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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA A REFORMA PSIQUIÁTRICA EM DISCURSOS DE CUIDADORES DE SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS NA CIDADE DE RECIFE - PE Isaac Alencar Pinto Recife PE Fevereiro 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

MESTRADO EM PSICOLOGIA

A REFORMA PSIQUIÁTRICA EM DISCURSOS DE CUIDADORES

DE SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS

NA CIDADE DE RECIFE - PE

Isaac Alencar Pinto

Recife – PE

Fevereiro – 2011

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Isaac Alencar Pinto

A REFORMA PSIQUIÁTRICA EM DISCURSOS DE CUIDADORES

DE SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS

NA CIDADE DE RECIFE - PE

Dissertação apresentada ao programa de Pós-

Graduação em Psicologia da Universidade Federal

de Pernambuco como requisito parcial para obtenção

do título de Mestre em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Pedro de Oliveira Filho

Recife – PE

Fevereiro – 2011

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A todos aqueles que buscam inventar

novas formas de lidar com a loucura.

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AGRADECIMENTOS

Desejo, em primeiro lugar, agradecer aos meus pais, Edna e Cícero, e aos meus

irmãos, Lucas e Davi, por terem sempre me apoiado e auxiliado nas minhas

empreitadas. Apesar de me considerar um andarilho, sempre terei minha casa.

A Pedro, por me aceitar como orientando e por acreditar, até o último momento,

na realização deste trabalho, apesar de todas as dificuldades institucionais e pessoais.

Mais do que orientador, lhe tenho como um grande amigo.

A Ary, pelo companheirismo e por ter me dado força para plantar várias

sementinhas nos últimos dois anos. Tenho certeza de que colheremos belas flores

nesse jardim.

Meus sinceros agradecimentos aos meus amigos de longa data: Vanina e Julian

(sem o apoio de vocês não teria chegado aonde cheguei), Juliana, Nayara, Jorge, Deco,

Larissa, Einstein, Alessandra, Natércia, Halline, Fabiana, Carla, Francisco e Laís.

Vocês moram no meu coração!!

Todo o meu carinho aos novos amigos que fiz durante o Mestrado: Pedrinho,

Fernanda, Juliana Catarine, Ludmila, Márcio, Estácio e, em especial, à Amanda e

Simone. Recife se tornou uma cidade mais colorida com vocês!

À Profª. Thelma e à Profª. Jaileila por terem aceito o convite para participar da

banca, na certeza de que as suas contribuições enriquecerão o trabalho.

À Alda, João e Alexandre, por terem quebrado diversos galhos durante esses

dois anos.

À Christianne Macêdo, que trabalha no DGGT da Prefeitura do Recife, por ter

auxiliado (e encontrado meu Projeto diversas vezes quando ele se encontrava perdido

no meio da burocracia institucional) na aprovação do meu projeto de pesquisa pela

Gerência de Saúde Mental.

À CAPES, por ter financiado o desenvolvimento da pesquisa.

E aos meus mentores espirituais, por me orientarem e por me demonstrarem que

a vida é sempre mais!

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Minha casa é meu reino

“Meu Reino”, Biquíni Cavadão

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LISTA DE SIGLAS

CAPS – Centro de Atenção Psicossocial

CONASP - Conselho Consultivo da Administração Pública Previdenciária

DSM III - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders III

INPS – Instituto Nacional de Previdência Social

SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência

SRT – Serviço Residencial Terapêutico

SUDS – Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde

SUS – Sistema Único de Saúde

TR – Técnico de Referência

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12

2. DE PACIENTES A MORADORES: OS SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS15

2.1 Abordagens Teóricas e Modalidades de Serviços Residenciais Terapêuticos ............ 19

2.2 A reabilitação psicossocial .......................................................................................... 25

2.3 A Reforma na cidade de Recife – PE .......................................................................... 32

3. PSICOLOGIA DISCURSIVA ............................................................................................ 35

3.1 Função ......................................................................................................................... 43

3.2 Variabilidade ............................................................................................................... 51

3.3 Construção ................................................................................................................... 56

3.4 Retórica ....................................................................................................................... 61

4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ........................................................................ 65

5. SOBRE CARÊNCIA, CRISES E AUSÊNCIAS: POSICIONANDO OS MORADORES 70

6. OS POSICIONAMENTOS CONTRUÍDOS SOBRE OS CUIDADORES ........................ 82

7. DESCREVENDO O SERVIÇO: AS DIFICULDADES DE TRABALHAR COMO

CUIDADOR .............................................................................................................................. 103

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 142

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RESUMO

Em sua versão mais recente, a Reforma Psiquiátrica brasileira tem objetivado a

desinstitucionalização, a qual tem sido compreendida enquanto a desconstrução de

saberes, discursos e práticas psiquiátricas que reduzem a loucura à doença mental e que

reforçam o modelo hospitalocêntrico. Nesse sentido, a elaboração da Portaria nº

106/2000, do Ministério da Saúde, introduz os Serviços Residenciais Terapêuticos

(SRTs) no âmbito do SUS. Os SRTs seriam moradias ou casas inseridas na comunidade

que teriam como principal foco o cuidado com os egressos de longas internações

psiquiátricas que não possuem laços sociais e familiares, viabilizando, assim, sua

inserção social e reabilitação psicossocial. Nesse sentido, a referida portaria estabelece

que os SRTs possuam equipe técnica composta, no mínimo, pelos seguintes

profissionais: a) 01 (um) profissional de nível superior da área de saúde com formação,

especialidade ou experiência na área de saúde mental, denominado de Técnico de

Referência (TR); b) 02 (dois) profissionais de nível médio com experiência e/ou

capacitação especifica em reabilitação psicossocial, denominados de cuidadores, os

quais devem atuar no sentido de viabilizar o processo de reabilitação psicossocial dos

moradores. Nesse sentido, os cuidadores podem ter uma função dúbia nos SRTs: podem

tanto funcionar enquanto facilitadores do processo de reabilitação psicossocial através

da organização de atividades dos moradores junto à comunidade, por exemplo; ou

podem exercer uma função coercitiva: os cuidadores podem funcionar enquanto agentes

que ditam o que é permitido ou proibido na casa, instituindo suas próprias regras. Tendo

em vista tais questões, realizamos uma pesquisa com onze cuidadores que atuam nos

SRTs masculino e feminino localizados no Distrito Sanitário V da cidade de Recife –

PE, tendo como objetivo analisar discursos dos cuidadores dos Serviços Residenciais

Terapêuticos na cidade de Recife - PE sobre a Reforma Psiquiátrica. Para análise dos

dados utilizamos o referencial teórico da Psicologia Discursiva, a qual compreende que

a linguagem não é um mero reflexo, um espelho da realidade, mas que a linguagem

constrói a realidade. Dessa forma, os cuidadores posicionaram os moradores como

sujeitos infantilizados, que são dependentes da atenção dos cuidadores. Já em relação ao

posicionamento construído sobre os próprios cuidadores, eles se apresentaram como

sujeitos atenciosos, que dispensavam todo o carinho e amor que os moradores

necessitavam, por serem sujeitos dependentes. Vale ressaltar que eles também

construíram um posicionamento dialético na relação cuidador-morador: eles afirmaram

que os moradores teriam se tornado sua segunda família, ao mesmo tempo em que eles

teriam se tornado a família dos moradores, os quais não possuiriam ou teriam vínculos

bastante fragilizados com seus familiares. Em relação à descrição construída sobre o

serviço, eles afirmaram que receberam uma capacitação muito superficial, bem como

relataram que o SRT é a segunda casa dos moradores. Consideramos, então, que os os

cuidadores necessitam de uma capacitação mais adequada para evitar a reprodução de

velhas práticas psiquiátricas dentro dos serviços substitutivos.

PALAVRAS-CHAVE: serviços residenciais terapêuticos; cuidadores; psicologia

discursiva; análise de discurso

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ABSTRACT

In its latest release, The Psychiatric Reform has aimed at deinstitutionalization,

which has been understood as the deconstruction of knowledge, discourses and

practices that reduce psychiatric madness to mental illness and strengthen the hospital-

centered model. In this sense, the elaboration of Ordinance No. 106/2000, the Ministry

of Health introduces the Therapeutic Residential Services (SRT) under the SUS. The

SRTs were entered homes or homes in the community who have mainly focused on

the care of the graduates of lengthy psychiatric hospitalizations that lack social and

family networks, enabling thus their social and psychosocial rehabilitation. In this

sense, that decree states that the technical team SRTs have at least the following

professionals: a) 01 (a) higher level professional in the health field with training,

expertise or experience in the mental health field, called Technical Reference (TR), b)

02 (two) mid-level professionals with experience and / or specific training in

psychosocial rehabilitation, called caregivers, who must act to facilitate the process of

psychosocial rehabilitation of the residents. Accordingly, the caregivers may have a

dubious role in SRT: can either operate as facilitators of the process of psychosocial

rehabilitation through the organization of activities of the residents in the community,

for example, or may have an enforcement function: the caregivers can act as agents

that dictate what is allowed or prohibited in the house, setting up their own rules.

Considering these issues, we conducted a survey of eleven caregivers who work in

male and female SRTs located in the Sanitary District V of the city of Recife - PE,

with the aim of analyzing the discourses of the caregivers of residential therapeutic

services in Recife - PE on Psychiatric Reform. For data analysis we used the

theoretical Discursive Psychology, which understands that language is not a mere

reflection, a mirror of reality, but that language constructs reality. Thus, caregivers

positioned infantilized residents as subjects, which are dependent on the attention of

caregivers. In relation to the positioning built on the caregivers themselves, they

presented themselves as caring individuals, that dismissed all the love and care that

residents need, because they are dependent subjects. It is noteworthy that they also

built a dialectical position in the resident-caregiver relationship: they said that

residents would become his second family, while they would become the family of

residents, which does not possess or have links rather fragile with their families.

Regarding the description built on the service, they said they received a very

superficial training, and reported that the SRT is the second house of residents. We

consider, then, that the caregivers need a more adequate training to prevent the

reproduction of old practices within the psychiatric services in replacement.

KEY WORDS: residential care, caregivers, discursive psychology, discourse analysis

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1. INTRODUÇÃO

Participei, durante minha graduação em Psicologia, na Universidade Estadual da

Paraíba em Campina Grande, do grupo de pesquisa Psicologia da Saúde através da

minha inserção na linha de pesquisa Saúde, Identidade e Práticas Discursivas. Na época

de meu desligamento do referido grupo (devido à incompatibilidade entre o horário de

reunião do grupo e o meu novo emprego), as pesquisas se voltavam para a questão da

Reforma Psiquiátrica naquela cidade.

Nesse mesmo período, também foquei minha atenção sobre a Reforma

Psiquiátrica a partir do anteprojeto de pesquisa que escrevi para me submeter à seleção

do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco, o qual buscava

compreender o posicionamento dos vigias e cuidadores dos Serviços Residenciais

Terapêuticos (SRTs) nas cidades de Campina Grande – PB e Recife - PE. Uma vez

selecionado, continuei com a mesma temática, porém com duas diferenças.

Uma primeira diferença foi a proposta de pesquisar apenas na cidade de Recife –

PE. A segunda mudança que ocorreu no projeto foi a redução dos sujeitos da pesquisa:

seriam entrevistados apenas cuidadores, posto que os SRTs de Recife, ao contrário dos

que funcionam em Campina Grande, não possuem vigias.

Os SRTs são casas inseridas na comunidade para egressos de longas internações

psiquiátricas que possuem condição de retorno ao convívio social. Esta é uma estratégia

que vem sendo ampliada no Brasil: em 2004, existiam 1.363 moradores em SRTs e em

2009 esse número sobe para 2.829.

Simultaneamente ocorre a expansão de SRTs implantados no país: em 2004

encontramos 262 SRTs, dos quais 5 operavam em Pernambuco. Já em 2009

encontramos um total de 533 SRTs em funcionamento no país, dos quais 14 SRTs estão

localizados em Pernambuco, todas na cidade de Recife. Ainda no tocante à

Pernambuco, cabe ressaltar que no final de 2010 foi aberta a primeira residência de

Olinda e que, no início de 2011, foram abertas três residências no município de Paulista,

a partir do fechamento do Hospital Alberto Maia.

Porém, se faz necessário problematizar a abertura de SRTs, como se isso, per

si, bastasse para construir novas formas de lidar com a loucura: as residências seriam

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locais que proporcionariam um novo olhar sobre a loucura ou, ao contrário, seriam um

local de (re)produção do modelo psiquiátrico utilizado nos hospitais?

É nesse sentido que os cuidadores, profissionais de nível médio encarregados

de realizar a reabilitação psicossocial dos moradores, podem tanto facilitar o processo

de reabilitação psicossocial dos moradores, através do exercício da autonomia dos

moradores, bem como podem exercer uma função coercitiva, ditando o que é permitido

ou proibido na casa, instituindo suas próprias regras.

Perguntamo-nos, então: Esses sujeitos conhecem o discurso reformista? Se

conhecem, como definem o processo de Reforma Psiquiátrica? Como se posicionam em

relação ao processo? Se percebem implicados nesse processo? Quais as posições

identitárias que constroem sobre si mesmos, sobre os moradores e quais as descrições

que constroem sobre o serviço?

Estabelecemos, assim, como objetivo geral dessa pesquisa: analisar discursos

dos cuidadores dos Serviços Residenciais Terapêuticos na cidade de Recife - PE sobre a

Reforma Psiquiátrica, e possuindo como objetivos específicos: analisar descrições do

serviço, de si mesmos e dos moradores, procurando identificar posicionamentos em

relação ao serviço, definições do papel do mesmo no processo de reforma e as posições

identitárias construídas para si mesmos e para os moradores; identificar e analisar, nos

posicionamentos identitários construídos discursivamente para os moradores, exemplos

de combate à imagem tradicional do louco em nossa sociedade ou de reprodução da

mesma; e identificar e analisar os argumentos mobilizados para apoiar ou combater a

Reforma Psiquiátrica.

Na medida em que estudaamos a produção de sentidos sobre a Reforma

Psiquiátrica em discursos de sujeitos tão importantes para o bom funcionamento de um

de seus serviços, a pesquisa realizada procurou contribuir para uma maior compreensão

das dificuldades no caminho de um conjunto de políticas públicas de indiscutível

impacto social, políticas que procuram definir um novo lugar para a loucura em nossa

sociedade. Dito de outra forma, a pesquisa em questão mostra toda a sua relevância

quando se considera que é importante, para o aperfeiçoamento de uma política pública

essencial para o desenvolvimento social do estado de Pernambuco, saber se e como

cuidadores reproduzem ou combatem o modelo hospitalocêntrico.

Para tanto, estruturamos essa dissertação em seis capítulos. No capítulo inicial,

abordamos os SRTs dentro do contexto da Reforma Psiquiátrica. Além disso, também

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apresentamos alguns tipos de dispositivos residenciais utilizados em outros países, as

principais abordagens utilizadas para promoção da reabilitação psicossocial e a Reforma

Psiquiátrica no contexto da cidade de Recife.

No segundo capítulo, apresentamos o referencial teórico da Psicologia

Discursiva, utilizado na análise das entrevistas. O terceiro capítulo aborda as questões

metodológicas da pesquisa: instrumento utilizado, participantes, procedimentos para

análise das entrevistas, etc.

Já os capítulos quatro, cinco e seis apresentam a análise realizada a partir dos

discursos construídos pelos cuidadores sobre a Reforma Psiquiátrica, buscando

compreender os argumentos mobilizados para combater e/ou apoiar a Reforma, as

descrições de si mesmos, dos moradores e do serviço.

Por fim, apresentamos algumas considerações a título de reflexão, apontando

sugestões na tentativa de implementar o processo de Reforma Psiquiátrica no país,

através de melhor capacitação dos trabalhadores que atuam na saúde mental e, em

especial, os cuidadores dos SRTs.

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2. DE PACIENTES A MORADORES: OS SERVIÇOS RESIDENCIAIS

TERAPÊUTICOS

De acordo com Amorim e Dimenstein (2009), a Reforma Psiquiátrica

brasileira é um processo em construção e um projeto com diferentes versões. Para as

autoras, em sua versão mais recente, a Reforma brasileira, a qual fundamenta as

políticas de atenção em saúde mental, tem objetivado a desinstitucionalização.

No bojo dessas discussões, a desinstitucionalização tem sido compreendida

como um processo de desconstrução de saberes, discursos e práticas psiquiátricas que

reduzem a loucura à doença mental e que reforçam o modelo hospitalocêntrico, no qual

a principal referência na atenção à saúde é o hospital. No caso da atenção em saúde

mental, o hospital psiquiátrico (AMARANTE, 1996).

Amarante (1994) afirma que, em nosso país, durante a década de 1960, a doença

mental é transformada em mercadoria, posto que o Estado começa a comprar serviços

psiquiátricos particulares a partir da criação do Instituto Nacional de Previdência Social

(INPS). Durante esta época, ocorre a expansão de hospitais psiquiátricos privados nos

grandes centros urbanos a partir do investimento do capital privado.

Tal expansão acarretou uma sobrecarga financeira para o Estado, que se viu

obrigado a adotar, a partir de 1980, algumas medidas reguladoras e disciplinadoras do

capital privado. Para tanto, foi implantado a Co-Gestão entre os Ministérios da Saúde e

da Previdência Social e foram criados o Conselho Consultivo da Administração Pública

Previdenciária (CONASP), os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde e o

Sistema Unificado de Saúde (SUDS e SUS, respectivamente).

Neste momento, inicia-se o processo de descentralização e municipalização da

saúde, além da participação de setores representativos da sociedade na formulação e

gestão do sistema de saúde, tal como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde

Mental, o qual lança, em 1987, o lema “Por uma sociedade sem manicômios”

(AMARANTE, 2007).

Outro momento que destacamos foi a realização da II Conferência Nacional de

Saúde Mental, ocorrida em 1992. Nessa Conferência foi discutida a importância

estratégica, para o avanço da Reforma, da implantação dos denominados “lares

abrigados” (BRASIL, 2004).

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Durante esse período, ocorrem algumas iniciativas que visavam à

desinstitucionalização dos pacientes de hospitais psiquiátricos. De acordo com Suyiama,

Rolim e Colvero (2007), os Lares Abrigados, como eram conhecidos na época, surgiram

nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul e possuíam como objetivo a saída dos

usuários das enfermarias para a sua participação na cidade.

Furtado (2006) também aponta experiências de desinstitucionalização em Porto

Alegre (RS), Campinas (SP), Santos (SP), Ribeirão Preto (SP) e Rio de Janeiro (RJ). As

experiências supracitadas serviram como base para a elaboração da Portaria nº

106/2000, do Ministério da Saúde, a qual introduz os SRTs no âmbito do SUS

(BRASIL, 2004), constituindo o que Amarante (2007) denomina de estratégias de

residencialidade.

De acordo com a referida Portaria, os Serviços Residenciais Terapêuticos

(SRTs) seriam moradias ou casas inseridas na comunidade que teriam como principal

foco o cuidado com os egressos de longas internações psiquiátricas que não possuem

laços sociais e familiares, viabilizando, assim, sua inserção social e reabilitação

psicossocial (BRASIL, 2000).

No tocante à estrutura física e funcionamento, os SRTs devem estar localizados

fora de unidades hospitalares, possuindo como estrutura mínima: sala de estar com

mobiliário adequado; dormitórios com cama e armário; copa e cozinha equipadas; e

devem oferecer um mínimo de três refeições por dia. Eles devem comportar, no

máximo, 08 usuários, distribuídos na proporção de até 03 por dormitório.

Um ponto a se destacar, no tocante aos moradores dos SRTs, é que estes devem

estar vinculados a um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Aqui residem duas

questões. A primeira é que os SRTs devem funcionar como moradias e não como

espaços terapêuticos em si. Apesar de receberem o nome de terapêuticas, o objetivo

maior dos SRTs não é promover um espaço terapêutico, tal como se define usualmente

(MOREIRA; ANDRADE, 2007; FURTADO, 2006). Os SRTs devem, principalmente,

funcionar como espaço de moradia, como uma nova forma da loucura se relacionar com

a cidade a partir do habitar (BRASIL, 2004).

O termo “terapêuticas” é usado devido à necessidade de vincular o serviço ao

Ministério da Saúde, garantindo verbas para seu funcionamento: No que diz respeito ao

financiamento desses serviços substitutivos, cabe destacar que a verba destinada à

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manutenção de pacientes em hospitais psiquiátricos devem ser redirecionadas aos SRTs

a partir do encaminhamento do usuário a esses novos serviços.

Vasconcelos (2008a, p. 98) aponta que a estratégia de referencialidade entre as

alternativas de moradias para os usuários que necessitam de cuidado contínuo e os

serviços de atenção psicossocial, como os CAPS, “constituem elementos-chave na

substituição dos leitos asilares e de enfermarias psiquiátricas convencionais”, evitando

que tal população seja simplesmente transferida para outras instituições, como

delegacias, penitenciárias, asilos, etc, bem como impede a simples desospitalização e

negligência social, principalmente ao levar em consideração a grande parcela dessa

população que se encontra sem vínculos familiares.

Já o segundo ponto se refere à relação estabelecida entre os moradores dos SRTs

e o CAPS de referência. Nesse sentido, vale destacar que os moradores que buscam os

serviços do CAPS devem ser tratados como qualquer outro usuário, pois a idéia de

promover a cidadania dos moradores perpassa a idéia de serem tratados como usuários

comuns (MOREIRA; ANDRADE, 2007; FURTADO, 2006). De acordo com Gonçalves

e Sena (2001, p. 51) “espera-se, muito mais, o resgate ou o estabelecimento da

cidadania do doente mental, o respeito à sua singularidade e subjetividade, tornando-o

sujeito de seu próprio tratamento sem a idéia de cura como o único horizonte”.

Para a implantação dos SRT, o Ministério da Saúde repassa uma verba no valor

de R$ 10.000,00 objetivando a realização de pequenos reparos no imóvel, compra de

móveis, eletrodomésticos e demais utensílios necessários. Juntamente com esses

recursos, há um repasse mensal que pode atingir o valor de R$ 7.000,00 a R$ 8.000,00,

advindos do repasse financeiro acarretado pelo fechamento de leitos em hospitais

psiquiátricos a partir da inserção dos usuários nos SRTs.

Dessa forma, Vasconcelos (2008a) aponta que os SRTs possuem o papel

fundamental de evitar o simples fechamento dos leitos em hospitais psiquiátricos e a

extinção dos recursos destinados à manutenção dos serviços de saúde mental.

Nessa direção, o atual contexto de políticas sociais neoliberais,

com um vertiginoso desinvestimento nos programas sociais,

revelou um caráter até então pouco reconhecido nas análises do

sistema asilar, tradicionalmente centradas mais no caráter

segregador e de controle social da instituição psiquiátrica: a de

que estas geralmente enormes instituições constituem uma forte

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concentração geográfica de recursos patrimoniais e humanos no

campo da saúde mental (VASCONCELOS, 2008a, p. 99).

Assim, o autor aponta para o fato de que o processo de desinstitucionalização

exige a conversão e desconcentração dos recursos necessários para o funcionamento dos

serviços de saúde mental, tendo em vista que esta é uma das formas de implementar

serviços substitutivos descentralizados dentro das comunidades, evitando, assim, que

tais recursos sejam simplesmente extintos (VASCONCELOS, 2008a).

Os usuários devem ser encaminhados para os SRTs tendo em vista os critérios

propostos pelos gestores municipal ou estadual do SUS. Também cabe às secretarias

estaduais e municipais de saúde estabelecer a rotina de supervisão, acompanhamento,

controle e avaliação da qualidade dos serviços prestados nos SRTs.

Dentro das ações voltadas à desinstitucionalização dos internos de hospitais

psiquiátricos, encontramos também o Programa de Volta para Casa. O seu objetivo é

possibilitar a inserção social dos sujeitos que possuem algum transtorno mental com

história de longa internação psiquiátrica (dois anos ou mais), através da instituição de

um auxílio-reabilitação psicossocial, no valor de R$240,00, que deve ser pago

diretamente ao beneficiário (BRASIL, s/d).

