A reportagem narrativa

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Reportagem narrativa COIMBRA, Oswaldo. O texto da reportagem impressa. São Paulo:

Ática, 1993, p. 44-75 Vimos que a estrutura do texto da reportagem dissertativa se apóia num raciocínio explicitado através de afirmações generalizantes seguidas de fundamentação, que constitui a análise feita pelo redator de um acontecimento ou de um grupo de acontecimentos A estrutura do texto da reportagem narrativa não se apóia num raciocínio expresso. Sua característica fundamental é a de conter os fatos organizados dentro de uma relação de anterioridade ou de posterioridade, mostrando mudanças progressivas de estado nas pessoas ou nas coisas, como mostram Fiorin e Savioli (1990, p. 289). O texto do primeiro tipo de reportagem contém um ângulo fixo e reflexão crítica sobre as mudanças nas pessoas e nas coisas. O texto da segunda mostra as mudanças ocorrendo. Percebemos essa distinção de tipos de texto numa reportagem - Desquite ou divorcio? - assinada por José Carlos Marão, na edição de julho de 1966, à página 26, em Realidade. O texto da reportagem alterna a dissertação com a narração, no desenvolvimento da sua pauta: a discussão da questão palpitante na época do divorcio.

As varas da família em São Paulo e no Rio deram média superior a cinco sentenças de nulidade, anulação e desquite por dia nos últimos anos. Mas, embora não possa ser precisada em números há informação correta que tem de ser acrescentada: a maioria dos casais que se separam, principalmente nas classes mais pobres, não recorre ao desquite, "porque não resolve nada".

Lá, um dia de madrugadinha, sem mais nem menos, foi-se embora de casa o seu Armando, disposto a nunca mais voltar, porque o seu amor dado à legítima esposa era pouco e se acabou. Dona Lídia ficou sem saber o que fazer da vida, nem dos três anos de casamento infeliz.

É este segundo tipo de texto - o que pretende recriar a realidade diante dos olhos dos leitores, mostrando a eles um eterno acontecer - que passamos a estudar. Foco narrativo O repórter Carlos Azevedo, a serviço da revista Realidade, percorreu a pé e de canoa mais de 300 quilômetros da floresta Amazônica, acompanhado do fotógrafo Luigi Mamprin. Os dois profissionais haviam se integrado à missão que iria resgatar os Índios Caiabis, ameaçados de extermínio pela fome e por doença. Azevedo assinou matéria contando o que vira, publicada na edição de dezembro de 1966, à página 37, com o título "Resgate de uma tribo". Observe-se como os dois aparecem no texto:

Ipepori e seus seis companheiros, 11 pára-quedistas, Cláudio Vilas Boas e dois jornalistas - 21 homens - partiram na manhã seguinte rumo ao rio Tatuin [...]

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À tarde, Cláudio resolveu que o índio Iput iria até a outra aldeia convidar o resto da tribo a se mudar para o parque [...] Um dos jornalistas também resolveu ir.

Agora, vejamos esta outra matéria, assinada por Lana Novikow, na Realidade de setembro de 1967, à página 105 _ Nela é contada a experiência que Lana teve trabalhando como bancária, para que pudesse escrever como é um jovem bancário. Título da matéria: "Eu encontrei um mundo bem comportado".

Levei alguns minutos para descobrir a porta de entrada dos funcionários.

Berta me chamou. Abria gavetas e mais gavetas, todas cheias de envelopes escuros, com nomes, códigos e números extensos gravados por cérebros eletrônicos. E ia me mostrando os impressos [...]

Nos dois textos os jornalistas aparecem como personagens. A diferença é que no primeiro texto não é o jornalista-personagem quem narra os acontecimentos e no segundo é, conquanto tenham sido nos dois casos os jornalistas-personagens que provavelmente escreveram as duas reportagens. Há, é claro, sempre a hipótese de os textos terem sido escritos por redatores, a partir do relato dos repórteres. Importa destacar é que narrador e autor não são necessariamente a mesma entidade. Do mesmo modo como Carlos Azevedo pode ter escrito a reportagem sobre o resgate dos Índios Caiabis e, ainda assim, falar de si próprio como "ele, o jornalista", um velho pode escrever uma história do ponto de vista de uma criança; um homem pode escrever uma história do ponto de vista de uma mulher; alguém que viva hoje pode escrever uma história do ponto de vista de quem viveu na Idade Média; etc. Neste item, vamos ver os diversos pontos de vista - os diversos focos narrativos - através dos quais se pode narrar fatos.

Narrador testemunha (em 1ª pessoa) Segundo Lígia Leite, em O foco narrativo, o modo de narrar tem duas características básicas: a) O narrador é personagem; b) A personagem do narrador é secundária, uma testemunha dos fatos, apenas. Seu ângulo de visão, portanto, é limitado, já que narra da periferia dos acontecimentos, utilizando informações que colheu e aquilo que viu ou ouviu. É o caso do narrador do texto assinado por Lana Novikow e do Jornalismo de Vivência, em geral, cujas matérias são valorizadas pela experiência sofrida em determinada situação. É, também, o caso de narrativas feitas por repórteres, eles próprios personalidades conhecidas. A presença deles no interior da narrativa valoriza-a. Eram assim os perfis feitos pela italiana Oriana Fallaci, publicados em Realidade, como, por exemplo, o de Cassius Clay, na edição de setembro de 1966, à página 82, cujo título era "Cassius Clay, aliás Mohammed Ali":

Quando cheguei (á casa de Clay), o campeão estava sentado na grama, brincando com as crianças da vizinhança. [...] Embora me visse chegar, Cassius-Mohammed continuou a brincar e nem se levantou para me dar a mão. Mas arrotou e disse que se sentia bem porque tinha comido seis costelas de cordeiro. Seguiu-se um silêncio de quase meia hora

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que eu procurava romper com sorrisos, observações, perguntas.

Narrador protagonista (em 1ª pessoa) Narrativa limitada às percepções, pensamentos e sentimentos do narrador6. Em Jornalismo, ocorre nos depoimentos extensos dos entrevistados em que o texto é escrito como se fosse deles, restringindo-se o jornalista à tarefa de ouvir, transcrever e editar. Ocorre, ainda, quando, por algum motivo, o próprio repórter torna-se o centro do acontecimento que cobre, e portanto, a melhor fonte de informação. Um exemplo do segundo caso foi o de José Hamilton Ribeiro, que, ao cobrir a linha de frente da guerra do Vietnã, perdeu uma das pernas, arrancada por uma mina onde pisou. O texto "Eu estive na guerra", na Realidade de maio de 1968, à página 26, tem uma narrativa toda centrada no jornalista-narrador-personagem:

A 20 metros de mim, de repente, explode outra mina. Seguem-se gritos angustiantes de dor. Tudo pára. [...] Ouço uma explosão fantástica. E um tuimm interminável que me atravessa os ouvidos de um para o outro lado, dá-me sensação de grandiosidade. Sinto-me no ar, voando, mas, ainda assim, com uma certa tranqüilidade [...]. Uma cortina espessa de fumaça bloqueou-me toda a visão. Tive certeza, então, de que a bomba tinha explodido a alguns metros de mim [...]. Um segundo após me senti no chão, sentado [...]. Foi aí que senti a perna esquerda. Os músculos repuxavam a coxa com tal intensidade que eu não me equilibrava sentado. Para não cair, rodopiava sobre mim mesmo, em círculos e aos saltos. Instintivamente, levei as duas mãos para "acalmar" a minha perna esquerda, e foi então que a vi em pedaços.

Narrador onisciente (em 3ª pessoa) É o modo de narrar de quem não somente conhece todos os acontecimentos mas até mesmo os pensamentos das personagens. Para Fiorin e Savioli, é como se pairasse acima de tudo e tudo visse. De problemática adoção no Jornalismo pelo fato de falar também do que se passa na interioridade das personagens. Há, no entanto, quem o adote. Na matéria assinada por Marcos Faerman, no Jornal da Tarde, de São Paulo, de 16 de janeiro de 1976, "No sertão", sobre o cotidiano de uma cidade no interior baiano, Irecê, o narrador é onisciente:

“João curvado no balcão de Margarida pensa na vida. Tudo foi para a mão de um médico, quando a mulher adoeceu. "Já pude morrer _ ele pensa - hoje não posso. A gente só pode morrer quando tem alguma coisa na vida. Coisas que a gente deixa para quem gosta. Mas o que é que eu vou deixar para meus filhos? E quando se está como eu estou, não se pode pedir a dispensa da morte. Meu Deus, esta seca é a mãe de 32."

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Modalidades de expressão do tempo O narrador se limita a informar o que as personagens fazem e o que falam. O texto se compõe de uma sucessão de cenas. É o mais utilizado no Jornalismo. Vejamo-lo nesta reportagem assinada por Ricardo Kotscho sobre menores marginais que agem na Praça da Sé de São Paulo, publicada pela Folha de S. Paulo, em 7 de março de 1985:

Seis meninos correndo na Praça da Sé e a polícia atrás deles. Clóvis, 14, o chefe e o mais velho da turma, leva na mão um pequeno saco plástico. "Pega, pega trombadinha ... ", grita quem passa. Com a ajuda de José Batista Fonseca, 33, funcionário do Serviço de Proteção ao Crédito, a Polícia consegue pegar os seis. Em volta, forma-se logo uma roda, que vai crescendo, silenciosamente.

