutivamente, esses termos (ícone, índice, símbolo) e/ou seus
equivalentes provisórios, são definidos em termos de denotação ou extensão
e conotação ou compreensão. Assim, ícones (copies, likenesses) conotam
sem denotar, índices (signs, mere signs, conventional signs) denotam sem
conotar, e símbolos ou termos gerais denotam em virtude de conotar.”
(BROCK 1997:560)
Lembramos, mais uma vez, que entre as dez classes de signos, três
são icônicas, quatro são indiciais e três são simbólicas, independentemente
da natureza de seus representamina.
2.6. Legissignos indiciais
Por motivos didáticos, começaremos pelos legissignos indiciais. Estes
não são signos gerais, pois, embora sejam signos de lei em sua relação de
representamen, sua relação com o objeto não é de natureza simbólica, e não
representam, assim, nenhuma classe geral de objetos, o que não os impede
de participarem de processos genuinamente semióticos, i.e., triádicos, que
envolvam interpretantes.
“As classes de signos... mostram que pode haver processos genuinamente
semióticos não constituídos por signos gerais e, mais ainda, por signos
convencionais. (...) Há signos lingüísticos, como são os pronomes
65
demonstrativos e os nomes próprios, que constituídos pelo código
lingüístico, somente indicam os objetos que designam deles não produzindo
um conceito geral.” (SILVEIRA 1996: 46)
Os legissignos indiciais podem ser de dois tipos: dicentes ou
remáticos. O rema é um interpretante lógico de possibilidade; as palavras de
características indiciais pertencerão, portanto, a esta classe de legisssignos
indiciais, embora, no seu uso efetivo, possam adquirir um caráter dicente22.
Eles podem ser definidos como:
“qualquer tipo ou lei geral, independentemente de como tenha sido
estabelecido, que requer que cada uma de sua instâncias seja realmente
afetada por seu objeto, de maneira tal a simplesmente atrair a atenção para
aquele Objeto.” (CP 2.259)
A caracterização do legissigno indicial remático é de extrema
importância para toda a teoria da linguagem (SILVEIRA 2007: 104) em
função de sua capacidade designativa ou referencial, já que dentro dos
sistemas convencionais de signos, ele é o elemento indispensável para
atribuir uma idéia ou representação geral a uma individualidade em função da
insuficiência dos símbolos para designar sujeitos de atribuição e,
conseqüentemente, produzir efeitos no universo da experiência. Conforme
Silveira:
“Sendo em sua constituição própria um tipo ou lei geral, (o legissigno indicial
remático) integra o universo das demais representações, por mais gerais e
abstratas que elas sejam. Contudo, em sua relação com o Objeto, faz com
que suas ocorrências sofram efetiva ação do Objeto, ligando, portanto, as
representações gerais à individualidade dos Objetos representados,
efetivamente designando-os, chegando, em certos casos, a fisicamente
apontá-los.” (SILVEIRA 2007:104)
Peirce nos explica o funcionamento dessa capacidade designativa
(referencial) dos legissignos indiciais remáticos, a necessidade que temos
deles e sua importância para a clareza da mensagem:
22 Peirce dá o exemplo do legissigno indicial remático, a palavra aquele, que na expressão “Aquele é Farragut“ adquire um caráter dicente. (CP 2.265)
66
“Nenhuma questão de fato pode ser asseverada sem o uso de algum signo
que sirva como índice. Se A diz a B: “Há um incêndio”, B perguntará?
“Onde?” A partir do que A vê-se forçado a recorrer a um índice, mesmo que
ele esteja fazendo referência a um lugar qualquer do universo real, passado
e futuro. Caso contrário, ele apenas teria dito que existe uma idéia como a
de fogo, que não veicularia informação alguma, pois a menos que já fosse
conhecida, a palavra “fogo” seria ininteligível. Se A aponta o dedo na direção
do fogo, seu dedo está dinamicamente conectado com o fogo, tal como se
um alarme contra fogo auto-ativante (self-acting) o tivesse voltado nessa
direção, ao mesmo tempo em que também força o olhar de B a virar-se
nessa direção, sua atenção a debruçar-se sobre o fato, e sua compreensão
a reconhecer que sua pergunta está sendo respondida.” (CP 2.305)
Foi o próprio Peirce quem nos legou exemplos valiosos destes
legissignos indiciais remáticos na linguagem verbal, tais como nomes
próprios, pronomes demonstrativos (este, isto, isso, aquilo, etc.) e pronomes
relativos (que, quem, cujo, etc.), que “são quase puros índices, porque eles
denotam coisas sem descrevê-las” (CP 3.361). Peirce esclarece que os
nomes próprios são produzidos por associação por contigüidade, pois são
“palavras que denominam coisas, coisas essas que ele (o homem) identifica
pela união de suas reações” (CP 4.157). Vejamos outros exemplos:
“A par dessas orientações indiciais do que fazer para chegar ao objeto
apontado, devem classificar-se aqueles pronomes a que importa chamar
seletivos (ou quantificadores) por que informam a pessoa que ouve acerca
de como deve ela escolher um dos objetos referidos; os gramáticos
denominam esses pronomes utilizando a indefinida designação de pronomes
indefinidos. Duas espécies desses pronomes são particularmente
importantes em lógica, os seletivos universais, tais como quivis, quilibet,
quisquam, ullus, nullus, nemo, quisque, uterque; em português, qualquer,
cada, todos, nenhum, ninguém. Significam eles que o interlocutor tem
liberdade de escolher o exemplo que lhe agrade, dentro dos limites
expressos ou entendidos, e a asserção pretende aplicar-se a esse exemplo.
A outra espécie logicamente importante inclui os seletivos particulares, quis,
quispiam, nescio quis, aliquis, quidam; em português, algum, alguém, alguma
coisa, um, certo, este ou aquele.
67
Relacionados com os pronomes acima referidos estão expressões tais como
“todos menos um”, “um ou dois”, “uns poucos”, “quase todos”, etc. Além dos
pronomes, devem ser qualificados os advérbios de lugar, de tempo, etc.
Não muito diversas seriam expressões como “o primeiro”, “o último”, “o
sétimo”, “dois terços de”, “milhares”, etc.” (CP 2.289)
“Outras palavras indiciais são as preposições e as frases preposicionais, tais
como ‘à direita (ou esquerda) de’. Direita e esquerda não podem ser
identificadas por qualquer expressão geral. Outras preposições poderão,
talvez, indicar relações passíveis de serem descritas, mas quando se
referem, como acontece com maior freqüência do que se poderia supor, a
uma situação relativa ao observado ou admitido como de conhecimento por
experiência, lugar e atitude de quem fala, em relação à do ouvinte, então o
elemento indicial se torna o elemento dominante.” (CP 2.290)
Peirce discute, ainda, as “eficiências e ineficiências de cada tipo de
signo”, e considera que os índices, impossibilitados de fornecer qualquer
insight sobre a natureza dos objetos que eles designam, por outro lado,
“fornecem uma certeza positiva acerca da realidade”, além da proximidade
com seus objetos (CP 4.531). Por isso, a linguagem verbal precisa de índices
dos mais variados tipos para se referir ao mundo real:
“Nenhuma língua, tanto quanto eu saiba, tem qualquer forma particular de
discurso capaz de mostrar que é do mundo real que se está falando. Mas
isso não é necessário, visto que os tons e olhares são suficientes para
mostrar quando o falante está sendo sério. Esses tons e olhares agem
dinamicamente sobre o ouvinte, e fazem-no atentar para as realidades. São,
portanto, índices do mundo real.” (CP 2.337)
Não por acaso encontramos os índices desempenhando suas funções
de conexão com a realidade nos traços supra-segmentais23 da fala e na
comunicação gestual, não-verbal que a acompanha.
“São ainda exemplos de índices muitos dos traços supra-segmentais da fala
e boa parte da comunicação não-verbal que a acompanha. (...) Em razão
disso é que a oralidade está sempre entremeada de traços indiciais, não-
23 Supra‐segmental, em lingüística, diz‐se dos fatos prosódicos que se superpõem à cadeia de fonemas segmentais, como o acento tônico, o tom, a duração e a entonação. Prosódia, por sua vez, é a parte da gramática tradicional que se dedica às características da emissão dos sons da fala, como o acento e a entoação. (Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa)
68
verbais, responsáveis pelas sinalizações que ligam o universo discursivo ao
universo dos fatos, daquilo que está fora do discurso.” (SANTAELLA 2000:
126)
2.7. Legissignos simbólicos
Os símbolos, lembrando que todo símbolo é um legissigno, se referem
a seu objeto em virtude de sua relação representamen-objeto dinâmico que
pertence à categoria da terceiridade, que envolve os conceitos de lei, norma,
hábito e convenção. Devido à categoria da terceiridade ser aquela da
generalidade, os símbolos representam seus objetos como constituindo uma
classe geral, sendo os substantivos comuns, o exemplo mais usual de
legissigno simbólico na linguagem verbal.
“Os Símbolos,... só se referem ao Objeto que denotam, em virtude de uma
lei e, freqüentemente, por força de uma convenção. Referem-se usualmente
ao Objeto, atribuindo-lhe conjuntos de predicados e é somente devido a esta
atribuição que atuam como signos do Objeto.
Devido ao nível de generalização com que representam o Objeto, deverão
os Símbolos representá-lo como constituindo uma classe geral. Para o
cumprimento desta função, os Símbolos em sua própria constituição como
signo, ou seja, no fundamento de sua relação de Representamen,
necessitam ser um signo geral e compartilhar da natureza da lei. Devem ser,
segundo a nomenclatura peirceana, um Legissigno. Assim procedem, aliás,
os substantivos comuns, que lhe servem de exemplo.” (SILVEIRA 1996: 46)
Assim, Peirce, esclarece que a palavra não tem existência em si
mesma, embora tenha um “ser real” ao qual todas as suas manifestações, ou
réplicas, deverão conformar-se. A palavra é um tipo geral de sucessão de
sons (palavra falada), e ainda, um tipo geral de representamens de sons
(palavra escrita) que se torna um signo em função de um hábito ou lei pela
qual ela será interpretada de determinada forma, toda vez que ela se
apresentar, seja para ser ouvida, ou para ser lida.
“Falamos de escrever ou pronunciar a palavra “homem”, mas isso é apenas
uma réplica ou materialização da palavra que é pronunciada ou escrita. A
palavra, em si mesma, não tem existência, embora tenha ser real,
69
consistindo em que os existentes deverão se conformar a ela. É um tipo geral
de sucessão de sons, ou representamens de sons, que só se torna um signo
pela circunstância de que um hábito ou lei adquirida levam as réplicas, a que
essa sucessão dá lugar, a serem interpretadas como significando um
homem. Tanto as palavras quanto seus signos são regras gerais, mas a
palavra isolada determina as qualidades de suas próprias réplicas.” (CP
2.292)
Pode-se dizer, com muita parcimônia, é claro, que o ser real de uma
palavra a que Peirce se refere, é algo que está acima de qualquer língua. Ele
é, de certa forma, em certo sentido, e para alguns fins, um ser supra-
lingüístico, não havendo diferença em qual língua encarna-se sua réplica.
“Suponhamos que eu apague esta palavra ‘seis’ e escreva ‘Seis’. Não se tem
aí uma segunda palavra, mas sim, a primeira novamente. Elas são idênticas.
Ora, pode a identidade ser interrompida ou devemos dizer que a palavra
existia, embora não estivesse escrita? Esta palavra ‘seis’ implica que duas
vezes três é cinco mais um. Esta é uma verdade eterna, a verdade que
sempre é e será verdade; e que seria verdade, embora não houvesse no
universo seis coisas que pudessem ser contadas, dado que ainda seria
verdadeiro que cinco mais um teriam sido duas vezes três. Ora, essa
verdade É a palavra SEIS; se por seis entendemos não este traço de giz,
mas aquilo em que concordam seis, six, sex, sechs, zes, sei.” (CP 7.593)
Esse ser real pode ser comparado a uma idéia, um compósito de
qualidades, real, isto é, sobre o qual não pode exercer nenhuma influência o
pensamento. Essa idéia não se confunde com o conceito, que para Peirce, é
um hábito formado pela ocorrência repetida de tal idéia associada à
experiência de sua utilização. Para Ransdell, essa idéia que vem à mente
quando estamos diante de uma palavra é “um conjunto antecipatório” ou
gestalt resultante de uma mistura de dados perceptivos reais e imaginários
(apud SANTAELLA 2001: 269).
“Uma idéia, que pode grosseiramente ser comparada a uma fotografia
composta, ganha vividez, e essa idéia composta pode ser chamada de idéia
geral. Não é propriamente um conceito; porque o conceito não é, de modo
algum uma idéia mas um hábito. Porém, a ocorrência repetida de uma idéia
geral e a experiência de sua utilidade, resulta na formação de um hábito ou
70
fortalecimento daquele hábito que é o conceito; ou se o conceito já é um
hábito cuidadosamente compacto, a idéia geral é a marca do hábito.” (CP
7.498).
Vem daí a generalidade que é própria ao símbolo, e que nenhuma
ocorrência interpretativa em um intérprete particular poderá esgotar. Vem daí
também, a plasticidade do símbolo. Sua aptidão para a mudança, já que tais
mudanças são produzidas quando ocorrem transformações no hábito
interpretativo de um símbolo, pois as regras de interpretação, isto é, os
interpretantes lógicos podem ser modificados (SANTAELLA 2001: 266). Por
isso mesmo, o símbolo é um signo em crescimento nos interpretantes que ele
gerará no longo caminho do tempo:
“a característica ontolológica de mudança que diz respeito à estrutura do
signo, se aplica apenas aos legissignos (aos quais pertencem todos os
signos lingüísticos). Todos os outros signos, incluindo qualquer réplica de um
legissigno, é incapaz de um crescimento de significado (embora nossa
compreensão de sua significação possa continuar a crescer). (...) Mas os
símbolos, os principais tipos de legissigno, crescem não só conceitualmente,
bem como formalmente...” (SHAPIRO 1988: 124,125)
Signos gerais implicam signos menos gerais para se constituírem, e o
símbolo, na sua generalidade, conterá ícones para instanciar seu objeto na
mente em que efetivar seu interpretante, e implicará índices, suas réplicas,
como decorrência de se instanciar existencialmente.
“O que é certo é que signos mais gerais implicam signos menos gerais e não
se constituiriam sem assumi-los. É neste momento, que se torna possível
compreender plenamente a exigência expressa por Peirce de que todo signo
seja um Ícone ou nele o tenha contido. (...)
O caráter geral do Símbolo, para inserir-se no universo da experiência ao
qual pertence e somente no qual cabe-lhe atuar, exige, então, que ele
próprio se concretize em réplicas e que o Objeto por ele denotado possa se
instanciar existencialmente. Embora de um Símbolo, devido ao seu caráter
essencialmente geral, só se possa exigir que a instanciação de seu Objeto
se realize, diz Peirce, ‘no universo possivelmente imaginário ao qual o
Símbolo se refere.’ [CP 2.249].” (SILVEIRA 1996: 46)
71
É por isso que o símbolo “é aplicável a tudo aquilo que possa
concretizar a idéia relacionada com a palavra”, já que, por si mesmo, o
símbolo “não identifica as coisas”. Peirce nos diz que ele, o símbolo, não é
capaz de nos mostrar “um pássaro”, mas supõe que somos capazes de
imaginar tais coisas, tendo a elas associados as palavras (CP 2.298). É esse
universo imaginário ao qual o símbolo se refere.
Com respeito ainda à generalidade do símbolo, existem dois tipos de
generalidade, uma ligada à categoria da primeiridade e outra à categoria da
terceiridade (RANSDELL apud SANTAELLA 2001: 267). A primeira pode ser
considerada subjetiva ou entitativa, e está relacionada ao ícone; e a segunda,
objetiva ou referencial, relacionada ao símbolo. O símbolo funciona então
como síntese de todas essas dimensões, já que, como vimos, eles “denotam
em virtude de conotar” (BROCK 1997:560). Santaella nos ensina com
clareza:
“Há, portanto, dois modos de generalidade: (1) objetiva ou referencial; e (2)
subjetiva ou entitativa, esta subdividida em (2.1) qualitativa e (2.2) nômica. O
sin-signo indicial é o único tipo de signo que está desprovido de
generalidade. Ele sempre indica, aponta para individuais ou coleção de
individuais. O ícone apresenta uma generalidade entitativa do tipo
qualitativo. O símbolo, por sua vez, possui tanto a generalidade referencial,
geral, quanto a entitativa do tipo nômico, isto é, a generalidade que pertence
a necessidade condicional. Mas, uma vez que o símbolo contém dentro de si
elementos de iconicidade e elementos de indicialidade, o símbolo funciona
como síntese de todas essas dimensões. (...) Ao retomar as noções lógicas
tradicionais de compreensão (profundidade) e extensão (aplicação), Peirce
considerou-as como as duas propriedades semióticas do símbolo. O nome
que deu a elas foi variado, tais como significação, conotação para a
profundidade e denotação para a extensão. Enquanto a denotação, extensão
ou aplicação, isto é, o poder aplicativo, referencial do símbolo corresponde
ao seu ingrediente indicial, a significação, conotação ou profundidade
corresponde ao seu ingrediente icônico” (SANTAELLA 2001: 268)
Então, o símbolo denotará em função de seu ingrediente indicial, e
conotará, isto é, significará por meio de seu componente icônico, que terá um
72
caráter especial dado estar atrelado ao símbolo. Como diz Pignatari (1979:9),
“não se pode ter uma idéia (terceridade) isolada de sua forma (primeiridade)”.
O símbolo, portanto, conterá um conceito, ingrediente simbólico24 que é um
hábito, e uma idéia geral, ingrediente icônico, que é um compósito de
qualidades.
“Para ligar ‘o pensamento a uma experiência particular ou uma série de
experiências conectadas por relações dinâmicas’ (CP 4.56), o símbolo
precisa de índices. Assim, o poder de referência, poder indicativo do símbolo
vem de seu ingrediente indicial. Entretanto, o índice está desprovido do
poder de significar. Por isso mesmo, para significar, o símbolo precisa de um
ícone. Nesse caso, não se trata de um ícone tout court, mas de um tipo
especial de ícone, a saber, um ícone que está atado a um ingrediente
simbólico. Esse ingrediente ou parte - símbolo, Peirce chamou conceito; a
parte-ícone, ele chamou de idéia geral. Para Ransdell..., o conceito é o
sentido e a idéia geral é a significação. A parte-símbolo, conceito ou sentido,
corresponde ao hábito geral e não atualizado. A parte-ícone ou idéia geral é
aquilo que atualiza o hábito produzindo a significação. É por isso que Peirce
repetiu tantas vezes que o símbolo significa por meio de um hábito e de uma
associação de idéias.” (SANTAELLA 2001: 268)
Na linguagem verbal, isso se traduzirá em palavras produzidas em
função de uma associação de idéias por semelhança, “palavras que
significam ou querem dizer qualidades que são fotografias compostas de
idéias de sentimentos, e tais palavras são verbos ou porções de verbos, tais
como são os adjetivos, os substantivos comuns, etc.” (CP 4.157), e palavras
constituídas por uma associação de idéias por contigüidade, das quais, como
vimos, os nomes próprios são exemplo. Santaella nos explica como o
conceito e a idéia geral funcionam quando o símbolo é uma palavra:
“Como todos os símbolos, as palavras também contém o ingrediente
propriamente simbólico do símbolo, a saber, o conceito ou hábito.
Entretanto, Peirce afirmou que a palavra e o conceito são regras gerais. Há
aí duas regras portanto. Para essa dualidade, Ransdell (IBID.: 187) fornece 24 Interessante notar que Peirce se refere especificamente àquelas palavras puramente simbólicas: “Ou ela [a palavra] pode ser puro símbolo, nem icônica, nem indicativa, como as palavras e, ou, de, etc.” (CP 4.447)
73
uma explicação muito clara. A regra, que é a palavra, é puramente
intralingüística, ou seja, regra que determina as combinatórias permitidas e
proibidas para a palavra no sistema da língua. Já a regra ou lei que é o
sentido ou hábito é a regularidade do conceito. As línguas humanas
relacionam, por meio de associações de idéias, as regras intralingüísticas
com as regras do conceito.
É por isso que o símbolo ‘homem’ ou símbolo ‘seis’ não são as palavras
‘homem’ e ‘seis’, mas sim o conceito de homem e seis nas suas
manifestações de fato com as palavras ‘homem’, ‘homme’, ‘hombre’, ‘man’,
etc. e com as palavras ‘seis’, ‘six’, ‘sechs’, ‘zes’, etc. As réplicas das palavras
atualizam o conceito tanto na sua manifestação denotativa, aplicativa
(índice) quanto na sua manifestação icônica. Como atualização do conceito
que constitui o sentido do símbolo, o ícone é uma idéia geral que o símbolo
produz ao se concretizar em uma réplica.” (SANTAELLA 2001: 269)
Importante frisar, então, que cada palavra, conterá duas regras: a
regra intralingüística, que determina sua sintaxe, isto é a forma como ela será
utilizada dentro do sistema da língua; e a regra que é a regularidade do
conceito, a regularidade da aplicação da idéia geral que ela comporta, e que
constitui o sentido do símbolo; podemos mesmo acrescentar que a regra
intralingüística se desdobrará em diversas regras: sintáticas, gramaticais,
ortográficas, e até mesmo tipográficas, se tomarmos como exemplo que
substantivos comuns em alemão devem ser grafados com inicial maiúscula.
Mais importante ainda, é frisar que a linguagem verbal relaciona todas essas
regras intralingüísticas com as regras do conceito.
Silveira nos explica, uma vez mais, como essas três dimensões,
icônica, indicial25 e simbólica, se apresentam no símbolo, denotando em
função de elementos indicadores e conotando qualidades:
“A associação de idéias gerais que o Símbolo representa, por constituir-se
num atributo mais ou menos complexo da classe de objetos denotada,
25 “É por isso que, no universo do discurso, há vários tipos de palavras, entre elas, as gerais, estritamente simbólicas e as indiciais, como são os pronomes pessoais, demonstrativos, os advérbios de lugar etc. estas últimas se constituem no ingrediente indicial do símbolo, também chamadas de marcas enunciativas, cuja função é conectar o pensamento, o discurso, o signo geral a experiências particulares.” (SANTAELLA 2001: 267)
74
deverá implicar tais idéias sob a forma de ícones, ou qualidades gerais
atribuíveis a objetos as podendo possuir. Devem também conter, elementos
indicadores, - Índices, para Peirce - que designem o lugar de sua ligação
com o objeto, sujeito da atribuição.” (SILVEIRA 1996: 47)
Essas três dimensões se encadeiam num crescente de significado,
que Peirce, em sua Ética da Terminologia (CP 2.219-224), evidencia
textualmente. Por essa progressão é que signos em que predominam
primeiridade e secundidade chegam a transformar-se em símbolos, em cuja
origem encontram-se, conseqüentemente, ou relações de semelhança com o
objeto significado (relações icônicas), ou a conexão dinâmica com a
ocorrência individual (relações indexicais) à qual o signo encontrava-se
primeiramente ligado. Reiteramos esta passagem seminal:
“Porque símbolo é coisa viva, e isto, sem usar figura retórica. O corpo do
símbolo muda lentamente, mas o significado cresce inevitavelmente,
incorpora novos elementos e deita fora elementos antigos. (...) Cada símbolo
é, em sua origem, ou imagem da idéia significada, ou reminiscência da
ocorrência individual, pessoa ou coisa, ligada com seu significado, ou é
metáfora. Termos da primeira e terceira origens serão inevitavelmente
aplicados a concepções diversas ...” (CP 2.222)
Nesse crescente, os símbolos se expandem, se desenvolvem26 a partir
também de outros símbolos, de seus conceitos, e como conseqüência, seu
significado se amplia. É o que acontece com as palavras:
“Os símbolos se expandem. Surgem por desenvolvimento a partir de outros
signos, especialmente a partir de ícones ou de signos mistos que participam
da natureza de ícones e de símbolos. Só pensamos através de signos. Os
signos mentais são de natureza mista; as partes-símbolo são chamadas
conceitos. Se um homem cria novo símbolo, ele o faz por via de
pensamentos que envolvem conceitos. Assim, só a partir de símbolos é que
um novo símbolo se pode desenvolver. Omne symbolum de symbolo. Uma
26 Em outra passagem, Peirce mostra como, no desenrolar da evolução da linguagem humana, esses aspectos icônicos e indiciais vão sendo obliterados pela simbolicidade dos signos: “Se os sons foram, originalmente, em parte icônicos, em parte indiciais, esses caracteres há muito tempo perderam sua importância. As palavras apenas representam os objetos que representam, e significam as qualidades que significam, porque vão determinar, na mente do ouvinte, signos correspondentes.” (CP 2.92)
75
vez existente, o símbolo dissemina-se. Por meio do uso e da experiência,
seu significado se amplia. Palavras como ‘força’, ‘lei’, ‘riqueza’, ‘casamento’,
tem, para nós, significado muito diverso do que tinham para nossos
ancestrais...” (CP 2.302)
Então fica claro como a formulação da parte-conceito de um símbolo
precisa de ícones, que Peirce diz que muitas vezes passam despercebidos,
mas cuja influência é “viva”, e pela qual, pode-se dizer, se forma em nossas
mentes o sistema conceitual que é a linguagem verbal:
“Um conceito não é apenas uma mistura de particulares - esta é apenas a
sua forma mais crua. Um conceito é a influência viva que exerce sobre nós
um diagrama, ou ícone, com cujas diversas partes um número igual de
sentimentos e idéias se une no pensamento para formar sistemas. Mas o
ícone nem sempre é claramente apreendido. Podemos não saber sequer o
que ele seja; ou podemos tê-lo apreendido por observação da natureza.” (CP
7.467)
2.8. Legissignos icônicos
Se as representações gerais ou símbolos dizem respeito à
inteligibilidade dos fenômenos, sendo nisso insubstituíveis, além da
capacidade referencial do discurso fornecida pelos índices, será a necessária
significação advinda dos signos icônicos.
“O raciocínio deve estar relacionado com as formas que são os principais
objetos do insight racional. Por isso mesmo, ícones são especialmente
requisitados para o raciocínio.” (CP 4.531)
Já vimos como a iconicidade está presente em todo símbolo por meio
da idéia que ela envolve; mas ela se manifesta de muitas outras maneiras na
linguagem verbal, nas quais a forma como a iconicidade aparece pode ser
considerada até mais aparente.
Segundo Nöth (1995: 98) há, basicamente, dois tipos de iconicidade
na língua: exofórica, que se refere à similaridade entre a linguagem e aquilo
que está fora dela, pois aqui “o representamen lingüístico possui, a princípio,
76
um correlato no mundo não lingüístico”; e endofórica, que diz respeito a
segmentos lingüísticos que se assemelham a outros segmentos lingüísticos
precedentes, ou seja, “nas estruturas que não se referem ao mundo externo,
mas ao mundo do próprio discurso”.