Os beneficiários podem ser pessoas acometidas de transtorno mental egressos de

internações psiquiátricas em hospitais cadastrados no SIH/SUS (Sistema de Informação

de Hospitalares), por um período ininterrupto de, no mínimo, dois anos e com uma

situação clínica e social não justifique sua permanência em regime hospitalar; assim

como pessoas inseridas nos SRTs, egressos de Hospital de Custódia e Tratamento

Psiquiátrico, por período igual ao supracitado (BRASIL, s/d).

Diversos autores (MOREIRA; ANDRADE, 2007; DIMENSTEIN, 2006;

SUYIAMA; ROLIM; COLVERO, 2007) que estudam a reforma psiquiátrica e, mais

especificamente, os SRTs, afirmam que este é um dispositivo potente “para propiciar a

inserção do portador de transtorno mental na cidade, para fazê-los circular por outros

circuitos, que não os cronificantes” (DIMENSTEIN, 2006, p. 77).

Em consonância com os autores supracitados, Vasconcelos (2008a) afirma que,

no tocante aos interesses específicos dos usuários, os SRTs são elementos fundamentais

na constituição de seu bem-estar físico e psíquico, além de ser importante referencial no

campo da saúde mental. Nesse sentido, os SRTs permitem que os moradores possam se

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reapropriar, de maneira muito mais efetiva, das dimensões real e simbólica do corpo, do

espaço e do tempo, dos usos dos objetos e da criação de vínculos interpessoais.

Para o autor, já o caso inverso, ou seja, a inexistência de moradia constitui um

fator altamente estressante, o qual pode acarretar novas crises e novas internações

psiquiátricas. A existência de moradia, então, está no cerne da reinserção social dos

moradores, possibilitando o aumento das trocas e do poder contratual dos usuários.

Dessa forma, uma vez exposta as principais questões relacionadas ao

funcionamento de um SRT, apresentamos as principais abordagens que orientam o

funcionamento dos dispositivos residenciais.

2.1 Abordagens Teóricas e Modalidades de Serviços Residenciais Terapêuticos

Vasconcelos (2008a) identificou três abordagens existentes na literatura

internacional que orientam a práxis dos SRTs:

a) A abordagem da Psiquiatria Democrática Italiana - consiste na integração

de idéias advindas do marxismo de Gramsci, das teorias do desvio social e,

em particular, do interacionismo simbólico, de Foucault e da fenomenologia

existencial. Em nosso país essa abordagem vem sendo difundida a partir da

tradução das obras dos próprios autores italianos, como Basaglia e Rotelli,

além de autores brasileiros que comentam e sistematizam a experiência

italiana, como Delgado;

b) As abordagens escandinava e anglo-saxônica da normalização e do

“empowerment” – possuem várias características, das quais podemos citar: a

existência de diversos grupos organizados (grupos de usuários, mistos de

usuários, familiares e profissionais, usuários individuais que tentam formar

grupos); defesa da organização autônoma dos usuários; a maioria dos grupos

objetiva, além de modificar a relação da sociedade com a loucura, a

constituição de grupos e serviços próprios e/ou dirigidos por usuários e/ou

ex-usuários, como clubes, grupos de auto-ajuda, serviços residenciais ou de

suporte domiciliar, etc (VASCONCELOS, 2008b);

c) A epidemiologia aplicada a serviços de saúde mental – a epidemiologia se

dedica ao estudo da prevalência e incidência das doenças, seus determinantes

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e aspectos biológicos, histórico-sociais, culturais, ambientais e demográficos

associados. Mais recentemente, a epidemiologia também vem se

preocupando em estudar a forma pela qual os aspectos supracitados incidem

na qualidade dos serviços de saúde pública. Nesse sentido, a epidemiologia

busca estudar, nos SRTs, o papel terapêutico, a validade assistencial, o custo

e o impacto sobre a saúde dos moradores (VASCONCELOS, 2008a).

Além das abordagens citadas, o referido autor afirma que os SRTs recebem

contribuições teóricas de algumas abordagens disciplinares mais específicas, tais como:

Intervenção terapêutica grupal e institucional em saúde mental;

Fenomenologia do morar/habitar e dos processos de reconstrução do

espaço pessoal, tal como desenvolvida por Bachelard;

Da antropologia e do interacionismo simbólico, objetivando a análise da

reconstrução da identidade pessoal;

Da representação social da saúde e da doença, como em Jodelet, assim

como das estratégias de enfretamento do estigma associado à loucura;

Dos aspectos arquitetônicos da construção ou adaptação de prédios para

acomodarem os SRTs, entre outras.

Segundo esse autor, a forte tradição hegemônica de nosso país de oferecer

serviços de saúde mental do tipo estatal, caracterizados por uma cultura terapêutica

mantenedora de relações verticalizadas e hierarquizadas entre os profissionais e os

usuários poderia levar a crer que existem apenas serviços residenciais oferecidos pelo

Estado e com funcionamento atrelado aos profissionais de saúde mental. Ocorre, porém,

que encontramos diversos exemplos internacionais que mostram que a estruturação dos

serviços residenciais pode ser muito mais flexível do que se imagina:

O princípio básico que orienta a proposta desse leque mais

amplo de opções residenciais é ofertar dispositivos adequados à

variedade de quadros diferenciados de dependência e

autonomia, à situação social, familiar e comunitária e ao desejo

expresso, de cada cliente singular (VASCONCELOS, 2008a,

p;114).

Ramon (1996, citado em Vasconcelos, 2008a), destaca os seguintes tipos de

dispositivos residenciais existentes no contexto europeu:

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a) Esquemas residenciais adaptados dentro do ambiente hospitalar

Também denominados de hospital hostels ou hospital wards in the community,

possuem sua origem na Itália durante a década de 1970, sendo difundido de maneira

mais ampla durante os anos 1980. Consistem em uma adaptação de alas de hospitais

para suítes, apartamentos ou casas, nos quais os moradores possuiriam a chave. São

destinados à moradores mais dependentes ou com comportamentos mais desafiantes, ou

usuários com longo histórico de internação psiquiátrica que optam por continuar

morando na instituição. Contam com o auxílio de trabalhadores que realizam supervisão

e oferecem suporte aos moradores por 24 horas ou, ao menos durante o turno noturno.

Esta modalidade também vem sendo utilizada para usuários com delitos penais

associados, os quais exigem maior supervisão e controle.

No tocante às limitações, Vasconcelos (2008a) aponta que os pontos avaliados

estão relacionados à:

Adaptação e similaridade com um ambiente doméstico;

Grau de autonomia dos usuários para gestão da residência e participação

nas decisões em conjunto com os trabalhadores;

Número de usuários por quarto e por residência, além do grau de

privacidade;

Capacidade de circulação social;

Possibilidade dos trabalhadores reproduzirem a antiga cultura

institucional;

Grau de desvalorização e estigmatização produzido pelo ambiente e pelos

trabalhadores.

O autor ainda afirma que experiências desse tipo ocorreram nas cidades

italianas de Trieste e Arezzo, onde foram construídas instalações adaptadas em hospitais

localizados na área urbana, nos quais os moradores, denominados hospedes, escolheram

continuar a viver.

No Brasil, os antigos asilos tem utilizado essa estratégia de readaptação para

continuarem a funcionar, principalmente ao levar em consideração a idade e as

limitações físicas da maior parte dos usuários, geralmente internos de longa duração,

que vivem nessas instituições.

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b) Esquemas de recolocação em famílias

Constitui uma das maneiras mais antigas de resolver problemas relacionados à

saúde mental. Um dos casos mais antigos encontrados é o da cidade belga de Gheel.

Esta cidade desenvolve desde o século XVIII um sistema de famílias adotivas para

adultos que haviam saído do hospital psiquiátrico local. No entanto, alguns estudos,

como o realizado por Roosnes (1979, citado em Vasconcelos, 2008a), apontam para a

sobrevivência do estigma relacionado aos loucos.

Outro exemplo está nas cidades francesas de Du-sur-Arun e Aine-le-Chateau,

sendo esta última analisada em pesquisa realizada por Jodelet. Nessa pesquisa, Jodelet

analisou como 1195 usuários considerados sem problemas sociais graves se

relacionavam nas 439 famílias que os acolheram durante os anos de 1980. Tais famílias

ganhavam uma ajuda financeira para manter os novos moradores, o que resultou na

mobilização das famílias mais pobres, gerando muitos problemas, dos quais a autora

destaca:

A permanência do estigma, do medo e da institucionalidade legal em

relação aos pacientes;

A insuficiência de programas de reinserção social;

A falta de privacidade e/ou do direito de receber visitas na casa.

c) As experiências de “Group Homes” (casas coletivas)

Tais experiências vêm sendo desenvolvidas na Europa desde a década de 1960

e exigem um grande investimento em planejamento, infra-estrutura, auxílios

financeiros, seleção e preparação dos residentes e dos trabalhadores, manutenção física

e investimento constante em recursos humanos na casa, possuindo como outras

características relevantes:

As características e localização da casa na cidade e nas redes de troca

social;

Número de residentes e a adequação da casa às suas necessidades e

privacidade;

Capacidade dos moradores gerirem individual e coletivamente a

residência;

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O regime, a filosofia implícita e a qualidade da supervisão, tendo em

vista as relações de dependência, necessidade de suporte e/ou

autonomia;

Acesso à rede de serviços públicos e aos serviços de atenção

psicossocial.

Vasconcelos (2008a) afirma que os melhores resultados dessa modalidade de

residência estão relacionados ao baixo grau de reinternamento em hospitais

psiquiátricos, e à melhora do poder contratual dos usuários, do autocuidado e da

qualidade de vida dos mesmos. No entanto, o alto custo de manutenção tem sido

apontado como o principal desafio à popularização dessa modalidade, principalmente se

comparado ao custo de manutenção dos hospitais psiquiátricos, onde os internos vivem

apenas de serviços considerados básicos.

Outro ponto negativo destacado pelo autor é o fato de que essas residências

são, de maneira geral, desenhadas para abrigar os internos mais antigos dos hospitais

psiquiátricos, excluindo os denominados “novos crônicos” (usuários mais jovens e com

exigências de cuidado mais desafiadoras).

d) Serviços residenciais integrados

Neste tipo de experiência encontramos várias unidades residenciais com

grande grau de autonomia e vida independente (apartamentos individuais, duplos, por

exemplo), integrados a um serviço de suporte, aberto 24 horas por dia e 7 dias por

semana. Neste tipo de dispositivos podem ser incluídos moradores que possuem

transtorno mental, demência ou deficiências de vários tipos.

Como aspecto positivo a ser ressaltado, encontramos o fato que estas

residências permitem uma passagem mais tranqüila de um nível de autonomia para

outro, assim como permite um maior contato entre os residentes.

Já em relação aos aspectos negativos podemos citar a manutenção da

segregação, isolamento, a possibilidade de iniciar um processo de

transinstitucionalização, principalmente se as residências não estimularem a reinserção

social dos moradores.

e) Comunidades Terapêuticas

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Surgiram na Europa e nos Estados Unidos a partir da Segunda Guerra

Mundial, quando passaram a ser utilizadas como serviços especializados para soldados,

e a partir de então foram construídas no interior dos espaços hospitalares. A

característica central desse modelo é o acoplamento do atendimento terapêutico e de

atenção psicossocial disponíveis internamente ou acoplados ao serviço.

No entanto, diante do contexto de gastos orçamentários que ocorreu durante a

década de 1980, vários desses serviços foram fechados por serem considerados

excessivamente dispendiosos.

Além disso, esse tipo de modalidade recebeu duras críticas do grupo que

liderava o movimento da Reforma Democrática Italiana por reproduzir em vários

aspectos o antigo modelo hospitalocêntrico, tais como a segregação e exclusão dos

usuários.

f) Aluguéis e outros esquemas individuais no mercado privado de

moradias

O aluguel convencional de uma residência é uma das opções que o usuário

possui, mas nesse processo ele pode encontrar algumas dificuldades, tais como:

dificuldades do pagamento de aluguel e/ou falta de cuidado com a moradia; reclamações

dos vizinhos sobre comportamentos indesejáveis dos moradores; solidão e falta de apoio

comunitário em locais hostis.

Para que essa opção possa ser realmente efetivada, é necessário contar com o

suporte de profissionais ou de um grupo formado por profissionais e leigos no sentido

de ajudar a solucionar os impasses citados acima, além de outros, como acesso à rede de

atenção psicossocial e serviços sociais e educacionais em geral.

Dessa forma, encontramos em comum entre diversas modalidades de serviços

residenciais o fato de sempre exigirem, em maior ou menor grau, a atenção de algum

profissional da área de saúde mental. Nesse sentido, em nosso país a Portaria nº

106/2000 estabelece que os SRTs possuam equipe técnica composta, no mínimo, pelos

seguintes profissionais:

a) 01 (um) profissional de nível superior da área de saúde com formação,

especialidade ou experiência na área de saúde mental, denominado de Técnico de

Referência (TR);

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b) 02 (dois) profissionais de nível médio com experiência e/ou capacitação

especifica em reabilitação psicossocial.

Estes profissionais devem atuar na assistência e supervisão das atividades

desenvolvidas nos SRTs. Vale ressaltar que os profissionais de nível médio

encarregados de cuidar dos moradores são denominados de cuidadores (BRASIL,

2004).

Na tentativa de inserir os moradores socialmente e de inventar uma nova forma

de lidar com a loucura, os cuidadores dos SRTs devem atuar no sentido de viabilizar o

processo de reabilitação psicossocial dos moradores. Mas qual o significado do termo

reabilitação psicossocial no contexto da reforma psiquiátrica?

2.2 A reabilitação psicossocial

De acordo com Sidrim (2010), a prática da reabilitação surgiu relacionada à

prática médica e tinha como objetivo a retomada da funcionalidade do paciente e a

compensação ou eliminação de déficits ocasionados pelo adoecimento. Este modelo

funcionalista e organicista foi transposto para o campo da psiquiatria, sendo

denominado de reabilitação psiquiátrica ou reabilitação psicossocial.

Para a autora, a doença mental, a partir desta transposição, passou a ser vista

como algo naturalizado, destituído de condicionantes histórico-sociais (inclusive em

seus próprios conceitos teóricos), sendo o louco considerado um ser sem subjetividade.

Assim, originalmente foi a partir dessa concepção de reabilitação psicossocial de cunho

organicista e adaptacionista que o conceito de reabilitação foi inserido no campo da

saúde mental.

Posteriormente, foram desenvolvidas outras perspectivas de reabilitação

psicossocial a partir da utilização de várias técnicas de orientação cognitiva ou

educacionais. Saraceno (1999), citado por Fonseca (2006), destaca os seguintes modelos

de reabilitação psicossocial: Modelos de Social Skill Training, Modelos Psico-

educativos e Modelo de Spinak (de orientação comportamentalista), e o Modelo de Luc

Ciompi, o qual possui uma orientação psicossocial.

Modelos de Social Skill Training

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Utilizando a teoria da aprendizagem de orientação comportamentalista, tal

modelo objetiva promover a aquisição, generalização e a permanência de habilidades.

Busca desenvolver treinamentos, ações protetoras ou potencializadoras de habilidades

específicas para enfretamento de situações estressantes. No entanto, tais treinamentos

tendem a falhar fora dos settings terapêuticos, posto que a complexidade das situações

que ocorrem na vida cotidiana exigem habilidades mais sofisticadas do que aquelas

treinadas durante o setting.

Modelos Psico-educativos

Também de orientação comportamentalista, difere do anterior por utilizar

contribuições da Teoria das Emoções Expressas, desenvolvida durante a década de

1960. Segundo esta teoria, o grau de tensão exposto nas expressões verbais e/ou não-

verbais entre os pacientes e as demais pessoas poderia favorecer ou não o

desenvolvimento de crises psicóticas.

Este modelo, no entanto, reduz o objetivo da reabilitação ao tratamento de

sintomas e à prevenção de recaídas. Além disso, por esta abordagem centrar suas

atenções na família, ela acaba por desconsiderar ou minimizar outros aspectos do

contexto no qual o paciente está inserido enquanto espaço fundamental para sua

reabilitação.

Modelo de Spinak

Possui como objetivo o estudo das maneiras pelas quais o sujeito se dessocializa,

tendo como foco a compreensão de formas de evitar tal dessocialização. Este modelo

possui como pressuposto a idéia de que os pacientes apresentam um déficit de

competência social e pessoal, além de uma reação negativa ao meio.

A principal intervenção está em neutralizar o processo cronificador através da

articulação do sujeito com o ambiente, aumentando sua capacidade para enfrentar as

normas estabelecidas socialmente. Sua principal atuação reside, dessa forma, no

paciente e não no ambiente no qual ele está inserido.

Modelo de Luc Ciompi

Utilizando contribuições oriundas da epidemiologia, este modelo trouxe

importantes contribuições na maneira de compreender a psicose enquanto um artefato

social. Os aspectos cronificantes da psicose seriam, então, decorrentes de determinantes

sociais e não individuais.

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Este modelo busca atuar com todos os atores envolvidos no processo de

reabilitação, rompendo com o modelo comportamentalista de atuação individual.

Apesar desse avanço, ele não critica os pressupostos do modelo hospitalocêntrico.

Segundo Fonseca (2006), a Reforma Italiana, a qual inspira o processo de

Reforma no Brasil, não possui um modelo ou teoria sobre a reabilitação psicossocial.

Para esta perspectiva, existe um conjunto de ações reabilitadoras que devem levar em

consideração o poder contratual do indivíduo.

Amarante (1994) afirma que Franco Basaglia, principal expoente da Reforma

Democrática Italiana, desenvolve em Potere ed istituzionalizzazione uma estratégia de

relacionamento, de cunho contratual, a qual apostava na idéia de que a função da

psiquiatria e a situação dos enfermos deveria ser de responsabilidade comum entre

técnicos e internos. Seria necessária então a invenção de novas estratégias de mediação,

que iriam desde estratégias médicas ou psicológicas até estratégias culturais, sociais e

políticas e que seriam posteriormente denominadas de reabilitação psicossocial

(AMARANTE, 1996).

Alguns autores, como Saraceno (1999), citado por Fonseca (2006), e Lussi,

Pereira e Junior (2006) afirmam que o objetivo maior da reabilitação psicossocial é

permitir que pacientes crônicos desenvolvam ao máximo sua autonomia em ambientes

normais. Segundo Hirdes e Kantorski (2004), a reabilitação psicossocial é bastante útil

no exercício do cuidar na comunidade, tal como proposto através da

desinstitucionalização.

Segundo Saraceno (2001a), a reabilitação psicossocial não é uma tecnologia

mas, isto sim, uma abordagem ou estratégia que deve objetivar mais do que

simplesmente passar o usuário de um estado de desabilidade para um estado de

capacidade. Nesse sentido, a reabilitação não deve ser compreendida enquanto uma

técnica específica, mas enquanto uma estratégia global que mobiliza todos os atores

envolvidos em seu processo: usuários, profissionais e comunidade.

Desenvolvendo um pouco mais esta linha de argumentação, Kinoshita (2001)

afirma que o doente mental, de maneira geral, é caracterizado a partir de sua

negatividade, ou seja, daquilo que lhe falta, tornando nulo seu poder contratual.

Segundo o autor, o poder contratual de uma pessoa está baseada em três dimensões

fundamentais: trocas de bens, de mensagens e de afetos.

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Assim, ao ser denominada de doente mental, uma pessoa possui seus bens postos

sob suspeita, sendo considerada incapaz de se comunicar, tornando suas mensagens

incompreensíveis e seus afetos são considerados desnaturados. Neste sentido, reabilitar

pode ser compreendido como um processo de restituição do poder contratual do usuário,

objetivando a ampliação de sua autonomia (KINOSHITA, 2001).

Cabe destacar ainda que, para Kinoshita (2001), autonomia não deve ser

compreendida enquanto auto-suficiência ou a total independência do usuário. De

maneira diferente, autonomia, dentro do contexto da reabilitação psicossocial, deve ser

compreendida enquanto capacidade que o indivíduo possui de gerar normas, ordens para

a vida, de acordo com as diversas situações nas quais esteja inserido.

Para tanto, faz-se necessário exercer a contratualidade dos indivíduos a partir de

três eixos, como afirma Saraceno (1996), citado por Randemark (2009): o morar, a rede

social e o trabalho. O morar é visto como um habitar, com todas as implicações que

supõe: direito à privacidade, expressão de sentimentos, negociação para resolução de

problemas cotidianos, etc.

A compreensão de rede social se estende da família até a comunidade em geral.

É na criação de novos vínculos que os usuários encontram a capacidade de exercerem

novas relações contratuais. É no espaço comunitário que o usuário pode mobilizar

diversos recursos no intuito de resolver possíveis problemas.

Já o eixo do trabalho não deve ser compreendido enquanto trabalho alienante, tal

como proposto por Pinel e seu tratamento moral. O trabalho deve, isto sim, ser utilizado

enquanto ponto de partida, e não ponto de chegada: é através da possibilidade de

trabalhar e de ganhar pelo trabalho que o sujeito se reconhece enquanto sujeito de

direito e sujeito de desejo.

O processo de reabilitação psicossocial exige, a partir do exercício dos três

eixos, não apenas uma relação entre técnicos e moradores, mas entre os diversos atores

envolvidos no desenrolar das instituições que, no caso dos SRTs, seriam técnicos,

moradores, famílias e comunidade (SANTOS, 2008).

Os técnicos são vistos, dessa forma, enquanto peças fundamentais na construção

dos eixos supracitados, servindo como mediadores do processo entre os usuários e o

contexto. É nessa medida que faz-se necessário o esforço dos técnicos no sentido de

promover a singularidade dos sujeitos, adotando estratégias que viabilizem o exercício

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de suas potencialidades, objetivando a construção de uma melhor qualidade de vida para

os usuários (RANDEMARK, 2009).

A contratualidade do usuário, primeiramente, vai estar

determinada pela relação estabelecida pelos próprios

profissionais que o atendem. Se estes podem usar de seu poder

para aumentar o poder do usuário ou não. Depois pela

capacidade de se elaborar projetos, isto é, ações práticas que

modifiquem as condições concretas de vida, de modo que a

subjetividade do usuário possa enriquecer-se, assim como, para

que as abordagens terapêuticas específicas possam

contextualizar-se (KINOSHITA, 2001, pp. 56-57).

A reabilitação psicossocial é compreendida, então, como um processo de

estabelecimento ou de resgate de cidadania, a qual deve ser entendida enquanto

admissão da pluralidade de sujeitos, com suas singularidades e diferenças, como afirma

Amarante (1996).

No entanto, vários autores (PITTA, 2001; SARACENO, 2001b; BERTOLOTE,

2001) apontam algumas críticas tanto na utilização do conceito de reabilitação

psicossocial quanto no desenvolvimento dos serviços ao utilizarem essa nomenclatura.

De acordo com Pitta (2001), a utilização do termo Reabilitação Psicossocial traz

consigo alguns valores implícitos quando analisado a partir de sua etimologia. Para a

autora, o prefixo RE apresenta a idéia de movimento para traz e/ou repetição. Já

HABILITAÇÃO é o fato de habilitar-se através da aquisição de conhecimentos, aptidões,

capacidades. Já do ponto de vista jurídico, esse termo ainda apresentaria a idéia de

formalidades necessárias para aquisição de um direito ou demonstração de capacidade

legal para exercício de alguma atividade.

Quando juntos na palavra Reabilitação, impõe um sentido de

recobrança de crédito, estima ou bom conceito perante a

sociedade. Recupera faculdades físicas ou psíquicas dos

incapacitados e é este sentido “ortopédico” de reabilitação de

funções físicas o que mais facilmente ocorre no imaginário

brasileiro. Os serviços de reabilitação física existem

concretamente e são conhecidos e utilizados pelos usuários,

prevalecendo um modelo mecânico de concerto de disfunções,

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fraturas, buscando um retorno à fisiologia “normal” (PITTA,

2001, p. 23).

Outra crítica advém do fato de que o termo re-habilitar carrega implicitamente a

idéia de um retorno a um passado considerado normal, o qual deve ser retomado a todo

custo, produzindo:

tensão em relação a um passado inexistente;

referência à idéia de cura, revelando a insistência de normalização e de controle

social;

a exigência de um resgate, o qual reproduz o estigma de redimir a doença;

a separação dos âmbitos da cura, reabilitação e prevenção (VENTURIN;

GALASSI; RODA; SERGIO, 2003).