Alcance e planos de tempo Em 1966, primeiro ano de sua circulação, a revista Realidade, nas edições de agosto (p. 19), outubro (p. 54), dezembro (p. 78), trouxe extensas matérias sobre três países que, naquele ano, estavam nos noticiários dos jornais: Argentina, China e Uruguai, respectivamente. O texto sobre a Argentina, centrado nas eleições daquele ano, 1966, recuava, num box, até a eleição do presidente Hipólito Irigoyen, em 1928, e reconstituía a sucessão dos presidentes argentinos, desde então. Diferentemente desta reportagem, assinada por José Hamilton Ribeiro, a sobre a China, sem assinatura, ia mais longe: recuava 20 séculos. Com o título de "Eis a China", o texto não se prendia à história política do país. Falava da origem do povo chinês, da invenção da pólvora, da China Medieval e chegava até a Revolução Cultural de Mao Tse-tung, ainda em processo, naquele momento. Já o texto sobre o Uruguai - "Uruguai, um país à espera do golpe?" -, assinado por José Carlos Marão, na análise do que se sucedia naquele instante da vida política do país, retroagia à gestão do presidente José Batlle, em 1903, quando foram aprovadas leis trabalhistas importantes. Deste modo, embora as três matérias tivessem em comum a preocupação de explicar a conjuntura de cada país, em 1966, cobriam faixas de tempos diferentes. Tinham alcances diferentes. Alcance é a distância do afastamento do tempo em direção ao passado, ao futuro ou entre ambos, medido a partir do que, no texto, é considerado o plano do presente. É um elemento importante na estruturação de uma narrativa porque permite a elaboração de segmentos dentro de vários planos de tempo. Em geral, segundo Fiorin e Savioli, os planos de tempo são introduzidos por demarcadores: tempos de verbos (está, estava, etc.); adjuntos adverbiais (no mês de dezembro); estações climáticas (no último inverno) (cf. Fiorin e Savioli, 1990, p. 157). Vejamos alguns segmentos da matéria sobre a China marcados por planos de tempo:

Milhares e milhares de soldados espalhados pelas margens do rio. De pé, sentados, encostados em seus fuzis e metralhadoras [ ... ] Os soldados do Exército Vermelho [ ... ] Um homem levanta os braços, vai falar. Faz-se grande silêncio. [ ] Uma aclamação ensurdecedora cai sobre suas últimas palavras. [ ] Era o mês de abril de 1949 e pode-se dizer que, ali, naquele instante, a China começava a sua longa marcha para o

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Comunismo.

Chiang está cada vez mais preocupado com a força crescente do partido comunista. E, de repente, numa noite de fevereiro de 1927, o Kuomintang renuncia aos três princípios de Sun Yat-sen e rompe com os comunistas.

Chama-se presente histórico o tempo verbal - utilizado nos segmentos transcritos - que aproxima fatos do passado, designando-os como se estivessem ocorrendo no presente. Deve-se atentar, portanto, para o fato de que o tempo presente da narrativa não é, necessariamente, o do momento da produção do texto. A reportagem sobre a China foi produzida em 1966. O presente no primeiro segmento transcrito corresponde a 1949 e no segundo, a 1927. Quando o presente, como nestes casos, é um marco temporal instalado no texto, deve-se atentar também para o seguinte: é em relação a ele - e não ao momento da produção do texto - que se definem os planos de tempo do passado ("Um mês antes ... ") e do futuro ("Dez anos depois ... ") de outros segmentos. Modalidades da expressão do tempo As diversas modalidades de expressão do tempo na narrativa é o que estudaremos neste item. Vamos começar observando como o tempo flui num texto sobre psicanálise, como ele é dividido, o que distingue um instante de outro. O trecho traz o que sente uma pessoa profundamente angustiada:

A humilhação passou a ódio, pequeno de início, mas antigo, que crescia dentro de Sandra. A porta. A porta fechada. Virou-se: havia outra porta atrás de si e mais outras, em cada parede, no chão, no teto. Estava encarcerada, incomunicável. Via os trincos, as fechaduras, as chaves. Em lugar de usá-las, esmurrava a madeira, ouvindo um eco, o som do choque de seus punhos contra as portas. Quanto mais batia, mais tinha a impressão de que aquela caixa feita de portas diminuía. Até que ficou do tamanho de seu corpo, como a pele. Gritou. Não ouviu nada. Agora rodopiava pelo quarto, em meio a objetos quebrados, espalhados pelo chão. De repente, viu um túnel de claridade partindo de si em direção à janela. O resto, escuro e ausente. Caminhou atendendo ao chamado da luz, porque parecia uma saída, uma libertação. Tocou a vidraça com as pontas dos dedos. Um medo imenso de si mesma explodiu num soluço. Então, atirou-se sobre a cama, agarrando o travesseiro. Veio o silêncio. Audível, intenso (p. 95).

Passemos, agora, para outro texto. A situação retratada nele é bem diferente daquela que se acabou de ver. Este texto mostra o início da festa de Oxum num terreiro de candomblé. Observe a passagem do tempo nele:

As cantigas foram se sucedendo e a coreografia também. A mãe-de-santo cantou para Ogum, enquanto as filhas-de-santo dançavam como se o terreiro fosse um campo de batalha, atacando inimigos postados nos quatro cantos da sala. Depois foi a vez de Oxóssi, elas fizeram gestos de caçadores. Para Xangô, dançaram semeando raios e trovões. Oxumaré foi saudado com uma coreografia onde os dedos apontavam o céu e a terra, representando, o arco-íris. Imitaram Omolu, um velho doente, e Nanã, uma velha que anda

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apoiada num bastão, Homenagearam Oxum mostrando em suas danças as jóias e a beleza do rosto e do corpo. E Iansã foi imitada em sua colheita de ventos (p. 43).

Pode-se facilmente perceber que tanto no primeiro texto (“Psicanálise", assinado por Roberto Freire, em Realidade de setembro de 1966, à página 92), como no segundo ("Um despacho de amor", assinado por Narciso Kalili, em Realidade de julho de 1966, à página 36), não há nenhuma indicação de quantos minutos transcorrem entre um instante e outro, nem de quanto dura cada instante. Neles, por conseguinte, o tempo não é dividido como o divide um relógio. A segunda constatação: o tempo do primeiro texto não é o mesmo do segundo. O do primeiro é pontuado por uma série de estados interiores, o do segundo, por uma série de gestos rituais. Resumindo, os dois tempos não são cronológicos e não são idênticos. Para identificá-los, vejamo-los dentro de um quadro de classificação oferecidp pela obra de Benedito Nunes, O tempo na narrativa.

Modalidades de expressão do tempo narrativo Tempo psicológico Não tem correspondência com medidas temporais objetivas porque é composto por uma sucessão de estados internos, subjetivos. assim, nele, o passado e o presente são momentos imprecisos fundidos. É, portanto, o tempo do texto assinado por Roberto Freire como se pode ver, ainda, neste outro trecho:

Subitamente, começou a sentir mãos que subiam por seu corpo, instalando-se dentro do peito, num aperto que produzia mais morte que dor .. Apertavam mais e mais. Era preciso deixar que terminassem o serviço, pois no fim do estrangulamento viria a paz. Bastava, apenas, não morrer, Os olhos, os ouvidos, as mãos abriram-se juntos trazendo o alivio. Escapara mais uma vez (p. 95).

Tempo físico É o tempo da natureza, do cosmo. Qualquer sistema de relação entre eventos, em qualquer ponto do Universo pode medi-lo. Nele, o presente e percebido em função do passado e do futuro. Esse tempo natural é o que aparece na narrativa de uma viagem de navio entre Belém e Manaus, no texto "Estamos em pleno rio”, assinado por Jose Carlos Marão, na edição de junho de 1967 à pagina 116, de Realidade. A viagem durou oito dias, mas nada no texto situa estes dias em qualquer mês, de qualquer ano.

O navio já entrando na baía de Marajó, prático e comandante continuam conversando, enquanto na terceira classe, com a trepidação da partida e com o sol já ameaçando nascer, começavam a acordar os, melros. [...] Correram bem as coisas na terceira classe, naquele primeiro dia de viagem. [...] Mas o dia que tão calmo começou ia ser agitado, também, na primeira classe. [...] Pouco mais aconteceu naquele dia, além da descoberta de Cornélio, o clandestino. [...] Mesmo sendo noite, a maioria dos passageiros desceu. [...] O dia passado

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em Santarém, cada um gastou como quis. [...] Várias pessoas jogavam a noite, no bar, quando começou uma ventania. Todo mundo correu para os camarotes. O céu se iluminava.