“Iconicidade do tipo endofórico é, desse modo, referência icônica a outros
lugares dentro de um mesmo texto. Tal referência é a base do princípio da
recorrência da linguagem. Repetições, paralelismos, rimas, aliterações e
outras formas de reiteração de unidades equivalentes num mesmo texto são
formas de iconicidade endofórica. A base semiótica da poeticidade, que
Jakobson localiza no princípio da recorrência, é portanto, uma relação de
iconicidade endofórica.” (NÖTH 1995: 98)
A iconicidade endofórica, além de intratextual, pode ser intertextual,
quando identificamos padrões num texto que se referem a “padrões de
semelhança em outros textos: citações, alusões, e outras relações
intertextuais...” (NÖTH 1999: 614).
Também podemos encontrar exemplos de iconicidade endofórica no
interior do sistema da língua, que são principalmente de tipo diagramático,
como, por exemplo, aquelas encontradas nos sufixos de superlativos (NÖTH
1999: 614), já que se pode considerar o sistema da língua como constituindo
“um ícone diagramático, um sistema de padrões estruturais e relações entre
forma e conteúdo” (NÖTH 1999: 615).
Já no caso da iconicidade exofórica, similaridade entre o signo
lingüístico e aquilo que está fora dele, temos como um primeiro exemplo de
legissignos icônicos, as onomatopéias e as palavras delas derivadas, que
podem ser interpretadas como “ícones de seus objetos (modelos icônicos de
seus objetos)” (QUEIROZ 2007:155), por serem signos que compartilham
propriedades qualitativas (fonéticas) com seus objetos.
“Na categoria de ícones que participam das qualidades simples dos objetos,
temos em substância, as palavras onomatopéicas: murmúrios, sussurro,
chiado ou bum são exemplos de palavras que participam das qualidades
acústicas dos seus objetos.” (NÖTH 1995: 97)
77
No entanto, na busca da compreensão dos legissignos icônicos, é
necessário lembrar que o conceito de ícone se desdobra em imagem,
diagrama e metáfora, e que,
“... para Peirce, nem todos os signos icônicos são imagens visuais, podendo
englobar formas acústicas, táteis, olfativas, formas conceituais de
semelhança, ou podendo englobar, com a noção de ícone puro, até mesmo
as quase-formas mentais em estado de gestação.” (SANTAELLA 2001:188)
Assim, quando falamos de onomatopéias, estamos considerando um
legissigno icônico somente no que diz respeito a uma imagem acústica. Outra
fonte de iconicidade da palavra é a etimologia, pela qual se estuda o seu
étimo, sua origem. Ela não nos dá o significado27 de uma palavra, mas nos
mostra, em muitos casos, o objeto imediato do signo lingüístico, isto é, o
objeto dinâmico como ele está, ou como foi inicialmente, representado em
determinada palavra.
São exemplos28 as palavras hipopótamo, cuja etimologia significa
“cavalo de rio”, mas que muito bem poderia ter sido representado como
cavalo grande, gordo, cinza, ou por qualquer uma de suas outras qualidades;
como verdura, pela cor verde dos vegetais; ou mesmo em palavras
compostas, como cavalo-marinho, que não é um mamífero e sim um peixe,
mas cuja cabeça tem um formato similar à cabeça de um cavalo. A
iconicidade dessas palavras pode ser considerada imagética, afinal, o
hipopótamo é geralmente visto sob a água, e a cor e a forma são visualmente
perceptíveis.
Em outros casos, como a palavra centeio, que vem do número cem,
devido à crença de que a planta produzia cem grãos por semente, e a
palavra centopéia, que significa ‘que tem cem pés’, pode-se considerar a 27 Peirce diz: “a história das palavras, não sua etimologia, é a chave para seus significados” (SS 79). Lady Welby, ao se referir à etimologia da palavra holliness (wholle‐ness), ressalta: “Como em muitos casos semelhantes, nós aqui tristemente perdemos uma lição psicológica na derivação rastreável, geralmente curiosa de um termo recente.” (SS 178) 28 Cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Para uma abordagem das palavras como modelos de seus objetos, ver JUNGK: 2009.
78
iconicidade do tipo diagramática, já que no caso de centeio, a etimologia
expressa uma relação entre uma característica da planta e um número, o
mesmo acontecendo com a quantidade de pés da centopéia. Existe uma
miríade de palavras baseadas em números que buscam expressar atributos
quantitativos dos objetos que representam. Pode parecer discutível a
afirmação dessas palavras como ícones diagramáticos de seus objetos, no
entanto, também parece difícil considerá-la uma iconicidade imagética ou
metafórica. Tampouco se trata de uma relação puramente simbólica, e muito
menos de indexicalidade. É, sem dúvida, uma relação entre qualidades do
objeto dinâmico e do signo que o representa.
Peirce procurou mostrar a natureza mental desse tipo de ícone, que é
indicado por signos simbólicos, exemplificando-o com um sistema de
equações algébricas. Ele afirma:
“Quando, em álgebra, escrevemos equações, compondo um sistema, e
especialmente quando usamos letras semelhantes para traduzir coeficientes
correspondentes, o sistema é um ícone. Eis um exemplo:
a1x + b1y = n1
a2x + b2y = n2
Isso é um ícone no sentido de que faz parecerem semelhantes quantidades
que mantêm relações análogas para com o problema. Em verdade, toda
equação algébrica é um ícone, na medida em que exibe, por meio de signos
algébricos (que em si mesmos não são ícones), as relações das quantidades
em causa.
Serem todos os ícones semelhanças ou não é algo discutível. Por exemplo,
se um ébrio é apontado (exhibited) para mostrar, por contraste, a excelência
da temperança, temos certamente um ícone, mas pode-se duvidar se se
trata ou não de uma semelhança. A questão parece até certo ponto sem
importância.” (CP 2.282)
Os ícones de tipo algébrico, e, portanto, diagramático, mesmo que de
forma simples, quase rudimentar, poderíamos dizer, existem, são exibidos
79
em todas as proposições gramaticais ordinárias. Para Peirce, eles são ícones
lógicos do tipo dos que podem ser auxiliados pelas regras convencionais:
“O fato de os ícones de tipo algébrico, embora geralmente muito simples,
existirem em todas as proposições gramaticais ordinárias é uma das
verdades filosóficas trazidas à luz pela lógica booleana. Em todas as escritas
primitivas, tal como os hieróglifos egípcios, há ícones de tipo não lógico, os
ideógrafos. Nas primeiras manifestações da comunicação verbal houve
provavelmente amplo elemento de imitação. Todavia, em todas as línguas
conhecidas essas representações foram substituídas por signos auditivos
convencionais. Estes, contudo, são tais que só podem ser explicados por
meio de ícones. Na sintaxe de todas as línguas há, porém, ícones lógicos do
tipo dos que podem ser auxiliados pelas regras convencionais.” (CP 2.280)
Um exemplo de ícone diagramático propriamente lingüístico é a
palavra quiasmo, que significa “a disposição cruzada da ordem das partes
simétricas de duas frases, de modo que formem uma antítese ou um
paralelo” (p.ex.: vou sempre ao cinema, ao teatro não vou nunca; meu filho
abraçou-me carinhosamente, carinhosamente o abracei). Sua etimologia vem
do grego khiasmós, que por sua vez significa 'disposição em cruz, em forma
da letra grega khi (X)’.
Temos de considerar, ainda, que um legissigno icônico poderá ser do
tipo metafórico. Nesse sentido, encontramos ainda um enorme conjunto de
palavras cujo “sentido figurado” não passa de seu uso metafórico, isto é,
icônico. São exemplos as palavras: solução (de um problema), que
originariamente significa “o efeito de solver”; chave (de um enigma), etc.,
lembrando que toda metáfora compreende um diagrama e uma imagem
encapsuladas dentro de si. Peirce demonstra o quanto as metáforas
participam da criação de uma linguagem, já que além de certas preposições
elencáveis, todo o restante de uma linguagem fica por conta delas:
“Se um lógico tivesse que construir uma linguagem de novo... diria
naturalmente: necessitarei de preposições para expressar as relações
temporais ‘antes’, ‘depois’, e ‘ao mesmo tempo que’; necessitarei
80
preposições para expressar relações espaciais ‘contigüidade’, ‘inclusão’,
‘justaposição’, ‘no âmbito de’, ‘próximo de’, ‘distante de’, ‘à direita de’, ‘à
esquerda de’, ‘acima de’, ‘abaixo de’, ‘antes de’, ‘atrás de’; e necessitarei de
preposições para expressar movimentos, no sentido ou a partir dessas
situações. Quanto ao resto, posso fazê-lo com metáforas.” (CP 2.290)
Essa iconicidade metafórica tendo sido, desde sempre, explorada por
poetas e artistas, é fonte tanto de riqueza expressiva da língua, quanto de
significação para o símbolo.
“... há imagens alegóricas que figuram simbolicamente aquilo que denotam.
Assim, também há necessariamente imagem no símbolo, pois sem a
imagem, o símbolo não poderia significar.” (SANTELLA e NÖTH 1999: 63)
3. A PALAVRA COMO SINSIGNO
Todo signo precisa estar encarnado num existente. Sendo os
legissignos leis gerais, hábitos ou convenções, nenhum deles terá, por si só,
existência concreta, e, portanto, só tomarão corpo através de existentes,
denominados réplicas ou sinsignos de tipo especial por Peirce.
Sendo signos em que predomina a categoria da secundidade, os
sinsignos poderão ser de dois tipos quanto à relação com seu objeto
dinâmico: sinsignos icônicos e sinsignos indiciais.
Em relação ao seu interpretante final, sinsignos icônicos serão sempre
remáticos, enquanto os sinsignos indiciais poderão ser dicentes ou remáticos.
Os três poderão funcionar como réplicas de legissignos, conformados às leis
que os regerem em cada ocorrência específica (ver capítulo I).
No caso das palavras, lembrando que a tricotomia quali-sin-legissigno
também foi denominada tone-token-type em algumas passagens, Peirce nos
dá um exemplo claro de como um legissigno toma corpo em réplicas
(sinsignos):
81
“Haverá, de ordinário, por volta de vinte ‘the’ em uma página, e naturalmente
eles contam como vinte palavras. Em um outro sentido da palavra ‘palavra’,
contudo, há somente uma palavra ‘the’ na língua inglesa; e é impossível que
esta palavra estivesse visivelmente em uma página ou fosse ouvida em uma
fala, pois não é ela uma coisa ou um acontecimento particular. Ela não
existe; ela somente determina coisas que efetivamente existem. A uma tal
Forma definitivamente significante, proponho que se denomine um Tipo
[Type]. Uma acontecimento particular que acontece uma vez e cuja
identidade se limita àquele acontecimento ou um objeto particular ou coisa
que se encontra em um determinado lugar em algum instante do tempo, um
tal acontecimento ou coisa sendo significante somente enquanto ocorre,
quando e onde ocorrer, me aventurarei a denominar Ocorrência [Token]. Um
caráter significante indefinido tal como o tom de uma voz não poderá ser
denominado Tipo ou Ocorrência. Proponho denominar um tal Signo, Tom
[Tone]. A fim de que um Tipo possa ser usado, deve ser ele corporificado em
uma Ocorrência que será um signo do Tipo, e através disso do objeto que o
Tipo significa. Proponho denominar tal Ocorrência de um Tipo, uma Instância
do Tipo. Desse modo, pode haver vinte Instâncias do tipo ‘the’ em uma
página...” (CP 4.537)
Dessa forma, a palavra será tanto legi quanto sinsigno, dependendo
da instância em que for considerada. No interior do sistema da língua, ela
será sempre um legissigno, uma lei que regerá as formas de seu uso e de
suas combinações com os demais componentes do sistema. Mas ao ser
efetivamente utilizada, ela o será através de uma réplica, que se constituirá
num singular, único e concreto a cada vez que ela for pronunciada ou escrita.
Peirce é bastante claro a esse respeito:
“Um legissigno é uma lei que é um Signo. Essa lei é geralmente estabelecida
pelo homem. Todo signo convencional é um legissigno (porém o inverso não
é verdadeiro). Ele não é um objeto singular, mas um tipo geral que, há
concordância a respeito, será significante. Todo legissigno ganha significado
por meio de um caso de sua aplicação, que pode ser denominado Réplica.
Assim, “the” (em inglês) comumente aparecerá de 15 a 25 vezes numa
página. Em todas essas ocorrências é uma e a mesma palavra, o mesmo
legissigno. Cada instância singular sua é uma Réplica. A Réplica é um
sinsigno. Dessa forma todo legissigno requer sinsignos. Todavia, esses não
82
são sinsignos ordinários, uma vez que são ocorrências peculiares,
encaradas como revestidas de significação. Nem a Réplica seria revestida
de significação, não fosse a lei que lhe confere significação. ” (CP 2.246)
No exemplo de um substantivo comum, numa ocorrência determinada,
ele se fará acompanhar por um pronome demonstrativo, ou mesmo por um
artigo definido, que funcionará como um indicador de um caso particular da
lei geral.
“Tomemos, por exemplo, uma palavra, do tipo substantivo comum, qualquer
substantivo comum, digamos, ‘estrela’, o objeto dessa palavra não é uma
estrela que vejo, aqui e agora, neste céu ao escurecer. É claro que esta
estrela, aqui e agora, pode ser referida pela palavra ‘estrela’, mas, para isso,
temos de colocar um pronome demonstrativo antes da palavra ‘estrela’. É
esse demonstrativo que tem o poder neste momento determinado. Sem o
pronome, que funciona como indicador, a palavra ‘estrela’ não pode se referir
a uma estrela particular, mas a um tipo de coisa, isto é, algo que tem um
caráter tão geral quanto o da própria palavra.
Do mesmo modo, o efeito interpretativo, ou interpretante, que a palavra
‘estrela’ produz, é tão geral quanto ela mesma, ou seja, é um outro símbolo.
Se alguém lhe perguntar o que é uma estrela, para responder, você terá de
usar algo semelhante a um sinônimo, exatamente aquilo que encontramos
no dicionário: estrela = astro celeste. O significado do símbolo é, assim, um
outro símbolo. Temos aí a explicação do que é um signo relativamente
genuíno. Digo relativamente porque o simples fato de o símbolo estar
atualizado numa réplica em que ele, que é necessariamente abstrato e geral,
materializa-se já o faz perder seu caráter de genuinidade, adquirindo certas
características de degeneração, isto é, passa a ter algo de situacional,
provisório, passageiro, irrepetível.” (SANTAELLA 1998: 42)
No tocante às réplicas do legissigno indicial remático, estas se
constituirão em sinsignos indiciais remáticos de tipo especial, sendo que na
complexa rede da semiose, o “interpretante de um legissigno indicial remático
representa-o como um legissigno icônico; e isso ele o é em certa medida -
83
mas em medida muito reduzida” (CP 2.259). Essas relações ficarão mais
claras quando analisarmos os emoticons (ver capítulo V).
A escrita considerada como subsumida à fala nada mais é do que a
sua consideração no seu caráter de réplica, de sinsigno. Porém a escrita
também tem uma gramática própria, suas leis e modos próprios de significar
que não pertencem a fala, sendo que sua capacidade de registrar sons não é
sua única função.
“Há um importante elemento de verdade no argumento de que a escrita foi
inventada quando certa correlação sistemática foi estabelecida entre marcas
gráficas e palavras. Mas prever a história e fazer do alfabeto um ideal
teleológico, simplesmente desvaloriza essa verdade, o que é, em efeito, o
que acontece quando a capacidade do sistema para indicar a pronúncia é
erigido no critério para reconhecer a escrita como tal.” (HARRIS 1986: 122
apud PAULUK 2003: 45)
Algumas vezes, as nuances do sinsigno implicam diferenças de
sentido, ou mesmo lingüísticas, sendo encaradas como ortografia e com
conseqüências até mesmo gramaticais. No sistema de escrita, a letras
podem ser grafadas de diferentes formas. Por exemplo, em português, no
caso de uso de palavras estrangeiras num texto, estas devem ser grafadas
em itálico. Nomes próprios devem ter a inicial maiúscula, bem como a
primeira letra de uma sentença. Em alemão, todos os substantivos devem ser
grafados com a inicial maiúscula, enquanto os adjetivos são grafados com
inicial minúscula, o que resulta num interessante exemplo:
“... a distinção entre maiúsculas e minúsculas pode ter uma relevância
grafêmica, embora esses pares correspondam, respectivamente, apenas a
um grafema, pois sua troca conduz a palavras variadas, por ex., em fest
(‘firme’) VS. (das) Fest ([a] ‘festa’) ou bar (‘efetivo’) vs. (die) Bar ([o] ‘bar’) na
escrita alemã.” (NÖTH 2010: 19)
84
4. A PALAVRA COMO QUALISSIGNO
Um qualissigno é uma qualidade que funciona como signo, e será
sempre icônico em relação a seu objeto. No todo da linguagem verbal, esse
potencial encontra condições favoráveis para manifestar-se no sistema de
escrita, através da exploração de suas qualidades, tais como formas, cores,
diagramações.
“... um maior potencial para criar imagens existe no território das artes
gráficas. Aí temos múltiplas possibilidades de utilizar letras e palavras de
calibres, cores e disposições diferentes, de forma a criar constelações de
correspondências com os objetos do mundo. A poesia concreta tem
explorado, de forma mais sistemática, esse potencial da língua.” (NÖTH
1995: 98)
Quanto à palavra encarada como qualissigno, é preciso lembrar que
seus atributos somente ganham corpo nos sinsignos, sendo notório como as
formas29 em que se materializam se prestam a todos os tipos de
expressividade, que encontramos nas mais diferentes artes ligadas à escrita,
tais como tipografia, caligrafia, design gráfico, bem como a poesia concreta,
a e-poetry (poesia em contexto digital), etc. A literatura e a propaganda
também são pródigas em destacar esse aspecto autônomo do qualissigno
que está encapsulado no legissigno e no sinsigno, criando efeitos de sentido
a partir de suas qualidades materiais, que em princípio, nada tem a ver com a
função representativa que o sistema da língua lhes atribui.
“Uma vez que o signo não é idêntico à coisa significada, mas dela difere sob
alguns aspectos, ele deve claramente (plainly) possuir algumas
características próprias, que nada tenham a ver com sua função
representativa. Chamo estas características de qualidades materiais do
29 Ao contrário do que disse Saussure: “... o signo gráfico é arbitrário, sua forma importa pouco, ou melhor, só tem importância dentro dos limites impostos pelo sistema; ... o meio de produção do signo é totalmente indiferente, pois não importa ao sistema (...). Quer eu escreva as letras em branco ou em preto, em baixo ou alto relevo, com uma pena ou com um cinzel, isso não tem importância para a significação.” (CLG 138,139)
85
signo. Como exemplo dessas qualidades, tome-se, na palavra “homem”, ela
consistir de cinco30 letras; numa foto, ela ser plana e sem relevo.” (CP 5.287)
As classificações peirceanas, como já vimos, não são estanques, e
sua aplicação dependerá dos aspectos sígnicos que o observador quiser
destacar, já que nenhum signo pertence exclusivamente a nenhum tipo.
“Como se pode ver, as tricotomias peirceanas devem ser usadas como
ferramentas analíticas por meio das quais três aspectos diferentes da
semiose podem ser distinguidos. Essas distinções são sempre aproximativas
e dependentes do ponto de vista que o analista assume diante do signo.
Nenhum signo pertence exclusivamente a apenas um desses tipos, assim
como não há nenhum critério apriorístico que possa infalivelmente decidir
como um dado signo realmente funcionará. Tudo depende do contexto de
sua atualização e do aspecto pelo qual é observado e analisado.”
(SANTAELLA 2000: 102)
Consideremos um exemplo onde o aspecto qualitativo encontra-se
evidenciado na apresentação do signo, chegando mesmo a obliterar, em
certa medida, o caráter de lei de um signo verbal, em virtude da semelhança
entre duas letras “O” maiúsculas e o formato dos olhos, seu objeto:
“Observe-se esta seqüência:
Olho olhO OlhO
Temos aí três diferentes quali-signos atualizados em três ocorrências ou sin-
signos que funcionam como réplicas de um mesmo legi-signo. Em que
medida a exacerbação do aspecto qualitativo é capaz de obliterar o caráter
de lei de um signo verbal é uma questão de grau, dependente das condições
de apresentação do signo, apresentação esta que pode muitas vezes estar
voltada tão só para a criação de um efeito de contemplação ou dilatação dos
sentidos, numa demora perceptiva com vistas à regeneração da
sensibilidade de quem percebe.” (SANTAELLA 2000: 102)
30 No original: “... take in the word ‘man’, its consisting of three letters …” (CP 5.287)
86
Multiplicam-se os exemplos onde a forma do signo ratifica o significado
da palavra: eu am você, matemá+ica, DOI2, QU4TRO, SE7E, OIT8, N9VE,
infinit8, alf, entre muitos outros. Nestes casos, pode-se dizer que a palavra e
o signo que está sendo sugerido pela sua forma possuem objetos dinâmicos
equivalentes ou iguais.
No entanto, se muitas vezes a forma que o sinsigno assume é usada
para ratificar, encarnar o significado da palavra, aumentando seu poder
expressivo, em outras esses trabalhos acrescentam mais uma camada
sígnica, significante, à já complexa trama entretecida entre língua e escrita,
adicionando aspectos que não estão representados no legissigno.
Vejamos o exemplo:
P ra você.
A substituição de uma letra “A” pela figura de um coração, não interfere na
inteligibilidade da sentença (legissigno), no entanto, acrescenta uma camada
significante, pois seja lá o que for que estiver sendo destinado àquela
pessoa, está sendo com um sentimento, com algo que vem do coração, e
que pode ser expresso numa frase como: “para você com amor”, ou ainda,
“para você com carinho”. Neste caso, o objeto do signo icônico “coração” é
totalmente diferente do objeto da palavra “para”.
Outro exemplo (e este se constitui também numa singela homenagem
de minha parte) é o caso do nome próprio (patronímico) Peirce. Ele poderá
designar qualquer membro da mesma família, seu pai, Benjamin Peirce, por
exemplo, ou mesmo algum de seus irmãos. Mas pode ser grafado:
PEIRC3
onde a substituição de uma letra por um número três, em razão de sua
semelhança na forma, novamente não prejudicará a inteligibilidade do signo
lingüístico, adicionando, no entanto, um elemento que determinará, dentro de
determinado contexto, é claro, a qual dos membros da família o nome se
87
refere, já que somente Charles Sanders Peirce concebeu três categorias
universais, e era mesmo conhecido como “triadomaníaco”31. Mesmo aqueles
que não conhecessem esses detalhes, saberiam que uma certa pessoa cujo
nome é Peirce, está ligada, mantém alguma relação com o número 3.
Essas camadas significantes permanecem embutidas no signo
lingüístico na forma de múltiplos e sucessivos palimpsestos32, camadas
essas que, embora não se dêem a conhecer ao olhar apressado dos usuários
da língua, sempre são exploradas por escritores, poetas e artistas os mais
diversos, que buscam um acréscimo de sentido em suas obras, e nas quais a
escrita encontra uma fonte quase inesgotável de riqueza expressiva, e onde
signos se complexificam para condensar significados.
Uma última observação se faz necessária quanto à natureza da
relação entre legissignos, sinsignos e qualissignos. Sendo que só sinsignos
tem existência concreta, a diferença entre legissignos e qualissignos, já que
nenhum deles tem individualidade, ou seja, nenhum deles é um singular, é
que um legissigno tem uma identidade definida, apesar de admitir uma
grande variedade de formas nas quais pode se materializar. O qualissigno,
por sua vez, não tem identidade; “é um mero qualissigno de uma aparência, e
não exatamente o mesmo do começo ao fim de um segundo. Em vez de
identidade, ele tem grande semelhança, e não pode diferir muito sem ser
chamado de um outro qualissigno.” (CP 8.334)
31 CP 1.568‐572. 32 Palimpsesto: “papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado, para dar lugar a outro” (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa). No sentido figurado, camadas que se sobrepõem.
88
Capítulo 3- LINGUAGEM VERBAL: CONJUNTO DE SISTEMAS SÍGNICOS
“A complexidade do real exige teorias à sua altura.”
Lucia Santaella (2001:29)
1. VISÃO SISTÊMICA
1.1. Ontologia Sistêmica e Semiótica
O presente estudo visa à compreensão da semiose da escrita em
geral e de algumas particularidades das mudanças pelas quais passa
atualmente em contextos hipermidiáticos. A consecução deste objetivo
iniciou-se tendo como base primeira a Teoria Semiótica de Charles S. Peirce
(capítulo I) à qual agora acrescentaremos a aplicação de alguns conceitos da
Ontologia Sistêmica, vista a partir da complexidade, conforme elaboração e
síntese do professor Jorge de Albuquerque Vieira, numa construção de
“bases pluri-inter e transdisciplinares que têm orientado sua trajetória rumo à
meta nuclear de construção de uma epistemologia da complexidade de
cunho próprio” (SANTAELLA in VIEIRA 2007: 14,15).
Esta visão sistêmica se justifica em função do caráter eminentemente
sistêmico dos elementos envolvidos, isto é, o fato da linguagem verbal poder
se considerada como um conjunto de sistemas e a hipermídia como um
sistema ambiente, imbricados num todo complexo de inter-relações.
A Ontologia Sistêmica vista a partir da complexidade parte do
pressuposto de que, como pano de fundo filosófico para as hipóteses
gnosiológicas das mais diversas ciências, faz-se necessária uma “Teoria da
Realidade” identificada a uma “Teoria do Ser ou dos Objetos (Ontologia)”,
que segundo a Filosofia clássica, pode ser definida como “o estudo do ser
enquanto ser, com independência de suas determinações particulares”, ou
ainda segundo Bunge (apud VIEIRA 2008a: 22), “a ciência concernente à
totalidade da realidade”.
89
“Embora ainda sendo um rico e potencial terreno de pesquisa,
reconhecemos que há um profunda conexão entre tal forma de semiótica e a
teoria geral dos sistemas... Acreditamos assim que um estudo integrando a
semiótica, a teoria geral de sistemas e a ontologia clássica pode vir a
esclarecer os conceitos de auto-organização e complexidade, que tem se
tornado tão caros ao cenário de pesquisa contemporânea.” (VIEIRA 2008a:
53)
É nesse sentido que a Teoria Geral dos Sistemas é uma candidata a
uma Ontologia Científica, que “permitiria uma maior eficiência no tratamento
das ciências a partir de suas raízes ontológicas”. No entanto, a riqueza de
sua abordagem reside no fato dela ser aplicável a qualquer tipo de sistema,
incluindo aqueles típicos do âmbito das humanidades. Segundo Vieira:
“Podemos agora frisar um aspecto importante de nossa proposta: a visão
que pretendemos apresentar é aplicável a qualquer tipo de sistema, o que
inclui aqueles típicos das Ciências, aqueles típicos da Filosofia e aqueles
com que lidamos no domínio das Artes. Uma Ontologia que permita, além de
construções inter e transdisciplinares, o estudo de sistemas que até bem
pouco tempo foram tratados como incompatíveis ou incoerentes, como
pertencentes a áreas de conhecimento mesmo antagônicas, a partir da
fratura por demais artificial entre ciências exatas e ciências humanas, por
exemplo. O que propomos é que o conceito de sistema, em sua
fundamentação ontológica, possa vir a lidar com sistemas de alta
complexidade, onde Arte, Filosofia e Ciência mesclam-se, como em muitos
sistemas culturais.