Outra crítica que alguns autores realizam (SARACENO, 2001b; BERTOLOTE,

2001) reside no fato da reabilitação social ser uma prática à espera de teoria. Segundo

Saraceno (2001b), as práticas terapêuticas derivadas da prática clínica são consideradas,

atualmente, insatisfatórias, posto que as doenças mentais são uma das poucas doenças

onde a morbidade não tem se modificado no curso do tempo.

Para o autor, enquanto a clínica vem gerando um modelo insatisfatório, outras

práticas, como a reabilitação psicossocial, vêm demonstrando alcançarem bons

resultados. Apostando na idéia de negociação, a reabilitação psicossocial tem apostado

no aumento da capacidade relacional do sujeito a partir das trocas sociais. No entanto,

ainda que as teorias que embasam a reabilitação psicossocial possam estar em

construção, o autor adverte para o perigo de velhas práticas serem retomadas:

A ideologia de capacitar os descapacitados a tomarem partido

numa sociedade forte e, então, pensar a Reabilitação

Psicossocial como um processo de fortalecimento de fraquezas,

ou ideologias populistas que pensam que os fracos devem ser

apoiados pois a sociedade, muito má, os condenou à

marginalidade, que é um ranço de uma retórica reabilitivo-

populista muito perigosa e ideológica (SARACENO, 2001b, p.

152).

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Para o autor, o desafio para a construção de uma teoria que oriente a prática da

reabilitação psicossocial é justamente o de reconstruir um campo de encontro entre

usuários e profissionais que produza sentido.

É a produção de sentido, em lugar da reprodução, de um

encontro onde as identidades estão há muito tempo pré-

definidas: “Eu sou TO, você é psicótico”. O encontro de maus

profissionais, conhecimentos técnicos e identidades pré-

estabelecidas gera reprodução de doença, reprodução de

poderes, reprodução de ideologias. Reprodução no lugar de

produção de sentido, ou seja, produção de saúde (SARACENO,

2001b, p.153).

Neste sentido, Bertolote (2001), em consonância com Saraceno (2001b), afirma

que a reabilitação psicossocial deve estar preocupada também com questões

relacionadas à linguagem, posto que a reprodução de antigas práticas hospitalocêntricas

podem continuar através da utilização de determinados conceitos, por exemplo.

A linguagem da reabilitação passa ao largo da terminologia

médica, e até por hábito, tradição ou vício, nós estaremos

prestando um desserviço à Reabilitação Psicossocial e às

pessoas que dela poderiam se beneficiar. O conceito com os

quais estamos trabalhando de deficiência, incapacidade, de

desvantagem, me parece que suprem e superam com grandes

vantagens a terminologia médica de doença, síndrome ou

transtorno (BERTOLOTE, 2001, p. 157).

Por todas as críticas expostas até o momento, e também na tentativa de

estabelecer um novo sentido ao conceito de reabilitação psicossocial, passaremos a

utilizar o termo habilitação psicossocial, posto que ele permite: olhar para um presente

que contém os condicionamentos do passado, mas que se abre a perspectivas que

avançam para além das doenças e seus determinantes; e poder voltar-se à parte saudável

e não àquela doente do paciente, desenvolvendo as potencialidades e possibilitando a

construção de uma identidade positiva para o sujeito.

Portanto, se podemos utilizar a metáfora da remoção de barreiras para

compreender a habilitação psicossocial, temos que começar a remover as barreiras

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lingüísticas, as barreiras comunicacionais que dificultam a vida daqueles que estão

envolvidos de alguma maneira com a prática da habilitação psicossocial.

2.3 A Reforma na cidade de Recife – PE

O início do movimento de Reforma Psiquiátrica na cidade de Recife – PE data

do começo da década de 1990 (COUTO et al., 2001; OLIVEIRA, 2008). Segundo

Couto et al. (2001), foram criados um conjunto de propostas e dispositivos sanitários

que possuíam como objetivo promover uma política de desospitalização progressiva, a

medida em que eram criados recursos assistenciais extra-hospitalares e da integração da

atenção em Saúde Mental ao Sistema Único de Saúde (SUS).

De acordo com Leite (2009), a política de Saúde Mental empreendida na cidade

de Recife – PE, tem se configurado a partir dos questionamentos realizados diante da

qualidade da assistência oferecida aos usuários de tal política. A questão posta por tal

política é a de não curar a doença mas, isto sim, cuidar do sujeito, compreendendo-o a

partir de sua singularidade.

Dessa maneira, dentro do processo de municipalização dos serviços de saúde,

foram instituídos os seguintes pressupostos para atuação na área de Saúde Mental:

redimir não apenas o sintoma, mas ir além destes,

compreendendo a complexidade da existência do sujeito, seus

desejos e necessidades; possibilitar a este sujeito a construção

de estratégias capazes de diminuir tal sofrimento e aumentar o

seu poder de contratualidade com a família e a vizinhança

garantindo o seu espaço social independente de sua forma de ser

e compreender o mundo (LEITE, 2009, p.15)

Em relação aos seus objetivos, tal política pretendeu firmar o modelo de atenção

territorial baseada na divisão da cidade em distritos, compreendendo todos os níveis de

atenção em saúde; realizar a inclusão social dos usuários junto às suas famílias e

comunidade, desenvolvendo o processo de habilitação psicossocial; desconstruir a

atenção baseada no modelo hospitalocêntrico; discutir a idéia de transversalidade dentro

da área da Saúde Mental.

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Foram implantados, na tentativa de concretizar a política descrita acima,

diversos serviços substitutivos. Em 2001, a cidade possuía apenas um CAPS público,

sendo este número continuamente ampliado a partir da implantação de mais 14 CAPS,

localizados em diferentes distritos, sendo sete para adultos com transtornos psíquicos

(um atendendo em regime de 24 horas), dois CAPSi (voltados para os usuários infanto-

juvenis) e seis CAPSad (que atendem pessoas que desenvolveram transtornos causados

pelo uso de álcool, fumo e drogas ilícitas). Vale destacar que cinco CAPSad possuem

albergues terapêuticos, que são pensões protegidas destinadas àqueles usuários que

necessitam de atenção intensiva (LEITE, 2009).

Foram implantados, também, diversos ambulatórios de Psiquiatria e Psicologia

distribuídos nas Políclinicas instaladas em 10 unidades de saúde e foram mantidos os

seis hospitais privados e conveniados ao SUS, os quais disponibilizam 1.384 leitos.

Também encontramos o Projeto ReHabitar enquanto um dos principais eixos

articuladores das propostas de Saúde Mental no município de Recife - PE. De acordo

com Mendonça (2007), seu principal objetivo é promover a vida autônoma aos

pacientes no contexto extra-institucional, sendo constituído, de acordo com Leite

(2009), pelo Projeto de Volta à Família e pelo Projeto de Residências Terapêuticas.

Segundo a autora, o Projeto de Volta à Família, destinado àqueles que residem

em hospitais psiquiátricos e instituições asilares que têm condições de retornar à sua

comunidade e família, também compõe o projeto ReHabitar, assim como o projeto de

Residências Terapêuticas, o qual é composto por quatorze SRTs, localizadas nos

seguintes bairros: Cajueiro, Campina do Barreto, Tamarineira, Casa Amarela, Iputinga,

Cordeiro, Afogados e IPSEP, distribuídos em cinco Distritos Sanitários (II, III, IV, V e

VI).

O projeto de Residências Terapêuticas foi iniciado em 12 de Novembro de 1999,

quando foi implantado um Lar Abrigado dentro do espaço hospitalar. No entanto, Leite

(2009) afirma que essa experiência não foi a primeira do Estado, posto que há o registro

de duas experiências semelhantes no Hospital Alcides Codiceira, localizado no

município de Igarassu – PE.

Além disso, esta não foi a primeira experiência na qual se buscou a

desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos e seu retorno à comunidade no Estado

de Pernambuco. Segundo Oliveira (2008), houve uma experiência de

desinstitucionalização datada da época em que o psiquiatra Ulisses Pernambucano

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assumiu o cargo de diretor do antigo Hospício da Tamarineira, o qual era denominado,

naquela época, de Hospital de Doenças Nervosas e Mental.

Por volta da década de 1930 e sob coordenação-geral de Ulisses Pernambucano

foram instituídas uma série de dispositivos de assistência aos doentes mentais: o

Manicômio Judiciário, a Colônia Agrícola de Barreiros, o Serviço Aberto, o de Higiene

Mental, e o Serviço de Assistência a Psicopatas de Pernambuco. Todo esse aparato tinha

como função combater e estancar o aumento de casos de doenças mentais no Estado de

Pernambuco através, inclusive, da realização de pesquisas e da profusão do

conhecimento gerado na Academia.

Dos serviços supracitados, cabe destacar aqui, devido ao nosso objeto de estudo,

o Serviço Aberto. Tais serviços possuíam como premissa a idéia de assistência

heterofamiliar, a qual consistia na adoção, por parte de alguma família, de algum doente

mental que, comprovadamente, não oferecesse perigo a ninguém. A família que

acolhesse o doente mental também receberia um determinado valor destinado à ajudar

com as despesas do novo morador. Assim, todos seriam beneficiados: o próprio doente

mental e sua terapêutica, a família que o acolhia, e as finanças do Estado.

Dessa maneira, como podemos observar pelo exposto até o momento, os SRTs

são dispositivos de fundamental importância para o avanço da Reforma Psiquiátrica e

do processo desinstitucionalização no Brasil. Enquanto que em 2004, o país possuía

1.363 moradores em SRTs, em 2009 esse número sobe para 2.829.

Tal fato também é apontado pelo número de SRTs implantados no país: em 2004

encontramos 262 SRTs distribuídos por 14 estados brasileiros, dos quais 5 operavam em

Pernambuco (BRASIL, 2004). Já em 2009 encontramos um total de 533 SRTs em

funcionamento no país, dos quais 14 SRTs estão localizados em Pernambuco, além do

que estão em processo de implantação mais 10 SRTs nesse mesmo estado (BRASIL,

2009).

A partir de sua implantação, os SRTs objetivam o encontro dos egressos de

hospitais psiquiátricos com a cidade, tendo em vista a possibilidade de circulação das

diferenças, de produção de novas subjetividades, enfim, de viver na cidade, objetivando

a construção de uma inserção cidadã.

Porém, tal como nos alerta Dimenstein (2007, p.26), “não se trata apenas da

substituição dos hospitais psiquiátricos; é preciso desmontar dispositivos práticos e

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discursivos que, diferentemente daqueles presentes nas formas asilares de tratamento,

apresentam-se como novas clausuras invisíveis”.

Destarte, a referida autora nos instiga a questionar se realmente há uma

mudança no olhar sobre a loucura ou se ocorre a reprodução de práticas de controle. Os

serviços substitutivos seriam esses locais que proporcionariam um novo olhar sobre a

loucura ou, ao contrário, seria um deslocamento do antigo hospital psiquiátrico

subjugando ainda mais severamente os sujeitos: a prisão sem grades?

Nesse sentido, os cuidadores podem ter uma função dúbia nos SRTs: podem

tanto funcionar enquanto facilitadores do processo de habilitação psicossocial através da

organização de atividades dos moradores junto à comunidade, por exemplo; ou podem

exercer uma função coercitiva: os cuidadores podem funcionar enquanto agentes que

ditam o que é permitido ou proibido na casa, instituindo suas próprias regras.

Perguntamo-nos, então: O discurso reformista faz parte do repertório

lingüístico dessas pessoas? Esses sujeitos conhecem o discurso reformista? Se

conhecem, como definem o processo de Reforma Psiquiátrica? Como se posicionam em

relação ao processo? Se percebem implicados nesse processo? Quais as posições

identitárias que constroem sobre si mesmos e sobre os moradores?

Para tanto, na realização dessa pesquisa, utilizamos o referencial teórico

proposto pela Psicologia Discursiva. Dessa forma, consideramos necessária, nesse

momento, uma breve explanação sobre os principais conceitos que embasam a teoria

utilizada.

3. PSICOLOGIA DISCURSIVA

O material discursivo coletado para este estudo foi analisado a partir do

referencial teórico da Psicologia Discursiva. Dessa maneira, consideramos de

fundamental importância explicitarmos aqui o que é a Psicologia Discursiva, além de

apresentarmos uma breve história de sua constituição e seus principais conceitos.

Segundo Wiggins e Potter (2008), a Psicologia Discursiva estuda a maneira

como os conceitos psicológicos são construídos, entendidos e compartilhados nas

interações cotidianas e em situações institucionais.

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Descrições de estados psicológicos não são apenas observações

soltas que as pessoas fazem, e sim versões localizadas,

retóricas, performáticas que estão conectadas a outros detalhes

dos relatos narrativos (Edwards, 2005, p. 196).

Ao contrário do que ocorre com a maioria das teorias psicológicas, os autores

afirmam que essa perspectiva não está interessada em processos mentais, regularidades

comportamentais ou eventos neurais que acontecem por trás das interações entre os

sujeitos.

Mais do que isso, essa perspectiva objetiva explicar a maneira como as

categorias, construções e orientações utilizadas nas interações entre os sujeitos podem

construir um senso de agenciamento, por exemplo, ou na maneira através da qual ocorre

o processo de significação em um momento particular de um processo de interação

através do discurso (WIGGINS; POTTER, 2008).

Potter e Hepburn (2007) afirmam que a Psicologia Discursiva surgiu de uma

vertente específica de análise do discurso desenvolvida na Psicologia Social durante a

década de 1980. O primeiro artigo sobre essa perspectiva teórica foi publicado, segundo

Potter (2003), em um jornal de psicologia no ano de 1985 e sua obra fundamental foi

publicada logo em seguida, no ano de 1987, sob o título de Discourse and Social

Psychology1 (POTTER; WETHERELL, 1987).

Esta obra abordou uma série de conceitos fundamentais para a Psicologia Social,

tais como atitude, categorização e self, tentando demonstrar as vantagens de analisar tais

conceitos a partir de uma perspectiva discursiva. Por exemplo, ao invés de considerar as

categorias enquanto esquemas para processamento de informação, elas poderiam ser

compreendidas a partir de seu papel interacional numa conversa (POTTER, 2003).

Outra contribuição que esta obra trouxe, e que foi posteriormente aprofundada

em Wetherell e Potter (1992), foi o desenvolvimento do conceito de repertórios

interpretativos: um conjunto de termos utilizados pelos sujeitos para descreverem a

realidade e que freqüentemente estão organizados ao redor de metáforas (POTTER;

HEPBURN, 2007). O interesse nesse conceito estava relacionado com a tentativa de

compreender como a organização de narrativas, e a utilização dos termos que

1Tradução do autor: Discurso e Psicologia Social. Vale ressaltar aqui que, apesar dessa obra ser

fundamental para a compreensão da Psicologia Discursiva, até o momento de publicação dessa

dissertação ela não havia sido traduzida para o português.

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construíam tais narrativas, podiam ser utilizados para manter a reprodução social da

iniqüidade e do privilégio entre diferentes grupos sociais (POTTER, 2003).

Paralelo ao desenvolvimento dessa perspectiva de análise do discurso ocorreu a

emergência de estudos retóricos dentro da Psicologia Social. No seu primeiro artigo

publicado em 1985 e na obra Argumentando e Pensando2, publicada originalmente em

1987, Billig analisou a dimensão retórica de diversos conceitos utilizados na Psicologia

Social. Por exemplo, a expressão de atitudes pode ser analisada enquanto discurso

orientado para a ação em contextos nos quais haja a possibilidade de argumentação.

Dessa forma, um sujeito pode, simultaneamente, justificar uma determinada posição e,

combater discursos alternativos (POTTER, 2003; BILLIG, 2008).

Já na década de 1990, ocorreu o desenvolvimento da Psicologia Discursiva fora

da análise do discurso. Em parte, isso ocorreu enquanto uma tentativa de distinguir essa

perspectiva de outras formas de análise do discurso, tais como a lingüística,

sociolingüística, pós-estruturalismo e psicologia cognitiva. Por outro lado, também

houve a tentativa de enfatizar que a Psicologia Discursiva não era apenas uma nova

teoria sobre a comunicação face-a-face mas, mais do que isso, era uma reestruturação

do objeto de estudo da Psicologia (POTTER, 2003).

A Psicologia Discursiva compreende, por exemplo, conceitos como os de

memória e de atribuição de causalidade não enquanto entidades ou processos mentais

mas, ao contrário, busca compreendê-los enquanto práticas discursivas: relembrar um

fato pode ser compreendido em termos de uma descrição contextualizada e a atribuição

pode ser vista como uma maneira do falante manejar a responsabilidade e o

agenciamento (POTTER; HEPBURN, 2007).

Atualmente, a maioria dos trabalhos na Psicologia Discursiva tem focado a

maneira pela qual as descrições são construídas pelos sujeitos de modo a se tornarem

factuais e a forma pelas quais os conceitos cognitivos e psicodinâmicos podem ser

compreendidos sob novas perspectivas a partir de seu papel na interação (POTTER,

2003).

Porém ao adotarmos uma perspectiva discursiva, faz-se necessário também

especificarmos o que compreendemos por discurso. Segundo Iñiguez (2005), existem

diferentes maneiras de se compreender o que é discurso, sendo este um campo

2 Título original da obra: Arguing and Thinking: A Rethorical Approach to Social Psycology.

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polissêmico. Conceituar o que é o discurso se torna necessário, então, para marcar um

posicionamento relativo às diferentes tradições de análise do discurso.

De maneira geral, o discurso é apresentado das seguintes maneiras nas ciências

sociais:

a) Discurso como enunciados ou conjunto de enunciados

efetivamente falados por um/a falante.

b) Discurso como conjunto de enunciados que constroem um

objeto.

c) Discurso como conjuntos de enunciados falados em um

contexto de interação – nesta concepção ressalta-se o poder de

ação do discurso sobre outra ou outras pessoas, o tipo de

contexto (sujeito que fala, momento e espaço, história, etc.).

d) Discurso como conjunto de enunciados em um contexto

conversacional (e, portanto, normativo).

e) Discurso como conjunto de restrições que explicam a

produção de um conjunto de enunciados a partir de uma posição

social ou ideológica específica.

f) Discurso como conjunto de enunciados em que é possível

definir as condições de sua produção. (IÑIGUEZ, 2005, p. 123).

Encontramos várias dessas noções de discurso na conceitualização das práticas

de análise do discurso. Apesar de diferentes, essas concepções de discurso não se

excluem mutuamente: mais do que incompatibilidade, elas apresentam possibilidades de

se superporem umas às outras.

Na tentativa de firmar um caminho que se situe entre os interesses e as

demandas das diversas concepções sobre o discurso, Iñiguez e Antaki optam pela

seguinte definição:

Um discurso é um conjunto de práticas lingüísticas que mantêm e

promovem certas relações sociais. A análise consiste em estudar

como essas práticas atuam no presente, mantendo e promovendo

essas relações: é trazer à luz o poder da linguagem como uma

prática constituinte e reguladora (IÑIGUEZ; ANTAKI, 1994, p.

63).

Tal como ocorre com o conceito de discurso, a compreensão do que é análise do

discurso também é permeada por diferentes perspectivas. Iñiguez (2005) afirma que,

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originalmente, o termo análise do discurso designava uma área da lingüística.

Atualmente, encontramos contribuições de diversos campos de conhecimento na análise

do discurso: psicologia, antropologia, sociologia, filosofia, comunicação, entre outros.

Todos esses saberes, de diferentes maneiras e utilizando métodos específicos,

incorporaram a prática da análise do discurso.

Iñiguez (2005) afirma que, apesar de encontrarmos as mais diferentes tradições

de análise do discurso, cada uma com seu método e objetos distintos, existiria algo em

comum entre todas elas: o interesse em analisar o idioma em seu uso, quer seja o idioma

falado ou escrito. Já para Gill (2008), apesar de existirem, no mínimo, cerca de 57

formas de análise do discurso, o que todas essas perspectivas apresentariam em comum

seria a rejeição da idéia de que a linguagem é uma forma neutra de descrever a

realidade, apostando na idéia de que a linguagem e, conseqüentemente, o discurso

ocupam papel central na construção da vida social.

Dessa forma, apresentaremos, ainda que de maneira sucinta, as correntes de

análise do discurso consideradas mais importantes, de acordo com Iñiguez (2005): a) a

Sociolingüística Interacional; b) a Etnografia da Comunicação; c) a Análise

Conversacional; e d) a Análise Crítica do Discurso.

A sociolingüística interacional possui como matrizes a antropologia, a sociologia

e a lingüística. Tal como apontado por Iñiguez (2005), essa tríplice filiação ocorreria

devido ao interesse pela cultura, pela sociedade e pela linguagem.

Tendo como principais expoentes Goffman e Gumperz, a sociolingüística

interacional busca focar a linguagem e o seu contexto de produção. Para os autores, a

linguagem não seria apenas um meio de comunicação, mas seria também um meio de se

construir significados a partir do contexto em que ela é utilizada. Para essa corrente, o

foco da análise está em compreender o contexto no qual os significados foram

produzidos.

A etnografia da comunicação possui como referenciais a antropologia e a

lingüística e apresenta como principal foco o interesse pela competência comunicativa.

Tal interesse está baseado na tentativa de compreender como o conhecimento social,

psicológico, cultural e lingüístico orienta o uso adequado da linguagem.

Baseados no conceito de Chomsky de gramática generativa, a qual busca

explicar como um falante possui a capacidade de compreender um número ilimitado de

frases inéditas para ele, etnógrafos da comunicação, como Hymes, acrescentaram a idéia

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de buscar compreender as regras que permitem que uma pessoa interprete o significado

de um enunciado.

Mais recentemente, essa corrente passou a se denominar de antropologia

lingüística, sendo definida enquanto “o estudo da linguagem como recurso da cultura e

da fala como prática cultural” (Iñiguez, 2005, p. 113).

Já a análise da conversação possui suas origens vinculadas à etnometodologia.

Para a análise da conversação, o que deve estar em foco é “descobrir como a sociedade

está organizada e como funciona a partir das próprias ações das pessoas que nela

interagem” (Iñiguez, 2005, p. 115).

Para tanto, a análise da conversação abdica da idéia de que os significados

estejam aprisionados no interior das palavras pronunciadas pelos falantes. Para os

pesquisadores dessa corrente, a atenção deveria estar centrada nos contextos em que as

pessoas criam seus relatos.

A análise da conversação busca compreender a forma como as pessoas

organizam seus discursos na vida cotidiana objetivando determinados fins. O discurso é

considerado não como uma manifestação de um conceito, mas como um meio através

do qual as pessoas produzem determinados efeitos sobre as outras pessoas, quer de

maneira oculta ou óbvia.

A análise crítica do discurso, por sua vez, não seria, a rigor, uma modalidade de

análise do discurso, mas uma perspectiva diferente. Tal perspectiva estaria relacionada,

principalmente, à forma de análise e a teoria que embasa a análise crítica: os analistas

dessa corrente tentam não pré-configurar a maneira de realizar a análise e o campo de

indagação. A teoria é aqui utilizada enquanto ferramenta para que o pesquisador possa

abrir novas perspectivas a partir de sua interação com aquilo que estuda.

A análise crítica do discurso enfoca o caráter constitutivo da linguagem a partir

da análise de três dimensões: o discurso enquanto texto (oral ou escrito); o discurso

como prática discursiva produzido numa situação concreta; o discurso como

constituinte de e constituído pelas instituições (IÑIGUEZ, 2005).

A Psicologia Discursiva, então, seria uma perspectiva de análise do discurso que

estaria mais próxima às perspectivas que Iñiguez denomina de análise conversacional e

de análise crítica do discurso. Por compreender o discurso enquanto estância

fundamental para compreensão da vida social é que essa perspectiva se opõe à maneira

tradicional de explicar os fenômenos psicológicos. Segundo Potter (2008), as

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perspectivas da psicologia tradicional objetivam explicar a vida social a partir de teorias

sobre os estados, processos e entidades psicológicas “reais” que sustentam e subjazem à

ação.

Dessa forma, a Psicologia Discursiva propõe uma nova maneira de conceber

diversos conceitos oriundos, principalmente, da Psicologia Cognitiva, a qual

compreende as ações humanas como produto de processos cognitivos. Na visão do

cognitivismo, o discurso é tratado como a expressão de pensamentos, intenções ou

alguma outra entidade cognitiva (POTTER, 2006).

Edwards (2006) afirma que a Psicologia Cognitiva compreende o discurso

como: 1) um input para ou output de categorias e esquemas usados nos processos e

modelos mentais; e 2) uma ferramenta metodológica para pesquisar os estados mentais e

as representações.