Tempo cronológico É o tempo dos calendários, portanto, um tempo socializado, público. Seu marco pode ser um "acontecimento qualificado" qualquer. O nascimento de Cristo, por exemplo. Tem, assim, expressões específicas e autônomas em cada cultura. No texto "O tropicalismo é nosso, viu?", sem assinatura, de Realidade de dezembro de 1968, à página 174, o tempo é, claramente, cronológico - o nosso, do calendário cristão:

Três anos atrás, quando Roberto Carlos fez o Brasil desejar que tudo mais fosse para o inferno, ninguém o levou muito a sério. Mas era evidente que um ciclo cultural se estava fechando. [...] As exposições Opinião, no Rio, e Propostas 66, em São Paulo, vieram simplesmente confirmar a impressão deixada pela Bienal de 1965. [...] Isto foi válido até que, em 1967, o Teatro Oficina levou à cena O rei da vela, de Oswald de Andrade. [...] Terra em transe, embora feito em 1966, ainda hoje divide a crítica e o público. [...] Quando do lançamento do disco Tropicália, em agosto de 1968 [...].

É claro que o calendário cristão não é o único, Outras culturas têm seus calendários próprios. Tempo lingüístico Os eventos são organizados a partir de um marco temporal instalado no texto - um "agora" - que, como já vimos em item anterior, não é necessariamente o momento da sua produção. É apenas um eixo temporal que define o que é passado e futuro na narrativa. Um "agora" correspondente a dez anos depois do momento em que foi escrito o texto era o eixo temporal de uma reportagem ficção - "Sete dias de maio, 1977" -, assinada por Luiz Fernando Mercadante, em Realidade. A matéria foi publicada em maio de 1967, à página 132, e a história se passava em maio de 1977. Havia trechos em que acontecimentos colocados pela narrativa no passado ocorriam em um momento que, para a própria revista, representava o futuro.

2 de maio _ segunda-feira, 12 horas - Preso ao estudo do Itamarati, Júlio Tavares custa a perceber que não está só. Com gesto vago, indica a poltrona mais próxima ao seu secretário de Imprensa, Evandro Carlos de Andrade. Está desligado, totalmente absorvido. Evandro sabe disso: conhece, como poucos, aquele homem voluntarioso e sério, capaz de trabalhar com devoção e entrega incomuns. Repórter político, vira-o chegar à Câmara Federal há apenas seis anos (1971), tão ilustre quanto desconhecido. Advinhou nele um parlamentar de valor. Acertou: Júlio Tavares passou o ano inteiro trabalhando furiosamente nas comissões e estremeceu o plenário, em 1972, exigindo cortes no orçamento de Defesa.

Retardação

- É só pena que avoa.

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Mão Pelada gritou a frase e se atirou de barriga no chão, para escapar das balas que varavam as casas, espirrando reboco pelo chão. A população inteira do povoado estava como Mão Pelada, deitada para não morrer, de barriga no chão. O mulato Ferreira, que trocava tiros com o cabo e dois soldados correu para trás de um beiral de rancho, quando viu que a rua ficou deserta. Lá, Jogou seu chapéu no chão e continuou atirando até acabar sua munição, uns 50 tiros depois. Foi, então, preso, bêbado de cair.

Assim inicia a narrativa sobre o garimpo no rio Paranatinga, em Mato Grosso, no texto da reportagem “Diamante, calibre 38", assinada por Carlos Azevedo, em Realidade de julho de 1966, à página 84. Acompanhemos a narrativa. Depois que Mão Pelada é preso, o povo do garimpo começa a aparecer nas portas das casas. Os meninos vão catar cascas de balas no chão. Os homens comentam alegremente o tiroteio enquanto limpam a poeira da roupa. Neste instante, o narrador interrompe a seqüência dos fatos para, inicialmente, esclarecer que o tiroteio aconteceu numa manhã de domingo. Depois observa:

Não que aqui todo domingo haja tiroteio. Mas e uma coisa que bem pode acontecer.

E acrescenta:

Aqui se procura diamante. E se acha de encher a mão. E fácil achar outras coisas também: o diamante só vem para quem sabe e a sorte ajuda, mas a malária é violenta e o cemitério já tem mais de 20 sepulturas

Após estes comentários, o leitor talvez suponha que a narrativa vá ser retomada a partir da prisão de Mão Pelada. Não é o que acontece, contudo. O narrador, em seguida, começa a contar como surgiu o garimpo ali, introduzindo um plano de tempo recuado três anos do "agora" instalado no texto.

E não faz muito tempo que tudo começou. No fim de 1963, o velho Abrão Bezerra apareceu no escritório de Apolônio Bouret, em Cuiabá. A mão cheia, perguntou:

- O que é isto?

Apolônio, comprador de diamantes, comerciante rico, chefe político, deu um grito e comprou tudo.

- Onde foi, velho Abrão?

O criador de gado Abrão Bezerra contou que achou os diamantes nas barrancas do rio Paranatinga, a 400 quilômetros de Cuiabá. A notícia da sua descoberta rapidamente chegou nos garimpos no leste e do noroeste de Mato Grosso. Destes lugares saíram seis mil pessoas que, em busca da mesma sorte de Abraão, foram instalar-se perto do Paranatinga. Agora sim a narrativa retoma sua seqüência inicial. Porém com una alteração: os fatos não estão mais sucedendo nas ruas onde houve o tiroteio. Mas noutro espaço. No rio. O rio, diz o narrador, é uma bagunça. Os garimpeiros – uns colados nos outros –

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arrancam cascalhos do fundo do rio, lavam os pedregulhos nas peneiras, isto enquanto gritam e riem alto. Quando algum deles acha o diamante, saca o revólver e dispara. Neste momento, o narrador introduz na narrativa outro personagem, Ursulino, misto de garimpeiro e poeta. É ele quem afirma:

- O que mais gosto aqui, mesmo, é da satisfação. Só se trabalha contando anedota.

Ursulino explica, então, como os garimpeiros se organizam para trabalhar, e a narrativa prosseguirá ocupando ainda mais cinco páginas da revista. Nós, no entanto, podemos nos deter neste ponto para observarmos melhor o que aconteceu até aqui. A primeira observação que já podemos fazer: a narrativa evidentemente não vinha seguindo uma seqüência linear de tempo. Podemos notar, além disso, que a quebra da linearidade da seqüência do tempo se dá de diferentes formas:

a) pela introdução de comentários do narrador.

Pela inserção de um plano de tempo anterior ao do momento convencionado como “agora” no texto. Por fim podemos também perceber que as quebras da linearidade da seqüência do tempo retardaram o ritmo da narrativa. Os recursos empregados pelo narrador para retardar o ritmo da narrativa - como os comentários do narrador e os recuos no tempo, vistos no texto sobre o garimpo no rio Paranatinga - são o nosso assunto, neste item. Consideraremos cinco recursos, mencionados por Mesquita 16: 1º) Retardação através de evocações de momentos anteriores. São recursos que podem aparecer através de recuos, como quando o salto temporal (isto é, o deslocamento de um ponto a outro na seqüência do tempo, sem o preenchimento dos períodos vazios) se dá para trás. Podem aparecer, ainda, através de retrospectivas, as exposições separadas do corpo do texto central. No Jornalismo, as retrospectivas, em geral, constituem boxes. Por exemplo, na Realidade de abril de 1966, à página 38, a reportagem "Brasileiros, go home", assinada por Luiz Fernando Mercadante, traz, como texto central, a narrativa de três semanas da permanência de soldados brasileiros, integrantes da Força Interamericana de Paz, da OEA, na República Dominicana. O texto sobre aquelas três semanas abre com uma cena de rua em que surge um comboio brasileiro, transitando por São Domingos, sob a hostilidade de pessoas do povo, que gritam: "00 home! 00 home! Invasores, go home!". Entretanto, este texto é antecedido por outro que ocupa uma coluna de alto a baixo da página, com o título de "A ilha de sangue", em que é resumida a história política dominicana, desde o seu descobrimento por Colombo, em 1492, até a crise que levou à intervenção da força armada da OEA. 2º) Retardação através de antecipações de momentos posteriores àquele em que está transcorrendo a narrativa, isto é, a seu "agora". O salto temporal então se dá para a frente. Freqüentemente, o texto da reportagem narrativa abre com uma antecipação do desenlace, mostrado de modo parcial. Logo em seguida, a história começa e vai avançando com linearidade até chegar, de novo, ao desenlace, mostrado,

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então, de forma completa. O texto que traz uma narrativa estruturada desta forma recebe no jargão jornalístico a denominação de redondo. É o caso do texto assinado por José Carlos Marão sobre o concurso de Miss Brasil - "Pobre menina miss" - em Realidade, de agosto de 1966, à página 88. A narrativa começa às 20 horas de um sábado, no estádio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro; minutos antes do desfile das candidatas.

Às oito da noite, 40 mil pessoas já estão no Maracanãzinho, pois nada mais importante existe para elas que um concurso de Miss Brasil.

Naquele momento alguns travestis haviam ocupado as passarelas reservadas às misses e o público se divertia aplaudindo e gritando. Em seguida, há um recuo para a terça-feira daquela semana, quando as candidatas estão desembarcando, vindas de todos os estados no Aeroporto do Rio de Janeiro.