Adotaremos assim como linha de trabalho a discussão de definições do
termo Sistema e a partir daí a discussão do que alguns autores chamam
Parâmetros Sistêmicos. Tais parâmetros formam um conjunto de conceitos
gerais o suficiente para a descrição e embasamento de representações de
qualquer coisa, satisfazendo o ideal ontológico perseguido. O que teremos
então é uma ferramenta que além de descrever bem qualquer entidade irá
permitir o vislumbre, a percepção de possíveis traços ou processos
associados aos sistemas, características estas que ficariam mais ocultas
sem o enfoque sistêmico.” (VIEIRA 2008a: 28)
90
Por essas razões, já que “admitir uma realidade implica a necessidade
de hipóteses sobre a mesma”, um conjunto de tais hipóteses, em
consonância com a proposta de Vieira (2008a: 24), e que tem sido cada vez
mais adotado, pode ser:
1) a realidade é sistêmica, como conseqüência das noções de coisa e
objeto passarem a ser adotadas “como sendo relativas a sistemas” (VIEIRA,
2008a: 27), ou em outras palavras, porque todos os elementos componentes
da realidade passam a ser vistos como sistemas;
2) a realidade é complexa, já que todo sistema é sistema aberto e
portanto, em constante intercâmbio com outros sistemas e com o meio em
que emerge e se desenvolve. Dessa forma, a complexidade está sempre
presente, sem prender-se a nenhum parâmetro sistêmico específico, embora,
segundo Bunge (apud VIEIRA 2008a: 41), “teríamos duas formas de
complexidade, a dita ontológica, que se refere à complexidade que existe
realmente nas coisas; e a semiótica, que consiste na complexidade de
nossas representações das coisas”, é por isso que a
“Semiótica, a ciência geral de todos os signos e processos de comunicação,
emerge neste século como uma das principais ferramentas para o estudo e
conseqüente domínio sobre o problema da complexidade. Seu caráter geral
e amplo, próximo ao de uma Ontologia, torna-a adequada a todas as
tentativas de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Também neste
século assistimos à emergência de novos paradigmas, todos eles envolvidos
com a questão da complexidade e geralmente delineados contra um fundo,
também genérico, do que poderíamos chamar uma proto-Teoria Geral dos
Sistemas. (...) É exatamente o caráter quase-ontológico da teoria de
sistemas que permite uma ponte com o domínio da Semiótica...” (VIEIRA
2007: 45,46)
3) a realidade é legaliforme; considerando que todo elemento da
realidade pode ser compreendido como sistema aberto, a conseqüente troca
de informação com outros sistemas, sua internalização e elaboração, passam
assim a gerar “hábitos no sentido da semiótica peirceana” coerentes com “a
natureza do sistema e sua história passada”, e que possuem o caráter de leis
91
a reger o comportamento do sistema em interações presentes e futuras
(VIEIRA 2008b: 21). É neste sentido que a Teoria dos Sistemas pode-se
somar às categorias fenomenológicas de Peirce, tidas como um sistema
exaustivo de relações monádicas, diádicas e triádicas, sob cujo prisma
qualquer fenômeno pode ser observado.
“De acordo com Hookway (1985: 80), ‘uma teoria das categorias é uma série
de concepções altamente abstrata e que funciona como um sistema
completo de summa genera, qualquer objeto do pensamento ou da
experiência devendo pertencer a uma das categorias deste sistema.’ Ao
longo dos anos, as categorias recebem muitas denominações, resultado de
experimentos em muitas áreas, e suas correspondências são analisadas em
diversos domínios.(...)
As categorias foram logicamente descritas como um sistema exaustivo de
relações, hierarquicamente organizado em classes de relações (3-ádicas, 2-
ádicas e 1-ádicas)... Esta é a fundação formal de seu modelo de semiose
(‘ação do signo’) e de suas classificações sígnicas.” (QUEIROZ 2004: 272,
273)
Dessa forma, acreditamos que a aplicação dos conceitos da Teoria
Geral dos Sistemas ao estudo das mudanças pelas quais passa o sistema de
escrita atual nos contextos hipermidiáticos, aliada a uma análise semiótica
das peculiaridades dos signos que a integram, pode lançar novas luzes para
o entendimento dos processos evolutivos da escrita, de vez que “uma das
vantagens da prática ontológica é que, ao lidarmos com traços muito gerais
de coisas, podemos utilizar os mesmos para fazer comparações e conexões
inter e transdisiciplinares” (VIEIRA 2008a: 26).
Vale ressaltar, ainda, que para Saussure (CLG 87), a língua, objeto de
nosso estudo, constitui um “sistema demasiado complexo”, pelo que ela não
é “completamente arbitrária”, e onde “impera uma razão relativa”. Esses
conceitos de sistema e complexidade, de arbitrariedade e razão, e mesmo de
signo, encontram-se em estado embrionário no Cours, e podem ser
amplamente elucidados pelas teorias em que se baseia o presente estudo.
92
1.2. Sistemas abertos e parâmetros sistêmicos fundamentais
Sistema pode, genericamente, ser definido (cf.UYEMOV apud VIEIRA
2008a: 29) como um agregado de elementos, qualquer que seja sua
natureza, entre os quais existe um conjunto de relações de forma a que eles
partilhem determinadas propriedades. Ou seja, o conceito de sistema é
aplicável também a todo subsistema, já que essa condição é muito mais uma
questão de enfoque do que da natureza das relações envolvidas.
Segundo a ontologia sistêmica, como proposta por Bunge (apud
VIEIRA 2008a: 29), a realidade é formada por sistemas abertos, conexos, em
constante intercâmbio de informação com outros, segundo parâmetros
sistêmicos, sendo o Ambiente o mais imediato desses (VIEIRA 2008a: 33).
“É no sistema ambiente que encontramos todo o necessário para trocas
entre sistemas, desde energia até cultura, conhecimento, afetividade,
tolerância, etc., estoques necessários para efetivar os processos de
permanência. (...) O que é observado é que todos os sistemas parecem ser
abertos em algum nível; sistemas que tendem ao isolamento e perdem o
contato com o ambiente tendem à morte...” (VIEIRA 2008a: 34)
Parâmetros sistêmicos são aquelas características que ocorrem em
todos os sistemas, independentemente das particularidades de cada um
(VIEIRA 2008a:31). Esses parâmetros podem ser de dois tipos: Básicos
(também chamados Fundamentais), e Evolutivos33. Neste estudo, nos
deteremos nos parâmetros básicos, aqueles que todo sistema possui,
independente de processos evolutivos. São eles: Permanência, Ambiente e
Autonomia, e os três encontram-se intimamente relacionados.
Permanência pode ser entendida como “sobrevivência” de um
sistema, como sua viabilização ou duração no tempo em razão de
determinadas condições prévias (VIEIRA 2008a: 33) onde o sistema emergiu,
chamadas condições de permanência.
33 Para a compreensão dos parâmetros evolutivos, ver VIEIRA 2008a: 35‐42.
93
“ ‘Todas as coisas tendem a permanecer.’ No sentido acima, as coisas ou
objetos, a partir do momento em que se tornam existentes, ‘tentam’ durar,
tentam permanecer.” (VIEIRA 2008a: 32)
A duração, maior ou menor, de um sistema no tempo, se dá em função
de determinadas características que o adéquam ao seu Ambiente, o
segundo parâmetro sistêmico fundamental, que nada mais é do que um
segundo sistema envolvendo o primeiro.
“É visível também que há um meio prévio ao sistema onde essas condições
[de permanência] atuam localmente. Esse também é um sistema, que
envolverá e envolve o sistema em questão. Esse sistema envoltório é o
chamado Ambiente.” (VIEIRA 2008a: 33)
A Autonomia, como terceiro parâmetro básico, leva em consideração
o fato de que todo sistema é aberto em algum nível, realizando trocas de
algum tipo com o ambiente em que está inserido, a partir das quais o sistema
internaliza informações que tendem a gerar uma espécie de “estoque” interno
ao sistema que lhe garantam autonomia em relação às condições de
permanência iniciais e às modificações do próprio ambiente ao longo do
tempo.
“Ou seja, o conceito de sistema aberto é coerente com aquele de ambiente.
Como resultado da interação entre o sistema e seu ambiente, trocas
energéticas e entrópicas levam o sistema a internalizar informações, desde
diversidade material e energética (...) até diversidade sígnica (...) de vários
tipos. À medida que a internalização ocorre, uma espécie de ‘estoque’ é
gerado no sistema. É a chamada Autonomia.” (VIEIRA 2008a: 34, grifos
nossos)
Pela aplicação dos parâmetros sistêmicos fundamentais, podemos
admitir que um sistema de escrita, a partir do momento em que emerge como
tal em determinado ambiente, procurará manter-se no tempo através de
estoques de informação auridos de seu intercâmbio com outros sistemas
(entre eles o próprio ambiente) que lhe forneçam a necessária autonomia em
relação às possíveis transformações pelas quais venham a passar os demais
sistemas com os quais interage.
94
No entanto, há três capacidades dos sistemas abertos necessárias à
manutenção de sua autonomia: a sensibilidade aos fluxos de informação
advindos de diversas fontes, capaz de alimentar uma função memória,
flexível e capaz de armazenar informações adequadamente, e, por último, a
elaboração eficiente do estoque de informações de acordo com as
necessidades do sistema. Vejamos:
“Um sistema aberto em determinado ambiente permanece no tempo se
apresentar três capacidades:
- deve possuir sensibilidade, no sentido de reagir adequadamente e à
tempo às variações ou diferenças que ocorrem nele mesmo ou no ambiente.
Essas cadeias de eventos, geradoras de processos se manifestam para o
sistema como sinais ou simplesmente fluxos de informação;
- o sistema deve ser capaz de reter parte desse fluxo, sob a forma de um
colapso relacional, a partir da progressiva internalização de relações
nascidas de sua atividade interna e do contato com o ambiente... O sistema
passa a adquirir não só a capacidade de perceber a informação, mas
também de percebê-la de uma certa maneira. Construída ao longo do
tempo, essa função é na verdade uma função memória, que ganha uma
grande flexibilidade na medida em que o sistema evolui para níveis mais
altos de complexidade. É a partir da memória, aqui generalizada, que um
sistema consegue conectar seu passado, na forma de uma história, com o
presente transiente e com possíveis futuros. Os três parâmetros
fundamentais da Teoria Geral de Sistemas, ou seja, Permanência,
Autonomia e Meio Ambiente, manifestam-se assim com coerência.
- finalmente, o sistema deve ser capaz de elaborar este estoque de
informação, na medida de suas necessidades. Uma elaboração eficiente não
só em flexibilidade, mas também em temporalidade. Sistemas tendem a
permanecer; como abertos, necessitam de um ambiente; para permanecer,
evoluem elaborando informação a partir de uma história. Esta última é a
capacidade mais nobre, típica dos sistemas cognitivos. Podemos encontrar
sistemas de todos os tipos, em todos os níveis de complexidade da
natureza, satisfazendo o exigido até a segunda capacidade. Já citamos aqui
o conceito de função de transferência, aplicado a sistemas ditos não vivos. É
a capacidade de elaboração eficiente que garante as formas mais elevadas
de complexidade em nossa realidade sistêmica.” (VIEIRA 2008b: 21,22)
95
Ora, mais uma vez aqui, encontramos uma ponte com os conceitos
peirceanos, já que essas três habilidades, ontologicamente atribuídas aos
sistemas abertos, e, portanto, a qualquer componente da realidade, somente
podem ser atributos de uma mente, tal qual compreendida por Peirce.
Embora não se trate aqui de postular que a linguagem verbal se
consubstancie num tipo de mente, o que estaria além dos limites do presente
estudo (mas que bem poderia ser feito em outra ocasião, já que Peirce
comparou por diversas vezes o símbolo a um ente vivo), é preciso frisar que
ela, a linguagem verbal, está em constante intercâmbio com as mentes de
seus usuários, nas quais essas três habilidades operam incessantemente, o
que tem conseqüências inegáveis para qualquer sistema.
1.3. Evolução da linguagem verbal
Uma das principais conseqüências das três capacidades dos sistemas
abertos necessárias à manutenção de sua autonomia (sensibilidade aos
fluxos de informação, função memória e elaboração eficiente) é a sua
constante evolução. Dessa forma, os sistemas não se mantêm fixos ou
estáticos, passando por mudanças mais ou menos perceptíveis, porém
inevitáveis, no curso do tempo. Peirce, como poucos, tinha consciência dessa
inexorabilidade evolutiva, sendo que, para ele, também as leis (requisito
básico de todo sistema) modificam-se e evoluem, adaptando-se,
transformando-se e regenerando-se em função da interação com fatores
externos ao sistema. É nesse sentido que todo sistema lingüístico pode ser
considerado aberto.
“Nessa medida, não apenas a vida é uma espécie de linguagem, mas
também todos os sistemas e formas de linguagem tendem a se comportar
como sistemas vivos, ou seja, eles se reproduzem, se readaptam, se
transformam e se regeneram como as coisas vivas.” (SANTAELLA 1983:14)
Além de abertos, os sistemas lingüísticos são sistemas de signos,
predominantemente do tipo simbólico, em função de sua natureza conceitual:
96
“O que define basicamente a natureza da linguagem verbal é o seu poder
conceitual, a ponto de podermos afirmar que o verbal é o reino da abstração.
Isso corresponde com exatidão às características daquilo que Peirce definiu
como signo simbólico, o universo da mediação das leis.” (SANTAELLA 2001:
190)
A própria essência sígnica do símbolo também é de natureza
evolutiva; Peirce chega a afirmar que se trata mesmo de uma “coisa viva”
(CP 2.222), por pertencer primordialmente à categoria da terceiridade, aquela
da continuidade, do pensamento e da evolução (CP 6.32), e assim
permanecer em contínuo estado de transformação. Por outro lado, pela
lógica recursiva das categorias, a terceiridade não pode prescindir da
secundidade e esta da primeiridade, fazendo com que o símbolo incorpore
elementos de ambas. Dessa forma, entender esses processos evolutivos
complexos depende, então, da compreensão do funcionamento semiótico
dos elementos envolvidos nos diversos sistemas que compõem o todo da
linguagem verbal, para a qual as classificações sígnicas de Peirce abrem
possibilidades de análise sem precedentes. Jakobson nos dá a entrever esse
novo cenário, com um exemplo:
“É assim que a idéia sugestiva e luminosa de Peirce, de que ‘um símbolo
pode comportar um ícone ou um índice [acrescentemos, de nossa parte, ‘ou
os dois ao mesmo tempo’] a ele incorporados’, propõe à ciência da
linguagem tarefas novas e urgentes e abre-lhe vastas perspectivas. Os
preceitos formulados por esse ‘desbravador’ da Semiótica estão repletos de
conseqüências vitais para a teoria e a prática lingüísticas. Os constituintes
icônico e indicial dos símbolos verbais foram muito freqüentemente
subestimados ou mesmo ignorados; por sua vez, o caráter primordialmente
simbólico da linguagem, e a diferença radical que, por conseguinte, a separa
dos outros conjuntos de símbolos, principalmente indicativos ou icônicos,
esperam igualmente encontrar seu exato lugar na metodologia lingüística
moderna.” (JAKOBSON 1963: 116)
Parte dessa análise já foi feita no capítulo II, em que a palavra,
considerada como o signo lingüístico por excelência, recebeu uma
abordagem à parte, em função da importância com que aparece
97
reconfigurada em ambientes hipermidiáticos, o que será analisado com
exemplos práticos no capítulo V. No entanto, não só a palavra considerada
como uma unidade deve ser abordada, mas também outros signos da
linguagem verbal merecem análise pormenorizada. Eles aparecem
compondo as próprias palavras, substituindo-as, ou mesmo de forma
independente, ajudando a compor a riqueza sígnica da linguagem verbal que
se manifesta através de um conjunto de sistemas que a integram, e cujos
potenciais encontram-se evidenciados nos ambientes hipermidiáticos.
2. UM CONJUNTO SISTÊMICO VERBIVOCOVISUAL
Como vimos, sistema define-se em função do conjunto de relações
entre seus elementos, e de determinadas propriedades por eles partilhadas.
O conceito de sistema implica a idéia de um todo ordenado, sendo as
relações entre esses elementos as responsáveis pela composição da
estrutura do sistema, o que significa dizer que o caráter sistêmico só aparece
na função que os elementos desempenham no interior do sistema (NÖTH
apud SANTAELLA 2001: 256). Dessa forma, língua é sistema, bem como seu
correspondente sistema de escrita também o é. No entanto, são sistemas
diferentes, inter-relacionados no todo da linguagem verbal, como veremos
melhor a seguir.
Podemos dizer que se trata de um conjunto de sistemas
verbivocovisual, para utilizarmos a terminologia dos poetas concretos, já que
a capacidade de representação humana se expressa através da língua, da
fala e de seu correspondente sistema de escrita. Analisemos cada conceito
separadamente.
A linguagem verbal, como prerrogativa humana que é, nasce de sua
capacidade de representação, que ao perceber os diferentes estímulos do
existente, os converte em signos a fim de designar o que o pensamento
98
elocubra, e que “encarnam-se” nas mais diversas línguas, que nascem,
assim, como “produtos da consciência” (SANTAELLA 1983:13).
Linguagem precisa ser entendida, então, num sentido amplo, como
mediação através de sistemas codificados de signos destinados à
transmissão de um determinado tipo de informação. A língua, por sua vez, é
essa faculdade humana de representação (ou linguagem) cristalizada num
determinado código ou sistema de signos, num dado espaço histórico-
temporal e associada a um determinado grupo de indivíduos, tampouco se
confundindo com a fala, que é a manifestação individual e concreta da
linguagem humana através de uma língua. Cada uma se insere dentro da
outra, como no esquema34 a seguir:
Um sistema de escrita, por sua vez, consegue captar somente uma
parte, tanto da linguagem verbal oral (fala), rica em gestos cuja significação
total é intransponível para qualquer tipo de escrita, como da própria língua,
que possui funções e dimensões diferentes da escrita, que, por outro lado, é
capaz de exprimir idéias que a fala não exprime. Como conseqüência, temos
que língua e escrita, apesar de inter-relacionadas, apresentarão
características e desempenharão funções próprias no todo da linguagem
verbal.
“Sistemas de escrita são sistemas que têm propriedades não encontradas na
fala. No entanto não se pode negar que os sistemas de escrita são sistemas
para a materialização da língua (language). Que eles são filogeneticamente
34 Esquema elaborado com base nos esclarecimentos do Professor Winfried Nöth sobre a escrita durante a qualificação da presente dissertação, e no esquema de BASTOS e CANDIOTTO 2007:16, que inclui somente linguagem, língua e fala.
99
mais jovens que a fala e que esta é natural e universal, enquanto a escrita é
artificial e está presente em somente algumas comunidades falantes, são
dificilmente boas razões para ignorá-los na pesquisa lingüística. A língua
escrita (written language) é uma forma de linguagem, e se é uma forma que
está presente somente em algumas línguas (languages), mas não em
outras, ela é contudo, um potencial para todas as línguas (languages). Ela é
uma forma de linguagem que não é nem mais nem menos perfeita que a
língua falada (spoken language), mas que dela difere em alguns importantes
aspectos porque, naturalmente a escrita serve a funções que são diferentes
daquelas da fala. Se esse não fosse o caso, não haveria nenhuma boa razão
para a escrita ter chegado a existir. A invenção da escrita é a resposta às
limitações da fala em relação ao aqui e agora. Como conseqüência ao
adquirir uma forma escrita, o poder expressivo da língua (language) é
ampliado em relação à fala.” (COULMAS 1989: 272)35
A importância dessa distinção e reconhecimento da língua e da escrita
como sistemas diferentes nem sempre foi clara, de um lado porque o
princípio da escrita deveu-se, em parte, à necessidade de documentar as
línguas faladas, e, por outro, porque o próprio Saussure, apesar de
reconhecer a diferença entre os dois sistemas, acreditava que a imagem
gráfica se comportava como a imagem fonética, julgando “imerecida” (CLG
35) qualquer importância dada à escrita, uma vez que seu estudo, a seu ver,
não fazia parte da lingüística36. Nöth nos esclarece:
“É um paradoxo da história da semiótica que a teoria dos signos e de seus
sistemas, desenvolvida desde a escolástica medieval em uma longa tradição
escrita, tenha descoberto só tardiamente o sistema sígnico da escrita
propriamente dita como objeto de reflexão semiótica (cf. Harris 1995: 1). Sob
a influência da lingüística estrutural, a semiótica, desde Saussure, foi por
muitas décadas orientada por uma visão fonocêntrica até que, finalmente,
Derrida (1967a) exigiu o abandono do fonocentrismo dessa tradição e a
instituição de uma autêntica semiótica da escrita sob a designação de
gramatologia. Exceto pela dimensão histórica e tipológica dos sistemas de
35 Note‐se que no original, somente a palavra language é usada, uma vez que no inglês ela possui tanto a acepção de “língua” quanto de “linguagem”. 36 “Língua e escrita são dois tipos distintos de signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro; o objeto lingüístico não se define pela combinação da palavra escrita e da palavra falada; esta última, por si só, constitui tal objeto.” (SAUSSURE 1916:34)
100
escrita, o sistema sígnico da escrita havia recebido, até então, pouca
atenção dos estudos de linguagem.” (NÖTH 2010: 1)
Afortunadamente, hoje assistimos à valorização do estudo da escrita
como um sistema de peculiaridades sígnicas independente do sistema da
língua e da fala, sob os mais variados ângulos:
“Sistemas de escrita relacionam-se a estruturas lingüísticas, e onde eles são
adotados para uma dada língua, eles se desenvolvem como subsistemas
lingüísticos... Qual posição esse subsistema e essa forma ocupam dentro do
todo complexo da língua, e qual papel eles têm no seu funcionamento e
desenvolvimento, o lingüísta pode somente esperar compreender estudando
a escrita, e não ignorando-a.” (COULMAS 1989: 273)
Essa distinção da escrita como um sistema semiótico peculiar,
relacionado à fala, porém não submisso a ela, com características e
possibilidades de mudanças e evolução próprias, e em constante interação
com o meio em que se materializa, é um dos principais passos rumo a uma
compreensão criticamente fundada dos processos evolutivos da escrita. Seu
estudo sob esse enfoque aliado a uma teoria semiótica de envergadura,
permite captar as variações prismáticas dos signos usados para exprimir o
pensamento e a sensibilidade humanas.
“Vinculado à semiótica, o estudo da escrita é destituído não apenas da
perspectiva fonocêntrica, em que entende-se a escrita como registro ao
invés de linguagem, como da perspectiva logocêntrica, em que
desconsidera-se que a linguagem tem qualidades não-verbais que são
indissociáveis de sua mediação. A primeira das duas perspectivas é comum
nos estudos de linguagem com metodologias derivados dos estruturalismos
e formalismos pioneiros na lingüística e na semiologia, tendo sido objeto de
críticas contundentes durante todo o período pós-estruturalista. A segunda
aparece na maioria dos estudos de linguagem do século XX, tendo em
Derrida e Peirce duas importantes vozes dissonantes. A semiótica é mais
ampla que a desconstrução no desmonte do logocentrismo, na medida em
que mais abrangente quanto aos tipos de manifestações que inclui o
conjunto de fenômenos possíveis de serem entendidos como linguagem.”
(BASTOS 2008: 274,275)
101
2.1. Sistemas sígnicos: as três matrizes
Segundo a hipótese das três matrizes (SANTAELLA 2001:20),
alicerçada na fenomenologia e semiótica de Peirce, os três tipos de
linguagem, sonora, visual e verbal, constituem-se nas três grandes matrizes
lógicas da linguagem e pensamento, a partir das quais se originam todos os
tipos de linguagens e processos sígnicos produzidos pelos seres humanos.
Embora a natureza da linguagem verbal pertença predominantemente ao
domínio do simbólico, ela engloba tanto a matriz sonora (fonética), quanto a
matriz visual (escrita).
“A lógica implícita nas categorias também prescreve que, sendo a mais
primordial, a categoria da primeiridade está na base, servindo de alicerce à
secundidade, assim como esta alicerça a terceiridade. Então, a matriz
sonora, em nível de primeiro, alicerça a matriz visual, do mesmo modo que
esta alicerça a matriz verbal. Isso também significa dizer que a matriz sonora
prescinde da matriz visual-secundidade, do mesmo modo que esta prescinde
da matriz verbal-terceiridade. Disso ainda decorre que a secundidade, matriz
visual, engloba a primeiridade, matriz sonora, enquanto a terceiridade, matriz
verbal, engloba tanto a secundidade, a matriz visual, quanto engloba,
naturalmente, a primeiridade, matriz sonora.” (SANTAELLA 2001:79)
Um sistema verbal, que como todo sistema se define como um
agregado de elementos, entre os quais existe um conjunto de relações de
forma a que eles partilhem determinadas propriedades, permite considerá-lo
como uma “rede conceitual logicamente estruturada”, pertencente, portanto,
ao domínio da terceiridade (SANTAELLA 2001:15).
Por essa definição, a linguagem verbal é o exemplo mais evidente de
sistema de legissignos. As palavras ou signos lingüísticos são interpretados
de determinada forma, em função das leis estabelecidas no sistema de uma
língua. No entanto, somente terão existência concreta através de um tipo
especial de sinsigno chamado réplica, que ocorrem em um tempo e espaço
determinados.
102
“A linguagem verbal é o exemplo mais evidente de legi-signo ou sistema de
legi-signos. Por pertencerem ao sistema de uma língua, as palavras são
interpretadas como representando aquilo que representam por força das leis
desse sistema. Como quaisquer outros exemplares de legi-signo, no seu
estatuto de leis, as palavras só tomam parte na experiência ou têm
existência concreta por meio de suas manifestações. Peirce chama de
‘réplicas’ essas instâncias de manifestação. Trata-se de sin-signos de tipo
especial. São sin-signos porque são existentes individuais que ocorrem em
um tempo e espaço determinados, mas são réplicas porque atualizam,
corporificam legi-signos.” (SANTAELLA 2001:262)
Dessa maneira, a linguagem verbal, conceitual, pertencente ao
domínio da terceiridade, cujo signo lingüístico (legissigno por excelência) tem
como função unir um representamen, um objeto externo (dinâmico), e um
interpertante, se materializa em outros canais37, que por sua vez se
constituem também em linguagens próprias, a saber, a sonora e a visual,
pertencentes, predominantemente, aos domínios da primeiridade e da
secundidade, respectivamente, e que contam também com suas próprias
características.
“Quanto à linguagem visual, sua característica primordial está na insistência
com que imagens singulares, aqui e agora, se apresentam à percepção. Ver
é estar diante de algo, (...), pois o que caracteriza a imagem é sua presença,
estar presente, tomando conta da nossa apreensão. Aliada ao seu caráter
perceptivo, que corresponde tipicamente ao universo da secundidade, a
linguagem visual, quase sempre figurativa, tem uma vocação referencial, o
que a categoriza como signo indicial. Essa vocação mimética das imagens
transcende as determinações históricas, pois desde as primeiras inscrições
nas grutas, a humanidade esteve guiada pelo desejo complexo e
provavelmente eterno de duplicar o mundo (...).