Em contraste com essa perspectiva, a Psicologia Discursiva, ao invés de tratar o

discurso enquanto dependente de e explicável por processos cognitivos, busca estudar a

maneira pela qual o discurso é construído enquanto tópico de interesse para os

participantes. Assim, ela compreende a mente, personalidade, as emoções, intenções,

etc, na forma como esses conceitos são construídos e orientados para a interação

(POTTER, 2006).

Potter (2008) afirma que a Psicologia Discursiva não está baseada na idéia de

que existe um espaço mental verificável e comprovado por investigações científicas,

mas que existem interações humanas que constroem conceitos psicológicos que estão

presentes no cotidiano das pessoas.

Dessa forma, enquanto os psicólogos cognitivos apresentam suas teorias

baseadas numa história de comportamentos produzidos a partir do processamento de

inputs perceptuais, os quais seriam originados a partir de uma realidade exterior ao

sujeito, os psicólogos discursivos estudam como o discurso realiza ação a partir de

práticas situadas, através da construção de diversos conceitos como, por exemplo, os de

“realidade” e “mente” (POTTER; EDWARDS, 2001).

Ao invés de tentar investigar as idéias que as pessoas trazem dentro de suas

cabeças, como fazem os psicólogos cognitivistas na tentativa de estudar essas entidades,

o foco dos psicólogos discursivos está na visão de que falas e textos são práticas sociais

(POTTER; HEPBURN, 2007).

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Podemos exemplificar, ainda que de maneira sucinta, tais diferenças mostrando

como as duas perspectivas abordam um conceito central para a psicologia social, a

noção de atitudes.

Segundo Potter e Wetherell (1987), existem diversas concepções sobre atitudes.

Porém, os autores dirigem sua atenção especificamente para o conceito utilizado por

McGuire, o qual sugere que é possível formular uma definição com algum grau de

consenso: quando as pessoas expressam suas atitudes elas estão localizando o objeto

julgado em alguma escala de julgamento. Ou seja: as pessoas possuem alguma idéia

sobre algum objeto em questão e elas posicionam tal objeto em alguma hierarquia de

valores através da fala. Subjacente a essa visão, encontramos a idéia de que as atitudes

são entidades mentais de caráter duradouro que programariam os comportamentos dos

sujeitos diante dos objetos.

No entanto, numa perspectiva discursiva, podemos definir a atitude não como

uma entidade mental, mas como uma construção que serve para produzir julgamentos e

os possíveis efeitos realizados por tais julgamentos.

Vamos tomar como exemplo uma resposta a uma pesquisa hipotética nas quais

os sujeitos fossem questionados se são favoráveis ou não ao fechamento dos hospitais

psiquiátricos. Tal resposta poderia ser: “não sou favorável ao fechamento dos hospitais

psiquiátricos por que lá é o local de tratamento da loucura”.

A partir da visão da Psicologia Cognitiva, a atitude expressa por nosso sujeito

imaginário categorizá-lo-ia enquanto um sujeito não-simpatizante ao processo de

Reforma Psiquiátrica, alguém que possuiria uma predisposição comportamental

agressiva em relação a essa temática.

Ao contrário, na perspectiva discursiva, tal atitude poderia ser compreendida

enquanto produtora de um julgamento contrário aos ideais preconizados pela Reforma

Psiquiátrica, produzindo o possível efeito de impedir o retorno dos loucos a suas

comunidades, por exemplo. Mais ainda, podemos afirmar que esta resposta pode ser

compreendida a partir do contexto na qual foi produzida. Em outra ocasião, o sujeito

poderia, por exemplo, defender o retorno dos loucos à comunidade desde que haja ajuda

financeira para as famílias.

Assim, tal como afirmam Potter e Hepburn (2007), mais do que considerar as

atitudes enquanto entidades mentais que orientam o comportamento, a Psicologia

Discursiva reorienta tal conceito para as questões da construção de julgamentos e da

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maneira através das quais esses julgamentos são utilizados para produzir determinados

efeitos.

Diferentes perspectivas teóricas contribuíram, a partir de determinados

conceitos, para a construção da Psicologia discursiva. Nesse sentido, podemos citar a

Análise da Conversação, a Etnometodologia, o Construcionismo, a Filosofia Analítica,

a Semiologia e a Retórica. Potter e Wetherell (1987) utilizaram as perspectivas citadas

na elaboração e justificação de quatro tópicos centrais para a Psicologia Discursiva:

função, construção, variabilidade e retórica.

A seguir, abordaremos a forma como cada perspectiva teórica contribuiu para a

construção dos tópicos supracitados.

3.1 Função

Segundo Potter, Wheterell, Gill e Edwards (1990), diferentes tradições teóricas

que estudam a linguagem tem apontado que ela é um meio orientado para ação.

Segundo os autores, as mais óbvias são a Filosofia Analítica e, em particular, a Teoria

dos Atos de Fala, assim como a Análise da Conversação e a Etnometodologia.

De acordo com Potter e Wetherell (1987), a principal idéia apresentada pela

Etnometodologia e pela Teoria dos Atos de Fala é a idéia de que as pessoas usam a

linguagem para fazer diferentes coisas: através da linguagem as pessoas ordenam,

questionam, solicitam, acusam, se defendem, etc. Mas como essas duas teorias

contribuíram para a construção do conceito de função?

Potter e Wheterell (1987) afirmam que a etnometodologia está preocupada com

o estudo dos métodos cotidianos utilizados pelas pessoas para produzirem sentido no

cotidiano. Dito de outra maneira, os etnomedologistas afirmam que, assim como os

pesquisadores sociais, as pessoas comuns também procuram compreender o que está

acontecendo e utilizam essa compreensão para produzir comportamentos apropriados

para aquela determinada situação.

Um conceito central para compreendermos a idéia apresentada acima é o de

reflexividade. Tal conceito destaca o fato de que as descrições de mundo realizadas

pelas pessoas não são apenas descrições, mas que elas também produzem algo: as

descrições não se limitam a representar o mundo, mas a construí-lo (POTTER, 1998).

Assim, dizer “eu não vou denunciar” para um conhecido que cometeu um crime não é

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um simples comentário sobre a futura ação de ficar calado e não denunciar, pois ela

constitui essa realidade de conivência com o crime, assim como o próprio ato de ficar

calado.

No tocante à Filosofia Analítica, Potter (2001) afirma que existem dois autores

fundamentais para compreender as contribuições advindas desse ramo da Filosofia:

Wittgenstein e Austin.

As Investigações Filosóficas, uma das principais obras de Wittgenstein,

possuíam como um de seus objetivos combater a imagem tradicional da linguagem na

qual a linguagem é vista como uma pintura. Nesta visão, a linguagem seria concebida

como um meio para raciocínios abstratos e seria, também, uma série de nomes

relacionados a cada objeto existente. Já a posição defendida por Wittgenstein, ao

contrário, apontava que a linguagem seria heterogênea e também seria orientada para a

ação.

Ainda de acordo com Potter (2001), Wittgenstein propôs uma visão alternativa

de linguagem enquanto caixa de ferramentas: ao pensarmos numa caixa de ferramentas,

afirma Wittgenstein, pensamos em pregos, martelos, cola, régua, etc, sendo as funções

das palavras tão diversas quanto as funções desses objetos.

Nesse sentido, o conceito de descrição desenvolvido por Wittgenstein também

contribui para a visão da linguagem enquanto orientada para a ação. Para o autor, ao

descrevermos alguma coisa nós não apenas reproduzimos as palavras. Mais do que isso,

descrições são atos que são usados para realizar diferentes performances. Assim, as

descrições não apenas descrevem, como também produzem algo.

Outro autor que também compartilha dessa visão da linguagem enquanto ação é

Austin. Para Austin a linguagem não seria um sistema abstrato cuja função central seria

a de descrever o mundo. Nesse sentido, o autor buscou ressaltar a natureza prática da

linguagem, compartilhando com Wittgenstein a perspectiva de que a linguagem é um

meio de ação (POTTER, 1998).

Para desenvolver sua teoria, denominada de Teoria dos Atos de Fala, Austin

iniciou com a observação de que existe uma classe de sentenças cuja principal função é

fazer coisas, ao invés de apenas descrever coisas. Por exemplo, a sentença “Eu declaro

guerra às Filipinas” não é uma descrição do mundo que pode ser confirmada enquanto

verdadeira ou falsa, mas é um ato com conseqüências práticas: quando dita nas

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circunstâncias corretas, ela origina uma guerra entre estados. A esse tipo de sentenças,

Austin denominou de performativos (POTTER; WHETERELL, 1987; POTTER, 2001).

Austin também afirma que existe um segundo tipo de sentenças, as quais a

primeira vista, parecem ser apenas sentenças descritivas e que podem ser verificadas

enquanto verdadeiras ou falsas. A esse tipo de sentenças, Austin nomeou de constativos.

Ao contrário das sentenças constativas, as performativas não são passíveis de

verificação em relação a sua falsidade ou veracidade. No entanto, elas podem apresentar

outras formas de fragilidades. Ao pensarmos, por exemplo, na sentença “Eu te nomeio

Sir Lancelot”, encontramos diversas maneiras da mesma falhar enquanto nomeação do

cavaleiro Sir Lancelot. Talvez a pessoa que a nomeie não seja a apropriada (no caso o

rei); talvez o cavaleiro não esteja vestido adequadamente para a ocasião, invalidando a

mesma; talvez toda a encenação seja uma brincadeira para divertir os outros cavaleiros

da Tábula Redonda (POTTER; WHETERELL, 1987).

De todo modo, os problemas que podem surgir não dizem respeito à falsidade ou

veracidade das sentenças, mas a questão principal é que certas condições devem ser

realizadas para que os performativos sejam efetivos. A tais condições, Austin nomeou

de felicidades (POTTER; WHETERELL, 1987; POTTER, 2001). A seguir,

apresentamos as condições descritas por Austin:

(A.1) Deve existir um procedimento convencionalmente aceito

que apresente um determinado efeito convencional e que

inclusa o proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e

em certas circunstâncias; e além disso, que

(A.2) As pessoas e circunstâncias particulares, em cada caso,

devem ser adequadas ao procedimento específico invocado.

(B.1) O procedimento tem de ser executado, por todos os

participantes de modo correto e

(B.2) completo

(r.1) Nos casos em que, como ocorre com freqüência, o

procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e

sentimentos, ou visa à instauração de uma conduta

correspondente por parte de alguns dos participantes, então

aquele que participa do procedimento, e o invoca deve de fato

ter tais pensamentos ou sentimentos, e os participantes devem

ter a intenção de se conduzirem de maneira adequada, e, além

disso,

(r.2) devem realmente conduzir-se dessa maneira

subsequentemente (AUSTIN, 1990, p.31).

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No entanto, na obra Quando dizer é fazer, Austin inicia com esta separação entre

performativos e constativos para, posteriormente, concluir que todas as sentenças são,

simultaneamente, performativas e constativas. Por exemplo, podemos concluir da

sentença “Eu aposto com você que meu time vencerá no jogo de hoje”, que ela é um

performativo, pois ela não está descrevendo um ato de apostar: ao proferi-la o locutor

está apostando. No entanto, ela se torna problemática se não existir time para jogar ou

se não houver jogo hoje. Assim, concluímos que as sentenças performativas não são tão

independentes das questões de falsidade ou veracidade (POTTER; WHETERELL,

1987; POTTER, 2001).

Do outro lado, os constativos podem também, como os performativos, serem

infelizes. Por exemplo, na sentença “Aquele cachorro se chama Lassie mas eu não

acredito nisso”, não existe questão de falsidade ou veracidade, pois o cachorro pode ou

não se chamar Lassie e o falante pode ou não aceitar este fato. O que se encontra em

questão é a falta de crenças apropriadas que colaborem com afirmações deste tipo.

Nesse sentido, essa sentença viola a condição r.1designada logo acima (POTTER;

WHETERELL, 1987).

Após essas constatações, Austin abandona a distinção pura e simples entre

constativos e performativos. De suas elaborações teóricas, podemos concluir duas

importantes conseqüências para o estudo da linguagem: 1) as sentenças tanto realizam

ações quanto descrevem coisas; e 2) existem convenções ou condições de felicidade que

implicam as sentenças aos contextos sociais (POTTER; WHETERELL, 1987;

POTTER, 2001).

O trabalho de Austin começa a deslocar a discussão da idéia de

que as afirmações – descrições, informes – advém de algum

espaço conceitual do qual se pode comparar com algum aspecto

do mundo, e foca a atenção nas afirmações como ações

realizadas em alguns contextos e produzindo determinados

resultados (POTTER, 1998, p. 25)3.

3 Tradução livre de: “El trabajo de Austin empleza a alejar la discusión de la idea de que las afirmaciones

– descripciones, informes – cuelgan de algún espacio conceptual donde se pueden comparar com algún

aspecto del mundo, y centra la atención en las afirmaciones como acciones realizadas em unos contextos

y com unos resultados determinados”.

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Outra perspectiva que aposta na idéia de que o discurso produz ação é a Análise

de Conversação. Wooffitt (2005) afirma que este estilo de trabalho teve início a partir

das pesquisas de Harvey Sacks. Segundo o autor, Sacks procurou estudar um corpus de

ligações telefônicas gravadas no Centro de Prevenção ao Suicídio de Los Angeles. Uma

das questões colocadas pelos atendentes nas ligações era a obtenção do nome do ligador

sendo que, no entanto, estes se recusavam a falar seus nomes com receio de serem

identificados.

Segundo Wooffitt (2005), para estudar tal questão, Sacks a problematizou da

seguinte maneira: em que momento da conversa poderíamos afirmar que a pessoa não

gostaria de falar seu nome? Para ilustrá-la, Wooffitt utiliza o seguinte trecho (Sacks,

1992, citado em Wooffitt, 2005, p. 6):

A: Aqui é o Sr. Smith, posso lhe ajudar

B: Não consigo lhe ouvir

A: Aqui é o Sr. Smith4

B: Smith5

A partir desse trecho, ele iniciou o estudo da expressão “Não consigo lhe ouvir”.

No entanto, ao invés de considerar esse trecho como uma mera comunicação de um

problema telefônico, Sacks analisou-o na tentativa de descobrir o que ele estava

produzindo. Nesse percurso, ele descobriu que esta fala foi produzida de tal maneira que

permitisse ao ligador não revelar seu nome, ao mesmo tempo em que não o recusasse de

maneira explícita. Nesse caso, então, a expressão do ligador sobre uma possível

dificuldade com a qualidade da ligação é um método que pode ser utilizado para a ação

de “não relatar o nome” de maneira implícita.

Wooffitt (2005) ressalta, no entanto, que Sacks não estava afirmando que em

todas as ocasiões nas quais alguém falasse “não consigo lhe ouvir” os sujeitos estariam

4 O grifo sob o nome Smith é uma forma encontrada pelos analistas conversacionais para reproduzir

aspectos como entonação, silêncios, etc.

5Tradução livre do seguinte trecho:

A: this is Mr. Smith, may I help you

B: I can´t hear you

A: This is Mr Smith

B: Smith

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se recusando a revelar seus nomes ou, tampouco, que a utilização dessa expressão seja a

única maneira de realizar tal tarefa. Na verdade, o que ocorre é que devemos analisar

tais extratos considerando que aquela expressão particular, naquele momento, construiu

determinado efeito em um determinado trecho da fala.

Ao utilizarem uma perspectiva pragmática da linguagem, os analistas

conversacionais se opõem à idéia de que existe um possível discurso verdadeiro que se

encontra camuflado por trás de um discurso aparente. Ao contrário desta idéia, os

analistas conversacionais utilizam uma visão pragmática da linguagem: devemos

analisar o discurso tal qual nos aparece.

Potter e Wiggins (2008) afirmam que esta preocupação com o estudo do

discurso em si e com a análise minuciosa das expressões possui importância

fundamental na Psicologia Discursiva, na medida em que está interessada no processo

de interação entre os sujeitos.

Outra contribuição ao conceito de função tal como proposto pelos psicólogos

discursivos advém do Construcionismo. De acordo com Potter (1996), não existe uma

teoria simples, unificada, neutra e objetiva a qual podemos denominar de

Construcionismo (até porque esta é uma formulação que o Construcionismo rejeita).

Nesse mesmo artigo, o autor cita, por exemplo, doze perspectivas teóricas que se

aproximam do Construcionismo, tais como a Análise de Conversação, Análise do

Discurso, Etnometodologia, Estudos Feministas, o Pós-Estruturalismo, a Retórica, entre

outros.

No entanto, Gill (2008) afirma que, apesar de serem marcadas por diferenças,

existiriam algumas características-chaves apresentadas por essas perspectivas:

1. Uma crítica à idéia de conhecimento dado e uma visão cética sobre a idéia de

que o mundo se revela ao homem em sua autenticidade;

2. O reconhecimento de que a maneira pela qual compreendemos o mundo é

situada histórica e culturalmente;

3. A idéia de que o conhecimento é construído socialmente; e

4. O objetivo de investigar como os conhecimentos estão ligados às práticas das

pessoas.

Em consonância com o exposto por Gill (2008), Potter (1996) aponta três

características centrais para as perspectivas construcionistas: 1) uma oposição ao tipo de

ciência que aposta na idéia de que a realidade existe independente das práticas

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discursivas; 2) a idéia de que a mente e as ações são contingentes à formas culturais

específicas – nesse sentido, podemos citar o livro A Mente Discursiva, escrito por Rom

Harré e Grant Gillett (1999), no qual ele afirma que a mente não é uma essência mas,

isto sim, é construída a partir de práticas discursivas; e 3) todas consideram o discurso

enquanto meio fundamental para organização da vida social.

Porém, podemos questionar: de que forma esse movimento foi introduzido na

Psicologia? Segundo Gergen e Gergen (2008), existem várias maneiras de contar o

desenvolvimento da perspectiva construcionista dentro da Psicologia. Para os autores,

uma das histórias poderia nos remeter aos trabalho de Vico, Nietzche, Dewey,

Wittgenstein, Berger e Luckmann, dentre outros. No entanto, eles afirmam que os

movimentos sociais, assim como uma efervescência intelectual, que ocorriam durante a

década de 1960 nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, foram os fatores mais

influentes para a reverberação dos ideais construcionistas na Psicologia.

Dentre esses movimentos, podemos destacar a resistência à Guerra do Vietnã; o

engajamento político da comunidade acadêmica; e um profundo ceticismo com a ordem

estabelecida6. Tais movimentos resultam em três grandes críticas que serviriam de base

para a maioria das pesquisas construcionistas na Psicologia: uma crítica ideológica, a

partir das contribuições do marxismo e do feminismo ao trabalho de Foucault; uma

crítica retórica, que a partir do desenvolvimento da semiótica na lingüística e da

desconstrução proporcionada por Derrida; e uma crítica à maneira tradicional de realizar

a ciência, desenvolvida, principalmente, a partir da obra de Thomas Kuhn, Feyerabend e

Latour (GERGEN; GERGEN, 2008).

Potter e Hepburn (2008) utilizam o termo construcionismo discursivo, afirmando

que o discurso é orientado para ação: é o meio pelo qual são construídas versões do

mundo. Para estes autores, o construcionismo discursivo trabalha com o conceito de

construção a partir de dois significados.

Por um lado, se compreende que o discurso é construído, utilizando uma

variedade de diferentes recursos objetivando uma organização estrutural. Em outras

palavras, nos referimos às próprias palavras e a estrutura gramatical discursiva, mas, por

outro lado, também nos referimos às categorias, metáforas, idiomas, estratégias retóricas

e repertórios interpretativos.

6 Nesse sentido, podemos mencionar o movimento de Maio de 68, ocorrido na França (ainda que os

autores não o citem).

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Por outro lado, se compreende que o discurso é construtor, pois a forma como as

palavras, repertórios, etc, são organizados objetivam manter e estabilizar determinadas

versões de mundo, de ações e eventos.

Condizente com tal idéia, Gergen (2007) combate a idéia de que o discurso é

uma representação tanto de uma realidade exterior quanto de uma realidade interior as

quais poderiam ser acessadas pelo sujeito. Ao contrário, para o autor, a linguagem deve

ser compreendida numa perspectiva pragmática.

Assim, considerando a linguagem utilizada na área de saúde mental, por

exemplo, Gergen (2007, p. 285) afirma que

Contrastemos a orientação pictórica sobre a linguagem mental

com outra, a qual podemos chamar de pragmática. Com este

objetivo, ponhamos entre parênteses o enfoque da linguagem

mental como indicador de estados interiores e consideremos a

linguagem como ummeio constituinte das relações sociais.7

Segundo o autor, podemos dizer que a linguagem psicológica obtém seu

significado e importância na forma em que são usadas na interação humana, ou seja, nas

relações sociais. Dessa forma, ao refletir sobre a significação realizada do conceito

“triste”, que poderia ser utilizada na expressão “estou triste”, devemos considerar que

tal significação não decorre de uma relação com o estado de meus neurônios ou de meu

campo fenomenológico mas, isto sim, decorre de realizar uma determinada função

social. Esta expressão pode ser utilizada pelo sujeito, então, para pôr fim a uma

determinada situação desagradável, para conseguir o apoio de alguém ou para provocar

opiniões. Tanto as condições na qual a expressão foi proferida quanto as funções as

quais ela serve são circunscritas pelo contexto social.

Após essa explanação, podemos introduzir o segundo tópico de interesse para a

Psicologia Discursiva: o conceito de variabilidade. Segundo Potter, Wheterell, Gill e

Edwards (1990), o fato do discurso ser orientado para a ação, ou em outras palavras, as

funções do discurso só podem ser compreendidas a partir da análise da variabilidade.

7 Tradução livre de: “Contrastemos la orientación pictórica respecto al lenguaje mental com otra, que

podemos llamar pragmática. Con este propósito, pongamos entre parêntesis el enfoque del lenguaje

mental como indicador referencial de estados interiores y consideremos dicho lenguaje como um rasgo

constituyente de las relaciones sociales”. Grifo no original.

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3.2 Variabilidade

Um segundo tópico de interesse construído por Potter e Wheterell (1987) é a

variabilidade. Para explicar tal conceito, podemos pensar nas diferentes vezes em que

nos descrevemos. Podemos pensar nas vezes em que queremos construir uma imagem

positiva para determinados ouvintes ou, ao contrário, quando ressaltamos algumas

características negativas em nossa descrição (o que pode nos favorecer, dependendo de

quem esteja nos ouvindo e de nossas intenções).

De maneira semelhante, também podemos pensar sobre como podemos

descrever de maneira diferente, em diferentes situações, uma mesma pessoa. Se você

gostar da pessoa, você irá atribuir características positivas a ela. No entanto, se você não

gostar dessa pessoa, ou você irá atribuir características negativas à mesma ou, então, as

mesmas características positivas atribuídas anteriormente poderão se tornar agora

negativas.

Outra situação seria pensarmos numa variação contextual: e se mudasse a pessoa

para a qual estamos descrevendo? Imagine a situação na qual você estaria descrevendo

um colega de trabalho para um amigo ou para um parente. Novamente encontraremos

variações nas características apontadas: para um amigo você poderia falar sobre alguns

atos de delinqüência realizados pela pessoa descrita, o que seria mais improvável de

acontecer caso o ouvinte fosse seu parente.

Para Potter e Whetherell (1987), ao analisarmos o discurso não descobriremos

apenas que ele possui diferentes funções, mas que ele também é bastante variável.

Nesse sentido, a fala de uma pessoa irá variar de acordo com o propósito da fala, ou em

outras palavras, o discurso irá variar a partir de sua função (POTTER et al, 1990;

WHETERELL; POTTER, 1996).

Assim, dependendo da variação da função discursiva, poderemos descrever de

diferentes maneiras um acontecimento, um grupo social, uma pessoa, uma política

pública, etc. Em tais descrições, o sujeito poderá culpabilizar, negar, avaliar positiva ou

negativamente, combater outros discursos, etc, de tal maneira que nos será

proporcionado uma perspectiva variada de seus mundos sociais (WHETERELL;

POTTER, 1996).

Nesse sentido, a filosofia analítica, através do pensamento de Wittgenstein,

apresenta uma grande contribuição para a constituição do conceito de Variabilidade

através do conceito de jogos de linguagem (POTTER, 2001; GERGEN, 1999).