Na hora em que descem do avião, acompanhadas de suas orgulhosas mães, encontram logo os donos do concurso: organizadores, “guardiãs”, instrutoras, cicerones [...]

E, a partir daí, os dias daquela semana das candidatas são reconstituídos. Na terça-feira mesmo tiram oficialmente as medidas de seus bustos, quadris, tornozelos etc, medem suas alturas e verificam seus pesos. Na quinta-feira, iniciam-se os ensaios do desfile. Na sexta-feira há o ensaio geral. No sábado, pela manhã e à tarde, sessões de cabeleireiros e manicures. Cada momento destes aparece com muitos detalhes. Finalmente, a narrativa chega ao momento já antecipado na sua abertura.

Às oito e meia, o Maracanãzinho lotado começa uma briga (só de boca, não de tapa) bem na entrada da passarela.

E, então, o desfile é mostrado pormenorizadamente: o curralzinho onde a imprensa ficou confinada, as vaias e os aplausos do público, os apresentadores de desfile, as performances das misses, os seus trajes típicos, os jurados, as eleitas, a reação das derrotadas. E o texto se encerra assim: A festa acabou-se; às derrotadas resta ouvir os estouros do champanha que não vão beber; com as três vencedoras fica a certeza de que tudo vai recomeçar, em outros lugares do mundo, onde locutores dirão em inglês – e em polegadas – quanto mede cada parte dos seus corpos. 3º) Retardação através de projeções do mundo interior das personagens: suas lembranças, fantasias, seus sonhos e desejos. No texto do perfil de Walt Disney, assinado por Oriana Fallaci e publicado na Realidade em outubro de 1966, à página 88, a jornalista aparece simultaneamente como narradora e personagem, pois o texto é escrito em primeira pessoa. No momento em que aguarda, nos estúdios da Walt Disney Productions, a chegada de Disney, a quem verá pela primeira vez, ocorre à narradora-personagem esta lembrança:

[...]Eu também cresci com Mickey. Tinha três anos quando a mãe bordou-o no meu vestidinho, seis quando conheci os Três porquinhos. Com eles fui para a escola. Na escola, cantávamos o estribilho de Branca de Neve, e o primeiro desenho que fiz foi Pluto.

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4º) Retardação através de digressões, desvios da seqüência narrativa, provocados pelo narrador, que retardam o desenrolar da ação 19. Estas digressões do narrador podem ser: - Diálogos com o leitor. No mesmo trecho do texto de ariana Fallaci, a jornalista-narradora-personagem acaba de ouvir de alguém que Walt Disney é um santo. Ela, neste momento, diz que está cada vez mais nervosa e, dirigindo-se aos leitores, acrescenta:

Um gênio é algo que incomoda, imaginem um santo.

- Reflexões, avaliações, opiniões, considerações filosóficas. Neste mesmo texto assinado por Fallaci sobre Disney, há um outro trecho, extenso, com a transcrição da primeira conversa que os dois tiveram. Num certo instante da conversa, Disney encerra a resposta a uma pergunta de Fallaci e ela faz a seguinte reflexão:

O homem às vezes é complicado. No exato momento em que penso ter descoberto seu segredo, escapa-me das mãos e torna-se outro.

- Comentários sobre o que ele narra ou sobre a sua maneira de narrar. Por exemplo, no texto assinado por Roberto Freire sobre a mãe-de-santo Olga de Ala-Kêtu, de Salvador, em Realidade, de janeiro de 1967, à página 88, o narrador, antes de descrever a personagem ("alga é uma mulher saudável e bonita, de traços finos, cheia de corpo ... "), adverte:

Vou falar de Olga. Mais precisamente de dona alga Francisco Régis, uma senhora baiana de 41 anos que se tornou famosa e respeitada na cidade de Salvador. É também conhecida por alga do Ala-Kêtu ou aiá-Fumim ou, ainda, lá-Luifá. Porque se trata de uma mãe-de-santo. Para falar de alga, portanto, será preciso falar de sua religião. Mas sou católico, pouco conheço da vida espiritual e dos ritos, das pessoas de gente-de-santo, de candomblé. a que disser é de conhecer e de ter visto. Há muito de ouvir contar também, e de coisas que me foram ensinadas.

5º) Retardação através de micronarrativas. Roberto Freire assina outro texto na Realidade de dezembro de 1966, à página 68, sobre Chico Buarque de Hollanda - ao qual retornaremos no capítulo com as conclusões deste trabalho -, em que são misturados vários planos de tempo. a segmento correspondente ao presente (ao "agora" instalado no texto) é fragmentado em vários segmentos menores que espalhados entre os segmentos correspondentes a outros planos de tempo e separados apenas por linhas ponteadas, funcionam como micronarrativas. Entre um trecho em que o narrador fala de como Chico conseguiu criar um sanduíche chamado de Holanda e outro trecho sobre a casa, no Pacaembu, em São Paulo, onde ele cresceu, aparece o seguinte: Embarcamos no Eletra para São Paulo. Não fumamos, apertamos os cintos, fingimos coragem. "Lemos" jornais. A certa altura da viagem, por uma fresta da parede do avião começa a subir intensa fumaça.

- Que é isso?

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- Fumaça, não está vendo?

- Fumaça de quê?

- Ora onde há fumaça há...

Damos berros. A aeromoça aproximou-se assustada. Vê o Chico e vibra.

- Você não é Chico Buarque?

- E gostaria de continuar sendo ... olha essa fumaceira aí.

A moça ri e explica que é vapor d'água, pois há pequeno defeito no aparelho de refrigeração. E pede-lhe um autógrafo sua fotografia na capa. A assinatura, que pôs em cima do nariz dele mesmo, saiu meio trêmula.

Aceleração No item anterior, observamos como através da interrupção da linearidade da seqüência temporal se retarda o desenrolar da ação na narrativa. Neste item, nos deteremos nos recursos através dos quais a narrativa pode, por outro lado, ser acelerada. Consideraremos três destes recursos, também citados por Mesquita: 1º) Aceleração através de diálogo. Uma história avança não através daquilo que as personagens fazem mas, também, através daquilo que elas dizem. Ao instaurar o diálogo na narrativa, o narrador cede a palavra às personagens, abdicando, aparentemente, de uma função mediadora. Presença dissimulada, o narrador, de fato, é livre para instaurar ou interromper o diálogo quando achar oportuno, devendo levar em conta, somente, as imposições da própria narrativa (cf. Lopes & Reis, 1988, p. 235). Como a fala de uma pessoa é, comumente, carregada de indícios sobre a sua região, a profissão que exerce, a classe social de onde provém, segundo os autores, o diálogo permite, de forma indireta, a caracterização das personagens e do cenário social onde elas se movimentam, Trataremos disto adiante. Foi, certamente, para preservar os traços caracterizadores da fala que o narrador do texto assinado por Roberto Freire sobre o pistoleiro alagoano Zé Crispim ocupou cinco páginas da reportagem "Profissão, matador", na Realidade de março de 1968, à página 42, apenas com diálogos. Nestas páginas foram reproduzidos - sem que o narrado r em momento algum se intrometesse - dois depoimentos de Zé Crispim em delegacias de polícia e uma entrevista a um jornal de Alagoas. Trechos dos diálogos:

Delegado - O ex-deputado Robson Mendes foi assassinado no dia 8 de março. Foi o senhor que o matou?

Crispim - Fui eu, sim senhor. Matei pra não morrer. Sabia que o homem ia me matar.

Delegado - Já conhecia Robson?

Crispim - Não tinha controle com ele. Vim ter depois que cheguei. Ele mandou me chamar. Eu fui, porque ele era acostumado.

Delegado - Que foi que o sr. Robson Mendes conversou contigo?

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Crispim - Eu cheguei lá na casa dele, ele disse: "José, eu quero que você trabalhe, passe uns dias aqui comigo, pois eu fui cassado no meu mandato, sou perseguido pela Polícia e estou disposto a morrer e a matar. Mas não me incomodo de acabar os meus dias de vida matando gente. Tenho mais de cem pra matar".

Delegado - Qual foi o salário que ele pagou?

Crispim - O salário dele era quinze contos, vinte por semana.

Delegado - E depois?

Crispim - Depois, durante esses trinta dias que passei com eles, nesses 29 dias foram mortos dois. Dois vigias dele. Um porque tava conversando demais, e o outro era outro pistoleiro que foi expulso da polícia.

Crispim - Esse vigia que a gente matou foi queimado por sr. Robes Mendes, por mim e esse rapazinho que tá aí mesmo. Transportamos e levamos uma lata de querosene, gasolina e fomos queimá-lo em Pernambuco. Chegamos em Pernambuco, ele, sr. Robes, parou a camioneta, arrastou o vigia pela perna, com o outro, esse menino que está aí, eu levei a lata de querosene, a lata de gasolina, semeei por cima do vigia, enrolado numa rede, ele, sr. Robson, riscou um fósforo e deixou a labareda que subia mais alto do que trinta metros. Ficou queimando e nós viemos embora. Então, no caminho de lá pra cá foi assassinado sr. Robes Mendes por mim e esse rapazinho que está aí.