A linguagem sonora, por outro lado, tem um poder referencial fragilíssimo. O
som não tem poder para representar algo que está fora dele. Pode, no
máximo, indicar sua própria proveniência, mas não tem capacidade de
substituir algo, de estar no lugar de uma outra coisa que não seja ele
37 Interessante neste ponto, notar que para cada sentido humano, há sistemas de signos específicos e que a mesma linguagem verbal pode encarnar‐se em outros canais. Exemplos são a escrita braile, que contempla especialmente o tato, embora também possa ser vista, e a linguagem gestual dos surdos‐ mudos, que prescinde totalmente do canal auditivo.
103
mesmo. Essa falta de capacidade referencial do som é compensada por seu
alto poder de sugestão, o que fundamentalmente o coloca no universo
icônico, onde operam as mais puras associações por similaridade...”
(SANTAELLA 2001: 190)
Os signos lingüísticos contam, então, com dois sistemas em que
podem se materializar, isto é, dois sistemas que compreendem suas réplicas,
um no nível sonoro, fonético, constituído de imagens acústicas, que surgiu
concomitantemente com a própria linguagem verbal, à medida que esta se
desenvolvia, e outro visual, que se desenvolveu muito tempo após o
surgimento da linguagem verbal, e cuja capacidade referencial sempre foi
explorada por poetas e artistas como forma de aproximar o verbal de seu
objeto. Dessa forma, o signo lingüístico possui dois códigos distintos,
chegando Pignatari a sugerir que é “bilíngüe” quem domina e utiliza ambos
os códigos, tamanha a diferença entre eles em determinados aspectos.
“a palavra... possui dois códigos distintos, com peculiaridades diversas - um
falado e outro escrito. Ora, a Lingüística estuda a palavra falada e não a
palavra escrita, mas não pode deixar de sofrer a influência desta (na
verdade, não poderia sequer existir sem a palavra escrita). Talvez seja por
isso que um amigo, durante um debate, tenha sugerido a interessante
hipótese de que toda pessoa que saiba ler e escrever é uma pessoa
bilíngüe...” (PIGNATARI 1979: 9)
A linguagem verbal, definida basicamente pelo seu poder conceitual,
de abstração (SANTAELLA 2001: 190), corporifica-se então em um sistema
de imagens acústicas e noutro de imagens visuais, e que, portanto, se
dirigem a dois diferentes sentidos humanos: audição e visão. Embora, essa
mídia acústica (oral) tenha existido durante muito tempo sem a grafia,
necessidades as mais variadas levaram o homem a grafar a língua, sendo a
função primária de um sistema de escrita, porém não única, captar a língua,
ou linguagem verbal oral nas redes da linguagem escrita.
“Historicamente, a escrita é perante a língua falada um sistema sígnico
secundário. Na evolução da cultura, o homo loquens inventou a escrita só
relativamente mais tarde. A mídia acústica da língua falada precedeu
historicamente a mídia visual da escrita.” (NÖTH 2010: 1)
104
Daí surgirem os sistemas de escrita, visíveis, criados pelas mãos para
apelar aos olhos através de signos gráficos relativamente duráveis que se
apoiaram em toda a experiência pictórica que o ser humano possuía.
“A escrita é visível. Ela é uma forma de comunicação criada pela mão e que
apela aos olhos. Estudiosos da escrita concordam nesses dois pontos acima
de todas as diferenças teóricas... Outra característica de grande importância
é que a escrita consiste de signos, isto é, marcas relativamente duráveis que
têm um referente externo. Os seres humanos produziram signos gráficos por
muitos milênios antes que a escrita fosse inventada.” (COULMAS 2003: 19)
Dessa maneira, a linguagem verbal, que inicialmente tomou corpo nos
signos acústicos, encarna-se também em outro sistema mais apto a
permanecer no tempo, o da escrita alfabética, no caso das línguas ocidentais.
Os sistemas de escrita são, dessa forma, ferramentas para serem
utilizadas pelos indivíduos com a finalidade primeira, mas não única, de
registrar uma determinada língua, e que, por serem grafados, adquirem uma
gramática interna na medida em que amadurecem:
“Um sistema de escrita consiste em um conjunto de símbolos, um grupo de
definições para os símbolos (isto é, um léxico gráfico) e regras para sua
utilização (uma sintaxe gráfica). Na maior parte do tempo, os símbolos são
entendidos como glifos, isto é, sinais e formas visíveis e repetitivas,
constritas pelas propensões e limites das mãos e dos olhos humanos.”
(BRINGHURST 2006: 27)
Por isso, a escrita alfabética, inserida na matriz visual, é um sistema
de formas representativas que assim se apresentam e funcionam por
convenção (SANTAELLA 2001:256), convenção essa que não se confunde
com aquela que rege a interpretação das palavras, nem tampouco com
aquelas que regem a emissão vocal da linguagem.
Disso decorre ser a linguagem verbal um conjunto de sistemas, que
embora intimamente relacionados, têm cada qual suas peculiaridades e
funções específicas, contando cada um com uma sintaxe própria aplicável
igualmente a signos específicos de cada um deles.
105
2.2. Funções dos signos nos sistemas de escrita
As funções de um sistema de escrita não se confundem com as
funções dos signos que compõem um sistema de escrita, isto é, os signos
usados para grafar a linguagem verbal.
Embora não seja o foco principal neste estudo analisar as funções dos
sistemas de escrita, é relevante lembrar que elas permeiam todas as
realizações da escrita, e se refletem, por conseqüência, em todos os seus
signos e na forma como eles são usados.
Sinteticamente, conforme Nöth (2010:14) com base em Coulmas
(1989: 11-14) e Glück (apud Nöth), pode-se resumir as funções semióticas da
escrita da seguinte forma:
(1) a função mnemônica, que possibilita lembrar conteúdos;
(2) a função de superação de distância, que amplia o alcance da mensagem
no tempo e no espaço;
(3) a função de amadurecimento (reyfing function), ou “função
materializadora”, que permite que um objeto material surja a partir de uma
efêmera língua falada;
(4) a função de controle social, segundo a qual compete à palavra escrita
uma autoridade e uma legitimidade social;
(5) a função interativa, de acordo com a qual informações escritas podem
instruir e ordenar;
(6) a função estética, ou poética, segundo Jakobson;
(7) a função mágica da escrita, destacada por Glück, função relevante em
muitas culturas.
Em função das diferentes soluções que cada cultura encontrou para
dar conta dessas funções, a diversidade dos sistemas de escrita é
gigantesca, haja vista o trabalho de Daniels e Bright, intitulado The world’s
writing systems (1996), um compêndio de sistemas de escrita dos mais
diversos pontos do planeta. Maior ainda a diversidade de signos que as
compõem, sendo que não há uma terminologia única para designá-los, nem
106
tampouco uma tipologia única que os classifique, o que dificulta qualquer
trabalho de análise. Quanto a essa diversidade, Pauluk concluiu que:
“Dada a variedade dos critérios utilizados e as idiossincrasias de seus
autores, as tipologias dos sistemas de escrita divergem muito mais do que
concordam quando se trata de classificar uma determinada escrita.”
(PAULUK 2003: 113)
Por todos esses fatores, optamos por utilizar, para os presentes
propósitos, uma tipologia simplificada e graficamente representada proposta
por Robert Bringhurst (2006), cuja atividade como renomado tipógrafo, além
de escritor, tradutor, poeta e professor universitário, certamente aguçou sua
sensibilidade em relação a características gráficas da escrita que não se
encontram desenvolvidas e expostas por outros autores de outras áreas
(lingüistas, historiadores, arqueólogos, entre outros) com a mesma clareza.
Dessa forma, com o surgimento de novas grafias na hipermídia, é
interessante focar os tipos de signos em relação à sua função dentro dos
sistemas de escrita. Nesse sentido, a primeira constatação é a de que todos
os sistemas de escrita podem ser interpretados semântica ou foneticamente,
o que equivale a dizer que seus signos destinam-se a representar sons ou
significados.
“A diversidade dos sistemas de escrita do mundo é enorme, mas todos eles
podem ser interpretados semanticamente e foneticamente. A comunicação
do significado é o propósito primário da maior parte das escritas, e de uma
forma ou de outra, as relações convencionais entre unidades gráficas e
fonéticas são estabelecidas para consecução desse fim. Significado e som
são as duas dimensões referenciais utilizadas por todos os sistemas de
escrita.” (COULMAS 2003: 18)
Essas duas dimensões podem mesmo servir como critério de
classificação dos sistemas de escrita, e Nöth esclarece que não há
superioridade de uma em relação à outra.
“Para a transcrição da língua falada existem duas opções básicas: a
transcrição fonética e a transcrição semântica. Na história da escrita, os
sistemas semânticos de transcrição são mais antigos que as escritas
107
fonéticas. Entretanto, a hipótese de que os sistemas fonéticos são
basicamente superiores aos sistemas semânticos, e de que a evolução da
escrita, em geral, caminha em direção a uma escrita fonética baseia-se, sem
dúvida, em um preconceito fonocêntrico.” (NÖTH 2010: 1)
Para a transcrição fonética, chamada escrita cenêmica38, há também
outras duas opções: as sílabas, quando estas são representadas sem a
possibilidade de serem decompostas ou representadas em unidades
menores; e os sons isolados das consoantes e vogais, como na escrita alfa-
bética, em que a sílaba é geralmente representada por uma combinação de
signos.
“Um número de sistemas de escrita são geralmente descritos como
silabários. Suas unidades gráficas operacionais básicas são interpretadas
como sílabas da fala (speech syllables).” (COULMAS 2003: 62)
“É um fato reconhecível, e tem sido por milênios, que há duas classes
complementares de sons da fala (speech sounds), consoantes e vogais.”
(COULMAS 2003: 109)
Para a transcrição semântica, também chamada de escrita
plerêmica, há várias opções de signos, tais como pictogramas, ideogramas e
logogramas, embora a terminologia não “seja de modo algum homogênea”
(NÖTH 2010: 4).
Pictogramas são signos icônicos, imagéticos, sendo um exemplo os
signos pictóricos da escrita egípcia, embora nenhuma língua possa ser
representada somente por signos desse tipo. Esses signos também
representam seus objetos por uma via metonímica, indexical.
“A iconicidade dos signos pictográficos hieroglíficos é, além disso,
freqüentemente enfraquecida através de abstrações. Com freqüência, o
signo icônico também representa seu objeto somente pela via indireta,
indexical (metonímica). Este é, por ex., a estratégia semiótica da
38 Lembrando, mais uma vez, a heterogeneidade das terminologias existentes, e mesmo a pouca definição de alguns conceitos, um estudo bastante abrangente e esclarecedor sobre as tipologias e classificações dos sistemas de escrita é o de PAULUK 2003, intitulado: “Sistemas de escrita: abordagens, tipologias, perspectivas em semiótica”.
108
apresentação pictográfica de processos. Assim, os caracteres hieroglíficos
representando ‘duas pernas’ significam ‘andar’, um ‘olho com lágrimas’
representa ‘chorar’ e um ‘pássaro com asas abertas’ significa ‘voar’...”
(NÖTH 2010: 4)
Já os ideogramas, podem ser descritos como signos que representam
idéias, mas sua diferenciação dos pictogramas é bastante problemática, já
que ambos têm um forte componente icônico. Como exemplo, temos
“determinados caracteres chineses” que são “muitas vezes, ícones
diagramáticos” de seus objetos (NÖTH 2010: 5).
O princípio de rébus é um interessante uso de um signo pictográfico
ou ideográfico, que originalmente definido para a designação de determinado
conceito, passa a ser utilizado para outro que é idiomaticamente homófono a
ele. Um exemplo do inglês é o pictograma de um “olho” (‘eye’), que por
homofonia pode representar a palavra “eu” (‘I’). No português poderíamos ter
a imagem de nós (numa corda, por ex.), representando o pronome “nós”.
“Um exemplo adaptado da língua alemã: o pictograma de um braço (‘Arm’)
poderia também ser usado como signo rébus para representar o adjetivo
‘pobre’ (‘arm’), ou o pictograma de um banco poderia também servir como
signo rébus para representar o conceito de ‘instituto monetário’. Tanto no
sistema de escrita hieroglífica egípcia quanto na escrita chinesa existem
caracteres segundo o principio do rébus.” (NÖTH 2010: 5)
Já logógrafos ou logogramas, ou ainda signos semográficos, são
caracteres39 ou combinações de caracteres que representam palavras, ou
ainda, significados, embora sua definição possa confundir-se com os
ideogramas ou ideógrafos.
39 A palavra caractere ou caráter, do grego kharaktêr, ‘o que grava, sinal gravado, marca, traço, sinal’ pode ser entendida como letra, número, símbolo (no sentido corrente da palavra) ou sinal de pontuação, etc., i.e., como figura usada na escrita. Na terminologia informática, pode designar: letra do alfabeto, algarismo, sinal de pontuação ou símbolo de qualquer natureza que pode ser introduzido em um computador pelo teclado ou por outro dispositivo de entrada, assim como exibido na tela ou em outro dispositivo de saída. (Cf. Dicionário eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa).
109
“Logógrafos encontram-se também associados a nossa própria tradição de
escrita alfabética. Logógrafos são, por ex., caracteres como $, £, §, &, % ,+
ou –, e todos os algarismos arábicos de um dígito (de 0 a 9) são da mesma
forma logógrafos (e ao mesmo tempo ideógrafos) que representam palavras
inteiras.” (NÖTH 2010: 5)
Como dissemos, Bringhurst apresenta uma classificação dos sistemas
de escrita em virtude dos tipos de signos que cada sistema utiliza, que ele
chama de matizes de significado, e que bem poderiam ser chamados de
matizes de representação, já que se trata de estabelecer a relação entre os
signos da escrita e o respectivos objetos que eles representam. Mas ele
adverte que nenhuma taxonomia pode ser completa, e que todo sistema de
escrita utiliza vários desses tipos de signos em maior ou menor grau:
“A taxonomia que resumirei abaixo deve muito ao trabalho de Gelb e
Daniels, embora apresente algumas discrepâncias em relação a ambos os
estudos. Achei-a prática e útil, mas não há nenhuma garantia de que esta,
ou qualquer outra taxonomia, seja efetivamente completa - uma vez que
novos sistemas sempre podem ser criados, e várias escritas permanecem
indecifradas (e, portanto, não classificadas).
Os sistemas de escrita podem ser caracterizados como semográficos,
silábicos, alfabéticos ou prosódicos.
Estes quatro termos ou matizes de significado formam um círculo
taxonômico simples. Distinções mais detalhadas são certamente possíveis,
até mesmo úteis, em certas instâncias. O silábico, por exemplo, pode ser
subdividido em logossilábico e alfassilábico.
O prosódico pode ser dividido em semoprosódico e alfaprosódico. Mas
nenhum termo - não importa quanto significado tenha - é, por si só, uma
classificação satisfatória. A razão é que os sistemas de escrita são, à sua
maneira, como liquens: entidades mutualísticas. Todo sistema desenvolvido
pertence a mais de uma categoria, entre as quatro categorias primárias
existentes.” (BRINGHURST 2006: 61,63)
O interessante dessa classificação é a inclusão de caracteres
semográficos, que também podem ser chamados logográficos, como vimos,
e que podem ser considerados supra-lingüísticos.
110
“Em certo sentido, claro, uma escrita semográfica é supralingüística. Não faz
nenhuma diferença (para alguns propósitos) se o símbolo 2 é pronunciado
como dois, dos, deux, zwei, ni, (...). Embora muitas expressões possam ser
grafadas em escritas semográficas com grande precisão, podem ser
igualmente representadas em linguagem falada. (A expressão 1+1=2, por
exemplo, será pronunciada de forma diferente nos idiomas inglês, grego e
hebreu ...” (BRINGHURST 2006: 67)
Outro ponto a destacar dessa classificação é a prosódia, que se
constitui de características de entonação, como tom, duração, ênfase e
pausa, mas que também é essencial à leitura silenciosa. Interessante notar a
importância da prosódia, já que, não raro, a entonação com que uma palavra
é proferida pode alterar totalmente seu sentido, como nos casos de ironias,
sendo essa nuance passível de ser representada na escrita pelo uso de
aspas. Ou seja, nesse caso, elas são usadas como um sinal semoprosódico,
i.e., que transmite um significado por meio de uma modulação do som.
“A vírgula, os dois-pontos, o ponto-e-vírgula, os parênteses, os colchetes, a
interrogação, a exclamação e as aspas são sobreviventes de um grande
rebanho de símbolos usados como sinais de prosódia por muitas gerações
de escribas europeus.” (BRINGHURST 2006: 74,75)
Bringhurst (2006: 64-70) apresenta sua classificação num diagrama
que ele chama de círculo taxonômico simples das “capacidades dos sistemas
de escrita”, que são representadas por meio dos quadrantes, cada qual se
referindo a um dos quatro principais “tipos de informação lingüística
tipicamente transmitida pelos sistemas de escrita”. O centro do círculo (num
tom mais escuro) indicaria um tipo de informação completa em cada
quadrante, sendo que o autor ressalta que “não há nenhuma escrita humana
conhecida que transmita um nível completo de informações” em qualquer um
dos quadrantes, embora toda escrita forneça algum tipo de informação em
algum grau em um ou mais quadrantes.
111
A utilidade desse diagrama é incontestável. Nele encontra-se a
possibilidade de visualizar a transcrição fonética dividida em letras
(alfabética) e sílabas; e a transcrição semântica dividida em semografia e
prosódia. Isso facilita muito a análise de alguns caracteres cuja definição é
bastante imprecisa, como no caso de pictogramas, ideogramas e
logogramas, entre os quais muitas vezes não há como estabelecer limites
definidos e que podem ser todos considerados signos semográficos.
Por outro lado, também é possível visualizar a existência de signos
entre os quadrantes, como de fato acontece, já que existem sinais
semoprosódicos na língua, tal qual exclamação e interrogação40, além de
signos que ficam entre o alfabeto e a sílaba, o que não está previsto
atualmente em muitas gramáticas ocidentais, mas que se constitui em uma
das mudanças das novas grafias (ver capítulo V). Outros signos da escrita
bastante difíceis de classificar, simplesmente por serem invisíveis, são os
espaços interliterais e interlexicais, que além de essenciais à leitura, têm
40 Um exemplo interessante é o caso do português (e de outras línguas românicas), em que, diferentemente do inglês (e também outras línguas anglo‐saxônicas), não existe uma construção sintática que especifique se uma frase escrita se trata de uma ou pergunta ou não. A sentença: “Você vai à escola.” é uma afirmação com ponto final; diferentemente de “Você vai à escola?”, uma pergunta. A mesma sentença poderia ainda expressar dúvida ou insinuação com reticências “Você vai à escola...”; ou mesmo uma ordem, ou ainda, espanto e surpresa, com o uso de ponto de exclamação “Você vai à escola!”.
112
grande valor semântico na poesia. Podem ser considerados semográficos,
pois embora não sejam propriamente grafados, estão presentes na forma de
se grafar as línguas41.
Outras possibilidades de signos mistos são os usos alfaprosódicos das
letras, como por exemplo, o uso de letras maiúsculas para se expressar um
grito ou ênfase, e a grafia em itálico, usada, por exemplo, para dar ênfase ou
grafar palavras estrangeiras. Há ainda os logossilábicos, tão comuns às
escritas orientais, em que um mesmo signo pode representar uma sílaba e/ou
um significado.
Mais uma característica semiótica do círculo taxonômico de Bringhurst
é sua cor, que representa radialmente o nível de informação de cada signo
em cada quadrante, o que permitiria, por exemplo, visualizar o uso da letra ‘h’
41 Duas passagens não podem deixar de ser citadas neste estudo. A primeira porque mostra que nem sempre a escrita fez uso de espaços entre seus caracteres; e a segunda porque é altamente esclarecedora sobre o assunto. “O advento da escrita alfabética entre os gregos, com sua notação de vogais, reduziu o nível de ambigüidade intrínseca aos sistemas consonantais e possibilitou o abandono dos separadores interlexicais; esta modalidade de escrita sem qualquer pontuação ou espaçamento ficou conhecida como scriptura continua e ganhou uso generalizado entre aqueles que faziam uso dos alfabetos grego, romano e cirílico,e até mesmo do sânscrito ... A reintrodução da separação entre palavras se deu no início da Idade Média, com copistas irlandeses e anglo‐saxões trabalhando com textos gregos arcaicos, tornando‐se uma prática comum também na Itália e França renascentistas... Apesar de figurar claramente como um elemento complexo e de grande importância no estudo do funcionamento semiótico de diversos sistemas de escrita, a maior parte dos lingüistas que estudam a escrita parece simplesmente não notar a existência deste grafema.” (PAULUK 2003: 209) “Como é habitual no mundo dos sistemas de escrita, a diferença não reside nos signos, mas em como eles são usados. Aquele símbolo onipresente, embora invisível, conhecido hoje em dia como hard return, é um símbolo alfaprosódico em versos métricos, mas semoprosódico em listas de supermercado, alguns versos não métricos e, normalmente, em prosa literária. Os colchetes e os parênteses normalmente são semoprosódicos em textos literários, como também o são em notações matemáticas. Mas o mais importante símbolo de semoprosódia em uso geral é o wordspace. Ele é desnecessário em chinês clássico, no qual quase toda sílaba e símbolo escrito são palavras. Entretanto, pode ser útil no chinês moderno, no qual frases semânticas de duas e três sílabas excedem em número as palavras monossilábicas. Por outro lado, em matemática, o wordspace (ou algum signo equivalente que representa conjunção prosódica) é essencial. Muitos alfabetos passaram sem a semoprosódia, mas os que a absorveram a mantiveram. Ela é crucial à leitura silenciosa (que é, em essência, leitura semoprosódica) e, por esta razão, também é crucial para a velocidade da leitura. No fluxo normal de um texto em inglês, os símbolos alfabéticos excederão o número de símbolos semográficos e de prosódia em cerca de cinco para um (cerca de 75% a 80% dos signos não alfabéticos serão os espaços entre as palavras). Contudo, em um teclado normal, existem mais signos semográficos e de prosódia que letras alfabéticas.” (BRINGHURST 2006: 76,77)
113
na palavra ‘hospital’ em português, como um signo alfabético que não
transmite nenhuma informação sonora, pois não é pronunciado.
Todas essas vantagens se apresentam na tipologia que Bringhurst
estabelece em função de seu correspondente diagrama estar baseado num
continuum representativo, tanto entre os quadrantes como radialmente,
diferente de outros diagramas e tipologias que pretendem estabelecer
classes estanques, claramente delimitadas, onde fatalmente certos atributos
híbridos são excluídos.
Uma classificação bastante simplificada, adaptando-se o diagrama de
Bringhurst e sem considerar signos ou usos de signos que ficassem entre
dois quadrantes, mostraria que no caso do inglês e do português, seus
correspondentes sistemas de escrita podem ser atualmente representados
como no diagrama à esquerda, em que o tamanho de elipses pretas mostra a
freqüência com que signos de cada tipo são utilizados. Tendências desses
sistemas podem ser visualizadas à direita, como veremos em detalhes mais
adiante, em que o uso silábico aparece, o alfabético diminui por
conseqüência, e o semográfico e o prosódico são expandidos.
114
No capítulo V sobre as novas grafias, trataremos de como essas
técnicas de transcrição da linguagem verbal estão sendo exploradas e
reconfiguradas na hipermídia. Por outro lado, podemos observar
semioticamente que, embora essas técnicas se constituam em signos que
representam seus objetos segundo normas e convenções próprias dentro de
cada sistema de escrita, na world wide web estão ganhando cada dia mais
força expressiva (icônica) em função das possibilidades que o suporte
eletrônico abre para sua utilização, contrariando teorias que consideram a
transcrição fonética da linguagem verbal, i.e., simbólica, como o ápice do
desenvolvimento de um sistema de escrita (cf. NÖTH 2010: 10).
Ao termos uma visão sistêmica de suas transformações poderemos
perceber como essa evolução é muito mais um produto de necessidades de
adaptação e permanência, e que a iconicidade, indexicalidade e
simbolicidade dos seus signos pode reinventar-se, simplificar-se ou
complexificar-se para atendê-las.
115
Capítulo 4 - ESCRITA E HIPERMÍDIA
“Vivemos em um mundo submerso e infuso na palavra escrita.”
Steven Fischer (2006:291)
1. TECNOLOGIA E HIPERMÍDIA
O século XX foi considerado a era das imagens e da proeminência dos
meios audiovisuais. Nesse contexto, a escrita estava restrita aos meios
impressos, nos quais se encontrava cada vez mais assolada por imagens em
função da crescente facilidade em reproduzi-las.
No entanto, às portas no século XXI, o texto escrito migrou para a tela
dos computadores, absorvido pelos seus recursos e processos tecnológico-
digitais que permitiram tratar todos os tipos de informação sob um mesmo
princípio, a digitalização, que se constituiu, assim, em uma linguagem
técnológica “universal” (SANTAELLA 2007: 300) que refuncionalizou o papel
da escrita nos novos meios.
“Na realidade, quando surge um novo meio de comunicação, ele não
substitui o anterior ou os anteriores, mas provoca uma refuncionalização no
papel cultural que era desempenhado pelos meios precedentes. Via de
regra, um período inicial de impacto é seguido por uma readaptação
gradativa até que um novo desenho de funções se instale.” (SANTAELLA
2007: 288)
A partir de então, transformações profundas se iniciaram desde que
essas tecnologias digitais entraram em uso, especialmente pelo surgimento
de uma nova linguagem híbrida, mista, complexa, chamada hipermídia, em
cuja base está a tecnologia digital, na qual quaisquer fontes de informação
podem ser transmitidas em cadeias de bits, unidades binárias (0 e 1) de
codificação de informação, e que se materializa pela integração de textos,
imagens e sons de diversos tipos. Deve-se distinguir, assim, o advento de um
novo canal, as tecnologias digitais, da linguagem que lhes é própria, a
hipermídia, a fim de tornar possível uma visão clara das potencialidades
116
intersemióticas entre os mais diversos processos sígnicos que para ela
confluem.
Outro fator que costuma impedir uma visão dialógica, interativa e
intersemiótica das linguagens decorre do hábito de se confundir uma
linguagem com o canal que a veicula. As linguagens são estudadas de
acordo com o suporte, meio ou canal que lhes dão corpo e em que elas
transitam. (...) é evidente que o meio através do qual uma linguagem é
veiculada tem importância soberana para se compreender a maneira como
suas mensagens são produzidas, transmitidas e recebidas. (...) Contudo, a
atenção ao canal veiculador das linguagens não deveria ser tão proeminente
a ponto de nos cegar para as similaridades e as trocas de recursos entre os
mais diversos sistemas e processos sígnicos.” (SANTAELLA 2001: 27)
Nesse ambiente digital, o texto escrito se constituiu, de modo
privilegiado, em uma das “marcas registradas da hipermídia” (SANTAELLA
2007: 292), uma vez que, apesar da mistura de linguagens, a maior parte da
informação transmitida via rede se apresenta em forma de texto, e portanto,
por meio da escrita.