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Segundo Potter (2001), em consonância com Gergen (1999), Wittgenstein

desenvolve essa metáfora para exemplificar sua visão da linguagem. Nessa visão, a

linguagem seria formada por diferentes jogos, cada um possuindo diferentes objetivos e

regras. Caso o sujeito não siga essas regras, ele não se fará ser compreendido pelos seus

ouvintes.

Esse conceito possui importância fundamental, pois condiciona a linguagem ao

seu uso em determinados contextos e situações. Dessa maneira, ao utilizar diferentes

palavras para (re)produzir a realidade, os sujeitos estarão sendo inseridos em diferentes

jogos de linguagem, de acordo com o objetivo ou, nas palavras de Potter e Wheterell

(1987), de acordo com a função do discurso.

Outro conceito que nos ajuda a compreender o conceito de Variabilidade é o de

indexicabilidade, construído a partir de estudos da Etnometodologia. Segundo Potter

(1998), a idéia principal do conceito de indexicabilidade é a afirmação de que o

significado de uma palavra não pode ser compreendido independentemente do contexto

no qual ela foi proferida. Ou, em outras palavras, o estudo do significado de uma

expressão não será satisfatório se o pesquisador não levar em consideração o contexto

no qual ela foi utilizada.

Vale ressaltar que o contexto não se limitaria à ocasião em que a expressão é

utilizada, mas deve-se considerar também quem está falando, qual seu status, o que ele

disse anteriormente, o que deve acontecer em seguida, etc. Nesse sentido, a utilização

de diferentes expressões pelo falante produzirá diferentes efeitos discursivos: a

variabilidade discursiva produz, também, a variação da função do discurso.

Assim, a questão central colocada pela etnometodologia é que o significado de

uma expressão é construído a partir da combinação das palavras e do contexto no qual

elas são proferidas. A compreensão da linguagem não seria resultado de representações

semânticas compartilhadas, como uma espécie de dicionário mental ao qual os falantes

pudessem consultar, mas seria o produto de procedimentos utilizados (como as escolhas

das palavras) para gerar significado dentro de determinados contextos (POTTER, 1998).

Já os analistas conversacionais, ao analisarem o discurso pressupondo que a

linguagem está orientada para a ação, produziram a seguinte questão: de que maneira o

discurso é manejado pelo falante para produzir determinado efeito? Assim, a Análise de

Conversação abre espaço para discutirmos sobre o conceito de Variabilidade.

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Assim, ao estudar a conversação partiram do pressuposto de

que o que se diz não se diz por acidente, que as formas das

palavras não são imprecisas nem improvisadas, senão que estão

desenhadas com todo detalhe para que sejam sensíveis ao seu

contexto seqüencial e a seu papel na interação (POTTER, 1998,

p. 82)8.

Em outras palavras, o que o autor afirma é que as palavras ditas pelo falante não

são escolhidas aleatoriamente: o falante escolhe as palavras certas na tentativa de

manejá-las objetivando a produção do determinado efeito.

Um exemplo citado pelo autor para caracterizar tal afirmação foi a investigação

realizada pelo próprio Potter e por Edwards (1992, citado em POTTER, 1998), na qual

os autores buscaram analisar as diferentes maneiras pelas quais jornalistas foram

descritos em uma determinada conferência de impressa. Em seu argumento, Potter

afirma que ao construir diferentes discursos para descrever os jornalistas, os próprios

jornalistas(!) que haviam escrito a matéria produziram também diferentes efeitos

discursivos. Como exemplo, Potter (1998) cita trechos de dois desses artigos, ambos

publicados no mesmo jornal, no mesmo dia:

1. 10 jornalistas totalmente experts em taquigrafia9.

2. Por tanto, os cadernos dos caça-notícias só contem um resumo

superficial...10

.

Segundo o referido autor, as palavras foram utilizadas pelos jornalistas para

produzirem diferentes efeitos. No caso do primeiro trecho citado, o jornalista utilizou o

termo experts para descrever seus colegas, produzindo o efeito de que todos os

jornalistas são bons profissionais e que podem ser utilizados enquanto fontes confiáveis.

Já a construção produzida no segundo caso, ao utilizar o termo caça-notícias, pode

produzir o efeito de que os jornalistas são profissionais com interesses cínicos,

destruindo a confiabilidade dos mesmos.

Dessa maneira, dependendo da construção realizada pelo falante ou, em outras

palavras, dependendo da variabilidade discursiva, podem ser produzidos diferentes

8 Tradução livre de: “Así, al estudiar la conversación partieron de la presuposición de que lo que se dice

no se dice por accidente, que las formas de las palabras no son imprecisas ni improvisadas, sino que están

diseñadas con todo detalle para que sean sensible a su contexto secuencial y a su rol en la interacción”. 9 Tradução livre de: “10 periodistas totalmente expertos en taquigrafia”. Grifado no original.

10 Tradução livre de: “Por tanto, los cuadernos de los cazanotícias sólo contienen um resumen

superficial...”. Grifado no original.

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efeitos. No exemplo citado, os jornalistas poderiam ser descritos, dentre diversas

maneiras, como funcionários velhos e cansados, como manipuladores da verdade ou, ao

contrário, como heróis que buscam sempre a verdade (POTTER, 1998).

Gergen é outro autor que também aponta para o fato de que a utilização de

determinados conceitos em detrimento de outros produz diferentes efeitos. Em um

estudo realizado pelo próprio Gergen e Quosh (2008), ele aponta como conceitos

relacionados à saúde mental gera a dependência da população dos serviços e

profissionais de saúde mental.

Nesse estudo, os autores analisaram a partir de uma perspectiva histórica o

contexto de produção do conceito de Transtorno de Estresse Pós-traumático. Segundo

eles, tal história sobre o conceito teve início com o conceito de síndrome traumática, o

qual foi utilizado pela primeira vez por John Erich Erichsen em 1866, quando este

identificou que vítimas de acidentes de trem desenvolviam uma condição física

anormal. Paralelamente, surge o interesse da indústria farmacêutica pelos acidentes

industriais.

Já Hermann Oppenheim desenvolveu a noção de neurose traumática, a qual

afirmava que tal neurose estava associada à um dano nervoso causado por algum evento

chocante. Ao construir o trauma enquanto um evento neurológico as portas estavam

abertas para a psicologia, na medida em que problemas psicológicos estavam associados

às condições cerebrais.

Em seguida, Charcot estabeleceu a relação existente entre o trauma físico e a

doença mental e, juntamente com Freud e Pierre Janet, chegou a conclusão de que a

síndrome traumática teria uma base psicológica. Já Freud desenvolveu a noção de

histeria enquanto resultante do trauma, associando o conceito de trauma à

psicopatologia.

No entanto, os autores destacavam que o conceito de trauma foi modificado no

período da I Guerra Mundial. Muitos dos soldados que sobreviveram à I Guerra foram

diagnosticados com um quadro denominado de “shell lock”, o qual se pensava que fosse

causado por um defeito no sistema nervoso. Com o passar do tempo, no entanto, o

mesmo comportamento foi interpretado como uma neurose defensiva denominada de

neurose traumática originada pela guerra11

.

11

Tradução livre de: “traumatic neurosis of war” (QUOSH; GERGEN, p. 99).

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Já a Guerra do Vietnã trouxe uma nova apreensão do trauma como patologia. Os

veteranos que retornaram do Vietnã foram afetados por problemas severos de

ajustamento. Um grupo denominado de Grupo de Trabalho dos Veteranos do Vietnã,

então, trouxe ao conhecimento público o sofrimento, as experiências horríveis e os

efeitos prejudiciais produzidos pela guerra. Este Grupo se tornou, dessa maneira, a

principal força em promover o diagnóstico e tratamento de Transtorno de Estresse Pós-

traumático, o qual foi posteriormente embasado cientificamente através de estudos e

pesquisas.

Muitas das sugestões propostas pelo referido Grupo foram incorporados ao

diagnóstico que foi denominado de Transtorno do Estresse Pós-traumático a partir da

publicação do DSM III,. Segundo Quosh e Gergen (2008), a batalha para estabelecer

este diagnóstico transformou as experiências e efeitos das pessoas traumatizadas em

uma categoria psiquiátrica, e possibilitou-as receber cuidados em saúde mental,

assistência financeira, aceitação pública e (numa passagem um tanto irônica dos

autores) até simpatia!

Dessa forma, podemos perceber aqui a implicação das diversas concepções

envolvendo a noção de trauma, até ser constituído o conceito de Transtorno de Estresse

Pós-traumático e seus efeitos sociais. Ao se constituir enquanto patologia, o Transtorno

de Estresse Pós-traumático possibilitou dar visibilidade ao sofrimento dessas pessoas ao

mesmo tempo em que constituiu e legitimou uma série de procedimentos institucionais:

a produção de remédios pela indústria farmacêutica, a criação de centros de saúde

mental, a instituição de procedimentos terapêutico, a realização de pesquisas científicas

que dêem suporte (ou não) a tais procedimentos, etc.

Ao considerar essa função constitutiva do discurso, Gergen (2007, p.107) afirma

que “nossas inteligibilidades favorecem certas formas de vida ao passo em que

possivelmente destroem outras12

”. Assim, analisar o conceito de variabilidade é de

fundamental importância para compreendermos os efeitos produzidos pelo discurso a

partir de sua orientação para a ação (WHETERELL; POTTER, 1996). Ou, em outras

palavras, ao analisarmos a função e a variabilidade discursiva, também devemos

considerar seus efeitos através do conceito de construção.

12

Tradução livre de: “nuestras inteligibilidades favorecen ciertas formas de vida a la vez que

posiblemente destruyen otras”.

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3.3 Construção

A metáfora da construção é importante para compreendermos três pressupostos

da Psicologia Discursiva. Em primeiro lugar, o termo construção nos lembra que o

discurso são construídos a partir de uma variedade de recursos lingüísticos disponíveis

na cultura. Em segundo lugar, construção implica em atividade seletiva: alguns recursos

são selecionados enquanto outros são omitidos. E, por fim, o termo construção enfatiza

os efeitos produzidos pelo discurso (POTTER; WHETERELL, 1987).

Tal como exposto anteriormente, Potter (2003) afirma que o discurso é

construído e construtor. Ele é construído na medida em que é formado por vários

recursos lingüísticos, como palavras, categorias, metáforas, argumentos retóricos,

descrições, histórias, lugares comuns, teorias explicativas, etc. Dessa forma, esses

recursos lingüísticos são utilizados na interação entre os sujeitos para realizarem

determinadas ações (POTTER; EDWARDS, 2001).

Já o discurso é construtor na medida em que versões da realidade, de eventos e

ações, ou em outras palavras, o mundo social do sujeito é construído e estabilizado

através da linguagem (POTTER, 2003). Ao utilizar a metáfora da construção, então, a

Psicologia Discursiva está interessada em estudar a maneira como o discurso constrói

versões do mundo. Isto é, a Psicologia Discursiva estuda como versões da “realidade

interna” do sujeito, de circunstâncias locais, de história e de grupos sociais são

produzidos para realizarem diversas ações na interação (POTTER; EDWARDS, 2001).

Para a Análise da Conversação, o processo interacional é produzido através de

perguntas e respostas. Assim, é importante focar o pressuposto de que há trechos na

interação onde determinados tipos de resposta são esperados ou apropriados

(WOOFFITT, 2005).

Tal foco é importante por permitir compreender a idéia de que a interação verbal

possui uma estrutura ou arquitetura, a qual pode ser descrita formalmente pela

referência à relação entre ações realizadas pelo discurso. Em outras palavras, questões

vão exigir respostas, convites, etc.

No entanto, segundo o autor citado, ainda que o sujeito que pergunta não

obtenha uma resposta adequada à sua questão, tal fato parece não diminuir as

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expectativas que sustentam a interação interpessoal. O autor cita como exemplo o

fragmento de um corpus de chamadas para o serviço de informação de vôo da British

Airways (A é a atendente da companhia e C é um usuário da empresa):

A: Serviço de Informação de vôo. Posso lhe ajudar? (1.3)13

Olá?

C: Oi

A: Posso lhe ajudar senhor?

C: Oh sim eu tenho uma nota aqui para saber sobre um vôo de Gatwick.

Nessa passagem, a agente da companhia ofereceu ajuda e a resposta é ou uma

aceitação ou uma recusa. E, como o usuário ligou para o serviço de vôo da companhia,

partirmos do pressuposto de que ele necessita de algum tipo de serviço. No entanto, não

há resposta imediata para a pergunta da atendente. Assim, após uma espera de 1.3

segundos, ela pergunta “olá?”.

Esse “olá” produz duas ações. Primeiro, ele procura certificar que a linha está

funcionando (ele significa – Olá? Tem alguém ai?). Mas, por outro lado, ele também

indica que o ligador pode estar distraído momentaneamente e que ainda não percebeu

que ele está conectado (como um Olá – Eu estou aqui). O restante da passagem sugere

que ele não percebeu que já estava conectado: ele responde com outro oi, fazendo com

que a agente ofereça novamente seus serviços.

A análise desse trecho nos informa sobre a arquitetura da interação. De um lado,

a agente realizou a ação de oferecer seus serviços, esperando que o ligador aceitasse

essa oferta. No entanto, não foi isso que aconteceu. A agente poderia, então, conectar

outro usuário no lugar de nosso ligador, mas ativamente ela procura uma resposta: seu

“oi” realizou a tarefa de saber se a linha telefônica estava funcionando corretamente ou

se o ligador estava distraído momentaneamente. A ação da agente criou um caminho

para uma reação particular do ligador.

Já a Filosofia Analítica apresenta uma grande contribuição ao conceito de

Construção através dos conceitos de jogos de linguagem e formas de vida. Conforme

apontado anteriormente, Wittgenstein concebe a linguagem a partir da metáfora do jogo:

o discurso só se torna compreensível se o falante obedecer a determinadas regras tendo

em vista conseguir determinados objetivos (GERGEN, 1999; POTTER, 2001).

13

O símbolo (1.3) significa que houve um intervalo de 1.3 segundos entre a última expressão proferida e

a próxima.

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Assim, para dotar a expressão “bom dia” de significado, o falante deve estar de

acordo com o jogo de saudação. De fato existe uma série de regras implícitas que dão

significado às saudações: cada participante deve falar por vez e existe um limitado

número de movimentos que alguém pode utilizar para responder adequadamente ao

“bom dia” (GERGEN, 1999).

Você pode responder da mesma maneira ou, então, dizer “como vai?”, mas você

será considerado fora do jogo se você chutar a pessoa ou cuspir nela. Da mesma

maneira, a sentença “bom dia” pode ser considerada sem sentido fora do jogo da

saudação. Se você está em uma conversa sobre desemprego e, de repente, você diz

“bom dia”, você poderia ser considerado louco. Dessa maneira, podemos afirmar que as

palavras são dotadas de significado a partir de seu uso nos jogos de linguagem.

Porém, segundo o referido autor, Wittgenstein afirma que o significado das

palavras não são expressas apenas pelos jogos de linguagem, mas pela sua relação com

as formas de vida promovida pelos jogos. Para explicar o que seriam as formas de vida,

utilizaremos a metáfora do xadrez.

No xadrez existem diferentes nomes para diferentes peças (por exemplo, bispo,

rei, rainha) e vários movimentos (como o xeque-mate). No entanto, estas palavras não

possuem significado devido apenas aos nossos padrões lingüísticos (jogos de

linguagem), mas em sua relação com o jogo como um todo. Ou seja, para realizarmos

um xeque-mate nós necessitamos de um tabuleiro de xadrez, peças dispostas em uma

determinada posição, dois jogadores, etc.

Os jogos de linguagem, dessa maneira, estão articulados com amplos padrões de

ações e objetos, os quais são denominados por Wittgenstein de formas de vida. Nessa

concepção, a linguagem não é um espelho da realidade, mas ela constrói a realidade por

si mesma. Retomando a metáfora da pintura, Wittgenstein não propõe que a linguagem

apenas pinta o mundo, mas, conforme aponta Austin, nós construímos coisas com as

palavras (GERGEN, 1999; POTTER, 2001).

Já os construcionistas buscam promover a compreensão de que o discurso

científico é construído como outro discurso cotidiano (GERGEN, 1999; GERGEN,

2007; QUOSH; GERGEN, 2008). E, como todo discurso, ele produzirá efeitos sobre a

realidade.

Gergen (1999) cita duas obras para exemplificar a maneira pela qual o discurso

científico produz efeitos: de um lado encontramos A Construção Social da Realidade,

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escrito por Berger e Luckmann, e de outro temos A Estrutura das Revoluções

Científicas, de Kuhn.

Na primeira obra, os autores afirmam que a experiência individual do cientista

no mundo, ou seja, o que ele vê, ouve, toca, é traçado na esfera social. Para chegarem a

essa conclusão, Berger e Luckman propõem que nós somos socializados em

determinadas estruturas (determinadas formas de compreender o mundo que são

sustentadas por argumentos racionais). Como nós reificamos esta estrutura, ela se torna

natural para nós, ou seja, a realidade se torna naturalizada. Assim, os fenômenos se

tornam pré-arranjados em padrões que parecem independentes da forma como os

apreendo (GERGEN, 1999).

A linguagem utilizada no dia a dia me proporciona a objetivação necessária e me

proporciona o sentido pelo qual o cotidiano é dotado de significado por mim. Dessa

forma, a linguagem constrói as coordenadas de minha vida em sociedade e preenche

minha vida com objetos significativos.

Já Kuhn destrói a concepção de que a ciência esteja em constante progresso, o

qual seria obtido através da realização de pesquisas, que ao testarem hipóteses, nos

aproximariam cada vez mais da verdade. De acordo com seu ponto de vista, nossas

proposições sobre o mundo estão imersos em paradigmas, como uma teoria particular,

concepção de sujeito e práticas metodológicas. Assim, as nossas mensurações mais

exatas só são sensíveis se interpretadas no contexto desse paradigma.

O progresso científico, para Kuhn, seria apenas a mudança de paradigmas: de

um menos objetivo para outro mais exato, o qual é alcançado apenas no interior desse

novo paradigma. Desse modo, segundo Kuhn, os resultados de pesquisas realizadas em

paradigmas diferentes se tornariam incomensuráveis: um neurologista não pode medir a

profundidade de uma alma devido ao fato da alma não ser um objeto para o

neurologista.

No entanto, podemos questionar: como são construídos novos paradigmas? Para

o autor, novos paradigmas são construídos a partir de anomalias, como fatos que não

podem ser explicados a partir do paradigma vigente. Novos paradigmas podem ser

construídos à medida que novos problemas são explorados – novos conceitos e objetos

de estudo, por exemplo.

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Dessa maneira, Kuhn desconstrói a noção de Verdade produzida

cientificamente, transformando-a em uma verdade que deve ser compreendida a partir

de sua construção imersa em um determinado paradigma.

Outra maneira que os construcionistas utilizam para exemplificar a noção de

Construção, e que está intimamente relacionada com a afirmação acima, é o pressuposto

de que os conceitos constroem a realidade. Para isso, basta lembrar o caso citado

anteriormente sobre o conceito de Transtorno de Estresse Pós-traumático, o qual

possibilitou diversas mudanças na sociedade: alocação de recursos públicos, instituição

de centros de saúde mental, etc (QUOSH; GERGEN, 2008).

Assim, ainda no âmbito do exemplo citado, os referidos autores afirmam que a

produção de conceitos relacionados à saúde mental e as conseqüências sociais

produzidas por tais conceitos promovem a destruição de formas locais de lidar com a

loucura, por exemplo. Segundo o autor, o trabalhador de saúde mental de orientação

construcionista deveria levar em consideração as formas culturais locais de lidar com as

questões relacionadas à loucura, aumentando a capacidade de resiliência da população.

Ao sugerirmos que o discurso pode produzir determinados efeitos a partir de sua

variabilidade e/ou construção, nós não pretendemos afirmar que não existe nenhuma

regularidade. O que pretendemos afirmar é que as regularidades não devem ser

associadas ao falante individual. As inconsistências e diferenças discursivas são

diferenças entre unidades lingüísticas interdependentes e consistentes, as quais foram

denominadas de Repertórios Interpretativos (WHETERELL; POTTER, 1996).

Ao analisarmos o discurso a partir dos conceitos de Função, Variabilidade e

Construção, devemos também levar em consideração o conceito de Repertórios

Interpretativos, que são um conjunto de termos, descrições e figuras frequentemente

associados à determinadas metáforas ou figuras de linguagem. Ou seja, os Repertórios

são sistemas de significação, similares a blocos de construção, que são utilizados para

construir versões factuais da realidade ou para realizarem determinadas ações

(POTTER; WHETERELL, 1987; WHETERELL; POTTER, 1992; WHETERELL;

POTTER, 1996).

Assim, podemos considerar os repertórios como os elementos fundamentais que

os falantes utilizam para construir versões de ações, processos cognitivos e outros

fenômenos. Eles estão constituídos por uma restrita quantidade de termos utilizados

estilística e gramaticalmente de maneira específica (WHETEREL; POTTER, 1996).

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Uma vez apresentado o conceito de construção, podemos discutir sobre outro

ponto central para a Psicologia Discursiva: a retórica.

3.4 Retórica

Segundo Halliday (1990), a utilização da retórica até pouco tempo estava fadada

à descrença. A utilização de expressões como “Isso é pura retórica!” ou, então, “Tudo

que você me diz não passa de retórica” levavam as pessoas a desacreditarem a retórica.

Nas palavras de Billig (2008, p. 85):

A própria palavra “retórica” tem uma conotação desfavorável.

Ela dá a idéia de um discurso ao qual falta substância e a

palavra parece pedir a qualificação adicional de “pura” ou

“vazia”. “Pura” retórica é muitas vezes contrastada com a

realidade de feitos. O retórico é “apenas” uma pessoa falante

pretensiosa que lança frases cheia de som e fúria, mas às quais

falta um significado adequado. Pior ainda, o retórico pode ser

considerado um embusteiro que vende palavras vazias como se

fossem o artigo verdadeiro (grifos do autor).

Nesse sentido, o autor afirma que desde a época de Platão essas críticas à

retórica já se faziam presentes. Segundo o mesmo, Platão descreve em diversas obras a

forma como Sócrates combatia os retóricos, acusando-os de criar frases que buscariam

agradar ao público.

O autor também afirma que não é sem razão que tais críticas eram (e ainda são)

realizadas, posto que existia uma certa pretensão em dar prioridade ao estilo da oratória

em detrimento do conteúdo. Porém, nossa atenção deve estar voltada não para o estilo

do que está sendo dito, mas para a argumentação utilizada na construção de

determinadas versões da realidade.

Apesar de Halliday (1990) afirmar que a retórica possui enquanto precursor o

sábio egípcio chamado Ptahhope, por ter explanado generalizações sobre o poder e o

uso das palavras e destacar as contribuições de Aristóteles para essa antiga disciplina,

Billig (2008) busca fundamentar sua teoria a partir do pensamento de outro autor: o

sofista Protágoras.

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Protágoras foi um homem bastante respeitado, em sua época, inclusive por

outros filósofos, como Platão. A originalidade de sua obra consiste, no tocante à

retórica, em um ponto bastante simples e de múltiplas conseqüências: em todas as

questões, sempre há dois lados de um argumento e ambos estão em contraposição um ao

outro).

Esse pensamento de Protágoras enfoca a importância da contradição na retórica:

“se sempre existem dois lados possíveis em todas as questões, então há sempre a

possibilidade de contradição” (BILLIG, 2008, p. 100). A própria ambigüidade do termo

argumento implica em uma contradição, uma vez que ele possui um significado

“individual” e outro “social”.

Do ponto de vista “individual”, refere-se a construção de uma cadeia de

raciocínio de tal maneira que o orador produza uma argumentação convincente. Já do

ponto de vista “social”, refere-se a disputas existentes entre pessoas estabelecidas

através de opiniões ou cadeias argumentativas.

Dessa forma, não podemos distinguir os dois significados do termo argumento,

pois se existem dois lados para qualquer questão, então o próprio significado individual

é controverso, fazendo parte de uma argumentação social. Nesse sentido, qualquer

afirmação pode ser contraposta por uma contra-afirmação ou, nos termos de Billig

(2008): qualquer logos poderá ser combatido por um antílogos14

.