2º) Aceleração através de discurso direto. No discurso indireto o narrado r usa suas próprias palavras para transmitir o que disse alguma personagem. Em geral, seleciona, resume e interpreta o que foi dito pela personagem. Já no discurso direto, o narrador limitase a reproduzir a fala das personagens, fazendo uso das palavras empregadas por elas. A voz das personagens autonomiza-se 20 (cf. Lopes & Reis, 1988, p. 275). O discurso direto ocorre nos diálogos, como já vimos, e, ainda, nos monólogos. Com um longo monólogo, a reportagem "Suicídio", na Realidade de março de 1968, traz, em quatro páginas (93 a 98), a história de uma moça de 27 anos que, por três vezes, tentara se matar. A matéria foi assinada como "depoimento a Estela Lachter" e nela - exceto num box, ao final, com dados estatísticos sobre o suicídio e com análises de religiosos, advogados, antropólogos e sociólogos - quem fala é só a moça, personagem central.

Tentei me matar três vezes. A primeira vez tinha 17 anos, a segunda, 20, a terceira, 22. De cada uma delas, guardei uma lembrança absolutamente diversa, mas hoje me parece que todas as vezes foram uma só.

Tenho 27 anos e a sensação de estar só agora descobrindo o mundo. Trabalho em jornal, escrevo. Tenho um livro para acabar de pensar, uma peça de teatro para terminar na semana que vem, todas as inseguranças do mundo e uma fé tão grande quantas são as minhas inseguranças. Fora isso, tendo guardado e conservado todas as experiências suicidas por que passei - acalentando-as como uma muleta a que me apego para dizer:

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aprendi, venci, logo não estou tão na fossa -, acho estranho que esteja escrevendo estas verdades para uma revista. Enfim ...

O verbo que introduz a fala de uma personagem chama-se dicendi. 3º) Aceleração através do antes seguido do depois. Quando nada interrompe a seqüência linear de tempo na narrativa, ela, é claro, se desenrola mais aceleradamente do que quando tem recuos, antecipações; digressões, etc. Duração Neste item estudaremos a relação entre o tempo de duração de um fato e o espaço que ele ocupa numa narrativa. Vamos, de início, comparar estas proporções. Um incidente transcorrido em alguns poucos minutos ocupou treze linhas do texto, já citado, "Resgate de uma tribo", na Realidade de dezembro de 1966, à página 45, sobre os quarenta dias nos quais os repórteres Carlos Azevedo e Luigi Mamprin permaneceram na floresta Amazônica, acompanhando a missão de resgate dos índios Caiabis, ameaçados de desaparecimento. O incidente:

Logo depois de uma sucuri escapar prudentemente de um tiroteio, uma anta enorme tentou atravessar à frente da frota. Assustada, mergulhou procurando voltar por onde viera. Reapareceu, mas um tiro de fuzil que bateu na água a meio palmo de seu focinho obrigou-a a mergulhar outra vez. Ela só voltou a aparecer na margem 50 metros adiante. Quando ia entrando no mato, porém, recebeu o primeiro tiro. Cambaleou. Outros cinco tiros bateram em cheio no seu corpo. Ela caiu de joelhos e depois rolou mansamente para o rio, morta. Pesava uns 200 quilos.

Mais à frente, no mesmo texto, à página 54, um período de tempo muito maior - correspondente a oito dos quarenta dias que duraram a missão - Ocupa igual número de linhas.

O avião iria demorar oito dias para vir buscar a coluna. Confortavelmente instalados num bom acampamento na beira de um córrego de águas geladas que corriam entre pedras, com comida farta e roupa limpa, os homens começaram a se recuperar enquanto esperavam, impacientes, a chegada do avião.

Os que tinham emagrecido começavam a engordar. Inventavam-se doces de frutas silvestres, saía-se para caçar. Com a fartura de remédios e os cuidados do doutor Santos, médico dos pára-quedistas, já não havia mais doentes.

Não há, portanto, necessariamente, uma correspondência entre a duração de um fato e a extensão de espaço que Ocupa na narrativa. Para compreendermos isto, precisamos distinguir dois termos da teoria da narrativa: história e discurso. A história é a sucessão de acontecimentos, personagens e cenários evocados pelo texto narrativo. É o conteúdo da narrativa. Discurso é o modo como o narrador dá a conhecer a história aos leitores, logo, é o próprio texto narrativo em que a história é plasmada. A unidade de medida da duração da história é temporal: o segundo, o minuto, a hora, o dia, etc. A unidade de medida da duração do discurso é espacial: a linha Ou a página (cf. Lopes & Reis, 1988, p. 49).

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Vejamos como se relacionam a duração da história com a do discurso, através das chamadas figuras de duração:

1º) Sumário. O tempo da história aparece num espaço sensivelmente reduzido do discurso, num espaço bem menor do que a sua ocorrência exigiria. "Se instaura uma espécie de desvalorização da matéria narrada" (cf. Lopes & Reis, 1988, p. 293). Dentro da narrativa, o sumário exerce diversas funções, como as de: a) ligação entre episódios; b) resumo de acontecimentos menos importantes; c) rápida preparação para ações relevantes. Essas funções são claramente perceptíveis no sumário dos oito dias da missão de resgate dos Caiabis, transcrito há pouco. Antes do sumário há, na narrativa, o episódio do fim da fome que atormentava a missão, ocorrido no 28° dia, e, depois, o episódio da chegada do avião, que encerra a missão, com o transporte de seus membros para fora da floresta. 2°) Alongamento. Efeito oposto ao do sumário. O tempo da história aparece num espaço ampliado do discurso, num espaço maior do que a sua ocorrência exigiria. As passagens, por isso, se dão em "câmera lenta". Num texto sobre o trabalho de um professor de cirurgia cardíaca, assinado por Narciso Kalili, "Silêncio: eles estão abrindo um coração" - em Realidade de agosto de 1966, à página 106 -, o narrador ocupa um espaço correspondente a 450 linhas com a descrição, detalhe a detalhe, de uma operação de coração, realizada numa criança. A narrativa avança vagarosamente, conforme se pode observar nos seguintes trechos:

O dr. Campos abriu o corte: da base do pescoço de Cristina, uma garota de quatro anos e meio, até o fim do osso esterno. Afundou o aço fino várias vezes, ultrapassando a pele e a camada amarela de gordura. O corte não tinha mais de dez centímetros. Depois usou o bisturi elétrico, cauterizando e fechando os pequeninos vasos que sangravam, tingindo de vermelho as primeiras toalhas. Costurando a pele da paciente ao lençol, limitando assim a área da operação a um retângulo de 20 a 15 centímetros, o dr. Campos comentava com seus assistentes [ ... ].

Sílvio, o médico anestesista, anotou mais uma vez a pressão arterial de Cristina e olhou para o quadro onde eram marcadas as quantidades de sangue perdidas pela paciente. Comparou o número com a pressão, fez um cálculo relativo ao peso e altura da menina, abriu o tubo que saía da garrafa de plasma e o sangue começou a pingar lentamente nas veias de Cristina. Depois de verificar a coloração dos olhos da menina na parte irrigada pelo sangue voltou a sentar-se.

3º) Cena. Há uma aproximação entre a duração do tempo de um acontecimento e o espaço que ele ocupa no texto. Segundo Lopes e Reis, esta característica da cena resulta do fato de que nela é reproduzido o discurso das personagens, com respeito integral às suas falas e à ordem em que elas se desenvolvem. Deste fato resulta, também, uma semelhança da cena com o texto de teatro. Numa cena, o narrador encara as personagens como atores, e as suas falas, como componentes de um diálogo dramático. "O que implica que o narrador desapareça total ou parcialmente"

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(1988, p. 233). Mas isto, naturalmente, não impede o narrador de - através de vários recursos - continuar a controlar o desenrolar da cena. Ele distribui e introduz as falas no texto, fornece as informações sobre as relações espaciais e psicológicas que as personagens mantêm entre si, introduz comentários, etc. É o que faz, por exemplo, o narrador neste trecho do texto "Os meninos de Recife" , assinado por Roberto Freire, em Realidade de agosto de 1967, à página 24, sobre a ação assistencial de um advogado - Maurício - entre os menores abandonados da cidade.

Maurício temia que os policiais os descobrissem. Começou a sacu. dir os meninos que despertaram mas ficam tontos por algum tempo, até que o pretinho começou a vomitar. O outro quis fugir. Maurício segurou-o:

- Não tenham medo, sou amigo. Enganei a Polícia. A maconha está comigo, depois devolvo.

Os dois olhavam desconfiados e ainda meio tontos, mas não diziam nada.

- Vocês podem vir comigo, eu escondo vocês até amanhã.

- Me dê a erva - disse o pretinho.

- Ainda não. Se nos pegarem, vocês não sofrerão nada. Eu agüento a mão.

- Por que você faz isso?

- Eu não fumo cigarro, nem puxo a erva. Quero ser amigo.

- Porquê?

- Depois eu conto. Vamos embora daqui. A gente fica na igreja de um padre amigo meu. A gente vai separado.

Maurício saiu do cano e foi caminhando pela margem do rio. Depois seguiu pela ponte. Andava sem olhar para trás.