“... o texto escrito saltou do papel impresso para o sistema alfanumérico das
telas eletrônicas. E aqui começa uma nova história do texto, a de sua
absorção na hipermídia e sua conseqüente transmutação de sólido em
líquido, de fixo em escorregadio, instável, volátil.” (SANTAELLA 2007: 293)
Nesse sentido, o advento da hipermídia nesse novo suporte eletrônico-
digital, significou uma mudança de natureza original, ímpar, na escrita, cujas
proporções ainda não vislumbramos com clareza, mas que revelam novas
práticas semióticas que este estudo busca investigar:
“não se pode negar também a originalidade que diferencia as
transformações que hoje se processam das ocorridas em outros períodos.
Enquanto no passado elas eram desconjuntadas, hoje ocorrem de forma
integrada, implicando, a um só tempo, novas técnicas de produção de textos,
novos suportes de escrita e novas práticas de escrita. Essa revolução não se
processa sem que se modifiquem também as práticas políticas, semióticas e
jurídicas que interpõem e se associam à leitura e à escritura.”
(BEIGUELMAN 2003:17)
117
2. HIPERMÍDIA: SISTEMA AMBIENTE DA ESCRITA
Uma definição de hipermídia nos mostra como ela se constitui num
ambiente de informação digital, pois ela pode ser considerada “a integração
sem suturas de dados, textos, imagens de todas as espécies e sons dentro
de um único ambiente de informação digital” (FELDMAN apud SANTAELLA
2007:317).
Dessa forma, a hipermídia, encarada como um sistema ambiente, bem
como a escrita que nela se processa, podem ser consideradas sistemas
abertos e dinâmicos, não-lineares em função de sua complexidade, onde as
relações entre seus elementos transformam-se com o tempo, e onde o todo é
mais do que a simples soma das partes, já que resulta das constantes trocas,
permutações e relações de mútua determinação entre elas, a exemplo da
própria mente humana e da rede de conexões neurais de que ela se serve.
“Já vimos que a hipermídia é uma tecnologia que permite escrita e leitura
não-linear, o que favorece o desenvolvimento de um pensamento complexo.
(...) Considera-se sistema, segundo Hirsch (1985:189-192), qualquer objeto
de estudo composto por mais de uma parte, e que respeite a condição de
que haja interação entre essas partes. Em outras palavras, a princípio, o
estudo dos sistemas é uma tentativa de se tentar compreender o
relacionamento entre elementos interativos. Sistemas dinâmicos, por sua
vez, são aqueles que têm seu estado alterado com o tempo. Considera-se
que o que muda e se transforma nos sistemas dinâmicos é o seu estado, ou
seja, o relacionamento entre as partes do sistema. (...) O pensamento não-
linear compreende as questões dentro do conceito de sistemas, isto é,
dentro de relações de troca e mútua determinação. (...) O conceito de não-
linearidade deriva da matemática e tem sido empregado de uma forma
bastante freqüente, quando se fala de sistemas complexos dinâmicos. Hoje
está totalmente fora de contexto alguém pensar que o todo é uma simples
soma de suas partes. A ecologia e várias outras ciências já provaram que
esse tipo de raciocínio linear não coaduna com a complexidade das relações
dos sistemas envolvidos. Mesmo no caso da nossa mente, sabe-se que ela
é governada por dinâmicas não-lineares de um complexo sistema que forma
a rede neuronal e que percorre o nosso cérebro e o corpo como um todo.”
(LEÃO 1999: 55-57)
118
Esse enfoque sistêmico da hipermídia traz consigo todas as
características ontológicas próprias dos sistemas abertos (ver capítulo III),
bem como todas as capacidades a elas ligadas. Isso significa que todos os
fluxos de informação que se processam nesse ambiente são captados,
elaborados e apreendidos resultando em mudanças constantes no próprio
sistema ambiente, a hipermídia, e em todos os outros sistemas que com ele
interagem, a exemplo da escrita.
Outro aspecto a considerar é que esse ambiente não é linear, a
exemplo do próprio pensamento humano, que nele encontra a possibilidade
de expressar-se numa linguagem isomórfica, acrescida de recursos
poderosos, que oferecem o meio propício para sua expansão, criatividade e
desenvolvimento.
3. HIPERMÍDIA E HIPERTEXTO
A codificação de informação em unidades binárias, base da
hipermídia, possibilita a convergência de todas as mídias que a antecederam,
além de garantir a manutenção da qualidade de sua reprodução em qualquer
tempo e em quantos suportes se desejar, sejam eles eletrônicos ou não.
“Essa mistura de áudio, vídeo e dados é que recebeu o nome de
‘hipermídia’, pois nasce da junção do hipertexto com a multimídia.
Hipermídia se refere, portanto, ao tratamento digital de todas as informações
(som, imagem, texto, programas informáticos) com a mesma linguagem
universal, uma espécie de esperanto das máquinas. Tendo sua base na
digitalização, foram dois os fatores que levaram à emergência da hipermídia:
a hibridização das tecnologias e a convergência das mídias.” (SANTAELLA
2007: 318)
Dessa forma, a hipermídia inaugura um novo tipo de linguagem, ou
ainda, se constitui, ela mesma, num tipo inédito de linguagem, numa rede
mundial, a Internet, para onde confluem informações das mais distintas
naturezas, de suportes os mais variados (que antes se encontravam
separados), e de todas as partes do globo.
119
“Um dos aspectos evolutivos mais significativo dessa conjuntura
revolucionária está no aparecimento e rápido desenvolvimento de uma nova
linguagem: a hipermídia. Antes da era digital, os suportes estavam
separados por serem incompatíveis: o desenho, a pintura e a gravura nas
telas, o texto e as imagens gráficas no papel, a fotografia e o filme na
película química, o som e o vídeo na fita magnética. Depois de passarem
pela digitalização, todos esses campos tradicionais de produção de
linguagem e processos de comunicação humanos juntaram-se na
constituição da hipermídia. Para ela convergem o texto escrito (livros,
periódicos científicos, jornais, revistas), o audiovisual (televisão, vídeo,
cinema) e a informática (computadores e programas informáticos). Aliada às
telecomunicações (telefone, satélites, cabo) das redes eletrônicas, a
tecnologia da informação digital conduziu à disseminação da internet que
resultou da associação de dois conceitos básicos, o de servidores de
informação com o de hipertexto. (...) O universo virtual das redes tem se
alastrado tão exponencialmente por todo o planeta a ponto de produzir a
emergência de uma nova forma de cultura, a cultura do ciberespaço ou
cibercultura. (...) Trata-se, de fato, de uma linguagem inaugural em um novo
tipo de meio ou ambiente de informação no qual ler, perceber, escrever,
pensar e sentir adquirem características inéditas...“ (SANTAELLA 2001: 390)
Tudo isso se integra por meio do sistema hipertextual, uma estrutura
fluida, cartográfica. A hipermídia pode ser considerada então, uma “junção do
hipertexto com a multimídia, esta formada pela justaposição de textos, sons e
imagens das mais variadas ordens” (SANTAELLA 2007: 305) que configuram
os ambientes de hipermídia, o que traz à tona duas principais características
hipermidiáticas: coexistência de mídias e linguagens, como já vimos, e o
hipertexto,
“que permite ligações cruzadas entre diversas partes de um mesmo
documento ou através de documentos diferentes. As ligações são realizadas
a partir de elos (links) entre os diferentes pontos do sistema hipertextual.”
(LEÃO 1999: 140)
A partir de um documento presente em um servidor de informação, o
usuário tem a possibilidade de navegar para outro texto em outro servidor,
através de elos, verdadeiras encruzilhadas de informação que, de forma
120
ilimitada estão interconectadas em redes de computação interativa capazes
de trocar informação entre os pontos mais distantes do globo, ligando
pessoas e instituições em todo o mundo. Nesse ambiente, o texto digitalizado
é reconfigurável livremente, organizado de forma não linear, reticular.
“A hipermídia é uma extensão do hipertexto, pois não se limita à informação
escrita, mas permite acrescentar aos textos não apenas os mais diversos
grafismos (símbolos matemáticos, notações, diagramas, figuras), mas
também todas as espécies de elementos audiovisuais (voz, música, sons
imagens fixas e animadas). Em ambos os casos, o termo hiper se reporta à
estrutura complexa alinear da informação.” (SANTAELLA 2001: 24)
O hipertexto, com sua estrutura de elos (links) em rede, tem seus
precursores nas conexões literárias (citações, referências, índices, etc.) que
há muito vem sendo utilizadas.
“Como o próprio Nelson42 assinalou, ‘o hipertexto, ou a escrita não-
seqüencial com liberdade de movimentação entre os links, é uma idéia
simples e óbvia. É apenas a versão eletrônica das conexões literárias tal
como já as conhecemos’.” (BEIGUELMAN 2003: 66)
O link, geralmente representado por uma hotword, é a unidade básica
do sistema hipertextual, pois é através dele que os diferentes pontos da world
wide web estão interconectados, formando, por isso mesmo, uma rede entre
as várias partes de um mesmo documento, ou entre diferentes pontos da
internet, ou entre ambos concomitantemente.
Dessa maneira, o texto tradicional foi absorvido por esse sistema de
vínculos associativos não lineares entre diversos pontos do sistema,
interligados por conexões conceituais, indicativas e visuais entre os mais
diversos tipos de conteúdo.
“Ao ser absorvido por esse novo suporte, o texto passou por transformações,
por verdadeira mudança de natureza na forma de hipertexto, isto é, de
vínculos não lineares entre fragmentos textuais associativos, interligados por
42 Theodor Holm Nelson, criador do termo hipertexto em 1965 (BEIGUELMAN 2003: 66).
121
conexões conceituais (campos), indicativas (chaves), ou por metáforas
visuais (ícones) que remetem, ao clicar de um botão, de um percurso de
leitura a outro, em qualquer ponto da informação ou para diversas
mensagens, em cascatas simultâneas e interconectadas.” (SANTAELLA
2007: 299, 300)
Essas transformações representam desafios para a escrita tradicional,
que como é possível observar, já começa a responder a essas dimensões
multilineares do sistema hipertextual. Bolter (apud LEÃO 2005: 112) chamou
“escrita topográfica” a essa escrita que se processa nos sistemas
hipertextuais, em que o conteúdo esta usualmente distribuído em tópicos,
blocos de texto interconectados pelos elos da rede.
Topos, do grego, significa “lugar”. Assim, a escrita topográfica, embora
não se limite ao meio digital, já que é comum dividir-se um texto em tópicos e
organizar essas unidades numa estrutura interconectada, apresenta essa
característica de ser concebida como um “diagrama no espaço” de forma
potencializada no sistema hipertextual. Nesse sentido, parece ter sido o
advento do hipertexto que nos fez atentar para todas essas interfaces visuais
dos textos em geral.
“É curioso notar que deve ter sido o advento do hipertexto que nos tornou
mais atentos à existência das interfaces visuais em quaisquer textos
impressos. Conforme nos alerta Chartier (1996), depois de várias décadas
de teorias puramente semânticas que tratavam o texto independentemente
de seu suporte físico, os estudiosos das práticas culturais começaram a
considerar os efeitos de sentido gerados pelas formas materiais inerentes
aos textos.” (SANTAELLA 2007: 312)
Se na escrita tradicional, sua estrutura topográfica pode ser indicada
através da divisão em parágrafos, capítulos, sumários, índice analítico, bem
como por meio das interconexões entre os tópicos que são encontradas nos
índices remissivos, é a maximização dessa potencialidade da escrita que
salta aos olhos em contexto digital, que oferece um “espaço de escritura”
privilegiado para a exploração visual e espacial da escrita.
122
“o hipertexto é uma ‘rede de elementos simbólicos interconectados
interativamente’. A ‘escrita topográfica’, por sua vez, é aquela na qual se
divide o texto em unidades, os tópicos, de tal forma que se possa, num outro
momento, organizar essas unidades numa estrutura coerente. (...) Bolter
(1990) defende a idéia de que escrever sempre foi algo espacial. Isso porque
‘nós só podemos ver e compreender os signos se eles estiverem dispostos
num espaço de pelo menos duas dimensões’. O hipertexto, por sua vez, nos
oferece um método de exploração visual e conceitual do espaço de escritura
(writing space) apresentado para nós pela tecnologia do computador (Bolter,
1990:105). A ‘escrita topográfica’ problematiza a questão da hierarquia (...)
Em lugar de hierarquias, nós temos uma escrita que não é apenas tópica:
nós podemos chamá-la também de ‘topográfica’. A palavra ‘topografia’
originariamente significava uma descrição escrita de um lugar, tal como um
antigo topógrafo poderia fornecer. Mais tarde, a palavra começou a se referir
ao ato de desenhar ou fazer um mapa - isto é, a uma descrição visual e
verbal. Não é a escrita de um lugar, mas, mais propriamente, uma escrita
com lugares, com tópicos concebidos espacialmente.” (LEÃO 1999: 111,112)
O sistema hipertextual oferece, assim, todas as condições para que as
caracterísiticas topográficas da escrita sejam exploradas, evidenciando suas
qualidades espaciais e diagramáticas como nunca antes.
4. SUPORTE MULTIDIMENSIONAL DA ESCRITA
A evolução da escrita está intimamente relacionada à mudança dos
seus suportes materiais, sendo possível constatar, ao longo da história da
escrita, como essas mudanças alteraram e reconfiguraram o modo de
escrever. Pedra, argila, madeira, couro, entre outros, já foram os suportes
principais da escrita. O papel, veículo da cultura impressa, tem suas origens
nos antigos papiros.
Apesar de que, a partir do surgimento de cada um desses suportes,
mudanças e impactos específicos puderam ser observados, é imperioso
notar que todos têm uma característica comum: sua bidimensionalidade.
“Como mídia da escrita Gelb define também objetos tridimensionais. Signos-
objetos encontram-se entre os precursores da escrita..., e hoje,
123
oportunamente, também em forma de objetos de design gráfico constituídos
como letras. Todavia, a tridimensionalidade não é prototípica para todos os
sistemas de escrita, mas sim a superfície de escrita bidimensional, em geral,
branca... Apenas a bidimensionalidade é, com isso, valida para muitos
teóricos também como traço distintivo da mídia escrita.” (NÖTH 2010: 11,12)
Embora seja possível argumentar que pedra, madeira, por ex., são
tridimensionais (e de fato são), a escrita que neles se processa fica limitada à
bidimensionalidade. O mesmo ocorre com o papel, cujo advento, sem dúvida,
permitiu um sem número de aprimoramentos bem como de explorações
espaciais da escrita, mas que de igual maneira, só timidamente romperam
com sua bidimensionalidade. Já a hipermídia funciona como um suporte
multidimensional sem precedentes para a escrita, nascida da criação de
hipersintaxes.
“Longe de ser apenas uma nova técnica, um novo meio para a transmissão
de conteúdos preexistentes, a hipermídia é, na realidade, uma nova
linguagem que nasce da criação de hipersintaxes capazes de refuncionalizar
linguagens (textuais, sonoras, visuais) que antes só muito canhestramente
poderiam estar juntas, combinando-as e retecendo-as em uma malha
multidimensional.” (SANTAELLA 2007: 320)
As inovações introduzidas pela hipermídia não se refletem, apenas, na
forma como a escrita é produzida e reproduzida. Ela se constitui numa forma
inovadora de se produzir o texto escrito devido à sua fusão com as outras
linguagens, o que transforma a escrita de forma inédita, “colocando em
questão a natureza mesma da escritura e de seus potenciais” (SANTAELLA
2007: 294) já que o princípio da hipermídia instala-se no “âmago da
linguagem”.
“De fato, a linguagem digital realiza a proeza de transcodificar quaisquer
códigos, linguagens e sinais, sejam estes textos, imagens de todos os tipos,
gráficos, sons e ruídos, processando-os computacionalmente e devolvendo-
os aos nossos sentidos na sua forma original, o som como som, a escrita
como escrita, a imagem como imagem. Entretanto, por ter a capacidade de
colocar todas as linguagens dentro de uma raiz comum, a linguagem digital
permite - sua proeza maior - que essas linguagens se misturem no ato
mesmo de sua formação. Criam-se assim, sintaxes híbridas, miscigenadas.
124
Sons, palavras e imagens que antes, só podiam coexistir passam a se co-
engendrar em estruturas fluidas, cartografias líquidas para a navegação com
as quais os usuários aprendem a interagir, por meio de ações participativas,
como num jogo. Esse é o princípio da hipermídia, um princípio que se instala
no âmago da linguagem.” (SANTAELLA 2007: 293, 294)
Os suportes eletrônicos caracterizam-se, então, pela hibridização
permitida pela digitalização e pela linguagem hipermidiática por ela
introduzida “com seus processos de comunicação inteiramente novos,
interativos e dialógicos” (SANTAELLA 2007: 293), o que revela sua natureza
intersemiótica, já que seus sentidos se materializam somente na mistura e
complementaridade entre esses diversos processos sígnicos que nele estão
incorporados, consubstanciando-se, por isso mesmo, num suporte
multidimensional para a escrita que nele se processa.
Dessa forma, um dos elementos mais inovadores da hipermídia é o
suporte, maleável, rápido, multidimensional, rico em possibilidades
expressivas para o complexo pensamento humano, que não é linear nem
seqüencial, e muito menos, fixo, o que tem conseqüências diretas sobre a
escrita.
“Os sistemas hipermidiáticos oferecem o suporte maleável e
multidimensional mais adequado para exprimir o pensamento em sua
complexidade do que os meios que dispúnhamos anteriormente, a oralidade
e a escrita. Sabe-se que a mente humana não segue uma linha de raciocínio
linear, tal qual o suporte impresso nos exige assumir. Mesmo a oralidade nos
limita a uma só voz que, também, obrigatoriamente, segue no seu narrar. A
complexidade dos processos mentais e corporais... tem agora a
possibilidade de ser expressa em um espaço multidimensional.
Um dos limites impostos pela escrita (quer seja ela em barro, papiro ou
papel) é que ela promove uma fixação estável do pensamento. Com os
computadores, estamos vivendo um outro tipo de experiência, a da ilimitada
mutabilidade.” (LEÃO 1999: 65)
125
5. LINGUAGEM VERBAL E ESCRITA HIPERMIDIÁTICA
As línguas e os sistemas de escrita estão em constante mudança. A
passagem das escritas icônicas (pictogramas, ideogramas, hieróglifos, entre
outros) às fonéticas ou simbólicas (p.ex., alfabetos, COULMAS 1989: 29) nos
conta que a invenção das línguas foi lenta e gradual, passando por inúmeras
transformações, tanto no léxico como no registro escrito, até chegar ao que
conhecemos em nossos dias.
Devido ao hibridismo da hipermídia, e sua síntese de recursos
sonoros, visuais e verbais, a linguagem verbal assume características cada
vez mais dinâmicas, híbrida também de propriedades de som e imagem,
evidenciando-se sua capacidade de potencializar e maximizar as
manifestações sígnicas da palavra (signo lingüístico por excelência) e de
suas grafias. São essas três fontes básicas, a verbal, a visual e a sonora que
se hibridizam e se reconfiguram mutuamente, dotando a escrita
hipermidiática de características inéditas.
“O que vale ainda acentuar é o fato de que toda mistura de linguagens da
multi e hipermídia está inegavelmente fundada sobre três fontes básicas: a
verbal, a visual e a sonora. Tanto é assim que os programas multimídia
(softwares) literalmente programam as misturas de linguagem a partir dessas
três fontes primordiais: os signos audíveis (sons, músicas, ruídos), os signos
imagéticos (todas as espécies sígnicas de imagens fixas e animadas) e os
signos verbais (orais e escritos).” (SANTAELLA 2007: 319, 320)
Esse universo eletrônico-digital é um universo substancialmente de
escritura, tanto no sentido do que nele escrevemos como no sentido do
código escrito que lhe é subjacente. Essas formas da textualidade eletrônica
são multimidiáticas, semioticamente híbridas, pois exploram as
potencialidades que se abrem para a escrita, sua performatividade, fazendo
dela uma atividade semiótica que usa as várias espécies de mídia que nela
se manifestam.
“Com a Internet, qualquer pessoa pode fazer uma tela eletrônica, seja o
conteúdo em áudio, gráfico, textual, animado, em vídeo ou na mistura entre
126
eles. Isso tem um impacto direto não apenas sobre a escrita, mas sobre o
que é a escritura.” (SANTAELLA 2004a: 164)43
Dessa forma, a e-escrita, aí incluída a e-poesia, ou poesia nas redes,
já que os artistas são sempre aqueles a explorar de forma intensiva o
potencial das novas tecnologias, não é linear, fixa, nem tampouco um arranjo
de símbolos estáticos em uma página estável; pela primeira vez, um suporte
lhe possibilita que ela se manifeste dinamicamente, através de “signos
digitais”, permitindo novas codificações. Como na poesia de Cummings, “o
modo como o corpo das palavras se comporta entra em perfeita isomorfia
com o significado que se quer sensivelmente comunicar” (SANTAELLA
2004a:170).
“a natureza híbrida dos signos digitais não pode ser separada dos signos
visuais, verbais e auditivos. Programas especiais foram até desenvolvidos
para a tradução de um signo escrito em tom e imagem, como por exemplo o
Verbarium. As hipermídias permitem novas codificações, pois uma única
superfície parece ser adequada para todos os sistemas sígnicos... Na web
os signos escritos transformam-se em complexas cópias sígnicas. A
integração de diversos sistemas sígnicos anteriormente separados é
acelerada pelo computador.” (WENZ 2008: 259,260)
E nessas espessas hibridizações hipermidiáticas entre o sonoro, o
visual e o verbal, a fala, por sua vez, aparece como um “fluxo audível”, uma 43 A palavra escritura deriva do francês écriture, e para o filósofo contemporâneo Derrida (1930‐2004), se “constitui no jogo de diferenças que gera os processos de significação em qualquer forma de discurso, inclusive o falado, ao contrário do que concebe uma tradição lingüística e filosófica que considera a voz articulada ‐ em íntima conexão com a verdade da alma ‐ a origem da linguagem” (cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa). Sobre essa concepção de escritura, Derrida postula o surgimento de uma nova ciência, a gramatologia, que substituiria a semiologia proposta por Saussure. Nesse sentido, vale ressaltar que a Semiótica de Peirce cuida e vai muito além de todas as questões levantadas por Saussure e que escritura, num sentido amplo, pode ser considerada a capacidade humana de grafar linguagens, de quaisquer tipos, em quaisquer suportes, não se restringindo à linguagem verbal. No Dicionário Larousse Illustré (100º.ed), encontramos: écriture, do lat. scriptura: representação da palavra e do pensamento por signos gráficos convencionais; sistema de signos gráficos que permitem essa representação. Ainda nesse sentido, pode‐se citar Coulmas: “Ao invés de dar uma definição formal de escrita, discutamos três de suas características fundamentais: 1) ela consiste de marcas gráficas artificiais numa superfície durável; 2) seu propósito é comunicar algo; 3) esse propósito é alcançado em virtude da relação convencional entre as marcas e a língua (language).” (COULMAS 1989: viii)
127
camada intermediária entre a língua e os meios em que é transmitida,
fenômeno devido, em grande parte, ao aparecimento de diversos gadgets
(celulares, pagers, etc.) em que a Internet se tornou uma rede móvel, no
sentido de acompanhar seus usuários onde quer que eles estejam. Nesse
estreitamento entre fala e escrita, é a escrita que se enriquece de atributos
dinâmicos antes considerados propriedade exclusiva da fala.
“Pode-se concluir, a partir disso, que a fala nos aparece hoje como uma
camada intermediária, fluxo audível entre duas formas de escritura, a língua
à qual está prescrita..., de um lado, e, de outro, na superfície material dos
meios, oferecendo-se ao olhar, aparece a escritura fonética. Assiste-se,
assim, em ambos os lados, a uma formidável sublevação da escrita contra
qualquer exclusivismo e sobrevalorização da fala. Enquanto a lingüística e a
psicanálise adensam a exploração do traço e da letra nos interstícios da fala,
o surpreendente desenvolvimento dos meios de impressão e o advento de
novos suportes para a escritura alfabética vêm também, a seu modo,
reduzindo a pó as tradicionais oposições da riqueza vitalista da fala contra a
uniformidade tediosa da escrita.” (SANTAELLA e NÖTH 1999: 68,69)
Outra peculiaridade da linguagem verbal na hipermídia é aquela
concernente à liberação da escrita de sua função de suplemento da fala,
numa “corrupção da fonética”, temática de muitos trabalhos e
experimentações digitais44, na tentativa de expandir os limites tradicionais do
texto e da escrita:
“Uma zona de fricção entre a letra e a locução é estabelecida aí, indicando
um atributo radical da escrita eletrônica: a corrupção da fonética. Corrupção
esta que ocupa o centro do trabalho da australiana Marie-Anee Breeze ...
Definido pela autora como ‘network language system’, desenvolve uma
textualidade única, que mescla símbolos matemáticos, códigos de
programação e a iconografia da Web, cujo objetivo poético é criar, via Rede,
uma escritura em camadas...” (BEIGUELMAN 2003: 46)
44 “O premiadíssimo I/O/D é não só referencia obrigatória nessa discussão, mas um marco histórico. Programa de visualização das informações da Web, lançado em 1997, e que já está em sua quarta versão, transforma as palavras em diagramas dinâmicos.” (BEIGUELMAN 2003: 69)
128
Depreende-se dessas experimentações a constatação de que os
meios eletrônicos são mais do que receptáculos de conteúdos textuais e
hipertextuais, “esses suportes são contextos de leitura nos quais as
significações se constroem” (BEIGUELMAN 2003: 35), onde “implode-se” a
horizontalidade da linha e a fixidez da diagramação numa rede mundial
“fundada numa tecnologia da escrita que se rebela contra sua função de
inscrever”, simplesmente (BEIGUELMAN 2003: 36). Como nos diz Leão
(2005: 111), os meios eletrônicos oferecem “um espaço dilatado para a
escritura, que se propaga em diversos sentidos, ‘multidimensional’, sem
limites predefinidos”.
Apesar de todas essas inovações, críticas45 têm sido feitas a respeito
da estrutura da Internet ainda simular o aspecto hierárquico organizacional do
códex, além da aparência do papel que ainda subsiste em muitas de suas
interfaces, resultando num formato ainda bastante linear se consideradas as
possibilidades que as novas tecnologias disponibilizam.
“É o não-reconhecimento dessas especificidades [das novas tecnologias] o
que explicaria a preponderância do formato linear da Internet, podendo-se
dizer que a grande parte do conteúdo hipertextual disponível não passe
ainda de uma massa de textos e imagens clicáveis que reitera as
convenções formais de organização do volume impresso, trocando, na velha
divisão do índice em capítulos, a referência ao número da página pelo link.”