Nesses termos, Protágoras chegou a uma conclusão surpreendente: de que é

impossível contradizer, posto que um logos pode se tornar antílogos, ou seja, que toda e

qualquer argumentação individual pode ser seu antílogos na esfera social. Ao rejeitar a

possibilidade de contradição, Protágoras postula a premissa sociopsicológica segunda a

qual toda pessoa possui a capacidade (e geralmente o faz) de contradizer o logos.

Ao concordar com Protágoras e ao colocar a argumentação enquanto principal

conceito para os estudos retóricos, Billig abre um novo caminho para a compreensão de

diversas questões da Psicologia.

Teorias psicológicas unilaterais parecem convidar uma resposta

protagoriana, que indica um aspecto contrário e ignorado.

Teorias que enfatizam nossa agressividade inerente invocam

teorias contrárias que enfatizam nossa capacidade de

cooperação; as teorias comportamentalistas, que sugerem que

14

Logos era o termo utilizado para designar a construção de argumentações.

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nos comportamos, mas não pensamos, serão seguidas por

teorias cognitivas que serão todas sobre pensamento e nenhuma

ação (BILLIG, p. 107, 2008).

Dentre os inúmeros debates provocados pela utilização do pensamento de

Protágoras na Psicologia, encontramos a desconstrução de determinadas categorias

impostas como verdadeiras pela Psicologia Cognitiva15

.

Segundo Potter (1998), a retórica ganha espaço no discurso científico a partir das

discussões travadas a partir da Sociologia do Conhecimento. Segundo o autor, um dos

teóricos mais importantes para esse momento da Sociologia do Conhecimento foi

Collins.

Uma das questões abordadas por Collins é de que os cientistas deveriam adotar

uma postura metodológica relativista frente à realidade.

Quer dizer, as afirmações dos cientistas sobre o que é

verdadeiro e o que é falso não devem ser compreendidas como

ponto de partida para a análise, mas deveriam converter-se em

tema de análise por direito próprio16

(POTTER, 1998, p. 43).

Dessa forma, Collins propõe que se analise a retórica do discurso científico. Em

outras palavras, a análise retórica do discurso científico deveria responder a seguinte

pergunta: quais recursos são mobilizados pelos cientistas para tornarem suas versões

mais confiáveis do que outras?

Apesar de Collins não apresentar uma definição clara sobre o que ele

compreendia por retórica, Potter (1998, p. 52) a conceituou como um “discurso

utilizado para reforçar versões particulares do mundo e para proteger tais versões da

crítica”17

.

15

Ainda que Potter e Wheterell tenham discutido tais questões na sua obra Discourse and Social

Psychology (1987), consideramos a obra de Billig enquanto precursora, posto que a primeira edição

inglesa de Argumento e Pensando foi editada em 1985. 16

Tradução livre de: “Es decir, las afirmaciones de los científicos sobre qué es verdadero y qué es falso

no deben tomar como punto de partida para el análisis, sino que deberían convertirse em tema de análisis

por derecho próprio”.

17

Tradução livre de: “discurso utilizado para reforzar versiones particulares del mundo y para proteger

estas versiones de la crítica”.

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A retórica apresenta-se enquanto contribuição para a Psicologia Discursiva a

partir de dois pontos: enquanto forma de instituir versões da realidade; e enquanto

princípio metodológico (EDWARDS, 2005).

Ao falarem, as pessoas constroem versões da realidade. Assim, a retórica surge

enquanto forma de questionar ao discurso: que verdade está sendo instituída? Que

discursos estão sendo combatidos e/ou reproduzidos a partir do discurso produzido por

aquele que fala? Quais elementos são mobilizados na fala da pessoa para convencer os

seus interlocutores de que aquele discurso é verdadeiro e legítimo? Quais as possíveis

contraversões discursivas que estão sendo abordadas aqui?

Dessa forma, Cirilo e Oliveira Filho (2008, p. 321) afirmam que “a uma

abordagem discursiva interessa principalmente o modo como o discurso é organizado

para tornar determinadas versões da realidade factuais, verdadeiras”.

A Psicologia Discursiva, ao utilizar contribuições da retórica, busca

compreender o discurso como produzido por pessoas que mobilizam recursos para

produzirem determinados efeitos, sendo um destes efeitos a construção de um discurso

verdadeiro, em detrimento de outros.

Vale ressaltar, após termos explanado as idéias centrais para a compreensão da

Psicologia Discursiva, que os conceitos de Função, Variabilidade, Construção e

Retórica não devem ser compreendidos enquanto conceitos estanques e independentes

entre si. Ao contrário, estes conceitos são completamente interdependentes e a análise

de qualquer um desses conceitos pode levar o analista ao próximo conceito, de tal

maneira que todos estão relacionados.

Dessa maneira, levando em consideração a apresentação do referencial teórico

adotado, poderemos apresentar a Metodologia utilizada para a realização da pesquisa.

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4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para coleta de dados, utilizamos a entrevista semi-estruturada. Este tipo de

entrevista combina perguntas abertas e fechadas, consistindo em um roteiro de

perguntas (APÊNDICE A) estabelecidas a priori, sendo permitido ao entrevistador

realizar novas perguntas objetivando o detalhamento de alguns aspectos da narrativa do

sujeito, tendo em vista os objetivos da pesquisa (BONI; QUARESMA, 2005).

Segundo Potter e Wheterell (1987), possuir um roteiro de pesquisa para conduzir a

entrevista pode ser importante para conduzir o entrevistador através das questões,

oferecendo a certeza de que as mesmas questões são realizadas para cada entrevistado,

além de permitir registrar outras informações que podem ser utilizadas pelo

pesquisador.

Em consonância com o exposto pelos autores, Gaskell (2008, p. 73) afirma que

Embora o conteúdo mais amplo seja estruturado pelas questões

da pesquisa, na medida em que estas constituem o tópico guia, a

idéia não é fazer um conjunto de perguntas padronizadas ou

esperar que o entrevistado traduza seus pensamentos em

categorias específicas de resposta. As perguntas são quase que

um convite ao entrevistado para falar longamente, com suas

próprias palavras e com tempo para refletir.

Os pesquisadores que trabalham na perspectiva da Psicologia Discursiva, ao

utilizar a entrevista, não se detém em investigar, por exemplo, a consistência das

respostas dos participantes, tal como ocorre na maioria das pesquisas tradicionais em

Psicologia Social. A consistência é importante para os psicólogos discursivos apenas na

medida em que é utilizada pelo pesquisador para identificar padrões regulares na

linguagem em uso (POTTER; WHETERELL, 1987; WHETERELL; POTTER, 1992).

Dessa forma, a consistência não é tão desejável numa perspectiva discursiva,

principalmente se levarmos em consideração o interesse dessa perspectiva no estudo do

discurso em si e na maneira como os sujeitos realizam determinadas ações ao falar. O

pesquisador, então, deve estar atento também às variações e contradições que surgem

nas entrevistas, pois estas permitem identificar os diferentes discursos que estão sendo

combatidos explícita ou implicitamente pelo sujeito, além de permitir a visualização de

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diversos repertórios interpretativos utilizados pelos sujeitos na construção de suas

versões da realidade.

Os autores propõem, então, duas dicas para que as entrevistas possam gerar a

maior variedade de respostas possíveis. A primeira, e mais óbvia, é não restringir a

resposta dos entrevistados a categorias como “sim” ou “não”. A segunda consiste em

realizar uma entrevista bastante intervencionista e confrontativa. Em outras palavras, os

autores sugerem que o pesquisador deve tentar gerar alguns contextos interpretativos

correlacionados às respostas que o entrevistado constrói, de tal forma que a função e

variabilidade do discurso se torne clara. Uma forma de realizar tal sugestão é perguntar

para o sujeito a mesma questão de diversas maneiras e em diversos momentos da

entrevista.

Um outro ponto a se destacar são as diferentes concepções da função do

entrevistador nas pesquisas tradicionais e na perspectiva discursiva. Na pesquisa

tradicional, o entrevistador é concebido enquanto um agente neutro que está ali para

fazer com o que o entrevistado revele suas opiniões sobre o tema da pesquisa. Já na

perspectiva discursiva, o entrevistador deve ser considerado como mais um elemento no

contexto de produção da entrevista, ou seja, as perguntas realizadas pelo pesquisador

são construtivas e não neutras ou passivas e, como tal, também deve ser consideradas no

processo de análise dos dados.

Nesse sentido, Gaskell (2008) afirma que a realização de entrevistas é um

processo social, uma interação ou empreendimento cooperativo, produzido

discursivamente. Ao contrário do que se possa imaginar, não é um processo de troca de

informações unilateral: de um lado temos as respostas construídas pelos entrevistados e

do outro lado temos os dados capturados pelo entrevistador. Ao contrário, a entrevista é

uma interação na qual ocorre a construção (entre pesquisador e entrevistado) de

significados, estando ambos implicados no processo de produção de conhecimento.

“Deste modo, a entrevista é uma tarefa comum, uma partilha e uma negociação de

realidades” (GASKELL, 2008, p. 74).

Em consonância com o exposto, Potter e Wheterell (1987) afirmam que as

entrevistas possuem a vantagem de permitir ao pesquisador intervir na interação, além

de proporcionar a possibilidade de coletar uma amostra de respostas dos sujeitos sobre

as mesmas questões, possibilitando a comparação entre as respostas e ocasionando uma

maior simplicidade na codificação inicial.

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As entrevistas foram realizadas entre os dias 29 e 31/12/2010 com os

profissionais que trabalham nos 02 SRTs, uma feminina e outra mista, do Distrito

Sanitário V da cidade de Recife – PE, os quais indicaram o local onde seria realizada a

entrevista. Destacamos, ainda, que a escolha do Distrito Sanitário V se deu por

indicação da Prefeitura de Recife e que a realização das entrevistas só ocorreu após a

permissão do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco.

Dessa forma, foram realizadas entrevistas com onze dos treze cuidadores do

referido Distrito, sendo 09 mulheres e 02 homens, com idade entre 22 e 47 anos, e com

escolaridade variando entre o ensino médio completo ao superior completo com pós-

graduação. Dos en

Vale ressaltar que uma das entrevistas não ocorreu por haver choque de horários

entre o entrevistador e a cuidadora em todas as tentativas de agendamento, enquanto

que, no outro caso, não conseguimos um telefone de cuidado para acessar o cuidador.

Aos participantes da pesquisa foram informados os objetivos da pesquisa e foi

garantido tanto o seu anonimato quanto a possibilidade de revelação velada (SPINK,

2000), assim como ao final da entrevista foi explicitada as possíveis contribuições do

entrevistado para a área da pesquisa (GASKELL, 2008). Os entrevistados também

assinaram um termo de livre consentimento (APÊNDICE B).

O quadro 1 apresenta um perfil dos cuidadores entrevistados relativo ao seu

período de entra nos SRTs.

NOME Contrato Pré-concurso Concurso Contrato Pós-Concurso

SILVANA X X

TIAGO X X

ROBERTA X X

FERNANDA X

JOANA X

VERÔNICA X

CLAUDIA X

MARCOS X

GISELE X

PAULA X

BRUNA X Quadro 1 – Perfil dos cuidadores baseado no período de admissão na Prefeitura de Recife – PE.

As entrevistas, então, foram gravadas e, posteriormente, transcritas. No tocante à

transcrição, Gill (2008) aponta que nessa fase o pesquisador deve tomar o cuidado de

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registrar o maior número possível de detalhes do discurso a ser analisado. Segundo a

autora, “a transcrição não pode sintetizar a fala, nem deve ser „limpada‟, ou corrigida;

ela deve registrar a fala literalmente, com todas as características possíveis da fala”

(GILL, 2008, p.251, grifo da autora).

Assim como Gill (2008), Potter e Wiggins (2008) também afirmam que o

pesquisador não deve se enganar pensando que existem detalhes triviais que devem ser

ignorados na pesquisa. Ao contrário, segundo os autores, diversas pesquisas, utilizando

a análise conversacional, têm demonstrado que detalhes, como a entonação do que é

dito ou os silêncios, por exemplo, constituem de maneira significativa o discurso

enquanto orientado para a ação.

Já Potter e Wheterell (1987) afirmam que uma boa transcrição é essencial para a

realização da próxima etapa que pode ser considerada uma pré-análise, a qual envolve

ler e reler diversas vezes o material transcrito.

Foram realizadas diversas leituras do material. As repetidas leituras devem

contribuir para uma familiarização com o material, permitindo uma aproximação do

pesquisador com o corpus do discurso. Vale ressaltar que, no entanto, não devemos

compreender o material como um a priori, mas devemos adotar uma postura de

estranhamento em relação aos discursos (GILL, 2008).

Em seguida, realizamos a categorização, a qual consiste em organizar as

categorias de interesse, tendo em vista os objetivos do trabalho (POTTER;

WETHERELL, 1987; GILL, 1996).

Para Potter e Wheterell (1987), o objetivo da categorização é o de transformar

grandes corpus do discurso em pedaços menores e mais manejáveis. Porém, podemos

questionar: a partir de quê devemos criar as categorias de pesquisa? Para os autores, as

categorias devem ser originadas a partir das questões da pesquisa e devem ser o mais

inclusivas quanto possíveis, posto que durante o processo de análise novas categorias

podem ser criadas enquanto outras podem ser excluídas (POTTER; WHETERELL,

1987; WHETERELL; POTTER, 1992; POTTER; WIGGINS, 2008; GILL, 2008).

Para análise foi utilizado o referencial teórico da Psicologia Social Discursiva,

tal como exposto no capítulo anterior. Nesse sentido, focalizamos nossa atenção no

modo como o discurso é construído, na sua forma de organização, nos seus efeitos e

funções.

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Cabe destacar que Potter e Wheterell (1987), assim como Gill (2008) afirmam

que nesse momento existem duas fases intimamente relacionadas. A primeira seria a de

procurar padrões nos discursos, os quais aparecerão na forma de variabilidade:

diferenças nos conteúdos e nas formas dos discursos construídos pelos entrevistados, e a

consistência: a identificação de características compartilhadas entre os discursos. Já a

segunda fase consistiria em focar a atenção na função e nos efeitos do discurso,

formulando hipóteses explicativas sobre tais funções e efeitos e procurando por

evidências que validem tais hipóteses nos discursos.

É preciso também explicitar que os dados colhidos nesta investigação e os

resultados provenientes dela serão utilizados exclusivamente para propósitos de

apresentação de debate acadêmico ou científico, para divulgação ou publicação

científica e educativa. Os dados publicados não permitirão a identificação pessoal dos

sujeitos pesquisados.

Entre os possíveis benefícios da pesquisa está o aprimoramento dos Serviços

Residenciais Terapêuticos da cidade de Recife – PE, pois esta ajudará a instituição e

seus profissionais a pensar em programas/atividades que promovam uma melhor

qualidade de vida, a partir da idéia de habilitação psicossocial, para os moradores.

Já entre os riscos, refletimos que a presença de uma pessoa estranha, nos

Serviços Residenciais Terapêuticos, pode ocasionar constrangimentos e inibições por

parte dos moradores. Em virtude deste aspecto, e caso os entrevistados optem por

realizar as entrevistas nos SRTs, é significativo que o pesquisador freqüente a

instituição antes do início da pesquisa, visando estabelecer uma boa relação com os

mesmos.

Em relação à devolução dos resultados da pesquisa aos voluntários, serão

disponibilizados na Secretaria de Saúde da cidade de Recife – PE uma cópia impressa e

em CD do trabalho desenvolvido.

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5. SOBRE CARÊNCIA, CRISES E AUSÊNCIAS: POSICIONANDO OS

MORADORES

Nas produções discursivas dos cuidadores dos SRTs, os moradores das

residências terapêuticas são posicionados algumas vezes como pessoas “carentes”,

pessoas marcadas pela falta de carinho, de cuidado e de atenção. As intervenções de

Tiago, Fernanda e Silvana ilustram bem esse modo de posicionar subjetivamente os

moradores.

Então assim, eles são dóceis, são carinhosos, e também

carentes, né? Da, da simpatia (Tiago, 42 anos, ensino médio

completo, atua na residência mista).

Aqui eles são mais carência. Eles vêm de muitos anos de

hospital, né? Aí quando eles vêm pra residência eles querem

mais o que? Carinho, atenção, querem passear, as vezes a gente

vai sair: “me leva!, deixa eu ir”. Fica pedindo as coisas pra

gente: “tia, traz isso pra mim, eu queria isso, eu queria aquilo”,

mais assim, essa carência que eles têm (Fernanda, 40 anos,

ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas

residências)

Eu vejo como pessoas necessitadas de amor, de atenção, de

carinho. Porque pessoas que viveram quinze, vinte anos no

hospital, elas precisam disso! Então são pessoas que a gente tem

que tá ali, acompanhando, tá do lado, dar atenção, amor,

carinho, eu vejo como pessoas necessitadas, né? Da atenção da

gente. Eu vejo dessa forma (Silvana, 28 anos, ensino médio

completo (técnica de enfermagem), atua na residência

feminina).

É interessante observar como Fernanda e Silvana explicam essa suposta

carência. Na fala de Fernanda, ela é atribuída implicitamente ao hospital. Depois de

falar da carência dos moradores, ela afirma que “eles vêm de muitos anos de

hospital...”. O hospital, nessa fala, portanto, produz carência afetiva ou pelo menos

torna mais intensa uma carência pré-existente. Em contraposição ao tratamento

oferecido pelo hospital, os cuidadores das residência seriam provedores de “carinho” e

“atenção”.

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Assim como Fernanda, Silvana busca explicar a carência dos moradores

recorrendo ao fato de terem vivido “quinze, vinte anos no hospital”, levando-a a

concluir que “elas precisam disso”. De maneira mais explícita do que Fernanda, ela

apresenta os cuidadores como atentos provedores do carinho e atenção necessários para

suprir as carências afetivas dos moradores: “Então são pessoas que a gente tem que tá

ali, acompanhando, tá do lado, dar atenção, amor, carinho...”.

Nas falas de Fernanda e Silvana, o hospital e a residência terapêutica formam

um par dicotômico: o hospital psiquiátrico produz carência afetiva e a residência

terapêutica supre as carências afetivas produzidas ou acentuadas pelo hospital.

Há que se ressaltar que posicionar insistentemente os moradores de residências

terapêuticas como seres marcados pela falta, pela carência e pela docilidade é algo

muito próximo de colocá-los na posição de seres infantilizados que sempre necessitam

de um excesso de proteção dos cuidadores, postura que pode dificultar o processo de

desenvolvimento da autonomia dos moradores. Nesse sentido, o trabalho dos cuidadores

dos SRTs deveria ser importante para os moradores não necessariamente pelo exercício

da proteção, por si só, mas pelo exercício da autonomia.

A (re)produção dessa imagem dos moradores nos serviços substitutivos é um

bom indício das dificuldades encontradas no caminho da desospitalização dos

internados e desinstitucionalização da loucura, na medida em que os que lutam por esses

objetivos entendem que um dos principais obstáculos no caminho de sua realização é

justamente a permanência da imagem do louco como um ser marcado pela falta

(SILVA; EWALD, 2006).

As falas analisadas corroboram conclusões de autores como Kinoshita (2001)

para os quais o doente mental, de maneira geral, é caracterizado a partir de sua

negatividade, ou seja, daquilo que lhe falta, o que torna nulo seu poder contratual e

impossibilita o desenvolvimento do processo de habilitação psicossocial.

Outra posição identitária construída para os moradores é a de pessoas

caracterizadas pela instabilidade emocional em decorrência da vulnerabilidade às crises.

As meninas são um doce. Quando elas não tão em crise, são um

doce (...) As meninas são maravilhosas assim, agora quando

elas entram em crise (GISELE, 28 anos, cuidadora da residência

feminina).

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O mais complicado assim é quando eles estão no momento de

crise, né? Mas fora isso... (Verônica, 40 anos, ensino superior

incompleto (biologia), atua na residência mista).

Jardim e Dimenstein (2007), baseadas em Foucault (2006), afirmam que o

conceito de crise era bastante utilizado na medicina no início do século XIX por ser

simultaneamente uma noção teórica e um instrumento prático. No entanto, ainda de

acordo com as autoras, este conceito torna-se obsoleto devido ao surgimento da

anatomia patológica.

A anatomia patológica permitiu a individualização das doenças de acordo com

as lesões que os sujeitos apresentavam, permitindo o desenvolvimento de um

diagnóstico diferencial.

Ocorre que a psiquiatria, sendo uma especialidade médica, desenvolveu-se

através de outro movimento: para esta disciplina importa o estabelecimento de um

diagnóstico absoluto. Dito de outra forma, é a partir do estabelecimento de um

diagnóstico absoluto que a psiquiatria atua e não a partir do diagnóstico diferencial.

No mais, a psiquiatria também é uma disciplina caracterizada pela ausência de

corpo. Neste sentido, a anatomia patológica com sua busca incessante entre a doença e

seus correlatos orgânicos, não seria útil à psiquiatria, apesar de variados esforços na

tentativa de estabelecimento de tais relações.

Sendo assim, pode-se questionar: como a psiquiatria pôde ser exercida com a

utilização do diagnóstico absoluto e sem a presença do corpo? A resposta está

justamente na crise, a qual era compreendida como a “verdade da doença” revelada,

proporcionando ao médico a sua legitimação para intervir na doença mental, por um

lado, e construindo essa doença mental enquanto demanda que chega a ele.

Este modelo de atuação psiquiátrica também foi reforçado pela Psiquiatria

Preventiva. Essa disciplina promoveu a construção de uma rede de atendimento extra-

hospitalar em saúde mental nos Estados Unidos, tendo como objetivo reduzir os gastos

do Estado com essa população (AMARANTE, 2007).

Nesse momento, com os loucos fora dos hospitais, eram as crises que

importunavam a comunidade e a família, devendo ser controladas a partir da utilização

de remédios. Segundo Jardim e Dimenstein (2007, p.176), “a medicação instrumentaliza

a norma e passa a ser item indispensável para uma pseudoconvivência em sociedade,

visto que o louco não é acolhido por ela, mas sobrevive a sua margem”.

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A situação de crise é definida, de maneira geral, pelas pessoas que acompanham

o louco. Neste sentido, é a família, a sociedade e, algumas vezes, o paciente que decide

se a crise se configura enquanto urgência psiquiátrica ou não. “A crise é vista enquanto

urgência a partir do momento que afeta diretamente a rotina da família (ou do

responsável) e que se decide denominar o acontecimento enquanto tal” (JARDIM;

DIMENSTEIN, 2007, p. 178).

Vale ressaltar que, no caso das residências, quem define o que é crise ou não são

os próprios cuidadores que lidam no cotidiano com os moradores, o que pode tornar tal

definição um instrumento de poder utilizado pelos cuidadores cotidiano, afinal definir

uma situação como uma situação de crise pode legitimar a utilização de medicamentos

que apaziguam ou mesmo o retorno, mesmo que temporário, a ambientes mais

institucionalizados como o hospital psiquiátrico.

Outra forma de posicionar os moradores, sempre cercada de excessivos

cuidados, é fazer alusão a supostos comportamentos agressivos ou de insubordinação.

Tô trabalhando com eles, é, as vezes eles são agressivos, as

vezes não, as vezes eles são, eles distratam a gente, mas faz

parte, né? (Fernanda, 40 anos, ensino médio completo (...) As

vezes ela fica agressiva, aí não quer... (Fernanda, 40 anos,

ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas

residências).

Como eu definiria? Tem uns que é fácil de lidar, são

cooperativos, alguns, tem outros que é meio difícil, que a gente

tem que... Aos poucos, trabalhar, né? (Joana, 36 anos, ensino

médio completo, atua na residência feminina).

É como eu lhe disse, que tem uns que é mais fácil de se

trabalhar e outros mais difíceis assim. É assim, tanto faz ter a

aceitação deles como, de repente, também ter recusas, né?

Então fica fácil e ao mesmo tempo não fácil (Bruna, 30 anos,

ensino superior completo (pedagogia), atua nas duas

residências).

Em sua fala, Fernanda descreve os moradores como às vezes “agressivos, às

vezes não”. Ao fazer isso ela, ao mesmo tempo que destaca a agressividade potencial

dos moradores, apresenta-se como alguém que é atenta para a complexidade das pessoas

com transtorno mental. Afinal ela reconhece que nem sempre eles são agressivos, que

não podem ser definidos somente a partir dessa característica.