4º) Pausa. O tempo da história pára, interrompe-se a sucessão de acontecimentos, personagens e cenários, mas prossegue o discurso, o texto. O prosseguimento do discurso - do texto - fora do tempo da história é o que acontece em diversas formas de digressão e, às vezes, na descrição - o tema da parte 4 deste trabalho. Numa matéria sobre doenças mentais - "É a loucura" - assinada por Norma Freire, em Realidade de junho de 1968, à página 62, há a história de Madalena, uma alcoólatra de 31 anos. A história inicia-se quando Madalena se aproxima de um grupo de crianças que brincam com seus caminhõezinhos e suas bolas. Ela cambaleia e desaba no chão. As crianças largam seus brinquedos e ficam olhando a mulher traçar círculos no ar com a armação de um velho guarda-chuva, enquanto canta. Chegam os parentes de Madalena, que a encontram chorando baixinho. Levam-na para um hospital de doenças mentais e lá informam que ela bebe mais de um litro de cachaça por dia. O médico que atende Madalena percebe que os sentidos dela estão embotados. Neste instante, o narrador pára a história para dizer:

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Doze por cento dos pacientes que dão entrada nos hospitais de psicopatas são alcoólatras. O alcoolismo não constitui por si só uma doença mental, assim como as toxicomanias (cocaína e morfina, entre outras), mas indica, sem dúvida, uma inadaptação ao meio ambiente, provocada na maioria das vezes por razões psíquicas. Entretanto, o uso prolongado desses tóxicos vai comprometendo gra• dualmente a personalidade, causando intoxicações que se traduzem por alterações mentais mais ou menos graves.

Só depois dessa digressão, o narrador retorna ao tempo da história de Madalena dizendo que ela vivia tremendo, como se estivesse com frio, e que sentia muito medo. Quando o narrador pára o tempo de uma história, não para introduzir uma digressão ou fazer uma descrição, mas para iniciar outra história, e, depois, pára o tempo desta última história para voltar ao daquela e, assim, vai intercalando a seqüência de uma com a outra, diz-se que há uma alternância. 5º) Elipse. Ao contrário do que ocorre na pausa, na elipse é o tempo do discurso - do texto - que pára enquanto prossegue o da história, isto é, a sucessão de acontecimentos, personagens e cenários. "A elipse constitui toda forma de supressão de lapsos temporais mais ou menos alargados" (Lopes & Reis, 1988, p. 242). É o que em linguagem cinematográfica se designa como corte. Se o salto no tempo é anunciado por expressões como "dez meses depois", "algumas horas mais tarde", diz-se que a elipse é explícita. No perfil de Roberto Carlos, assinado por Roberto Freire, na Realidade de novembro de 1968, à página 84, o jornalista-narrador-personagem acompanha o cantor durante uma gravações de disco, programas de TV. A narrativa salta dois dias, semana, em shows, no meio desta semana, do e momento em que os dois jantam juntos com amigos do cantor, para quando se reencontram no aeroporto de São Paulo. O trecho em que aparece a elipse, correspondente ao final do momento do jantar e o início do reencontro, é o seguinte:

(Roberto Carlos) Ouviu piadas, riu de pequenas brincadeiras mas quando nos despedimos seu sorriso continuava contrastando com as olheiras dramáticas.

Dois dias depois, no aeroporto de São Paulo, Roberto embarcava para Santa Catarina. Estava ainda triste e abatido. No aeroporto de Florianópolis, uma multidão de jovens o esperava. O sorriso e o aceno que dirigiu às pessoas que gritavam seu nome foi tímido, inseguro, quase aflito.

Espaço A Folha de S. Paulo estabelece, através de seu Manual geral de redação, edição de 1987, página 93, que suas pautas devem conter seis itens. Os cinco primeiros revelam a dimensão abstrata dos acontecimentos selecionados para abordagem em suas páginas: breve histórico destes acontecimentos, uma hipótese para ser testada, aspectos mais relevantes para a linha editorial do jornal e aspectos pouco explorados. O último item é o que dá concretude às pautas. Diz respeito às indicações de nomes de pessoas, com seus endereços e telefones, que possam servir como fontes de informações. A importância desta diversidade de dimensões dos itens das pautas de uma publicação para o que nos interessa é que ela é ilustrativa de uma verdade singela: os acontecimentos abordados pela imprensa não ocorrem num limbo

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etéreo mas num espaço determinado. Por isso, para se escrever sobre eles, endereços e telefones são indispensáveis. O espaço dos acontecimentos, recriados nos textos veiculados na imprensa, é o que vamos estudar neste item. Como é precisamente aquilo que contém um texto o que nos interessa (e não o que é externo a ele), comecemos pelo que José Luiz Fiorin e Francisco Platão Savioli, em Para entender o texto (1990, p. 157), assinalam sobre as convenções na recriação do espaço dentro do texto narrativo: a) os fatos narrados ou as personagens podem ser distribuídos pelo narrador por lugares distintos do texto; b) para demarcar os vários planos de oposição espacial entre estes lugares, o narrador instala balizas organizadoras do espaço: o aqui oposto ao aí e ao lá, ou o lado de dentro oposto ao lado de fora, etc.; c) se o narrador tomar, num eixo vertical, o que está no alto, como uma das balizas organizadoras do espaço, fazendo deste ponto o seu aqui, em conseqüência, o que estiver no baixo será o lá. Se, num eixo horizontal, tomar o que está na esquerda como o lá, o que estiver na direita será o aqui; d) de qualquer forma, haverá sempre nos textos demarcadores, palavras que servem para delimitar os espaços; e) os demarcadores são, basicamente: adjuntos adverbiais de lugar (aqui, ali, lá, no alto, em São Paulo, etc.), substantivos que denominam espaço (pátria, Brasil, exílio, etc.) ou palavras que designam deslocamento de personagens (saída de casa, ida para a Bahia, etc.). Num texto sobre os messias nordestinos - "O sertão quer um messias" _ assinado por Dirceu Soares, na Realidade de novembro de 1968, à página 148, há a narrativa do cotidiano de um deles, Frei Damião, em permanente peregrinação pelos lugarejos da região. Num certo instante da narrativa ocorre um diálogo em que o aqui é Pombal, na Paraíba, e o lá são os outros lugarejos.

- Frei Damião está em Pombal, interior da Paraíba.

- Não, aqui não está. Foi para Paulista anteontem. Hoje estará em Lagoa Escondida, a 6 léguas daqui.

Vistos os elementos necessários à organização do espaço, passemos à variedade de aspectos que o espaço pode assumir na narrativa. Lopes e Reis (1988, p. 204) distinguem três aspectos: Iº) Espaço físico. Os dois autores vêem o espaço físico de dois modos: como o cenário natural que serve ao desenrolar da ação e da movimentação das personagens e como os elementos de decorações de interiores. Antonio Candido também - conforme Dimas (1987, p. q) _ concebe o espaço físico tanto dentro de dimensões gerais e amplas (a praça, a rua, etc.) como de particulares e restritos (os quartos, as escadas, os pátios) num artigo para a Revista de Letras, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, volume 14, de 1972, sobre uma obra de Émile Zola. Essas duas dimensões do espaço físico estão claras no texto assinado por Luiz Fernando Mercadante, citado anteriormente, com a narrativa de três semanas de acompanhamento das atividades dos soldados brasileiros que integraram a Força

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Interamericana de Paz, convocada pela ONU para intervir na política interna de São Domingos. A ação na narrativa inicia-se num espaço amplo:

Faróis acesos ao sol do meio-dia, para que ninguém lhe corte a frente, o comboio brasileiro contorna a catedral de São Domingos - a mais antiga do Novo Mundo - e avança por ruas estreitas e vazias. [ ... ] Os velhos sobrados de cores berrantes, paredes furadas por balas perdidas, parecem desertos. Mas a cidade, que se faz de morta, res. suscita em cada quarteirão à passagem do comboio. E das casas amarelas, verdes, alaranjadas e azuis explode em gritos roucos um coro de fantasmas:

- Go home! Go home! Invasores, go home!

Adiante, o espaço físico da ação da narrativa se reduz:

Barraca de soldado tem 30 metros quadrados. Dá para 8 homens. A cama é de lona, brasileira, igual para todos, até para o comandante. E as paredes da barraca estão sempre cobertas de fotografias: garotas de biqUíni, como se vê nos filmes de guerra. Entre as estrangeiras, Ursula Andress ganha longe. Entre as brasileiras, Marivalda está em primeiro.