(BEIGUELMAN 2003: 68)
Fica claro, desse modo, que a hipermídia ainda é uma tecnologia em
desenvolvimento, passível de grandes mudanças tanto estruturais quanto em
sua aparência, e que no futuro, será imperioso pensar modelos de
45 “Os paradigmas fundamentais do mundo da computação são simplesmente tradições. Os princípios básicos do computador, tal qual os ensinamos, dizem respeito a convenções e não à realidade. Os computadores hoje, basicamente, simulam duas coisas: hierarquia e papel. A hierarquia foi cuidadosamente colocada na estrutura dos arquivos do computador porque os que assim o fizeram consideraram‐na correta, natural e a única forma. O papel foi também simulado na estrutura dos computadores porque parecia correto, natural e a única forma. Acredito que ambas são formas de aprisionamento que constrangem e distorcem o nosso trabalho e nosso pensamento. (...) Desse modo, esses dois formatos glorificam a aparência em detrimento da administração do fluxo de conteúdo ...(NELSON apud BEIGUELMAN 2003: 67)
129
hipertextualidade para além dos paradigmas da cultura impressa
(BEIGUELMAN 2003: 66) em estruturas não-hierárquicas e em um ambiente
que não simule o papel, de forma a dar conta do rompimento das noções de
página e volume (Idem 2003: 77).
Seria, dessa forma, ingenuidade pensar que o advento dessas novas
formas midiáticas da escrita permitem, por si só, novos exercícios de autoria
(BEIGUELMAN 2003: 54), sendo necessário levar suas conseqüências para
além da mera utilização dos diversos tipos de mídias embutidas em seus
códigos, iniciando a reflexão sobre como “criar sentido” ao invés de
simplesmente “distribuir conteúdo” nessas novas tecnologias da escrita.
No entanto, por tudo que ela já possibilitou à exploração do potencial
da escrita, a escrita hipermidiática já é chamada de e-escrita, ou escrita em
meios eletrônicos, em função de características singulares que se
diferenciam de todas as modalidades que a precederam.
“Brotando da convergência fenomenológica de todas as linguagens, a
hipermídia significa uma síntese inaudita das matrizes da linguagem e
pensamento sonoro, visual e verbal com todos os seus desdobramentos e
misturas possíveis. Nela estão germinando formas de pensamento
heterogêneas, mas, ao mesmo tempo, semioticamente convergentes e não
lineares, cujas implicações mentais e existenciais, tanto para o indivíduo
quanto para a sociedade, estamos apenas começando a apalpar.”
(SANTAELLA 2001: 392)
6. ICONICIDADE DA ESCRITA EM AMBIENTES HIPERMIDIÁTICOS
Uma das grandes mudanças que se apresentam na reconfiguração da
escrita é sua crescente iconicidade, daí acreditarmos que a investigação da
escrita hipermidiática como sistema em constante intercâmbio com seus
suportes (sistema ambiente) abre novos caminhos na compreensão dos seus
processos evolutivos. Assim, embora este tópico sobre iconicidade também
pertença à discussão da natureza semiótica da escrita, é sua conexão com
as funções sistêmicas e o sistema ambiente que abordaremos aqui.
130
Os sistemas de escrita contam com regras mais ou menos flexíveis
que determinam sua utilização. Mas para que se mantenham eficientes, face
às constantes mudanças por que passam as condições em que são
utilizados, eles devem se adaptar ao ambiente e às suas transformações.
Isso significa que todo sistema de escrita é aberto, dinâmico, passível de
modificações a despeito de todos aqueles que tentam “cristalizá-lo” em
gramáticas e dicionários dos mais variados tipos. Dito de outro modo, um
sistema de escrita, como qualquer outro sistema, precisa evoluir para
permanecer, adaptando-se ao meio ambiente que o envolve e aos diferentes
usos e necessidades dos seus usuários. No caso da escrita, parece-nos
evidente como a mudança na natureza dos seus suportes geraram a
necessidade de sua evolução adaptativa. O próprio Saussure destaca as
constantes mudanças a que o todo da linguagem verbal está submetido:
“A língua - e esta consideração sobreleva todas as demais - é, a cada
momento, tarefa de toda a gente; difundida por u’a massa e manejada por
ela, é algo de que todos os indivíduos se servem o dia inteiro. (...) da
língua... cada qual participa a todo instante e é por isso que ela sofre sem
cessar a influência de todos.” (CLG 88)
Interessante notar, nesse esforço adaptativo da linguagem verbal na
hipermídia, a quantidade de conteúdo imagético que se infiltra nos textos, nas
mais diversas modalidades, o uso de caracteres de natureza icônica cada
vez maior, bem como a diagramaticidade da escrita que se processa nesses
meios hipertextuais.
Segundo aponta Michael Shapiro, autor da teoria semiótica das
mudanças lingüísticas, a evolução da linguagem verbal caminharia para uma
maior iconicidade diagramática.
“Na teoria semiótica das mudanças lingüísticas (language change), a
evolução da língua em direção a uma maior adequação entre forma e
conteúdo e rumo a paradigmas mais coerentes e completos tem sido
interpretada como um movimento em direção a uma maior iconicidade
diagramática.” (NÖTH 1999:615)
131
Esse aumento de iconicidade que pode ser observado e que não se
restringe somente à sua forma diagramática, parece estar ligado à demanda
por uma maior eficiência do sistema de escrita nesses suportes, que tenderá
a complexificar-se para atender às diversas novas necessidades que as
características também cada vez mais complexas dos ambientes
hipermidiáticos impõem.
Nesse sentido podemos observar uma ativação da “função memória”
do sistema, através da qual todo sistema se vale de sua “experiência”
passada, para garantir sua autonomia face a transformações nos demais
sistemas com os quais mantém intercâmbios, e dessa forma, assegurar sua
permanência (sobrevivência) no futuro. Como vimos no capítulo III, a função
memória de um sistema tem um caráter histórico, conectando o presente do
sistema ao seu passado.
A escrita surgiu embasada por todos os desenvolvimentos
pictográficos prévios da humanidade, que fala há mais ou menos 50.000
anos, desenha há pelo menos 35.000, e escreve somente há cerca de 5.000.
É nesse sentido que vislumbramos um estoque sígnico de natureza icônica
na escrita, que tendo sido separada de seu caráter imagético com o advento
do alfabeto, agora ressurge, novamente híbrida de propriedades de imagem,
som e texto, ressaltando aspectos importantes de sua trajetória que talvez
tenham sido negligenciados na Era de Gutemberg.
“De fato, se considerarmos o vasto papel que a imagem desempenhou na
escrita em geral (pinturas rupestres, escrita chinesa, hieroglífica etc.) a era
do códex pode ser considerada como um período aberrante quando o texto e
a imagem foram temporariamente isolados um do outro.” (SANTAELLA
2004a:166)
Mudam os suportes, as necessidades, e como qualquer sistema, a
escrita precisa evoluir para continuar a cumprir suas funções dentro de novos
contextos. A iconicidade do sistema de escrita, ou seja sua semelhança com
os objetos representados por seus signos (segundo o conceito peirceano de
132
ícone, ver capítulo I), foi o ponto de partida de seu surgimento e agora parece
ser a característica que mais está se complexificando para que o sistema
consiga manter a ponte com o real necessária à sua permanência.
A escrita deve captar em sua malha sígnica características das três
entidades: fala, língua e linguagem, além de ser adaptável ao meio ambiente
que a envolve, sensível às variações externas, sejam elas de que natureza
forem, culturais, científicas, históricas, geográficas, políticas, entre tantas
outras, garantindo, assim como um sistema vivo, o grau de coerência com o
real necessário à sua eficiência, e portanto, à sua permanência, à sua
continuidade. Nesse sentido, a escrita parece estar se complexificando para
corresponder a uma nova visão do real:
“Contudo, no pensamento científico contemporâneo, começa a emergir a
noção de um multiverso, a ‘n’dimensões, suportado por uma teoria de
mundos paralelos. Como exprimir lingüisticamente uma tal visão
multifacetada do Real? O cibertexto, na sua multiplicidde variacional
intrínseca, parece constituir de certo modo uma estrutura textual homóloga
do modelo de um multiverso.” (BARBOSA 2009: 357)
Interressante notar, neste ponto, a quantidade de “línguas mortas” que
existem, sistemas que deixaram de exercer um intercâmbio dinâmico com o
ambiente em que eram utilizados. É nesse sentido que um sistema de escrita
deve estar pronto para adaptar-se às imposições do real, do existente,
daqueles fatores que insistem e persistem a despeito do que possamos deles
pensar. Todo sistema precisa entrar em certa isomorfia semiótica com o real,
utilizando-se dessa informação para nele subsistir. É essa a reconfiguração
pela qual, hoje, a escrita passa, nos mais diferentes níveis.
“Parece inegável, principalmente através do conceito de Umwelt [ambiente],
que o semioticamente real tem suas raízes em aspectos do real: nossa
percepção e, de maneira geral, nossa cognição, contêm mapas iso ou
homomórficos com a realidade, pois se assim não fosse os sistemas vivos
não sobreviveriam, não conseguiriam atingir os graus de coerência com o
real necessários para a permanência.” (VIEIRA 1999: 155)
133
Tanto a iconicidade imagética, diagramática e metafórica, quanto a
mutidimensionalidade da escrita hipermidiática, que nada mais é que uma
iconicidade (isomorfia) em relação ao real, cumprem a função de adaptar o
sistema de escrita ao sistema ambiente, seja ele o suporte em que ela se
desenvolve ou ainda a própria concepção do real, que vai se aprimorando
para refleti-lo com crescente acuidade.
É esse real, peirceanamente definido, e que Saussure chama de
tempo, que se impõe, fruto da conjunção das mais diversas variáveis, tanto
aquelas que não apreendemos totalmente, como daquelas que percebemos
e de tantas outras sobre as quais não temos como intervir. Saussure, apesar
de distante dos conceitos de legissigno, evolução e continuidade, tão bem
definidos por Peirce, bem como dos conceitos de sistema e ambiente tão
presentes na ciência contemporânea, percebeu todas essas nuances ao
observar a imutabilidade e mutabilidade do signo nesta passagem
memorável:
“O tempo, que assegura a continuidade da língua, tem um outro efeito, em
aparência contraditório com o primeiro: o de alterar mais ou menos
rapidamente os signos lingüísticos e, em certo sentido, pode-se falar, ao
mesmo tempo, da imutabilidade e mutabilidade do signo.
Em última análise, os dois fatos são solidários: o signo está em condições
de alterar-se porque se continua. O que domina, em toda alteração, é a
persistência da matéria velha; a infidelidade ao passado é apenas relativa.
Eis porque o princípio de alteração se baseia no princípio de continuidade.
(...) Isso se vê bem pela maneira por que a língua evolui; nada mais
complexo: situada, simultaneamente, na massa social e no tempo, ninguém
lhe pode alterar nada e, de outro lado, a arbitrariedade de seus signos
implica, teoricamente, a liberdade de estabelecer não importa que relação
entre a matéria fônica e as idéias. Disso resulta que esses dois elementos
unidos nos signos guardam sua vida, numa proporção desconhecida em
qualquer outra parte, e que a língua se altera, ou melhor, evolui, sob a
influência de todos os agentes que possam atingir quer os sons, quer os
significados. Essa evolução é fatal; não há exemplo de uma língua que lhe
resista. (...)
134
A continuidade do signo no tempo, ligada à alteração no tempo, é um
princípio de Semiologia geral; sua confirmação se encontra nos sistemas
de escrita ...
As causas da continuidade estão a priori ao alcance do observador; não
ocorre o mesmo com as causas de alteração através do tempo. ... o tempo
altera todas as coisas; não existe razão para que a língua escape a essa lei
universal.” (CLG 89-91, grifos nossos)
Suassure afirma ainda, não ser ele próprio bastante claro em relação à
necessidade das mudanças (CLG 91) em função de não distinguir “os
diferentes fatores de alteração”. Essa tarefa a teoria sistêmica parece cumprir
com clareza. Quanto à natureza das transformações, é a teoria peirceana
que nos dá o norte. Além disso, é impressionante a similitude entre o
vocabulário de Saussure e o de Peirce, especialmente se observarmos que
suas teorias vêm de fontes tão distintas. Mais uma vez aqui, confirmamos o
que Peirce postulou sobre o real que se impõe, num caminho assintótico,
rumo à verdade (ver capítulo I).
135
Capítulo 5 - RECONFIGURAÇÃO DA ESCRITA: NOVAS GRAFIAS
“Ninguém pode se tornar um homem de letras, como se diz,
sem reconhecer sua aparência, bem como seu som e suas várias notações.”
Jonathan Williams (1967 in Solt 1969: 85)
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Esta parte final do presente trabalho, e que se constitui também em
um dos objetivos principais desta pesquisa, visa a analisar teoricamente as
transformações pelas quais passa a escrita no ambiente hipermidiático.
Todas as transformações a que hoje assistimos foram sendo gestadas
lentamente, no decorrer da história da humanidade, que aprendeu a
desenhar antes de escrever, desenvolveu sua sensibilidade e capacidade
representativa nos mais diversos suportes, técnicas e linguagens,
culminando, no século XX, com a criação uma avalanche de novas mídias
que se sucederam incessantemente até o advento da hipermídia, às
vésperas do século XXI. O código alfabético, portanto, recebeu e processou
todos esses fluxos de informação.
“Com o crescimento e sofisticação da imprensa e da publicidade, a partir do
início do século, novos campos de possibilidades, no tamanho e variação
dos tipos gráficos e no uso substantivo do espaço, foram se abrindo rumo à
exploração da natureza plástica, imagética, do código alfabético. Mais
revolucionária, no entanto, seria a recente introdução desse código nos
meios eletrônicos. Desde o videotexto, com a lenta varredura das letras em
luz-cor, até a chegada dos computadores pessoais e domésticos, ‘recursos
antes restritos aos profissionais do design gráfico, técnicos em tipografia ou
em fotocomposição, complicados de usar ou com alto custo de produção se
ampliaram e deixaram de ser obscuros para qualquer usuário...’ Além disso,
já nos meios gráficos, impressos, também se assistia ao desabrochar de
uma nova linguagem híbrida, entretecida nas misturas entre a palavra e a
imagem diagramática e fotográfica. Agora, com a nova geração de designers
gráficos que se deliciam na manipulação das letras, palavras, configurações
136
e desenhos nas telas informatizadas movidas a luz e cores que se
multiplicam ao infinito, esse código híbrido já preenche todas as condições
para se tornar dominante.” (SANTAELLA e NÖTH 1999: 68,69)
Para as análises que se pretendem neste estudo, deve ficar claro, no
entanto, que identificar um signo classificando-o dentro de uma tipologia não
demonstra, automaticamente, o modo ou o motivo pelo qual ele assumiu
essa configuração dentro de um determinado contexto, nem tampouco
determina, necessariamente, quais mudanças se seguirão na continuidade
do processo de semiose.
Serão utilizadas, primeiramente, as classes de signos elaboradas por
Peirce que foram explicitadas no capítulo I. Embora essa abrangente
classificação de signos possa ser considerada suficiente para dar conta da
maior parte dos desafios que a escrita apresenta atualmente, como já
dissemos, elas se constituem em conceitos altamente abstratos e cujo
instrumental teórico pode e será complementado pelos tipos de signos dos
sistemas de escrita apresentados no capitulo III, que enfocam atributos
sígnicos específicos da escrita, e cuja compreensão, acreditamos, pode
apontar possíveis caminhos pelos quais a escrita venha a se desenvolver.
Os exemplos a serem analisados foram selecionados pelo critério da
freqüência com que são utilizados, ou seja, foram escolhidos os tipos mais
representativos das transformações mais usualmente observadas, por
acreditarmos que esse critério adéqua os exemplos aos objetivos que guiam
a pesquisa, e por acreditarmos, igualmente, que sua seleção e análise
poderão contribuir para a compreensão teoricamente fundada das
transformações da escrita na hipermídia.
Ao longo da pesquisa de casos práticos, tanto na Internet como no
livro de David Crystal, “Txtng the gr8 db8” 46, que lista exemplos de mais de
dez línguas diferentes, inclusive orientais, como o chinês, foi possível
46 O livro de Crystal lista exemplos em inglês, chinês, tcheco, holandês, finlandês, francês, alemão, italiano, português, espanhol, sueco e galês (2008: 189‐229, apêndices A e B), além de fornecer endereços na web para busca de exemplos em outras línguas.
137
observar que a escrita hipermidiática, em todos os países e culturas onde é
usada, sofre grande influência do inglês, que como nos diz Chartier, foi
transformado numa espécie de língua franca eletrônica, cujos procedimentos
de simplificação da gramática, de invenção de palavras e de multiplicação de
abreviaturas são usados de forma semelhante por outras línguas, embora
isso não signifique o desaparecimento das características próprias de cada
uma delas.
“De uma forma mais encoberta do que no caso das línguas inventadas no
século XIX, o inglês, transformado em “língua franca” eletrônica, é uma
espécie de língua nova que reduz o léxico, simplifica a gramática, inventa
palavras e multiplica abreviaturas (do tipo I you).” (CHARTIER 2002: 17)
Outra característica observável, e que se deve, por um lado, ao forte
conteúdo icônico dessas novas grafias, e por outro, ao crescente uso de
signos semográficos, é a de que essas novas formas têm algo de língua
universal, que procura expressar o pensamento humano de maneira não-
verbal, supra-lingüística. Como bem ressalta Chartier,
“Por um lado, o texto eletrônico reintroduz na escrita alguma coisa das
línguas formais que buscavam uma linguagem simbólica capaz de
representar adequadamente os procedimentos do pensamento. (...)
É o caso da invenção dos símbolos, os emoticons, como se diz em inglês,
que utilizam de maneira pictográfica alguns caracteres do teclado
(parênteses, vírgula, ponto e vírgula, dois pontos) para indicar o registro de
significado das palavras: alegria:-) tristeza :-( ironia ;-) ira :-@... ilustram a
procura de uma linguagem não-verbal e que, por essa mesma razão, possa
permitir a comunicação universal das emoções e o sentido do discurso.”
(CHARTIER 2002: 16,17)
Se no início, o computador cumpria muitas das funções que eram
realizadas em papel, com o desenvolvimento de toda uma geração de
gadgets para a comunicação interpessoal, a e-escrita assumiu uma forma de
oralidade que até então pertencia exclusivamente à fala. Até o advento
desses aparelhos, fala e escrita estavam separadas por limites mais ou
138
menos definidos, ao passo que hoje se encontram lado a lado em chats, e-
mails, messagers, etc.
Em conseqüência, o conceito de economia no que diz respeito ao
código alfabético também passa por transformações. O alfabeto romano tem
sido considerado uma ferramenta extremamente econômica em função de
seu número limitado de caracteres possibilitar uma quantidade quase infinita
de combinações. Essa economia sígnica foi sem dúvida de grande valia em
diversos aspectos, entre os quais, a divulgação do alfabeto nos seus
primórdios e a aprendizagem da escrita por um maior número de pessoas e
culturas. No entanto, na hipermídia, já não é a economia da quantidade de
caracteres que conta, mas sim a economia de tempo, a velocidade e a
facilidade de digitar o texto escrito, necessidades que se impõem mais a cada
dia.
2. PRECURSORES
Na poesia encontramos a linguagem verbal elevada à sua potência
máxima, pela tentativa de expressar a miríade de sentimentos, emoções,
sonhos e desejos humanos. Por esse motivo, nela encontram-se os
precursores na exploração das potencialidades sígnicas da palavra. Tanto ao
longo da história, como agora, com o advento da hipermídia, são os artistas e
poetas os responsáveis pela exploração estético-vanguardista dos novos
suportes da escrita.
“Ao longo da história humana, todas as vezes que houve mudanças no
suporte da escrita, foram os artistas e poetas que tomaram a dianteira na
exploração de seus potenciais para a criação. Na continuidade dessa
tradição, hoje são os artistas e poetas que estão extraindo das novas mídias
características inéditas da escritura, tanto no nível da aparência da escrita
quanto no nível de seu sistema de codificação interno.“ (SANTAELLA,
2007a: 333)
Os artistas, verdadeiros faróis da humanidade, sempre demonstraram
essa capacidade de expandir nossos horizontes sígnicos em movimentos
artísticos que propunham investigar as potencialidades latentes dos mais
139
diferentes tipos de linguagens. No que tange à palavra escrita, Pignatari nos
diz que uma verdadeira “ideografia ocidental” foi inaugurada no século XX,
expressão que traduz com clareza muitas das transmutações que se
processam atualmente na sua codificação:
“Nos fins do século passado e começos do presente, a palavra escrita
impressa havia atingido o ponto máximo de sua curva ascendente, enquanto
meio hegemônico de comunicação de massa, e algumas de suas
manifestações (como o cartaz publicitário e o Un coup de dés) já eram
índices de que ela estava inaugurando um novo mundo da codificação - o
moderno mundo da ideografia ocidental.” (PIGNATARI 1979: 84)
Dessa forma, os séculos XIX e XX foram férteis em explorações
espaciais, gráficas e tipográficas inovadoras, e muitos artistas e poetas
poderiam ser citados como precursores ou, melhor ainda, como exploradores
de vanguarda das potencialidades sígnicas do conjunto de sistemas
verbivocovisual de que se vale a linguagem verbal para expressar-se. Na
impossibilidade de citá-los todos, alguns deles são: Edgar A. Poe (1809-
1849), Stéphane Mallarmé (1842-1898), Machado de Assis (1839 - 1908),
Guillaume Apollinaire (1880-1918), James Joyce (1882-1941), Vicente
Huidobro (1893-1948), e.e.cummings (1894-1962) e Ezra Pound (1885-
1972), e o movimento da poesia concreta. A seguir examinaremos alguns
exemplos mais detalhadamente.
2.1. Edgar Allan Poe
A obra de Poe (1809-1849) inspirou três dos maiores poetas
franceses: Baudelaire, Mallarmé e Valéry. Escritor, jornalista e tipógrafo,
utilizou em seus contos procedimentos de linguagem que operam sobre a
própria materialidade dos signos verbais.
Uma grande obsessão de Poe foram os processos de espelhamento e
reversão dos signos. No famoso poema The raven, a estrofe que diz: “Quoth
the raven, "Nevermore!"”, se repete diversas vezes no poema. Raven, que
significa corvo em inglês, é um anagrama de never (nunca), a palavra que o
140
corvo repete insistentemente. Em O escaravelho de ouro, o personagem
William Legrand vai morar sozinho numa ilha chamada Sullivan Island, que
possui quase todos os fonemas do nome do personagem.
“Trata-se de uma espécie de manuseio que se processa na medula da
maquinaria combinatória dos fonemas e estruturas lingüísticos, produzindo
jogos fônicos e sintáticos os mais diversos (figuras de som e sentido ou de
forma e sentido) que, em Poe, vão apresentar como constante aquilo que
poderia ser chamado de obsessão pelos processos de inversão ou reversão
do signo sobre si mesmo. (...) E, em termos sonoros, trata-se... [de]
interações, junturas e revérberos de som e sentido, onde a poesia
continuamente instala os seus parentescos e afinidades eletivas entre
significante e significado, contestando, pelo menos em seu domínio
específico, o postulado saussuriano da arbitrariedade do signo lingüístico. É
infinito o número desses procedimentos em Poe...” (SANTAELLA 1986:
179,180)
Sob a luz da semiótica, acreditamos que a influência de Poe foi tão
grande devido ao fato dele saber tão bem que o verbal pode se expressar
também de formas icônicas e indiciais, que se encontram encapsuladas no
simbólico, e que ao serem evidenciadas, tecem “malhas pluralistas de
linguagem” em operações intersemióticas.
“... consideramos, ao contrário (para sermos mais fiéis às operações
intersemióticas), que o próprio E. A. Poe sabia muito bem que o verbal não
precisa sair de si mesmo para encontrar outros códigos, pois os níveis
icônicos e indiciais (formas, imagens, desenhos, diagramas, pegadas,
bússolas de orientação...) já se encontram encapsulados, embutidos no
próprio verbal. Poe vira, na realidade, o verbal pelo avesso, desentranha-o,
desnuda-o, fazendo aflorar as camadas não-verbais em igualdade de direitos
e numa convivência democrática com o verbal, criando tecidos híbridos e
espessos, malhas pluralistas de linguagem.” (SANTAELLA 1986: 183)
Um fato inusitado merece destaque: Poe chegou mesmo a inspirar
Peirce (1839-1914), que ensaiou criativamente experimentos no campo da
“arte quirográfica” (MS 1.539), “enriquecendo de novas dimensões a palavra
escrita e sugerindo novas correspondências aos níveis falado e sonoro”, que
141
como bem comenta Pignatari, mostram que “na mente e sensibilidade de
Peirce, coerem teoria e prática”:
“trata-se de algo assim como iluminuras expressionistas, que vão tecendo
comentários não-verbais ao poema O corvo, de Poe... e a um texto que me
parece a abertura de um salmo (“Estranhas coisas se murmuram de ti, Sião,
cidade de nossa rainha”)...
As aparentes garatujas introduzem no poema, ou melhor, extraem dele
ícones interpretativos, transcodificando-o em outro nível semiótico por meio
de acidentes e ligaduras que conferem ao todo estranhas vibrações. As
palavras e versos se ligam mediante uma sintaxe visual direta sobreposta à
sintaxe verbal e à sintaxe analógica (correspondências sonoras e grafo-
tipográficas) inerentes ao poema. Certos traços, como que interrogativos,
ficam suspensos no vazio, pensamento não-verbal; palavras e grupos de
palavras se associam iconicamente em relações visuais novas. Ícones de
terror vibram, além do verbal: novos significantes icônicos para os
significantes verbais.” (PIGNATARI 1979: 52)
À esquerda, o poema de Poe em que Peirce fez as intervenções quirográficas (in BRENT
1998: 330). À direita, o salmo submetido ao mesmo experimento, publicado em negativo (in
PIGNATARI 1979: 51).
142
2.2. Stéphane Mallarmé
Poeta francês, Mallarmé (1842-1898) participou do movimento
simbolista, e promoveu uma renovação da poesia na segunda metade do
século XIX, sendo que sua obra caracteriza-se pela experimentação
gramatical e espacial da língua. Un coup de dés (1897), um de seus poemas
mais conhecidos, é composto de versos livres e tipografia revolucionária,
tendo sido de importância seminal para o movimento da poesia concreta,
pelo caráter diagramático da linguagem verbal que buscou evidenciar:
“os poetas concretos compreenderam como poucos que o Lance de dados
transpôs o limiar da escrita ocidental como mero desenho do som para uma
indagação aberta no seio do possível e impossível da escritura. Em virtude
disso, o aspecto visual do poema de Mallarmé é apenas uma conseqüência
superficial de uma revolução mais visceral que aquilo que os olhos podem
perceber. A questão mallarmeana diz respeito a outro tipo de visualidade, a
visualidade estrutural ou diagramática. Toda grande poesia, mesmo oral, e
principalmente a música (não por acaso foram as sinfonias que inspiraram
Mallarmé), é portadora dessa visualidade que só pode ser sentida na
sincronicidade dos sentidos. Trata-se dos diagramas internos, fluxos e
refluxos das analogias, força de atração e repulsão das semelhanças e
diferenças, energias do tempo e do espaço, tudo isso configurado nas
malhas da linguagem, o que tem muito pouco que ver com o visual
meramente ótico.” (SANTAELLA 2007: 341)
2.3. Poesia concreta
A poesia concreta impôs-se como a expressão mais viva e atuante da
vanguarda estética brasileira a partir dos anos 50. O grupo formado por Décio
Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, foi quem deu o pontapé
inicial na exploração da sintaxe espacial e verbivocovisual da palavra, que
teve representantes em muitos outros países.