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Se em Fernanda há uma dicotomia intrapessoal, já que a mesma pessoa pode ser

às vezes agressiva e às vezes não, nas falas de Joana e Bruna a dicotomia é intragrupal.

Há duas categorias no interior do grupo de moradores, os “fáceis” e os “difíceis”.

Para Joana, existem moradores que são fáceis “de lidar”, que “são cooperativos,

alguns”. É importante observar como ela busca ressaltar que não são todos os

moradores que são do tipo “fácil” ao utilizar a expressão “alguns”. Já existem outros

“que é meio difícil” e que é justamente esses moradores que devem ser trabalhados,

“aos poucos”.

Bruna, assim como Joana, também posiciona os moradores como “fáceis” e

“difíceis”. Para a entrevistada, “tem uns que é mais fácil de se trabalhar e outros mais

difíceis”. Ela complementa sua fala afirmando que “tanto faz ter a aceitação deles como,

de repente, também ter recusas”. Tal fato faria com que o trabalho de cuidador ficasse

“fácil e ao mesmo tempo não fácil”.

Nas falas de Bruna e Joana, em resumo, os moradores são classificados em duas

categorias. Há os que ajudam nas atividades da casa, que não causam problemas, os

“fáceis”, aqueles que foram retratados nas falas anteriores como “dóceis” e

“carinhosos”, e há os que são “difíceis”, desobedientes, “agressivos”, aqueles que

precisam ser trabalhados.

É interessante observar que Bruna relaciona: I) o fato dos moradores serem

“fáceis” ou “difíceis” ao fato do trabalho ser “fácil e ao mesmo tempo não fácil”; e que

II) ela utiliza a expressão “não fácil” ao invés da expressão “difícil” para se referir ao

seu trabalho. Ao utilizar a expressão “não fácil”, a entrevistada busca minimizar os

possíveis efeitos produzidos pela expressão “difícil”, tentando construir a imagem do

trabalho de cuidador como algo que, apesar das dificuldades, é possível de ser realizado.

Outra posição identitária construída para os moradores é aquela na qual

aparecem como pessoas essencialmente sofredoras.

Então, como é que eu vou definir elas? Eu vou definir... São o

sofrimento em pessoa. Todas elas. Elas sorriem, elas, elas...

Elas conversam, elas... Tem uma que, ela recebe o filho dela,

tudinho. Mas, na verdade, elas não sabem o que é alegria não.

Elas não sabem, elas vivem no constante delírio. Não, não... Sei

não... Eu acho que, eu acho que elas podem viver uma alegria

momentânea, sabe? Um carinho, um gesto... Mas daqui a pouco

elas já pensam em outra coisa, já passa pra... Sabe? É isso. Elas

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são o sofrimento (Gisele, 28 anos, ensino superior completo

(psicologia), atua na residência feminina).

No discurso de Gisele os moradores são pessoas com um histórico de

sofrimento, pessoas que desconhecem o sentimento de alegria, pessoas que vivem em

“constante delírio”. Quando muito, teriam uma “alegria momentânea”, originada pela

presença de um filho, por uma conversa, por um carinho, mas tudo seria fugaz.

A construção de uma identidade essencializada para as pessoas com transtorno

mental, na qual o sofrimento mórbido é uma constante, intencionalmente ou não,

termina por colocar essas pessoas numa posição de fragilidade, impotência,

dependência.

Vale ressaltar, ainda, que o processo de habilitação psicossocial, segundo

Saraceno (2001a), não é uma tecnologia, é uma abordagem ou estratégia que deve

objetivar mais do que simplesmente passar o usuário de um estado de desabilidade para

um estado de capacidade. Neste sentido, consideramos que posicionar os moradores

como seres essencialmente sofredores é promover o processo de cristalização de uma

imagem associada à debilidade, dificultando, assim, a sua inserção social.

Por sua vez, os discursos produzidos por Claudia e Roberta ressaltam, entre

outras coisas, a perda dos vínculos familiares.

(Claudia) – (...) Eu definiria, assim: são pessoas que... São

pessoas que perderam todos os seus vínculos familiares, né? A

maioria. São pessoas que precisam de cuidado, que precisam de

alguém o tempo inteiro na casa. São pessoas muito

dependentes, extremamente dependentes, né? Não saem só, não

fazem nada só, é nesse sentido que eu falo de dependência.

(Entrevistador) - Humrum.

(C) - E pessoas abandonadas... São pessoas abandonadas,

inclusive eu escutei até uma, uma, a gente conversando, eu

escutei uma moradora dizer que foi enterrada viva e que isso

não é cuidado. Ela tava falando referente aos hospitais

psiquiátricos, ela: “minha família me enterrou viva e ainda

dizem que me entendem, eu não entendo como eles dizem que

me entendem, que cuidam de mim, se me enterraram viva

durante tantos anos”, né? Isso fala de uma revolta, isso fala de

um, um, de algo que dói de alguma forma nela, né? E por isso

que eu falo de abandono. Eu definiria eles assim (Claudia, 22

anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência

feminina).

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São pessoas que não tem vínculo afetivo com a família, que

antes viviam em hospitais psiquiátricos, que conseguiram uma

vaga de residência terapêutica, e que é como se fosse o lar

deles, a casa deles, eles cuidam como se fosse a casa deles

(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de

enfermagem), atua na residência feminina).

Claudia inicia seu discurso afirmando que os moradores “são pessoas que

perderam todos os seus vínculos familiares”. Observe que no trecho citado ela inclui

todos os moradores na categoria “moradores que perderam vínculos familiares”. Logo

em seguida, ela utiliza um recurso retórico bastante comum que possui o efeito de tornar

o discurso mais factual: ela aponta exceções, com o uso do termo a “maioria”, logo após

uma generalização.

Prossegue afirmando que “são pessoas que precisam de cuidado”, “muito

dependentes, extremamente dependentes”. Nesse sentido, o efeito produzido por

discursos com esse teor seria o de manter os moradores numa posição de dependência, o

que poderia ser útil aos cuidadores por dois motivos: I) tal discurso legitimaria o

exercício de um maior controle sobre os mesmos; e II) o discurso sobre a dependência

dos moradores justificaria a própria presença dos cuidadores, já que os moradores “não

saem só, não fazem nada só”.

No segundo trecho de seu discurso, a cuidadora enfatiza a questão de serem

“pessoas abandonadas”, retratando tal abandono a partir da citação literal de uma

conversa realizada com uma moradora a qual teria afirmado que foi enterrada viva em

um hospital psiquiátrico: “minha família me enterrou viva e ainda dizem que me

entendem, eu não entendo como eles dizem que me entendem, que cuidam de mim, se

me enterraram viva durante tantos anos”.

Podemos perceber, neste trecho do discurso, outra estratégia retórica utilizada na

tentativa de tornar verdadeira, factual, a descrição que faz dos moradores. Tal estratégia

consiste na utilização do discurso direto, na reprodução de uma fala supostamente literal

produzida por uma das moradoras ao relatar seu abandono pela família.

Podemos observar, ainda no discurso construído por Claudia, a maneira como

ela busca justificar a presença e/ou a ausência da família na vida dos moradores.

(Claudia) – (...) Tem uma outra moradora aqui que tem um

vínculo mas inclusive a gente teve que brigar na justiça porque

era uma pessoa que ficava com a curatela dela, né? E... Dava

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pouquíssimo dinheiro a ela, ficava com bem mais pra ele que

era o tio e agora ela recebe o dela, não tem mais visita de

ninguém, acho que a ligação deles era mais ligada ao financeiro.

(Entrevistador) - Humrum.

(C) - Tem uma outra, a que tem mais visita familiar é uma que

tá aqui que o filho vem vê-la toda sexta-feira, passa cinco, dez

minutos aqui, vai embora. É a que mais tem. E as vezes vem

irmã, as vezes alguém... Tem uma outra que as vezes... Então

são pessoas que, as vezes, vem alguém, pode ser uma vez no

ano, duas ou três vezes no ano, mas, as vezes, entende? Perdido,

assim. A maioria delas não tem ninguém. Ninguém, ninguém

mesmo. Não... Enfim. Tanto que uma faleceu mês passado e

não tinha ninguém além da gente no velório. Nenhuma pessoa,

que ela não tinha nenhum vínculo. Né? Então são pessoas assim

que... E esse contato com a família é esse contato com que eu

falei assim. Alguém vem aqui, passa dez minutos e vai embora.

Quanto se tem é assim, né? Ou como essa que tinha por causa

do dinheiro (Claudia, 22 anos, ensino superior completo

(psicologia), atua na residência feminina).

Segundo a entrevistada, havia “uma outra moradora” que possuía vínculo com

um tio. No entanto, ele “dava pouquíssimo dinheiro a ela, ficava bem mais pra ele”.

Após uma briga na justiça, “agora ela recebe o dela” e, no entanto, a moradora não

“recebe mais a visita de ninguém”. Tal fato leva a cuidadora a supor que “a ligação

deles era mais ligada ao financeiro”.

“Tem uma outra, a que tem mais visita familiar” é uma moradora cujo “filho

vem vê-la toda sexta-feira, passa cinco, dez minutos aqui, vai embora”. Destaca que

essa moradora “é a que mais tem” visitas. No caso da moradora que faleceu, “não tinha

ninguém além da gente no velório”, o que levou a entrevistada a afirmar que “ela não

tinha nenhum vínculo”.

Dessa maneira, Claudia constrói seu discurso com o objetivo de justificar a

presença e/ou ausência de vínculos, argumentando que o contato com a família ou é

inexistente ou é superficial e baseado em interesses financeiros: “esse contato com a

família é esse contato com que eu falei assim. Alguém vem aqui, passa dez minutos e

vai embora. Quanto se tem é assim, né? Ou como essa que tinha por causa do dinheiro”.

Em consonância com o discurso produzido por Claudia, Roberta aponta que os

moradores de SRTs são pessoas que “viviam em hospitais psiquiátricos”, que

“conseguiram uma vaga de residência terapêutica”, a qual se tornou “o lar” deles e que

não possuem “vínculo afetivo com a família”.

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Em contraponto às produções discursivas de natureza mais essencialista que

diferenciam os moradores das pessoas sem histórico de transtorno mental atribuindo aos

primeiros uma ou mais características que lhes seriam próprias, o sofimento, a

docilidade, a falta de vínculos, encontramos outras que aproximam os moradores dos

mortais comuns, algumas vezes produções discursivas de entrevistados que em outros

momentos descreveram os moradores com traços mais essencialistas. Os sofrimentos, as

crises, a instabilidade ainda estão presentes nesses discursos, mas, nesses momentos,

apresentam-se como características de todos os seres humanos, e não como

características exclusivas de um grupo em particular.

E aqui, é... As pessoas aqui são muito, são tranqüilas, né? A

maior dificuldade, assim, é quando eles estão, assim, em crise,

né? Que as vezes tem uma parte, assim, eu me vejo, assim, em

crise, né? É até normal isso, né? (Verônica, 40 anos, ensino

superior incompleto (biologia), atua na residência mista).

(Entrevistador) - Certo. Mas de maneira geral, tem alguma

característica que juntasse todos eles, assim, que passasse por

todos?

(Marcos) - Não, no geral não tem, não. Porque assim, como eu

falei pra você, cada um tem sua personalidade, tem aquele que é

mais preguiçoso, tem aquele que é mais trabalhador, tem aquele

que fica na dele, não quer fazer nada ou faz quando quer.

(E) - Humrum.

(M) - Então não tem como fechar um grupo...

(E) - Humrum.

(M) - Com todas pessoas. Porque assim, uns são totalmente

instáveis, né? Tanto faz tá bem quanto tá... Com alguma...

(E) - Humrum. Certo.

(M) - Alteração de... (Marcos, 32 anos, ensino superior

incompleto (enfermagem), atua na residência mista).

Era tudo um só, quer dizer, eram todos, eram pessoas que

tinham transtorno mental. Com o passar do tempo, na

convivência a gente vai percebendo, vai tendo afinidade mais

com um do que com outros, vai criando mais carinho por uns,

vai criando antipatia por outros. Então assim, hoje eu consigo

perceber a personalidade de cada um, consigo me identificar

mais com uns do que com outros, mas assim, que... Que...

Assim, eu vejo todos assim como pessoas ainda desejantes,

pessoas que ainda tem vontade de sair daqui, de levar uma vida,

tem planos de casar, de formar uma família, de voltar para sua

família. São pessoas assim, que tão além do transtorno em si,

assim, que a gente costuma ver pacientes, principalmente esses

de longa data como só um paciente com transtorno mental. E

não, assim, na residência, no convívio, a gente vai percebendo

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uma pessoa fora daquela doença (Paula, 29 anos, ensino

superior completo (psicologia), atua na residência feminina).

Segundo Verônica, as “pessoas” que moram na residência são muito

“tranquilas”. Destaca a questão da crise em relação aos moradores, afirmando que ela é

a “maior dificuldade”, mas relativiza a importância desse fator ao afirmar que “eu me

vejo, assim, em crise” e que isso é “normal”. Em outras palavras, ao utilizar a expressão

“eu me vejo, assim, em crise”, a cuidadora procura destacar que é normal todas as

pessoas terem crise (inclusive ela mesma) e que, dessa maneira, os moradores também

seriam como todas as pessoas.

Marcos e Paula procuram aproximar os moradores dos mortais comuns

posicionando-os como sujeitos singulares, cada um com características particulares, o

que não permitiria agrupá-los todos em um grande grupo sem diferenças internas.

Retratando-os assim, esses cuidadores os posicionam como seres que não podem, tal

como todos os outros seres humanos, ser definidos a partir de uma única característica.

Assim, para Marcos, cada morador “tem sua personalidade”, sendo um

“preguiçoso”, outro “mais trabalhador”, outro que “fica na dele” e que “não quer fazer

nada ou faz quando quer”, sendo que tal singularidade não permite “fechar um grupo”.

Tal idéia também é compartilhada por Paula, a qual afirma que “eram todas

pessoas que tinham transtorno mental”. No entanto, “com o passar do tempo, na

convivência”, ela foi se aproximando de alguns moradores ao passo em que se

distanciava de outros. Em outras palavras, ela pôde “perceber a personalidade de cada

um”, o que teria determinado uma maior identificação com alguns deles.

No relato de Paula, o contato com os moradores fez com que eles passassem da

condição de “pessoas que tinham transtorno mental” para “pessoas ainda desejantes”,

que “ainda tem vontade de sair daqui, de levar uma vida, tem planos de casar, de formar

uma família, de voltar para sua família”. Os moradores são posicionados, neste

discurso, como pessoas que “estão além do transtorno em si”, pois no convívio existe a

possibilidade de perceber “uma pessoa fora daquela doença”.

A imagem dos moradores produzida por Paula ecoa outros textos sociais sobre a

relação dos sujeitos com a doença, textos como o de Amarante (2007), que afirmam a

necessidade de colocar a doença entre parênteses. Esse autor afirma que Basaglia

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criticava a separação entre um objeto fictício, que seria a doença, da existência global e

multifacetada dos sujeitos e da sociedade.

Esse modelo teórico da psiquiatria possui suas origens no modelo biomédico.

Segundo Matta e Camargo Jr (2010, p.130), a biomedicina seria o “conjunto de saberes

que tem como objeto a doença em sua relação de causalidade com a objetividade

material do corpo, com pretensões universalistas fundado por um lado no discurso

biológico e por outro no método científico”.

O modelo da biomedicina está embasado em um exercício de saber construído a

partir do estudo das patologias em uma perspectiva baseada nas ciências biológicas,

buscando explicar a construção do processo saúde-doença a partir dos domínios da

anátomo-fisiologia e da microbiologia.

A biomedicina passa, então, a estudar a doença separada do sujeito concreto, o

qual se tornou pano de fundo: o sujeito foi colocado entre parênteses. No entanto,

Basaglia buscou justamente retomar o sujeito em sua proposta. Inspirado nas idéias de

Edmund Hurssel, ele propôs colocar a doença entre parênteses.

Ao colocar a doença entre parênteses, Basaglia objetivou suspender o

conhecimento sobre determinada situação, originando a possibilidade de construção de

novos contatos empíricos com o fenômeno em questão.

Assim, o discurso utilizado por Paula é constituído por temas, conceitos e

imagens que circulam entre os adeptos da Reforma Psiquiátrica Brasileira. O contato da

entrevistada com o discurso reformista certamente se deu na época de sua graduação em

psicologia.

É interessante observar que, apesar de Marcos e Paula apontarem para a

singularidade dos sujeitos, eles explicam tal singularidade a partir de diferentes

argumentos. No discurso de Marcos, diferentemente do de Paula, a singularidade de

cada morador é produzida também pela instabilidade decorrente da condição de alguns

deles e não somente pelo fato de que “cada um tem sua personalidade”.

Num outro trecho da entrevista realizada com Verônica, a cuidadora continua

procurando aproximar os cuidadores das pessoas comuns, de uma suposta zona de

normalidade, mas agora colocando em foco aquilo que seria uma necessidade de

estabelecer um diálogo terapêutico com outros seres humanos.

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Uma coisa que eu tentei muito assim, quando eu entrei aqui, foi

justamente isso: é que ele sente falta de pessoas que escutem.

Eu acho que isso é problema não só da, não só deles, é um

problema do mundo todo, né? Hoje em dia as pessoas falam

demais e todas querem falar ao mesmo tempo porque querem

uma pessoa que escutem e não encontram (Verônica, 40 anos,

ensino superior incompleto (biologia), atua na residência mista).

Segundo Verônica, o morador da residência “sente falta de pessoas que

escutem”. No entanto, ela expande essa característica para além do SRT, afirmando que

“eu acho que isso é problema não só da, não só deles, é um problema do mundo todo”.

Ampliando o enfoque generalizante do trecho anterior, ela conclui afirmando

que “hoje em dias as pessoas falam demais e todas querem falar ao mesmo tempo

porque querem uma pessoa que escutem e não encontram”. A utilização do termo

“todas” no trecho citado aponta para a inclusão de todos os sujeitos, sejam moradores

ou não, produzindo o efeito de posicionar os moradores como sujeitos próximos da

normalidade.

Em outros trechos de seu discurso, Verônica retrata os moradores como

“amigos” e como pessoas que fazem parte de sua família.

Aqui eu, fiz amigos, as pessoas me receberam muito bem, né?

Me chamam de tia, ganhei um bocado de sobrinho! (...) Como

eu definiria os moradores dessa casa? Bem, primeiramente são

pacientes, né? Só que são, são amigos. Eu sempre digo assim

que isso aqui é a continuação de minha família, que você cria

vínculo, não tem como dizer que não cria, né? Certo que são

pessoas que tem lá os seus problemas, tem suas limitações, a

gente sabe das limitações, mas são meus amigos! Eu fiz amigos

aqui. Isso é muito legal (Verônica, 40 anos, ensino superior

incompleto (biologia), atua na residência mista).

O discurso produzido por Verônica é organizado de tal maneira que a apresenta

como uma pessoa que tem intimidade com os moradores. Para ela, os moradores são

seus “amigos”, pessoas que a “receberam muito bem”, apesar de terem suas

“limitações”. Além disso, ela busca posicioná-los como seus familiares, uma vez que

“aqui é a continuação de minha família”.

Após termos analisado os posicionamentos produzidos sobre os moradores,

analisaremos os posicionamentos construídos sobre os próprios cuidadores, ressaltando,

desde já, que ambos os posicionamentos tendem, muitas vezes, a se complementarem.

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6. OS POSICIONAMENTOS CONTRUÍDOS SOBRE OS CUIDADORES

Quando solicitados a falar sobre os primeiros contatos com a função de

cuidador, alguns entrevistados afirmaram desconhecer os serviços substitutivos de

atenção em saúde mental e/ou a função de cuidador antes de trabalharem nas

residências.

Na primeira vez, que eu entrei como cuidador, eu achei assim,

essa profissão, até o nome eu achava estranha, era muito

estranho. O povo perguntava: tu é o que? E eu dizia: cuidador,

mas assim, “cuidador...” (tom de desprezo) mas eu achava tão

esquisito a palavra cuidador. Agora eu já me acostumei também

com o nome cuidador, muitas pessoas já sabe o que é ser

cuidador de residência e outras pessoas não sabe ainda, a

maioria das pessoas (Roberta, 47 anos, ensino médio completo

(auxiliar de enfermagem), atua na residência feminina).

Rapaz, eu não sabia nem o que era na verdade um cuidador de

residência terapêutica. Na verdade eu pensei que fosse pra...

realmente cuidar de... Cuidar de pessoas, mas assim, pensei que

fosse uma coisa mais estruturada, né? (Gisele, 28 anos, ensino

superior completo (psicologia), atua na residência feminina)

Assim, ela falou depois, que ela entregou um currículo meu

aqui, eu nem sabia. Aí ligaram pra mim, eu fiz: “Oxente,

CAPS?”, eu não sabia nem que isso existia! Juro a tu, não sabia

não. Que não era muito divulgado, né? Até hoje em dia eu acho

que precisa de mais divulgação (Silvana, 28 anos, ensino médio

completo (técnica de enfermagem), atua na residência

feminina).

Porque, assim, eles mostraram, abrangeu muito essa parte, pra

quem não tinha noção de nada, como eu, não tinha, nunca tive

contato com nada disso (Marcos, 32 anos, ensino superior

incompleto (enfermagem), atua na residência mista).

Roberta relata uma sensação de estranhamento em relação à profissão, inclusive

em relação à própria denominação de “cuidador”. Ela ressalta, inclusive, a preocupação

com a questão do reconhecimento social da profissão de cuidador, o desconforto que

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sentia quando lhe perguntavam sobre sua profissão. Um trecho no qual aponta

explicitamente a falta de reconhecimento social da profissão é aquele no qual afirma

que “muitas pessoas já sabe o que é ser cuidador de residência e outras pessoas não sabe

ainda, a maioria das pessoas”.

Assim como Roberta, Gisele afirma que “não sabia nem o que era na verdade

um cuidador de residência terapêutica” e que, na verdade, ela pensava que “fosse pra...

realmente cuidar de... Cuidar de pessoas, mas assim, pensei que fosse uma coisa mais

estruturada”. É interessante destacar, ainda em sua fala, que ao utilizar a expressão

“fosse uma coisa mais estruturada”, a entrevistada critica moderadamente, mas de

maneira inequívoca, o modelo de atuação realizado pelos profissionais tanto da

residência na qual ela trabalha quanto do CAPS ao qual ele está vinculado.

Já Silvana constrói seu discurso de maneira a ressaltar o fato de que desconhecia

os serviços de saúde mental. Para tanto, ela utiliza uma expressão bastante utilizada no

nordeste do país e que indica um misto de dúvida e espanto: “Oxente, CAPS?”.

Buscando ressaltar ainda mais esse fato, ela utiliza uma estratégia discursiva que

consiste em afirmar um determinado fato e, em seguida, realizar a mesma afirmação

juntamente com a expressão “juro”: “eu não sabia nem que isso existia! Juro a tu, não

sabia não”. Por fim, ela afirma que “até hoje em dia eu acho que precisa de mais

divulgação”.

O trecho da fala de Marcos foi retirado do contexto onde ele aborda a questão do

treinamento que os cuidadores receberam para atuarem nos SRTs. Marcos “não tinha

noção de nada” na área de saúde mental antes de trabalhar como cuidador. Dessa

maneira, ele afirma que o curso “abrangeu muito essa parte, pra quem não tinha noção

de nada”, e, assim como os outros cuidadores supracitados, também nunca teve “contato

com nada disso”.

Vale a pena, nesse momento da análise, relembrar que existem cuidadores: I)

que estão nas residências desde a sua inauguração; II) que iniciaram suas atividades na

residência após serem aprovados no concurso; e III) que entraram através de contrato

mesmo após a realização do concurso.

Assim, destacamos a seguir que os cuidadores efetivos constroem uma posição

identitária para si próprios contrastando suas funções na residência com as dos antigos

cuidadores não concursados.