2º) Espaço social. Sem o cunho às vezes estático do espaço físico, o espaço social apreende as atmosferas que reinam em certos ambientes sociais (cL Lopes & Reis, 1988, p. 205). Portanto, o que dá forma e significação ao espaço social é tanto a presença nele de personalidades reconhecidas em determinados ambientes, como a de pessoas características destes ambientes, aquelas conhecidas como tipos, quando transportadas para o universo do texto dramático. Foi certamente por compreender que um país, além de poder ser visto como espaço físico, pode ser visto também como espaço Social, e ainda por compreender também a importância para cada ambiente, tanto das suas personalidades como de seus tipos, que Luiz Fernando Mercadante tomou duas decisões ao ser encarregado pela Realidade, em 1966, durante o governo do Marechal Castelo Branco, de perguntar à população nacional se no Brasil havia liberdade. A primeira decisão foi a de dividir o país, não geografica~ente, mas por seus espaços sociais. Deste modo, ele ouviu pessoas ligadas aos setores político, artístico, estudantil, religioso, jornalístico e sindical. A segunda foi a de ouvir tanto pessoas eminentes - o advogado Sobral Pinto, o teatrólogo Dias Gomes, o jornalista Prudente de Moraes Neto, o presidente do Senado, Auro Moura Andrade, o ministro do Superior Tribunal Militar, Mourão Filho, entre outras - como tipos populares - um motorista de praça, um ascensorista e um dono de bar. O que essas pessoas disseram está na matéria "Há liberdade no Brasil?", publicada pela revista na edição de setembro de 1966, à página 22, assinada por Mercadante. 3º) Espaço psicológico. Por se constituir em função da necessidade de tornar evidente atmosferas densas, interfere no comportamento das personagens, perturbando-o. Em conseqüência disto, há estreita relação entre o espaço psicológico e as personagens (cf. Lopes & Reis, 1988, p. 205).

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Essa interferência da atmosfera psicológica na atuação das personagens podemos perceber na matéria que Realidade - edição de junho de 1967, página 44 - publicou sobre o Haiti - "Viagem ao país do medo" -, descrito já na abertura como país governado por um ditador, tornando-se uma terra de ódios raciais, repressão policial e muita miséria. O clima psicológico reinante no país está refletido, por exemplo, neste trecho do texto assinado por Milton Coelho:

( ... ) tanto nos olhos do ditador e sua atenta guarda pessoal, como nos dos escolares e da "grand.e concentração popular", há uma expressão comum: o medo.

É também a atmosfera psicológica que numa matéria sobre um plantão de 24 horas numa delegacia policial de São Paulo - "Plantão policial" -, assinada por Narciso Kalili, na Realidade de dezembro de 1966, à página 156, age sobre as personagens. Na delegacia, descrita como um lugar por onde passam a miséria, o vício e a violência, um sargento da Guarda Civil se dirige a um preso nestes termos:

- Cala a boca, cachorro! Se falar mais alguma coisa entra no pau!

Como pudemos ver, espaço físico, espaço social e espaço psicológico compõem a variedade de aspectos que o espaço pode assumir na narrativa. Diversas, também, são as formas pelas quais o espaço - em qualquer uma das suas variedades - é introduzido na narrativa. Iniciemos o estudo destas formas apresentando um termo - ambientação - criado por Osman Lins, que, além de romancista, foi um teórico da narrativa 24, O escritor, segundo Dimas, prefere reservar a palavra espaço para designar dados da realidade, denominando ambientação de "o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente" (1987, p. 20). São três os tipos de ambientação relacionados por Osman Lins, de acordo com Dimas: 1º) Ambientação franca. Ocorre quando é o narrador - que não participa da ação e se pauta pelo descritivismo - quem introduz a ambientação na narrativa. Para Dimas, neste caso, comumente torna-se nítido um certo exibicionismo técnico do autor do texto. Esse exibicionismo cria à ambientação introduzida pelo narrador o risco de tornar-se gratuita, uma vez que pode não se ligar completamente à ação em curso na narrativa. Quando isso acontece, o leitor superficial acaba saltando os trechos do texto que contêm tal tipo de ambientação. De qualquer forma, só o contexto do texto permite avaliar se a ambientação foi utilizada adequadamente. Segundo Dimas, é possível ao leitor saltar os trechos do texto narrativo com a ambientação franca porque uma de suas características é a de aparecer em blocos, isto é, de modo compacto, contínuo, às vezes com vários parágrafos que tratam de um único tema (a tarde, a estação, a cidade, etc.) Por isso, é facilmente reconhecível. O texto assinado por Narciso Kalili sobre o velho jangadeiro Pedra Teófilo que pesca na praia de Canoa Quebrada no Ceará - "Uma vela contra ornar", na Realidade de maio de 1966, à página 42 - é um caso de uso adequado da ambientação franca. No texto é o narrador quem a introduz.

Um mar de areia cerca Canoa Quebrada. Areia solta, fofa, que sufoca a fila de 300 casas,

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envolvendo tudo num manto pardo, quase marrom. Os sons desaparecem como os pés dos homens na areia e não se ouve o barulho do mar. Atrás das casas, feitas de barro ou folhas de palmeiras, a enorme duna sem vegetação fere a vista quando recebe sol. Na porta das casas, silenciosas, a roupa em farrapos, meninas que já são mulheres e mulheres que nunca foram moças gastam os olhos nos furos de um rendado que os mais velhos chamam de labirinto. Sentadas no chão, as mulheres de Canoa Quebrada bordam desenhos sempre iguais.

Na bodega do Antero, sétima casa numa das duas únicas ruas da vila, alguns homens jogam o batidinha, enquanto outros discutem em voz alta num canto. Todos têm a mesma cor. A pele parece couro velho rachado e eles falam de peixe e de mar.

A praia é um pequeno fio branco entre as barreiras cor de tijolo e o mar azul. Junto a elas estão as rústicas embarcações feitas de paus amarrados em forma de prancha. São jangadas e suas velas têm a mesma cor da pele desses homens, os jangadeiros.

2º) Ambientação reflexa. É aquela em que as coisas são percebidas através das personagens, sem a intromissão do narrador. Quase sempre, no entanto, o narrador acompanha a perspectiva da personagem, numa espécie de visão compartilhada (cf. Dimas, 1978, p. 22). Como a ambientação franca, a reflexa também aparece em bloco de texto contínuo, logo, reconhecível. No texto assinado por Luiz Fernando Mercadante, já citado, com levantamento do grau de liberdade existente no Brasil, durante o governo do Marechal Castelo Branco, no qual o país é dividido por seus espaços sociais, quem descreve a atmosfera psicológica reinante em cada setor são os entrevistados e não o narrador. O prior do Convento dos Dorninicanos em São Paulo, frei Francisco Araújo, por exemplo, fala sobre a situação da Igreja:

São os fatos que revelam a situação da Igreja. Há militantes cristãos perseguidos, sacerdotes exilados, bispos caluniados e declarações do episcopado desacatadas publicamente. Há um silêncio cúmplice e constrangedor de muitos setores da Igreja, diante das violências, das torturas, dos atentados à dignidade humana e às liberdades que s6 se explica, em parte, pelo medo da repressão. Existe no Brasil uma Igreja do silêncio. Esse silêncio é subproduto do medo da violência e das terríveis campanhas da propaganda dirigida por interesses bem definidos. Quem duvidar disso experimente fazer valer a doutrina social da Igreja para ver o que acontece. A liberdade da Igreja é apenas aparente e será tolerada somente enquanto não ameaçar de fato uma mudança nas estruturas desumanas (p. 25).

As ambientações franca e reflexa, por virem em blocos de textos, compactamente, nos quais o narrado r interrompe provisoriamente o relato da ação para se ocupar com a inércia momentânea da descrição, podem criar o chamado vazio narrativo se forem muito prolongadas. Aliás, para Dimas, o ponto central da questão do espaço na narrativa é o da utilidade ou da inutilidade para a ação daquilo que é descrito nas interrupções (cf. Dimas, 1978, p. 33).

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3º) Ambientação dissimulada ou oblíqua. Ao contrário das duas ambientações anteriormente vistas, a dissimulada ou oblíqua não trunca o fluxo narrativo. Nem o narrador, nem uma personagem interrompem a ação para introduzi-la na narrativa. Este tipo de ambientação é constituído de uma fusão de componentes com natureza variada. A sua percepção requer do leitor redobrada atenção, pois "interpenetram-se seres e coisas que somente a leitura demorada poderá separar, hierarquizar e avaliar" (Dimas, 1978, p. 26). Há uma harmonização entre o espaço e a ação, um processo de colaboração recíproca, que só o leitor perspicaz perceberá. Essa fusão de espaço e ação pode ser observada no texto com a narrativa sobre o cotidiano de uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, assinada por José Carlos Marão -"Nossa cidade" -, em Realidade de maio de 1966, à página 82. Ao invés de o narrador interromper a narrativa para dizer que a casa do prefeito é um imóvel de dois andares, com sofás modernos misturados a cadeiras coloniais, no andar superior ele faz o espaço a ser descrito subjazer à ação. Diz simplesmente que, num sábado, o juiz, o gerente do banco e o deputado local estavam

sobriamente sentados nos sofás modernos e cadeiras coloniais do andar de cima da casa do prefeito.

Posteriormente a ação volta a se refletir no espaço quando, para mostrar a vida recatada do escritor do lugar, o narrador fixa-se num detalhe do espaço físico que ele ocupa - a porta do seu quarto de pensão - e diz que ela só é aberta para a personagem.

[...] receber visita, ir comer ou pegar o penico limpo do corredor.