Os trabalhos são regidos pela idéia de extrema condensação,
ocupando a página com uma diagramação calculada que procura, para além
da sintaxe tradicional das palavras, outras articulações e um ritmo mais
propriamente plástico. Os textos são compostos especialmente pela
143
fragmentação e/ou fusão de palavras, com exploração da tipografia e das
diferentes cores em que são impressas as palavras de um mesmo poema.
Os poemas caracterizam-se pela sua natureza experimental, fruto da procura
constante de novas soluções de linguagem.
Precisamente neste aspecto, é que a poesia concreta pode ser
considerada como precursora das transmutações da escrita que hoje se
processam, já que seus procedimentos buscam atingir e explorar as camadas
materiais do signo: o som, a letra, a linha, a superfície da página, a cor, a
tipografia, e, por isso, levam a comunicação dos sentidos a se perfazer no
nível da própria estrutura verbo visual.
“A poesia Concreta posicionou-se como uma poética da objetividade,
tentando, simplesmente, posicionar suas premissas nas raízes da linguagem,
com a intenção de criar novas condições operacionais para a elaboração de
um poema na esfera da revolução tecnológica. Tecnicamente, os poetas
concretos podem ser distinguidos de seus antecessores pela radicalização e
condensação dos meios de estruturar um poema, no horizonte dos meios de
comunicação da segunda metade do século. Isso implica, entre outras
características, no seguinte... explicitar a materialidade da linguagem nas
suas dimensões visual e sonora; passagem entre os níveis verbal e não-
verbal.” (AUGUSTO DE CAMPOS apud FRANK 2004: 155, grifos nossos)
Em função da poesia concreta ter se desenvolvido no seio da
revolução tecnológica do século XX, muitos de seus poemas serviriam de
exemplo no presente estudo. Três deles, no entanto, merecem destaque pela
forma como antecipam usos que hoje se desenvolvem na hipermídia.
O primeiro é um poema que explora a iconicidade de alguns sinais que
estão presentes nos teclados dos computadores, e que igualmente se
encontravam nas máquinas de escrever. Ele aparece citado por Solt
(1969:85) e pode ser considerado um precursor, um verdadeiro “avô” dos
emoticons, pois a cada estrofe, sinais e letras vão formando a expressão
facial de um sorriso. Seu autor, o poeta concreto norte-americano Robert
Creeley, enviou-o numa carta a Jonathan Williams, outro poeta concreto, em
144
1954, e após mencionar seu título “Hi There!” acrescentou uma nota
desconfiada: “Talvez eu esteja ficando louco?”. Williams comenta que o
poema é um dos menos conhecidos do autor, e que recebê-lo foi um deleite,
abrindo um novo mundo de possibilidades para ele.
O segundo são os Poemóbiles (1968, 1974) de Augusto de Campos e
Julio Plaza, um livro com doze poemas em folhas soltas que rompem a
bidimensionalidade da escrita, tornando-se tridimensionais por meio de
cortes, dobraduras e montagens no papel.
“Poemóbiles são coreografias de formas e cores que se atualizam à medida
que o leitor movimenta as páginas duplas de um livro desamarrado. Ao abrir
cada uma das páginas soltas, as cores-formas vão surgindo como palavras,
combináveis, recombináveis, livres no ar, entre os brancos, vazios do
espaço. Sem deixar de ser palavra, a palavra salta de leito plano sobre o
papel e passa a existir como corpo volumétrico que se mexe como coisa
viva.” (SANTAELLA 2007: 344)
145
Fotos: página de abertura de Poemóbiles e alguns poemóbiles abertos 47.
Outro poema que merece destaque é o de Philadelpho Menezes
(1991), que de forma original descobre, no negativo da foto do número
612309 em uma calculadora, a palavra POESIa. Nas análises do capítulo V
veremos como números e letras se aproximam na hipermídia de formas
antes inimagináveis.
47 Fotos disponíveis em http://www2.uol.com.br/augustodecampos/poemobiles.html (março/2011).
146
2.4. E-poetry
Na e-poetry ou e-poesia, também chamada de ciberpoesia e
infopoética, os autores se valem das possibilidades do hipertexto para
reconfigurar completamente a linguagem, fugindo de sua dimensão linear.
Todas as possibilidades que foram exploradas até então, parecem simples
ensaios se comparadas aos recursos tecnológicos disponibilizados pela
confluência das mídias. Antônio Risério, antropólogo, poeta e ensaísta
mostra como essas novas formas escriturais se insubordinam perante a
escrita alfabética, recorrendo a toda uma gama de dispositivos extralineares
para festejar a liberdade dimensional da linguagem:
“Os textos produzidos a partir dessas formas escriturais - trazendo-nos à
lembrança, aqui e ali, antigas inscrições chinesas, egípcias e astecas -
escapam ou destoam, como já disse, de uma tradição milenar, desenho
histórico que vem dos embriões mesopotâmicos da escrita ou, se preferirem
passar ao largo dos sinais sumero-acadianos, dos primeiros alfabetos
consonantais e vogais da Fenícia e da Grécia, respectivamente. Tal
insubordinação gráfica diante da fonetização da escrita e da imposição
cultural da Ordem Alfabética - recorrendo a toda uma gama de dispositivos
extralineares de inscrição textual, quando figura e letra se co-ordenam numa
configuração sígnica peculiar, ou a própria letra vem a ser submetida a
operações pansemióticas -, engendra assim uma poesia que quer, procura,
afirma e festeja a liberdade dimensional da linguagem. Graças a essa
irrupção contra a rigidez foneticista, contamos hoje com uma produção
textual criativa que reflete, expressa e critica a realidade sígnica global da
sociedade contemporânea.” (RISÉRIO 1998: 163)
Risério, ao examinar o impacto do uso das tecnologias computacionais
sobre a poética em contextos digitais, ou ainda, “na práxis escritural
contemporânea” como ele a chama, enumera três principais características:
1º) A possibilidade de articulação conjunta na composição textual das
representações icônicas e simbólicas, no sentido peirceano dos termos.
147
Essa é uma característica que na escrita, se apresenta com bastante
freqüência nos links e hiperlinks, onde ao clicar-se numa palavra, temos as
imagens e sons a elas associadas:
“De saída, a possibilidade da articulação, numa composição textual, do
conjunto ícone/símbolo, no sentido semiótico desses termos. Vale dizer,
ícone=representação analógica do objeto, como um desenho realista ou uma
fotografia; símbolo=representação arbitrária, socialmente instituída, como no
caso da palavra.” (RISÉRIO 1998: 159)
2º) A possibilidade de iconização da própria escrita, através da adaptação de
elementos infra-vocabulares ao significado (semantização) que se quer
transmitir:
“Em segundo lugar, a possibilidade de iconização da própria escrita e de
semantização de elementos infra-vocabulares, graças ao bombardeio,
icônico ou não, da letra. No caso, as próprias relações óticas dos signos
entre si, numa determinada mensagem poética, podem propiciar tal
semantização.” (RISÉRIO 1998: 159)
3º) E por último, a quebra da linearidade da escrita, que está baseada em sua
função de reprodução da fala, e de sua respectiva linearidade no tempo.
“Por fim, o fato desses e de outros processos escriturais concorrerem para
uma superação do modelo (ou da norma) linear da escrita fonética, que
durante séculos dominou, de modo incontestável, a paisagem textual do
Ocidente.” (RISÉRIO 1998: 159)
A natureza semiótica desses procedimentos foi em grande parte
analisada no capítulo II, sendo que no contexto poético, digital ou não,
Risério nos esclarece como eles são levados a efeito, levando à
conseqüência última da quebra de linearidade da escrita alfabética. A
passagem a seguir é inspiradora, seminal, e merece ser transcrita para a
compreensão de como os processos artísticos estiveram envolvidos na
exploração do que hoje se tornam usos cada vez mais comuns da escrita:
“Com a caligrafia, a letraset ou o computador, pode-se investir a própria letra,
elemento básico do símbolo, de uma função icônica - criar uma relação
148
fundamental, um nexo semiótico, entre a fisionomia da escrita e a dimensão
referencial do símbolo. Nesse particular, a escrita terá sido investida de um
duplo valor, ao mesmo tempo fonético e icônico, escrita fono-ideogramática.
Teremos assim, em todos esses casos, e em muitos outros mais, criações
que podem ser definidas, semioticamente, como textos icônico-simbólicos,
nos quais é possível fazer, ainda, intervenções indiciais (um signo é indicial
sempre que há, entre ele e o que ele representa, contigüidade física) - uma
impressão digital numa foto montagem, por exemplo. Como se insistirá
adiante, esses textos icônico-simbólicos remetem para a mesma questão
escritural - são textos que não se contentam, expressivamente, com a
linearização alfabética.
Quando me referi acima à iconização do próprio símbolo, ao valor
‘fisionômico’ que a letra pode adquirir em determinado conjunto textual,
compondo assim uma escrita picto-fonética, eu já estava entrando, na
verdade, no campo antes mencionado da semantização de elementos infra-
vocabulares. Uma letra é uma letra é uma letra. Aqui, o poeta não apenas
cria estruturas em que o símbolo é colocado em relação direta com outros
espécimes sígnicos. Ele atua no espaço da própria inscrição simbólica.
Sobre a forma material da palavra, ou sobre a fisicalidade da letra. E
consegue, assim, carregar de sentido um elemento de uma palavra. Por
exemplo: se gravo uma palavra num determinado tipo e numa determinada
cor, posso, adiante, usar metonimicamente, sua letra inicial por ela - a grafia
e o colorido irão garantir a eficácia de funcionamento do mecanismo pars pro
toto, fazendo com que o receptor da mensagem reenvie a letra à palavra,
assim como é capaz de identificar um barco por sua vela inflada. Ou,
também, se trabalho uma letra específica de forma distinta, na arquitetura do
texto, posso fazer com que ela venha a veicular uma outra mensagem, que
não a da palavra (ou das palavras) em que se acha incluída. Ainda aqui, a
linearidade range - ou mesmo racha.” (RISÉRIO 1998: 159-160)
Giselle Beiguelman, artista e escritora, em O livro depois do livro,
indica e comenta mais de 50 obras e projetos hipermidiáticos, em cujos
endereços na web é possível verificar como a palavra pode ficar “entre a
escrita e a fala, entre a música e o desenho, entre a letra e o dígito” (Idem
2003: 25). O próprio trabalho artístico da autora busca refletir e explorar
149
essas transformações, expandindo, de forma poética, os limites do código
alfabético pelo seu uso concomitante com outros sistemas de escrita.
“Sua obra Poetrica, em quaisquer de suas diferentes versões, é uma
exploração lúcida e imaginativa da escrita poética em um espaço cíbrido,
entrópico e nômade, um espaço digital que tornou possível a qualquer mídia
conectar-se a qualquer outra mídia em qualquer ponto do espaço ao mesmo
tempo.
Em uma de suas versões, Poetrica se constitui de poemas digitais cujo
processo de composição envolve o uso de fontes não fonéticas (dings e
system fonts) e operações algébricas. O título de cada poema apresenta a
equação que descreve suas seqüências de operações (adições,
superposições, divisões, etc.). O resultado são formas animadas de escrita
que reverberam em nossa memória real ou imaginária como uma
arqueologia de imagens de escrituras.” (SANTAELLA 2007: 350)
Todos esses usos inovadores do código alfabético, que também
podem ser largamente encontrados na publicidade e no design gráfico,
prepararam nossa sensibilidade para as inovações semióticas que hoje se
processam a olhos vistos. Essas formas de expansão dos limites da escrita
tradicional são precursoras da atual reconfiguração da escrita na hipermídia,
na qual o enorme salto dos suportes bidimensionais para a tela eletrônica
marca, certamente, um novo ciclo de mudanças para a escrita e sua natureza
semiótica.
3. NOVAS GRAFIAS
A reconfiguração da palavra escrita na hipermídia é caracterizada,
igualmente, pelas novas formas em que ela aparece grafada nos meios
eletrônicos. As palavras do léxico, legissignos do sistema da língua e também
do sistema de escrita que determina suas réplicas, corporificam-se em
sinsignos nos quais aparecem abreviadas, representadas ou escritas de
forma inédita, híbridas de letras, sinais e números, isto é, híbridas de formas
150
convencionais e não convencionais. Como aponta Crystal (2008: 17), a razão
para isso é que a inteligibilidade da mensagem precisa ser mantida.
Como vimos, há duas formas básicas de transcrição da linguagem
verbal, a fonética e a semântica. Para a transcrição fonética temos a
possibilidade de grafar unidades silábicas, ou usar consoantes e vogais
separadamente. Já para a transcrição semântica, pictogramas, ideogramas e
logogramas são algumas opções.
Importante frisar que a hipermídia não é uma linguagem sedimentada,
que ela ainda se encontra em estado de experimentação e exploração de
todos os seus recursos e potenciais. Por isso, é possível encontrar diferentes
grafias para uma mesma palavra, e impossível fazer um inventário exaustivo
delas. Como afirma Crystal (2008: 21), diversidade é a “e-norm”. Na world
wide web é possível encontrar listas com dezenas, mesmo centenas de
exemplos. No entanto, certas maneiras de grafar as palavras já são bastante
usuais, o que permite elencá-las e analisá-las em conjuntos mais ou menos
definidos. Na maioria dos casos, é um e o mesmo legissigno do léxico que se
corporifica de diversas maneiras, em diferentes sinsignos. Como exemplifica
Peirce, no caso da conjunção e (and em inglês): “&, e (and), e o som são
todos uma mesma palavra” (CP 8.334).
Por razões de economia de tempo, muitas das novas grafias podem
ser consideradas formas diferentes de abreviação das palavras. As maiores
razões pelas quais palavras e expressões aparecem abreviadas são a
necessidade de uma maior velocidade na digitação de textos e os meios
muitas vezes exíguos onde isso é feito, como por exemplo, os botões de
aparelhos celulares, que não foram originalmente pensados para tal função, e
nos quais é preciso dar de um a quatro toques para conseguir grafar o
caracter desejado. Isso não impede que essas grafias migrem para outros
meios onde elas poderiam ser grafadas tradicionalmente, como o e-mail.
Essas abreviações e grafias podem ser agrupadas em diferentes tipos:
151
3.1. Economia de caracteres
As palavras aparecem grafadas com menos caracteres e/ou
caracteres diferentes do que seria esperado, como filings para feelings, em
inglês, ou mesmo vamu para vamos, em português, caso em que a grafia
também expressa uma pronúncia local, como em wiv, para with, e wassup
para what’s up, em inglês (CRYSTAL 2008: 49).
É preciso lembrar que suprimir letras em palavras é um procedimento
lingüístico que pode ser claramente observado na evolução do léxico de
qualquer língua aglutinante, e que também se encontra na utilização do
apóstrofo, pouco usado em português (como por ex. em d’água), porém
largamente empregado em francês e inglês, como em I’m (I am), you’re (you
are), para citar alguns exemplos.
A grande parte das abreviações usadas não é convencional, e muitas
surgem de coloquialismos da língua. É o caso de bro para brother, e hols
para holidays, coloquialismos comuns em inglês (CRYSTAL 2008: 25), e cel
(celular) e finde (fim de semana) em português. Outras surgem ad hoc, sendo
que, nestes casos, o contexto da mensagem em que se encontram
proporcionará a possibilidade para sua decodificação. Isso ocorre tanto em
palavras inseridas no texto como em assinaturas ao final das mensagens,
onde somente a inicial ou iniciais do remetente são usadas.
O uso de iniciais, também conhecido como acrônimos, serve
igualmente para abreviar nomes e expressões completas, como em ‘omg’
(Oh my God!) e ‘ily’ (I Love you) em inglês, e ‘dn’ (de nada) e ‘tdb’ (tudo de
bom) em português.
3.2. Omissão vocálica
Também é bastante usual a grafia das palavras sem vogais, tais como
msg (mensagem), msm (mesmo), mt (muito), ñ (não), obg (obrigado), txt
(texto), entre outras. Crystal comenta essa variante com tranqüilidade:
152
“As pessoas, evidentemente, intuíram um princípio básico da teoria da
informação: que consoantes carregam muito mais informação que as vogais.
Embora não estejamos acostumados a escrever sem vogais em inglês, esse
é um sistema perfeitamente normal em muitas línguas, tais como o árabe e o
hebreu. E mesmo em inglês, já houve muitas demonstrações de que um
texto sem vogais é inteligível, enquanto um sem consoantes não é...”
(CRYSTAL 2008: 26)
Ele apresenta ainda um exemplo desse uso ao comentar o texto de
um aluno adolescente no qual algumas palavras apareciam grafadas sem
vogais. Apesar da inovação, ler o texto não apresenta maiores dificuldades:
“A maioria de nós não teria problemas em ler sem as vogais a palavra
summer [smmr], embora precisaríamos parar por um momento para ler
palavras como wr, thr, e plc [were, their, place, respectivamente].”
(CRYSTAL 2008: 25)
Eventualmente, algumas omissões consonantais também podem ser
encontradas juntamente com a omissão vocálica, sempre que isso não
prejudique a inteligibilidade da leitura.
3.3. Grafia silábica
Embora existam línguas onde a sílaba é grafada como um todo
indecomponível, chamados sistemas silábicos ou logossilábicos (quando à
sílaba também está atrelado um significado), encontráveis especialmente
entre as línguas orientais, nas línguas românicas e anglo-saxônicas é a
escrita alfabética que prevalece, com suas consoantes e vogais.
“Em sistemas silábicos, cada signo representa uma sílaba, que é com
freqüência tratada como um todo não analisável. Em sistemas
logossilábicos, pode haver muitos signos para uma determinada sílaba, cada
um com um significado diferente. Os hieróglifos egípcios e maias são em
parte logossilábicos. A escrita chinesa é primariamente logossilábica para o
idioma mandarim, porém a mesma escrita é basicamente semográfica
quando empregada em japonês. A razão é que, ao ler o idioma japonês, os
componentes fonéticos do kanji - originalmente ideogramas chineses - são
153
com freqüência ignorados. Embora cada ideograma signifique um
monossílabo chinês, muito são lidos como polissílabos em japonês.”
(BRINGHURST 2006: 69)
Embora não esteja prevista a possibilidade de uma grafia silábica em
todos os sistemas de escrita, a sílaba possui uma saliência intuitiva, como
demonstra Coulmas:
“A maioria dos sistemas de escrita são interpretados como referindo-se de
alguma maneira à composição fonética das formas faladas (speech forms).
Nesse processo o contínuo e natural fluir do som é artificialmente quebrado
em unidades discretas de vários tamanhos. A sílaba é uma unidade
intuitivamente saliente explorada com esse fim por diversos sistemas de
escrita, antigos e modernos...” (COULMAS 2003: 131)
No alfabeto romano, embora não exista a grafia silábica, cada letra
possui um nome mono ou dissílabo, usado geralmente para a soletração de
palavras, mas que nas novas grafias encontra-se como substituto de uma ou
até duas sílabas completas.
“As letras do alfabeto latino..., exceto por alguns casos particulares...,
geralmente possuem nomes monossilábicos usados na sonorização do
soletramento das palavras. Essas mesmas letras têm, ocasionalmente, sido
tratadas como sílabas por escribas não familiarizados com o sistema, tais
como os escribas maias que tiveram contato com o alfabeto latino através
dos espanhóis... Tudo isso testemunha a saliência intuitiva da sílaba.”
(COULMAS 2003: 62)
Na hipermídia, a crescente utilização de letras com valor silábico, não
somente alfabético tem por fim a economia de caracteres, aumentando a
velocidade da escrita. Em inglês, é o caso das letras R, U, B, C, usadas no
lugar das palavras are, you, be, see, respectivamente, ou ainda a letra X, lida
como ks em Xmas (christmas). Em português, temos a letra K, tanto no lugar
da sílaba ‘ca’, como em ksa, e como substituta de ‘qu’, em grafias como aki,
154
bem como C, no lugar de ‘ce’ (você), L, no lugar de ele, D, no lugar de de, e
Q no lugar de ‘que’, entre outros exemplos.
3.4. Sinais semográficos
A maioria destes signos encontra-se incorporada ao teclado mais
usual nos computadores, também chamado teclado “qwerty”, em função de
serem essas as primeiras letras que aparecem na sua parte superior.
Interessante observar que esses caracteres superam em número as letras do
alfabeto, fato que geralmente passa despercebido.
Os números são os primeiros e mais óbvios deles. Quando a questão
é economia, não é necessário escrever seus nomes, bastando grafá-los no
sistema indo-arábico. Outros sinais também vêm da matemática, tais como +
(mais), - (menos), = (igual), x (vezes), ½ (para ‘meia’ ou ‘meio’) sendo
utilizados para substituir palavras inteiras.
Outro sinal bastante usado é o &, conhecido como e comercial, que
nasceu da junção das letras E e T, como na palavra latina et, e que significa
a conjunção ‘e’ em português.
3.5. Rébus e grafias híbridas
A palavra rébus vem de uma expressão latina, non verbis sed rebus, e
que significa “não com palavras mas com coisas” (CRYSTAL 2008: 40). Ele é
um signo originalmente pictográfico ou ideográfico, cujo uso se desloca para
designar outro conceito, diferente daquele que estava iconicamente
representado, e que é idiomaticamente homófono a ele.
Na escrita hipermidiática, vários caracteres, especialmente os
números, que também possuem nomes mono ou dissílabos, são largamente
usados com base nesse princípio. O som associado a eles serve, então, para
substituir sílabas em palavras, novamente com vistas ao incremento da
155
velocidade de digitação, como por exemplo, a letra X, lida como cross, em
Xing (crossing). Assim, novas grafias de palavras e expressões vão sendo
criadas, híbridas de letras, sílabas, números e sinais, em composições
criativas que estão reconfigurando a escrita como a conhecemos.
No português, temos: d+ (demais), +ou- (mais ou menos). Em inglês,
os exemplos multiplicam-se: 4u (for you), 2 (to), 2u (to you), 2b (to be), 2c (to
see), 2day(today), 2morrow(tomorrow), b4 (before), db8 (debate), gr8 (great),
h8 (hate), Cul8er (see you later), @ (que se lê at) e é usado para at, ch@
(chat), th@ (that), @oms (atoms), entre muitos outros.
3.6. Números e letras
Assim como Saussure se surpreendeu com a intromissão da tipografia
na escrita, movimento semelhante se verifica em relação aos números, que
aparecem na e-escrita de forma antes inimaginável na escrita convencional.
Isso se dá por diversas razões, como vimos, mas talvez a mais inovadora
delas é a correspondência entre números e letras nos reduzidos botões dos
gadgets usados para a comunicação pessoal.
Nos botões, o número 2 corresponde às letras A,B,C; o 3 às letras
D,E,F; o 4 às letras G,H,I; e assim sucessivamente até o 9 que corresponde
às letras W,X,Y,Z. Dessa forma, a sequência 288866 pode produzir tanto
autumn e como button, dependendo da quantidade de toques que se dê em
cada número. Em função disso, uma tecnologia chamada predicting texting
(CRYSTAL 2008: 67), ou texto preditivo, disponibiliza na tela, no início da
digitação, as versões mais freqüentemente usadas, no intuito de igualmente
reduzir o tempo de digitação. Essas palavras tem sido chamadas de
textonyms ou homonumeric words, i.e, textônimos ou palavras
homonuméricas que formam grupos representáveis pela mesma sequência
numérica. Essa inovação tem levado a uma prática inversa, em que as
palavras e as sequências numéricas são utilizadas de forma intercambiável,
como se fossem sinônimos. Um exemplo:
156
“O fato da sequência 2665 produzir tanto book (livro) quanto cool (legal), tem
resultado em uma prática onde alguns usuários deliberadamente usam a
primeira palavra em lugar da segunda. ‘u like the movie?’ pergunta A. ‘book’,
responde B.” (CRYSTAL 2008: 68)
Outra utilização dessas inusitadas grafias pode ser encontrada em
números de telefones públicos, como por exemplo, o telefone de uma
biblioteca norte-americana que é divulgado mais ou menos assim: “fone: 375-
book”, o que facilita bastante sua memorização ao relacionar número e
palavra ao objeto a que se referem, a biblioteca.
4. SOBRE OS EMOTICONS
Os limites entre a escrita e oralidade estão se tornando cada vez mais
difusos com uso das novas tecnologias que se servem da linguagem
hipermidiática. Antes de seu advento, escrever e falar eram consideradas
atividades distintas, sendo que a escrita, via de regra, apresentava uma
linguagem mais formal, enquanto que a linguagem coloquial era reservada
quase que exclusivamente à fala.
Esses limites já não são tão fáceis de definir, pois se é verdade que a
escrita, seja em meio eletrônico ou não, ainda serve a situações ditas
formais, hoje, pessoas “conversam literalmente”, isto é, no sentido
etimológico da palavra literal, pessoas conversam por meio de letras, não
mais por meio de sons, maximizando a função de superação da distância que
a escrita sempre desempenhou, expandindo o alcance comunicativo das
mensagens no tempo e no espaço.
“Comunicar-se oralmente requer a presença conjunta do falante e do
ouvinte. Escrever, pelo contrário, possibilita a comunicação a qualquer
distância no espaço ou no tempo... Essa função será chamada de função de
superação da distância (distancing function)... Os três componentes
essenciais da comunicação lingüística - o falante, o ouvinte e a mensagem -
157
podem estar espacialmente e temporalmente separados um do outro.”
(COULMAS 1989: 12)
Atualmente, mensagens escritas são intercambiadas em uma
velocidade muitas vezes instantânea (comparável somente àquela
disponibilizada pelo telefone para a transmissão de sons), seja por meio de
celulares e outros gadgets portáteis ou através das telas dos computadores
em chats, e-mails e outros ambientes hipermidiáticos. Nesse contexto
inaugural, um dos limites da escrita, aquele pelo qual não lhe é possível
transpor para um suporte material a riqueza de gestos, expressões e
modulações vocais da fala, foi sentido mais intensamente.
“...o controle do tom de voz - ‘não é o que se diz, mas a forma como se diz’ -
expresso por meio de variações vocais no diapasão (entonação), na altura
(ênfase), na velocidade, no ritmo, na pausa e em outros efeitos vocais. Têm
havido esforços algo desesperados para substituir o tom de voz na tela, sob
forma de um uso exagerado de ortografia, pontuação, letras maiúsculas,
espaçamento e símbolos especiais para ênfase. Os exemplos incluem letras
repetidas (aaaahhhhh, claaaaro), sinais de pontuação repetidos (quem????,
ei!!!) e convenções para expressar ênfase (como a *verdadeira* questão).
Essas características são capazes de uma certa expressividade, mas a
variedade de significados que elas transmitem é pouca e está restrita a
noções grosseiras como excesso de ênfase, surpresa e perplexidade.
Nuances menos exageradas não são passíveis de serem usadas dessa
forma.” (CRYSTAL 2004: 85)
Essa necessidade de transpor os limites expressivos da escrita em
relação à oralidade deu origem ao que hoje se chama de emoticons (que vem
da junção das palavras emotion e icon) ou smileys (da palavra smile, sorriso).