Personagem - A personagem não existe fora das palavras, diz Beth Brait, em A personagem. Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou para dar forma às suas criaturas e aí pinçar a "vida" desses seres. O problema da personagem é, antes de tudo, um problema lingüístico (cf. Brait, 1987, p. 11). Vejamos, então, inicialmente, o que os leitores puderam encontrar nos textos assinados por três jornalistas que compuseram personagens para leitores de veículos de linguagens e públicos distintos. Os dois primeiros - Airton Almeida e Ester Rocha - transformaram em personagem de um texto - "Fui traída à beça", publicado na edição do primeiro semestre de 1990 da revista Som Sertanejo (Editora Azul), à página 4 - a cantora e compositora Roberta Miranda. No texto que assinaram, ela aparece assim:

Roberta não se envergonha de assumir, de escancarar seu lado romântico, sensível. Ao contrário, pelos seus poros exala pura emoção. Um sentimento que, segundo prega, nenhum ser humano tem o direito de matar, uma vez que é ele que dá movimento à vida. E é exatamente por ter essa máxima como filosofia que da veia poética de Roberta brotam canções repletas de histórias de amor fatalmente interrompídas em seu auge. Poemas que tocam profundamente na alma do povo. Afinal, quem não viveu uma paixão que, ao final da chama, não se apagou, deixando marcas?

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O terceiro jornalista - Alessandro Porro -, da Realidade, à página 116, escreveu sobre Dom Hélder Câmara, na época (julho de 1966, quando circulou a edição da revista, com sua matéria "O Padre Hélder"), arcebispo de Olinda e Recife. A personagem Dom Hélder foi mostrada assim:

Franzino, as mãos pequenas, como as de um menino de 10 ou 12 anos, com pouco mais de um metro e meio de altura, 57 anos de idade (nasceu em Fortaleza em 7 de fevereiro de 1909), às vezes pula como um garoto e às vezes encolhe os ombros, como um velho de vida mansa. Raramente fica calado, e quando isso acontece nota-se a delicadeza de sua figura, até na maneira de andar quase voando, os pés tocando o chão o mínimo indispensável. Mas na hora em que está falando, ou seja, quase sempre, fica esquecido todo o resto e quem ouve é levado a concentrar-se unicamente nos seus olhos. Olhos grandes, redondos, móveis, de cor indefinida. Olhos terríveis, de general em campo de batalha, quando o assunto é guerra, isto é, quando fala de problemas sociais e de suas soluções. Nunca, porém, desaparece, do lado dos olhos, uma marca que foi se consolidando com os anos. Rugas, diria alguém. Mas não são rugas: são as marcas de um sorriso permanente.

A personagem do texto assinado por Alessandro Porro é claramente mais densa que a do texto da revista Som Sertanejo, do ponto de vista psicológico. A densidade psicológica é um elemento importante para distinguir as personagens quanto à sua composição. Neste item, estudaremos, em primeiro lugar, a classificação das personagens quanto à sua composição. A terminologia que vamos utilizar para designar as personagens, dentro desta classificação, foi criada por E. M. Forster em 1937 no livro publicado em Londres, Aspects of the novel, citado por Brait. 1°) Personagem plana. É a personagem construída em torno de uma única idéia ou qualidade27. Cremilda Medina, em Entrevista - o diálogo possível, mostra como uma visão parcializada faz o repórter enxergar o seu entrevistado por um único ângulo: o da valorização do pitoresco e do inusitado, o da ironia pretensamente intelectualizada, o da condenação - freqüente no Jornalismo Policial -, o da glamorização (cf. Medina, 1986, p. 15). Esta visão unilateral manifestada no momento da captação de informação corresponde, certamente, no da redação dos textos, à composição de personagem plana - uma personagem, segundo Lopes e Reis (1988, p. 218), acentuadamente estática. Depois de caracterizada pela primeira vez, ela sempre reincide nos mesmos gestos e comportamentos, repete tiques verbais, diz as mesmas coisas. Enfim, torna-se pouco densa, previsível. No texto da Som Sertanejo é a preocupação em glamorizar Roberta Miranda que impede que ela ganhe densidade. 2º) Personagem redonda. Reveste-se de complexidade suficiente para constituir uma personagem bem marcada (cf. Lopes & Reis, 1988, p. 219). Um dos principais fatores de sua configuração, para os dois autores, é a revelação gradual dos seus traumas, vacilações e obsessões. É uma personagem dinâmica e multifacetada. Caso mantenhamos, ainda, a simetria entre a criação da personagem no texto e o modo de captação de informações, perceberemos que a este tipo de personagem corresponde, como a denomina Cremilda Medina, a entrevista aberta. Aquela que mergulha no outro para compreender seus conceitos, seus valores, comportamentos e histórico de

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vida. O grau de elaboração mais elevado garante à personagem redonda - como a de Dom Hélder Câmara, no texto assinado por Alessandro Porro - maior densidade. A divisão das personagens em plana e redonda, previnem Lopes e Reis (1988, p. 218), acarreta alguns riscos, se for encarada rigidamente. É comum que a personagem de determinado texto oscile na sua condição, quando tem características que tornariam possível sua classificação ora como um tipo, ora como outro. Além dessa classificação das personagens que leva em conta a sua composição, há outras classificações que consideram cada personagem de acordo com diferentes critérios: função, relevo, etc. Dessas diversas classificações vamos retirar as categorias que interessam ao Jornalismo. Comecemos por duas categorias da classificação de Philippe Hamon, também citadas por Beth Brait 29. 3º) Personagem referencial. É a que, segundo Brait, remete a um sentido pleno e fixo, imobilizado por uma cultura. Sua apreensão e seu reconhecimento dependem do grau de participação do leitor nessa cultura. Constantemente, a imprensa trata de pessoas que o leitor já de alguma forma conhece, antes mesmo de ler um ou outro texto sobre elas, unicamente por estar inserido na mesma cultura a que tais pessoas pertencem. Realidade, por exemplo, no período de um ano - agosto de 1966 a julho de 1967 - publicou perfis de algumas destas pessoas: Jorge Amado, Paulo Autran, Walt Disney, Arrelia, Pelé, Chico Buarque, Grande Otelo, Zé Arigó e Oscar Niemeyer. O fato, porém, de essas pessoas existirem para os leitores fora de um certo texto não impede que a recriação delas enquanto personagens desse texto seja encarada também como um problema lingüístico. 4º) Personagem anáfora. Ao contrário da personagem referencial, só pode ser completamente apreendida dentro do texto, ou, mais especificamente, na rede de relações que os elementos do texto mantêm entre si. No mesmo período em que Realidade tratou das pessoas famosas antes mencionadas, a revista também publicou textos onde eram criadas personagens antes desconhecidas pelos leitores e que passaram a existir exclusivamente naqueles textos, como o menino piqui, Diauá, da matéria "Índio brinca de índio", assinada por Carlos Azevedo, na edição de agosto de 1966, à página 36. Por fim, falemos ainda de uma categoria extraída do critério de classificação de personagens orientado pelo relevo, isto é, pelo grau de intervenção delas na ação. 5º) Figurante. Chamada às vezes de personagem com função decorativa, ocupa um lugar claramente subalterno, distanciado e passivo em relação aos incidentes narrados (cLLopes & Reis, 1988, p. 209). Não tem nenhuma significação particular e inexiste do ponto de vista psicológico, acrescenta Beth Brait 31. Nem por isso, no entanto, é dispensável. Serve para ilustrar uma atmosfera, uma profissão, uma mentalidade, uma atitude própria de certa cultura ou para constituir um traço de cor local ou ainda para constituir um número indispensável à apresentação de uma cena em grupo. É para ilustrar uma mentalidade e para compor uma cena em grupo que aparecem figurantes no texto assinado por Narciso Kalili e Odacir de Mattos sobre preconceitos raciais no Brasil, na Realidade de outubro de 1967, à página 34: "Existe preconceito de cor no Brasil". A matéria mostra a reação das pessoas diante de um negro - o

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jornalista Odacir de Mattos - nas principais capitais do País. Os trechos que transcreveremos dizem respeito a Belém do Pará:

Nosso motorista, um caboclo de bigode, foi nos mostrando a cidade. Falou muito, ofereceu-nos distrações noturnas e eu perguntei se em Belém havia muitos pretos:

- Aqui preto tem pouco. E os que tem, a gente não gosta. Estão espalhados nessas construções como pedreiros. São gente muito ruim.

Um grupo de crianças pardas e negras, maltrapilhas, caminhando pela rua, me fez recordar uma das histórias contadas por Odacir.

Enquanto Odacir examinava uma calça, o caixeiro que me atendia aproximou-se dele, pelas costas, fez uma careta, dizendo:

- Então, mister, já escolheu? Me dê licença um instantinho que preciso desta calça para mostrar ao freguês.

Odacir já me esperava quando desci. Muitas prostitutas faziam o "trottoir" na praça e ele já fora abordado por uma delas, que o achou com jeito de turista. A mesma mulher, mais tarde, abordada por um negro de Belém deu tratamento diferente, depois de alguns minutos de conversa:

- Negro é assim mesmo. Só quer saber de sair com mulher de graça.