Eles se apresentam como signos eminentemente pictográficos nos quais não
só as qualidades materiais das letras bem como a forma de outros signos
usados na escrita (especialmente semográficos) são usados para representar
expressões faciais na sua maioria, embora seu uso não se restrinja a elas.
“Relacionada a isso está a forma como o netspeak carece de expressões
faciais, gestos e convenções de postura corporal, que são tão críticos para
se externar opiniões e atitudes pessoais e moderar os relacionamentos
158
sociais. Essa limitação foi notada desde o começo do desenvolvimento do
netspeak, e levou à introdução de smileys ou emoticons - combinações de
caracteres do teclado, planejadas para demonstrar uma expressão facial de
emoção. Os dois tipos básicos expressam atitudes positivas e negativas,
respectivamente (a omissão do ‘nariz’ parece ser unicamente uma questão
de velocidade de digitação ou de gosto pessoal):
:-) ou :)
:-( ou :(
Centenas de formas e seqüências lúdicas têm sido inventadas e reunidas em
dicionários de smiley, algumas extremamente engenhosas e artísticas, mas
quase nunca usadas em comunicações sérias. Fica claro que elas são uma
maneira potencialmente útil, mas muito rudimentar, de capturar algumas das
características básicas da expressão facial. Elas podem evitar uma
percepção errada das intenções de um falante, mas um smiley individual
ainda permite um vasto número de leituras (felicidade, piada, simpatia, bom
humor, deleite, diversão etc.) que só podem ser despidas de ambigüidade
com uma referência ao contexto verbal.” (CRYSTAL 2004: 85,86)
Ao representar expressões faciais, os emoticons se constituem em
uma interessante nova forma de prosódia, i.e., adicionam uma entonação
vocal dotada de significado às palavras e frases escritas, e assim são
capazes de acrescentar uma carga considerável de expressividade à escrita,
seja quando ela é usada para dialogar ou mesmo em mensagens que não
requerem respostas imediatas por parte do receptor.
Outra utilidade interessante dos emoticons é diminuir a ambigüidade
de mensagens que, sem o uso desses signos, poderiam ser interpretadas de
forma diferente àquela imaginada pelo emissor, como no caso de
brincadeiras, piadas e ironias tão comuns em diálogos e mensagens
informais.
Embora seu uso seja freqüente, não existem regras estabelecidas,
ficando sua utilização a critério daquele que escreve a mensagem.
Semioticamente, trata-se de sinsignos, já que o hábito e as regras de sua
utilização ainda estão em formação. Com o tempo, poderão ser incorporados
159
ao sistema da língua, o que fará deles legissignos, assim como outros signos
de prosódia, como a exclamação e a interrogação.
Quanto à relação com seus objetos dinâmicos, isto é, com aquilo que
representam, sua carga icônica é incontestável, já que eles se assemelham
imageticamente às expressões faciais que significam. Interessante notar que
os emoticons podem ser considerados signos icônicos de prosódia, e em
função dessa iconicidade imagética ostentam uma forte característica supra-
lingüística, já que eles se tornam compreensíveis indistintamente para
usuários de diversas línguas e culturas.
Vejamos alguns exemplos mais utilizados e seus possíveis significados:
:-) sorriso, alegria, consentimento
:-)))) muito feliz, rindo muito
:-( tristeza, desaprovação
;-) ironia, brincadeira, piscadela
:-@ gritos, ira, raiva, indignação
Em japonês e outras línguas asiáticas, os emoticons são grafados de forma
diferente, em outro sentido espacial, mas com as mesmas finalidades e
servindo-se igualmente dos caracteres disponíveis do teclado. São alguns:
(*o*) supresa, espanto
(^_^) sorriso, elogio
É espantoso até onde pode chegar a capacidade representativa
humana, em explorações criativas da linguagem que contribuem para seu
enriquecimento. Alguns usos menos freqüentes na web e que podem ser
encontrados em listas de dezenas e até centenas de variantes, mostram o
potencial icônico, expressivo, que se esconde por trás de uma linguagem,
com desenhos formados de letras e sinais:
160
@(---‘---‘--- que representa uma rosa, e pode ser usado para mandar “flores”
(_8^() que representa Homer Simpson, famoso personagem do desenho
animado The Simpsons
A influência desse potencial icônico pode também ser sentida em
outras áreas, como o design gráfico e a publicidade, que o exploram ao
transmitir suas mensagens. Um exemplo é a Propaganda de telefonia Alô-
Claro, veiculada na Revista Veja em 21/4/2010, onde as mesmas letras da
palavra alô formam uma face sorridente, condensando escrita, mensagem e
imagem de forma original.
5. CONEXÃO LEXICAL: A PALAVRA PERFEITA
De certa forma, é paradoxal que na hipermídia, a talvez mais potente
das mídias pela confluência de meios de que se constitui, seja a palavra, esta
velha conhecida nossa, quem rouba a cena, intermediando todos os fluxos de
informação e navegação, renovando-se e exercendo todas as suas
potencialidades, demonstrando e confirmando, mais uma vez, ser ela a
“mídia das mídias” (MOTTA 2004:10).
161
Nos ambientes hipermidiáticos, sites, chats, SMS, e-mail, entre outros,
essa riqueza de potencialidades e manifestações da palavra escrita pode ser
mais facilmente percebida, especialmente porque ela assume a condição de
uma conexão lexical, isto é, um vínculo associativo entre ela, palavra, e a
miríade de conteúdo informacional que a ela pode ser associada, sem
hierarquias, e sem limites predefinidos. Pode-se dizer que na linguagem
chamada hipermídia, e no seu sistema hipertextual, a palavra poderá exercer
a função de conexão lexical de forma exponenciada, função essa que se
soma a todas as outras que ela sempre foi capaz de desempenhar,
isoladamente, ou em textos tradicionais.
A indicação do uso de uma palavra nessa função conectiva pode ser
chamada de hiperlink, hotlink, hotword ou simplesmente link, que vem do
verbo ‘to link’ em inglês, e cujo significado é elo, ligação.
Essa função de conexão lexical pode ser encontrada, de forma
bastante rudimentar, em dicionários, por ex., e em outras formas de
armazenamento e busca de informação em diferentes meios, mas que não
podem ser comparados à hipermídia, onde as palavras podem ser a conexão
que liga um ponto do sistema hipertextual a outro qualquer, sendo que esses
pontos podem conter qualquer tipo de informação: sonora, visual, textual, em
seus mais variados formatos.
Semioticamente, essas palavras são verdadeiros índices do sistema
hipertextual, que lhes permite não só que mantenham, mas que sejam em si
mesmas, uma conexão de fato com aquilo que representam. Por ex., ao
lermos o nome de um site na web, seu próprio nome ou “endereço” poderá
ser “clicado” para acessá-lo quase que imediatamente; a notícia de um fato
ou evento poderá dar acesso a suas fotos; o título de uma música ou canção
poderá ser “clicado” para ouvi-la; o título de um artigo, de um poema, de um
livro podem ser o acesso para seu conteúdo, etc.
Essa possibilidade de conexão aparece na forma como a palavra é
escrita, isto é, através de um sinsigno em que ela se materializa. Por meio de
um atributo gráfico, que tanto pode ser uma sublinha, letras em itálico, ou
162
uma cor diferente, ou ainda, dois ou mais deles conjuntamente, a palavra é
destacada do texto a fim de mostrar que há conteúdo explorável naquele
ponto hipertextual.
Devemos considerar o poder representativo que isso confere a uma
palavra, ou ainda, a ampliação sem precedentes de seu poder, já que ela
pode, na linguagem hipermidiática, entrar em isomorfia com aquilo que se
quer significar. Para ficarmos num exemplo bastante simples, ao escrever a
palavra mesa, ela se refere a um conceito geral e é capaz de provocar na
mente do leitor a idéia de uma mesa, no entanto, como emissor da
mensagem, nunca poderei saber se o que ele “visualiza” ao ler essa palavra,
se parece com aquilo a que me refiro. Se houver a necessidade de ser muito
específico, se quero me referir a um tipo diferente de mesa, a um design
inovador, por ex., uma foto da mesa ou qualquer outro conteúdo icônico
ligada à palavra (desenhos, diagramas, por ex.), poderá facilmente resolver a
questão.
Imprescindível retomar Peirce nesta questão, que referindo-se às
funções icônicas, indiciais e simbólicas de um signo, afirmou que, embora
seja freqüentemente desejável que um representamen apresente um ou dois
desses três tipos de relação com seu objeto dinâmico, excluindo os demais,
“os signos mais perfeitos são aqueles nos quais as características icônicas,
indiciais e simbólicas estão amalgamadas tão eqüitativamente quanto
possível” (CP 4.448).
Nesse sentido, a palavra, o legissigno lingüístico por excelência, de
natureza simbólica na maior parte das vezes, ganha na linguagem
hipermidiática a possibilidade de chegar a essa perfeição sígnica, onde sua
indicialidade e iconicidade podem ser exploradas em graus exponenciais,
sem detrimento de sua simbolicidade, e de forma conjunta, amalgamada,
“sem suturas” entre essas três dimensões semióticas.
163
Capítulo 6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS
“A escrita muda à medida que a humanidade se transforma.
É uma dimensão da condição humana.”
Steven Fischer (2007: 10)
Os velhos materiais já não podem atender às novas necessidades e
os signos também são materiais e instrumentos.”
Décio Pignatari (1979: 57)
1. ALGUMAS CONCLUSÕES
As transformações pelas quais passa a escrita ocorrem conjuntamente
em dimensões tecnológicas, culturais e lingüísticas que transcendem tudo
aquilo que para nós significava a palavra escrita. Em uma verdadeira “maré
barroca de signos”, em uma rede computacional planetária, acentral, a
palavra se assume como elemento de um “dicionário possível”, se é que
alguma antiga metáfora ainda pode ser usada.
Nesse cenário, Chartier (2002:9) nos avisa que, se quisermos ter uma
visão mais aprofundada, não podemos nos apegar a “lamentações
nostálgicas” mas nem tampouco nos deixar levar por “entusiasmos ingênuos
suscitados pelas novas tecnologias”. Para um olhar ampliado, alguns pontos
relevantes merecem ser levantados.
Por um lado, a revolução tecnológica deita raízes profundas na
sociedade, inaugurando não só um novo tipo de mídia com características e
potencialidades inéditas, como igualmente uma nova cultura, numa nova
ordem econômica e social mundializada.
“Propiciada, entre outros fatores, pelas mídias digitais, a revolução
tecnológica que estamos atravessando é psíquica, cultural e socialmente
muito mais profunda do que foi a invenção do alfabeto, do que foi também a
revolução provocada pela invenção de Gutenberg. É ainda mais profunda do
que foi a explosão da cultura de massas, com os seus meios técnicos
164
mecânico-eletrônicos de produção e transmissão de mensagens. Muitos
especialistas em cibercultura não têm cessado de alertar para o fato de que a
revolução teleinformática, também chamada de revolução digital é tão vasta
a ponto de atingir proporções antropológicas importantes, chegando a
compará-la com a revolução neolítica. Para se ter uma idéia das
conseqüências trazidas por essa revolução, basta dizer que a nova ordem
econômica, social e cultural mundializada são seria possível sem ela.”
(SANTAELLA 2001: 389)
Por outro lado, muito do que se processa hoje não é novo. Essa
sensação de dejá vu se dá porque a permanência de qualquer sistema no
tempo exige que ele seja coeso o suficiente para sobreviver a crises, mas
suficientemente flexível para adaptar-se a elas na medida do possível. Ou
seja, entre a flexibilidade necessária à sua adaptação e a fixidez de suas leis,
um sistema está sempre em contínua evolução. Baron nos mostra
claramente que em outras épocas situações adaptativas semelhantes foram
enfrentadas, e superadas:
“Como sociedade letrada, continuaremos a escrever, no entanto, a atual
atitude geral em relação à grafia e à pontuação convencionais poderá
reverter num quadro que lembra a quase anarquia medieval e mesmo
renascentista da Inglaterra à época. Em inglês medieval, por exemplo, a
palavra nice (que então significava ‘ignorante’ ou ‘tolo’ [e não agradável
como atualmente]) podia ser escrita ‘nis’, ‘nys’, ‘nice’ ou ‘nyce’. Mais tarde,
William Shakespeare grafou seu próprio nome pelo menos de seis maneiras
diferentes. E o uso de vírgulas, dois pontos, e maiúsculas era, por vezes,
simplesmente questão de adivinhação." (BARON 2008: 171).
Essa explosão de signos faz parte de fases de instabilidade e
expansão próprias de todo sistema evolutivo, fases críticas em que há
flutuações e um crescimento da diversidade, que visam romper com antigos
paradigmas a fim de que o sistema possa se reestruturar em novas bases (cf.
VIEIRA 2008b: 60-64). Essa é uma visão poética do real que a teoria
sistêmica descortina, sendo “poiesis” a forma adequada de sua auto-
organização produtora de signos e significado, destinada a expressar,
assintoticamente é claro, a perfeição do pensamento humano
165
“Sendo pensamento, todo real seria evolutivo e destinado a expressar em
futuro a perfeição de sua forma. Um universo semiótico é necessariamente
auto-organizado - cujos princípios e regras de organização, eles mesmos
evoluem... A teoria geral dos sistemas e da auto-organização vem deste
modo complementar e colaborar para um entendimento semiótico e
matafísico do real... O âmago de nossas representações da realidade é
poético, daí decorrendo em constante emulação obras artísticas, produções
tecnológicas e representações de natureza científica.” (SILVEIRA in VIEIRA
2008a: 18)
Autopoiesis, significa assim, que o sistema é capaz de autonomia em
relação ao ambiente, bem como de auto-manutenção e auto-reprodução,
elevando seu nível de complexidade a partir da formação de novos signos
que se constituem em novos sistemas e subsistemas. É nesse sentido que
Pignatari afirma que os signos também são materiais e instrumentos que se
reconfiguram para atender a novas necessidades.
Do ponto de vista lingüístico, Crystal nos mostra que podemos e
devemos ter uma visão enriquecedora desses constantes fluxos e
intercâmbios entre sistemas, que proporcionam a renovação do léxico,
acrescentam valor semântico às línguas e possibilitam ao pensamento
humano expressar-se de forma cada vez mais matizada.
“O inglês mudou, sem dúvida, mas isso foi uma coisa ruim? Grande parte do
impacto expressivo de Chaucer e Shakespeare - para se tomar apenas dois
entre muitos autores - se deveu às suas habilidades de trabalhar com todo
aquele vocabulário multilíngüe. E todos se beneficiam com uma língua
lexicalmente enriquecida. Em inglês temos muitos “duplos” e “triplos”, como
kingly, royal e regal, que se originam na história de empréstimos da língua -
um germânico, um francês e um latino. Três palavras para o mesmo conceito
básico permitem toda uma variação de nuances estilísticas a ser expressa,
que não seria possível de outra maneira. Os empréstimos sempre
acrescentam valor semântico à língua, oferecendo às pessoas a
possibilidade de expressar o pensamento de forma mais matizada.”
(CRYSTAL 2004: 55)
166
Coulmas, por sua vez, afirma que é mais do que merecido um estudo
de como a natureza e o uso dos sistemas de escrita afetam as línguas, já
que, de fato, “as propriedades dos sistemas de escrita podem ter um efeito
em como a escrita é concebida, e, inversamente concepções sobre a escrita
podem influenciar a maneira com a qual lidamos com certos signos”
(COULMAS 2003: 2).
“Foi por meio do meu interesse por escritas não-alfabéticas que eu comecei
a ver mais claramente que as línguas são afetadas de várias maneiras pelos
sistemas de escrita adotados para sua materialização, e que, portanto, não
só deveria ser dado um lugar próprio a eles na lingüística, como também
deveriam ser reconhecidos como um fator de mudança lingüística. Como
exatamente uma escrita influencia a língua é uma questão que os lingüistas
deveriam tentar responder... uma resposta correta a essa questão depende
da natureza do sistema em questão.” (COULMAS 1989: viii)
Mais ainda, é preciso considerar que cada conjunto linguístico,
englobando língua e escrita, tem relação direta com a construção e
configuração dos padrões de nossa consciência, mediando nossa percepção
do existente.
“Cada linguagem é um vasto sistema de configuração (pattern-system),
diferente dos outros, no qual são culturalmente ordenadas as formas e
categorias mediante as quais a personalidade não apenas se comunica, mas
analisa a natureza, reconhece ou negligencia certos tipos de relação e de
fenômenos, canaliza seu raciocínio e edifica a casa de sua consciência.”
(WHORF apud HAROLDO DE CAMPOS 1994: 88)
Por tudo isso, visões estanques nunca deram conta dos desafios da
escrita, haja vista a heterogeneidade infrutífera das terminologias e tipologias
que buscaram compreendê-las. Daí esta tentativa de elucidar os processos
de transformação da escrita ao longo do tempo por meio da aplicação da
teoria semiótica de Peirce em conjunto com a teoria sistêmica e uma
classificação das funções dos signos utilizados na escrita.
167
A escrita sendo linguagem, não deixará nunca de evoluir, de
transformar-se a cada revolução humana, num casamento entre meios e
signos cujo poder multiplicador e proliferativo agora sentimos nas telas
eletrônicas como nunca antes.
“As linguagens são muitas. Desde a revolução industrial, e mais
recentemente, a revolução eletrônica, seguida da revolução informática e
digital, o poder multiplicador e o efeito proliferativo das linguagens estão se
ampliando enormemente. (...) Não há quase nada de natureza real, artificial,
simulada ou fictícia que o imaginário numérico não dê conta de colocar nas
telas dos monitores. (...) Além de crescerem na medida exata em que cada
novo veículo é inventado, as linguagens também crescem através do
casamento entre meios.” (SANTAELLA 2001:28)
A linguagem humana não pode ser controlada (CRYSTAL 2004:54).
Ela, em si mesma, pode ser considerada uma tecnologia do pensamento,
pois como diz Peirce, nosso pensamento é um diálogo, em constante fluir, e
depende em grande parte dos signos lingüísticos para expressar suas idéias,
mesmo na sua própria interioridade. Os demais signos de que ele se utiliza,
destinam-se a cobrir “os defeitos das palavras”.
Por isso, a maior conclusão deste estudo talvez seja a de que é
preciso dilatar nosso olhar em relação ao que a linguagem verbal e seu
correspondente sistema de escrita representam para o pensamento humano.
Não há como criar ou mesmo satisfazer-se com um sistema estático. Peirce
mais uma vez, nos prova magistralmente porque isso é impossível:
“Quando garoto eu inventei uma língua (language) na qual quase toda letra
de toda palavra dava uma contribuição clara para sua significação
(signification). Ela envolvia uma classificação de todas as idéias
possíveis; e eu não preciso dizer que ela nunca foi completada.” (SS 95,
grifos nossos)
168
2. O FUTURO DA ESCRITA
Será possível identificar tendências para o futuro da escrita? Nada
parece ser mais desafiador. A escrita tem estado conosco por vários
milênios, e hoje em dia é mais importante do que nunca. Ela pode também
ser considerada uma tecnologia, cuja criação possibilitou o surgimento de
uma verdadeira inteligência escrita à qual temos acesso por meio dos
suportes eletrônicos, que estão redesenhando a sociedade a cada instante.
“Tendo se espalhado gradualmente, através dos séculos, de pedaços de
argila a chips de computador, ela [a escrita] está preparada para progressos
ainda mais drásticos. Apesar de que centenas de milhões de pessoas ainda
são incapazes de ler e escrever, a humanidade depende da escrita numa
extensão sem precedentes. É bem provável que, hoje, mais comunicações
se dêem de forma escrita do que de forma oral. Não há medidas objetivas,
mas se houvesse alguma dúvida, a explosão da internet relegou de uma vez
por todas a idéia de que, para a raça humana, a escrita é somente uma
forma menor de comunicação. Não é arriscado chamar a escrita da
tecnologia de maiores conseqüências já inventada. A imensidade do
conhecimento e registro escritos conservados em bibliotecas, bancos de
dados e redes multifacetadas de informação tornam difícil imaginar um
aspecto da vida moderna que não seja afetado pela escrita. ‘Acesso’, a
palavra de ordem da sociedade do conhecimento significa acesso à
inteligência escrita. A escrita não somente oferece formas de recobrar o
passado, mas é também uma habilidade crítica para dar forma ao futuro.”
(COULMAS 2003: 1)
Como bem observa Risério, a escrita eletrônica nasceu de uma
sociedade fundada nas modalidades do espaço moderno, também chamado
ciberespaço, na mobilidade de suas redes, diferentemente dos sistemas
anteriores, cuja base foi uma sociedade do ‘chão’, do solo agrícola, do
suporte da celulose, e, portanto, fundada num território delimitado.
“Interconexões, redes, circuitos, cadeias, fluxos, termos que se apresentam
naturalmente à mente, quando se procura analisar as modalidades novas do
espaço moderno; traduzem a relação fundamental da mobilidade, da qual
procedem as tendências à onipresença e os sistemas ‘fora do chão’, escreve
169
Chesnaux. E é justamente em tal contextura, em meio a hipertextos e
“groupwares” cosmopolitas, que se inscreve e se move a palavra eletrônica.
A escrita informática é uma escrita “fora do chão”. Enquanto a escrita
tradicional e a sociedade agrícola se plantavam, respectivamente, no suporte
de celulose e num território delimitado, o que temos agora é uma outra
realidade: vida e texto em movimento permanente...” (RISÉRIO 1998: 194)
Dessa forma, existe um processo histórico, social e cultural contínuo
de transformação da escrita. Mas se em cada época os sistemas de escrita
foram moldados de acordo com necessidades “locais”, para usar um termo
da contemporaneidade, é preciso lembrar que agora a sociedade e a
comunicação são globais, numa comunidade planetária, supranacional, em
cuja rede interagem, lado a lado, arte, comércio e ciência, bem como
indivíduos, comunidades e línguas, fatores que, se isoladamente já
influenciavam a escrita, hoje se encontram amalgamados, exponenciados em
uma linguagem hipermidiática que ainda não está sedimentada, mas sim, em
ebulição na complexidade de todos esses fatores.
“A complexidade adicional dessas questões encontrou-se no fato... de que a
hipermídia não é uma linguagem já sedimentada. Trata-se de uma linguagem
que ainda está se buscando e, portanto, encontra-se em estado de
metabolismo, transformando-se ininterruptamente...” (SANTAELLA e NÖTH
2008: 356)
A escrita alfabética solidifica a palavra, paralisa-a no espaço e no
tempo, e diferentemente das representações ideográficas e pictográficas,
corta radicalmente o nexo com o objeto representado. Mas hoje as palavras
são aladas, voam de um ponto a outro do planeta sem fronteiras, renovadas
em sua iconicidade, que representa a ligação do próprio ser humano ao real,
e cuja presença se faz de luz, brilho e cor.
“Seja como for, o fato é que é outra - agora - a presença visual da palavra no
mundo. Palavra-mutante, protéica, feita de pontos, de cor e luz - o texto
como paisagem virtual articulada pelo cibersigno... A palavra ganha ânimo,
brilho, motion.” (RISÉRIO 1998: 195,196)
170
Nossa época se caracteriza, então, por uma profunda mudança de
paradigmas em todos os níveis. A ciência nos dota a cada dia de novos
modelos epistemológicos. Barbosa (2009) observa como as teorias do texto e
do sentido existentes estão baseadas num modelo atomístico e estruturalista,
e, portanto redutor e ultrapassado, aplicado ao âmbito das ciências humanas.
Atualmente, já vivemos no paradoxo da luz, que é onda e partícula num só
movimento, e que é capaz de nos proporcionar um modelo ondulatório de
linguagem, não linear, dinâmico e integrador, no qual a palavra é onda, e
pode ser compreendida dentro do conceito de sistemas, isto é, dentro de
relações de troca e mútua determinação.
“Da busca dos elementos mínimos que são os átomos de tudo (elementos
químicos ou fonemas, letras, palavras), governados por uma gramática
combinatória infinita (tanto na natureza como no texto), talvez seja hoje
necessário passar a uma teoria ondulatória mais fluida da linguagem.
Reparece-se que é assim que funciona e sempre funcionou o plano do
sentido no que chamamos de hermenêutica com a sua semiose ou
interpretação perpétua.” (BARBOSA, 2009)
Poderia uma tal palavra escrita, híbrida e ondulatória, vir a tornar-se
convenção, legissigno? Como nos diz Peirce, “não temos razão para pensar
que todos os fenômenos, em seus mínimos detalhes, sejam precisamente
determinados pela lei. Vê-se que há um elemento arbitrário no universo, a
saber, sua variedade” (CP 6.30).
Essa variedade pode e deve ser atribuída a alguma forma de
espontaneidade, de vagueza, que nunca poderá ser ignorada. Ela é
primeiridade, e está presente em todo e qualquer fenômeno. A arte sempre
se insurgiu contra o status quo. A partir de Mallarmé, houve uma reação
intensa à norma linear do código alfabético. Em alguns mo(vi)mentos
artísticos, a reação foi extrema. Hoje, apesar da ebulição das
transformações, vemos, lado a lado, “a escrita ou a norma alfabética e as
novas e variáveis formas de escritura, buscando... uma multidirecionalidade
high-tech, em meio a desvios, desvãos, distorções, fractais.” (RISÉRIO
1998:163)
171
A palavra escrita parece diluir-se na infinitude de sua própria semiose,
fruto de sua condição ontológica de signo. Nesse sentido, Ransdell nos
mostra que as progressões e regressões sem fim, implícitas na concepção
geral de representação não são viciosas, e que são nossos interesses
práticos que fornecerão os limites no momento oportuno.
“A infinitude da semiose é uma conseqüência da definição do signo em
abstrato, isto é, definido à parte de uma aplicação concreta. Em concreto,
contudo, haverá sempre considerações situacionais ad hoc que nos
fornecerão razões para tratar um dado interpretante como se fosse o último
e um dado objeto como se fosse o primeiro. Assim, as progressões e
regressões infinitas, implícitas na concepção geral de representação não são
viciosas, mas devem ser vistas como indicadoras de que são nossos
interesses práticos, num dado momento, que fornecem limites...”
(RANSDELL apud SANTAELLA 1992a: 199)
Quando e como esse momento chegará, só podemos conjecturar.
Talvez o próprio conceito de norma lingüística precise ser revisto para se
tornar mais aberto ao expressivo potencial da língua e da escrita. Talvez, o
estabelecimento de limites mais flexíveis na consideração das práticas
escriturais seja uma resposta em médio prazo. Sem dúvida, o alargamento
do conceito de linguagem verbal, ou mesmo sua concepção renovada, se
fará necessária para que estudos teóricos tenham seu alcance ampliado,
sem esterilizar as capacidades que a escrita pode desenvolver para
representar o pensamento. Sem dúvida, artistas e cientistas, por trabalharem
no jogo experimental das linguagens, estarão sempre na dianteira, rasgando
fronteiras, prenunciando o futuro, para que a linguagem verbal se aperfeiçoe
em direção à verdade de seu ser real. Esse futuro é por definição insondável,
faz-se fazendo-se no presente, no continuum da semiose de que o próprio
homem faz parte.
172
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