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Primeiro, assim, houve um choque muito grande por que as

pessoas que trabalhavam aqui, a maioria não tinha nem nível

médio. Então, assim... Era mais assim, o serviço que elas

exerciam era mais aquela coisa mecânica, mais de doméstica,

de fazer as coisas por elas, de fazer por elas. Então, quando a

gente entrou, aí houve primeiro esse choque da gente tá

tomando o lugar delas, mas aí depois a gente foi mudando, e

foi... Assim, aos poucos elas foram percebendo também, porque

houve a passagem, né? Do serviço delas pra gente. Então houve

meio que as coisas. Então, os moradores ainda ficavam, a gente

teve também um pouquinho essa rejeição com, dos moradores

com a gente por que isso passava dos trabalhadores, dos

cuidadores antigos, e passava pra elas, que a gente veio pra

tomar o lugar, que não sei o que, não sei o que. Então, a gente,

assim,teve um pouco de resistência, os moradores ficavam meio

assim, que queria o pessoal antigo, que isso e aquilo mas isso

foi logo, logo mudado, porque eles foram percebendo o trabalho

que a gente foi desenvolvendo, que a gente dava muito mais

atenção a eles, a forma de cuidar era diferente e que isso só veio

a trazer ganhos para eles (Paula, 29 anos, ensino superior

completo (psicologia), atua na residência feminina).

De ser visto aqui como... É... Empregada doméstica. Porque na

verdade aqui a gente tenta fazer as coisas com elas, né? Mas...

Mas que não pode fazer por elas, né? Mas algumas pessoas, no

início, antes do trabalho, antes do, do concurso fazia por elas

pra... Economizar, digamos assim, tempo, né? Não tinha

paciência de ficar incentivando, né? De ficar... Assim: “bora

fazer, bora... Tentar fazer assim, porque assim é melhor”, né?

Não tinha, não tinha paciência e fazia, né? E o trabalho da gente

não é esse Aí, assim, no início a gente começou a ganhar

trezentos reais. Queriam realmente que a gente, foi exonerado

mais de metade das pessoas que foram, que passaram no

concurso. Metade foi saíram, assim... Aí isso tudo foi levando

assim. No início teve muita frescura, essas turbulências que

fizeram muita gente desistir... (Gisele, 28 anos, ensino superior

completo (psicologia), atua na residência feminina).

A gente da residência, a gente era obrigado, a gente trabalha

como cuidador e não como faxineiro, né? A nossa obrigação é

cuidar do bem estar do morador. A gente, fazer com que ele

tenha autonomia e tal, né? Não é fazer limpeza assim. Então a

gente sempre foi estimulado a fazer com que os moradores

fizessem as coisas dentro da casa porque é a casa deles, né? E

fazendo todo dia eles vão tendo uma autonomia e tal. Mas, no

início, a gente era obrigado a ter que ajudar... A gente ajuda,

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assim, dá um apoio, mas antes queria que a gente fizesse tudo

dentro da casa, assim... E hoje em dia, não. A gente tem uma

pessoa que de quinze dias vem fazer uma limpeza geral na casa,

pra ajudar e antes isso era altamente proibido (Silvana, 28 anos,

ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua na

residência feminina).

Paula afirma que houve um “choque muito grande” inicialmente porque a

maioria das pessoas que trabalhavam na residência “não tinha nem nível médio”,

exercendo o serviço de maneira “mecânica”, realizando a função “mais de doméstica”,

qualificando as antigas práticas como práticas exercidas sem a devida reflexão sobre o

processo saber-fazer. Em seu discurso, a entrevistada sugere tacitamente que cuidadores

de nível médio não possuiriam a capacidade de refletir criticamente seu trabalho,

realizando-o de qualquer jeito. Por fim, ela critica os antigos cuidadores por fazerem “as

coisas por elas”.

Ela afirma, ainda, que ao entrarem houve um “choque”, mas que elas foram

“mudando” concomitantemente à “passagem” do “serviço delas pra gente”. Segundo a

entrevistada, “houve um pouco de resistência” posto que os moradores “queriam o

pessoal antigo”, mas que “isso foi logo, logo mudado porque eles foram percebendo o

trabalho que a gente foi desenvolvendo”, dando “muito mais atenção a eles”, exercendo

uma “forma de cuidar” que era “diferente” e que “só veio a trazer ganhos para eles”.

A utilização da expressão “era mais assim”, em sua fala, também busca excluir a

idéia de que todo o serviço realizado pelos antigos cuidadores era mecânico e

relacionado aos afazeres domésticos, mas que estes serviços se sobressaíam em relação

aos demais. E ao utilizar a expressão “aos poucos”, ela busca ressaltar que o processo de

mudança não foi um processo realizado subitamente, do “dia para a noite”, e que, isto

sim, foi um processo que ocorreu de maneira gradativa.

Podemos observar, também, que a cuidadora utiliza nesse trecho de seu discurso

uma série de verbos conjugados no gerúndio: “tá tomando”, “foi mudando”, “foram

percebendo” e “foi desenvolvendo”, todos relacionados à temática do repasse das

informações que teria ocorrido entre os cuidadores contratados, que estavam saindo, e

os cuidadores concursados. Partimos do pressuposto de que, ao utilizar tais verbos, a

entrevistada utilizou um recurso discursivo para construir a idéia de que a passagem dos

cuidadores antigos para os cuidadores concursados foi uma passagem gradual e não uma

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mudança drástica e com total ruptura, posto que verbos utilizados pela entrevistada,

quando conjugados no gerúndio, geralmente expressam ações que ocorreram

gradualmente, como “foi desenvolvendo”.

Ainda no tocante ao discurso de Paula, é interessante observar a maneira como

ela desqualifica o trabalho exercido pelos antigos cuidadores ao afirmar que “a maioria

não tinha nem nível médio” e que o “serviço que elas exerciam era mais aquela coisa

mecânica, mais de doméstica, de fazer as coisas por elas, de fazer por elas”.

Ao utilizar a expressão “nem nível médio”, ela desqualifica o trabalho realizado

pelos antigos cuidadores, retomando uma idéia bastante presente em nossa cultura, que

é a de que quanto maior o grau de escolarização do sujeito, melhor será o seu

desempenho laborial.18

A entrada de novos cuidadores teria modificado tal situação: “isso foi logo, logo

mudado, porque eles foram percebendo o trabalho que a gente foi desenvolvendo, que a

gente dava muito mais atenção a eles, a forma de cuidar era diferente e que isso só veio

a trazer ganhos para eles”. Nesse trecho da entrevista, de maneira mais explícita, ela

afirma que os novos cuidadores trouxeram “uma forma de cuidar diferente”, o que

implicou em uma melhora da qualidade de vida dos moradores.

Tal construção pode ser observada também em outros trechos de seu discurso no

qual ela menciona novamente o “ensino médio” dos antigos cuidadores e a

“efetividade” do trabalho dos novos cuidadores:

Então assim, a gente só veio a contribuir: a gente melhorou

muito o serviço, a forma de perceber, porque antes as pessoas

era, era... De nível, é... Médio ou talvez nem terminasse nível

médio. Então assim, a forma que a gente lida com os

moradores, eles percebem que são de uma forma mais diferente

assim, mais educativa, e que a gente tem visto ganhos por isso

(Paula, 29 anos, ensino superior completo (psicologia), atua na

residência feminina).

Assim como no discurso de Paula, Gisele afirma que os cuidadores, ainda hoje,

são vistos como “empregada doméstica”, uma suposta herança do tempo em que

18

Nesse sentido, vale ressaltar que Paula possui graduação em Psicologia e que alguns cuidadores

construíam seu próprio posicionamento a partir, também, do fato de alguns cuidadores possuírem

graduação em psicologia.

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“algumas pessoas, no início”, “antes do concurso fazia por elas”. Nesse sentido, ela

busca não se referir explicitamente aos antigos cuidadores, utilizando a expressão

“algumas pessoas”. Consonante com o objetivo da habilitação psicossocial, ela afirma

em seu discurso que os novos cuidadores devem exercitar a autonomia dos moradores,

buscando não “fazer por elas”, posto que sua função enquanto cuidadora de SRT não é

essa.

Outra cuidadora que reitera tais posicionamentos é Gisele:

Porque, na verdade, no início, no início, eles pensavam que a

gente na verdade era empregada doméstica, como os outro

também eram tratados, na época. A gente, agora, eu acho que

tem um, eles tem uma postura um pouquinho diferenciada, por

sinal até Paula, não sei elas comentaram contigo, Paula foi

chamada pra assumir um cargo de gerência administrativa no

CAPS. Assim, na verdade, desvio de função, vai ganhar um

pouquinho mais do que ela ganha, mas, assim, já é uma grande

coisa, né? Aí, assim, é uma coisa diferenciada, né? (Gisele, 28

anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência

feminina).

Já Gisele busca justificar, em seu discurso, a maneira pela qual os antigos

cuidadores exerciam suas atividades. Segundo a entrevistada, os antigos cuidadores

faziam “por elas” na tentativa de “economizar, digamos assim, tempo” e porquê “não

tinha paciência de ficar incentivando”. Dessa maneira, podemos afirmar que o discurso

de Gisele busca responsabilizar, os antigos cuidadores pela maneira “incorreta” de

realização do trabalho.

Silvana, assim como Paula e Gisele, também posiciona os cuidadores

diferenciando-os da imagem de “faxineiro”. Segundo a entrevistada, “a gente da

residência” “trabalha como cuidador e não como faxineiro”. A obrigação do cuidador,

em sua perspectiva, “é cuidar do bem estar do morador”, “fazer com que ele tenha

autonomia” e “não fazer limpeza”.

É interessante observar como a entrevistada reitera novamente esse discurso,

repetindo que “a gente sempre foi estimulado a fazer com que os moradores fizessem as

coisas dentro da casa”, o que acarretaria no desenvolvimento de “uma autonomia”, mas

que “no início, a gente era obrigado a ter que ajudar”. Com essa reiteração, ela busca

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firmar seu posicionamento contrário ao trabalho do cuidador como “faxineiro”, o qual

supostamente seria exercido pelos antigos cuidadores.

No entanto, logo em seguida, ela busca minimizar a ênfase anterior no

afastamento dos cuidadores das atividades domésticas ao afirmar que “a gente ajuda,

assim, dando um apoio” mas que hoje existe uma pessoa que auxilia na limpeza da casa

de quinze em quinze dias, fato que anteriormente era “altamente proibido”. Nesse trecho

de seu discurso, a cuidadora busca construir a idéia de que ela pode até realizar

trabalhos de faxina na casa, mas que este não deve ser o foco da atuação do cuidador no

SRT.

Já o discurso de Claudia também aponta para a questão das tarefas atribuídas aos

cuidadores, mas, agora, referindo-se ao treinamento que os cuidadores concursados

receberam ao entrar na Residência.

(Entrevistador) - Então, a próxima pergunta é justamente sobre

treinamento. Você me falou que recebeu esse treinamento de

quatro dias, né?

(Claudia) - É.

(E) - Tem alguma questão que você queira colocar, alguma

coisa que te chamou a atenção na época? Ou que te chamou a

atenção justamente por faltar, enfim?

(C) - Humrum. Bem, na época, o que me chamou a atenção foi,

é... A coisa do... Lembro que quem tava falando era até...

Esqueci o nome dela... Enfim, uma moça lá e ela tava falando

que como cuidador, quem trabalha com saúde mental tem que

estar disposto a tudo, né? E, de alguma forma eu já sabia, por

algumas experiências de estágio, mas aí eu ouvia pessoas

falarem que cuidador vai fazer o que for, o que tiver que fazer,

se tiver que desentupir privada, vai ter que desentupir... Isso

assim, conversas... Né?

(E) - Humrum.

(C)- E que ela, ela confirmou, meio que essa idéia, a professora

lá. Meu Deus, como assim, né?! Cuidador de residência

terapêutica vai ter que limpar cocô, vai ter que, não sei o que...

Então isso eu lembro que me foi estranho nessa capacitação e...

(Claudia, 22 anos, ensino superior completo (psicologia), atua

na residência feminina).

Podemos observar a maneira como Claudia inicia seu discurso de maneira

bastante vaga. Nesse sentido, ela utiliza pausas entre as frases proferidas, simbolizadas,

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textualmente, pelas reticências “...”, as quais possuem a função de deixar as sentenças

inacabadas: “o que me chamou a atenção foi, é...”, “a coisa do...” e “lembro que quem

tava falando era até...”. Por fim, ela também não cita nem o nome da palestrante,

afirmando que “esqueci o dome dela...”.

Supomos, então, que ao construir seu discurso de maneira vaga, a cuidadora

sugere tacitamente que a capacitação não foi importante para ela, uma vez que, em

nossa cultura, uma das formas de mostrar a alguém que um evento teve pouca

importância é descrevê-lo de maneira vaga, sem entrar em detalhes.

Ainda segundo a entrevistada, a “moça lá” afirmou que “como cuidador, quem

trabalha com saúde mental tem que estar disposto a tudo”, como “desentupir privada”, e

que, de alguma forma, ela já sabia disso, através de “estágio”.

A expressão “conversas”, utilizada pela entrevistada, é freqüentemente usada em

nosso contexto para relatar algo que dizem que aconteceu, mas de que não se tem

certeza. Ou seja, é mais uma forma de podermos afirmar que alguém falou algo, ou que

algo aconteceu, sem identificar as fontes que nos informaram. No discurso da

cuidadora, “conversas” é mais uma estratégia de construção de um discurso

aparentemente explícito mas que, ao analisarmos, torna-se um discurso repleto de

recursos retóricos com o intuito de deixá-lo vago.

O discurso de Claudia busca, também, responsabilizar individualmente os

cuidadores pela boa ou má atuação na residência.

Não é qualquer pessoa que pode ser um cuidador, né?

Entendeu? Mexe com muitas questões pessoais, mexe com o

jeito mesmo de cada um e com objetivo, cada um quer o que

trabalhando como cuidador, né? Só dinheiro, (incompreensível),

né? E... E botar como concurso pra se trabalhar com isso, um

concurso você (incompreensível), né? E você tá dentro, já. Né?

E ai a gente vê as coisas que acontece: cuidador que agride,

cuidador que faz isso, tudo... Então isso me foi estranho,

quando eu entrei (...) Lidar com crises, lidar com isso da

medicação, efeitos das medicações, não sabe. Entende? Quem

quiser, busque, quem não quiser, pode ficar aí trabalhando sem

saber (...) De tudo que acontece, de acontecer de qualquer

forma, de deixar à mercê dos cuidadores, que podem fazer o

que bem entender ali dentro. Foi um ótimo cuidador, que bom!

Mas também se não foi, pode destruir aquilo ali... (Claudia, 22

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anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência

feminina).

Nos trechos destacados, vale a pena observar a utilização de diversas expressões

que responsabilizam os cuidadores pelo sucesso ou fracasso das residências. Nesse

sentido, a entrevistada afirma que ser cuidador “mexe com muitas questões pessoais,

mexe com o jeito mesmo de cada um”, que “quem quiser” aprender a “lidar com crises”

ou conhecer os “efeitos das medicações” que “busque, quem não quiser, pode ficar aí

trabalhando sem saber”, e isso tudo faz com que exista “cuidador que agride”, deixando

o serviço “à mercê dos cuidadores, que podem fazer o que bem entender ali dentro”.

Assim, se “foi um ótimo cuidador, que bom”, porém, “se não foi, pode destruir aquilo

ali”.

Já para Joana, ser cuidador é uma profissão que exige “ter paciência”.

O que é ser cuidador? Acho que ser cuidador é uma pessoa que

tem que ter paciência com eles. Tentar incentivá-los. Acho que

é isso (Joana, 36 anos, ensino médio completo, atua na

residência feminina).

Em seu discurso, Joana afirma, de maneira muito resumida, que ser cuidador é

ter “paciência” com os moradores, sempre buscando “incentivá-los”. Verônica, por sua

vez, posiciona os cuidadores como seres angelicais que ajudam a melhorar a vida dos

moradores.

Quem são os cuidadores das residências terapêuticas? Ai! Os

cuidadores das residências terapêuticas... Eu acho assim, que

são anjos, sabe? São pessoas que... Tão aqui pra ajudar, tão aqui

pra (incompreensível), pra ajudar a melhorar a vida deles

(Verônica, 40 anos, ensino superior incompleto (biologia), atua

na residência mista).

Em seu discurso, a cuidadora posiciona os cuidadores como “anjos” que estão

“pra ajudar a melhorar a vida deles”. Constrói a imagem dos cuidadores a partir de uma

figura religiosa: o anjo. Dessa maneira, a cuidadora posiciona os cuidadores como seres

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livres da maldade, como pessoas bondosas, repletas de amor no coração e que estão no

SRT para exercer o bem cuidando dos moradores.

Discurso semelhante é construído por Fernanda. Segundo ela, trabalhar como

cuidador é “ajudar”, “ter muita tolerância” e “ter amor”.

(Entrevistador) - Humrum. E quem são os cuidadores das

residências terapêuticas pra você?

(Fernanda) - Quem são? São meus amigos, né? De trabalho.

(E) - Seus amigos? E assim, pra descrever, se alguém te

perguntasse: o que é ser cuidador, o que é trabalhar sendo

cuidador, o que você responderia?

(F) - Trabalhar sendo cuidador? Ajudar, né? Ajudar... Se dar,

né? Que a gente tem que ter muita tolerância pra trabalhar num

lugar assim. E amor, né? Tem que ter amor (Fernanda, 40 anos,

ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas

residências).

Ao ser questionada sobre “quem são os cuidadores das residências terapêuticas”,

a entrevistada afirma que “são meus amigos” e, mais especificamente, amigos “de

trabalho”. Como a entrevistada parece não desejar abordar muito o assunto, o

entrevistador insiste um pouco mais, solicitando que ela descreva o “que é trabalhar

sendo cuidador”. Em seguida, ela afirma que trabalhar sendo cuidador é “ajudar”, “se

dar”, pois é necessário ter “muita tolerância para trabalhar num lugar assim”, além de

ter que “ter amor”.

Ao utilizar a expressão “num lugar assim”, a cuidadora sugere tacitamente que o

SRT é um lugar desprezível, caracterizado pelo estigma da diferença e da loucura, e que

por isso se faz necessário ter tanta “tolerância” para se trabalhar ali.

Fernanda também posiciona os cuidadores como pessoas pacientes e,

principalmente, pessoas amorosas, dispostas a doar esse amor no trabalho cotidiano com

os moradores. Aqui encontramos, mais uma vez, o posicionamento produzido sobre os

cuidadores sendo construído dialeticamente a partir da imagem dos moradores: os

moradores seriam sujeitos infantilizados, pobres coitados dignos de piedade, enquanto

os cuidadores seriam “anjos” dispostos a amar e a proteger os pobres coitados, o que é

uma reprodução do discurso cristão de que devemos amar os desgraçados, os leprosos,

os doentes.

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O posicionamento dos cuidadores como pessoas que “ajudam” também pode ser

encontrado em outro trecho de seu discurso.

Eles vêem na gente, né? Uma pessoa que eles podem ter muitas

coisas se a gente puder ajudar eles, né? (Fernanda, 40 anos,

ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas

residências)

Nesse momento, a entrevistada afirma que os moradores percebem os cuidadores

como “uma pessoa que eles podem ter muitas coisas”. Nesse sentido, ela realça a

dependência dos moradores afirmando ainda que, apesar dos moradores serem pessoas

dependentes, “eles podem ter muitas coisas se a gente puder ajudar”.

Já alguns entrevistados posicionaram os cuidadores, de maneira geral, como

profissionais de nível superior.

(Entrevistador) - E quem são os cuidadores das residências

terapêuticas pra você?

(Claudia)- Quem são os cuida... (risos) Quem são os

cuidadores? Olhe... A curto e grosso modo, os cuidadores de

residência terapêutica, pra mim, primeiro que são pessoas muito

diversas, assim, diversificadas porque tem pessoas de “n” áreas.

Mas... de uma maneira geral são pessoas que... Eu posso falar

sobre os daqui?

(E) - Fique a vontade.

(C)- São pessoas que primeiro trabalham, que precisam de

dinheiro, né? Em primeiro lugar. São pessoas que tem uma

preocupação com os moradores, com cada coisa que acontece

aqui, falando daqui. (risos) E... Que eu vejo assim, né? E são

pessoas que tem determinadas responsabilidades com tudo que

acontece aqui dentro.

(E) - Humrum.

(C) - E que precisam estar muito atento as coisas. Mas os

cuidadores, de uma maneira geral, cuidadores, essa categoria,

digamos assim, cuidador de residência terapêutica são pessoas

que são vistas como mais uma peça que trabalha dentro da

área... De saúde. Sabe? Pessoas que tem que fazer tudo, pessoas

que tem que cuidar, que tem que limpar o chão e que tem que

fazer isso e tem que fazer aquilo. Precisam se sujeitar a

qualquer coisa, né? Pra mim essa é a visão que se tem dos

cuidadores dentro do, da rede, digamos assim. Essa foi a minha

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visão de cuidador (Claudia, 22 anos, ensino superior completo

(psicologia), atua na residência feminina).

Não sabia que ia ter tanto profissional assim, já formado,

porque o concurso, quando a gente foi ver, só tinha gente

formada, né? Era, aqui tem psicólogo, tem TO, tem assistente

social, tudo aqui dentro (Gisele, 28 anos, ensino superior

completo (psicologia), atua na residência feminina).

Claudia inicia seu discurso com uma tentativa de responder a pergunta com

sinceridade: quando utilizamos a expressão “a curto e grosso modo” indicamos que

iremos abordar alguma temática “de maneira direta”, “sem arrodeios”. No entanto, logo

em seguida ela orienta seu discurso por outro caminho, sendo cuidadosa com as

expressões que irá utilizar. Assim, ela tenta iniciar uma pontuação do que vai falar,

utilizando a expressão “primeiro”.

A cuidadora, então, posiciona os cuidadores como um grupo heterogêneo,

caracterizado pela diversidade, afirmando que existem cuidadores de “n” áreas. Vale a

pena ressaltar que, diante da diversidade, ela exclui os cuidadores de nível médio: em

nossa cultura nós não nos referimos aos trabalhadores de nível médio com o termo

“área”, o qual é utilizado para fazer referência a profissionais de nível superior, como

por exemplo na expressão “ele é da área da saúde”.

Em seguida, após tentar construir a imagem dos cuidadores “de uma maneira

geral”, ela passa a enfocar os cuidadores “daqui”. Na tentativa de construir, mais uma

vez, a idéia de que seu discurso é sincero, a entrevistada afirma que os cuidadores “são

pessoas que trabalham, que precisam de dinheiro”. Nesse caso, devemos lembrar que os

valores culturais da sociedade brasileira, de maneira geral, não vê com bons olhos

sujeitos que afirmam trabalhar por dinheiro. Em nossa sociedade, o trabalho é visto

mais como um meio de dignificar o homem do que uma forma de sustento para o ser

humano.

Em seguida, ela afirma que os cuidadores são pessoas preocupadas com o bem-

estar dos moradores e que tem responsabilidade pelo que acontece na residência, mas,

nesse momento, ela especifica, utilizando expressões como: “acontece aqui, falando

daqui” e “tudo que acontece aqui dentro”, que seu discurso se refere apenas à residência

na qual ela atua.

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No último trecho do discurso supracitado, Claudia afirma que ser “cuidador” é

ser visto “como mais uma peça dentro da área... de saúde”, como pessoas que

necessitam “se sujeitar a qualquer coisa”: tem que “cuidar”, “limpar o chão”, etc.

Supomos, então, que em seu discurso, Paula se apresenta como uma trabalhadora ciente

das atividades que os cuidadores devem desempenhar, dentre as quais ela cita “limpar o

chão”.

Por fim, ela afirma que outros profissionais que atuam na gestão compartilham

dessa visão de cuidador, afirmando que “essa é a visão que se tem dos cuidadores dentro

do, da rede”.

Assim como Claudia, Gisele também posiciona os moradores como profissionais

de diversas áreas. É interessante observar, no discurso construído por Gisele, que ela

afirma que, quando prestaram atenção, só havia “gente formada” no concurso, como

psicólogo, terapeuta ocupacional e assistente social. No entanto, Gisele exclui os

profissionais de nível médio que atuam na residência terapêutica, citando apenas os

profissionais que possuem ensino superior.

Gisele, ao afirmar que existem profissionais de nível superior trabalhando como

cuidadores de SRTs, apresenta a categoria com alguma importância. Nesse sentido, ela

tenta remodelar a idéia de que os cuidadores das residências são “empregadas

domésticas”.

Já outros entrevistados constroem a imagem de cuidador relacionando-a com o

fato de existirem psicólogos atuando nos SRTs.

É como eu já te disse, a maioria são formados em psicologia, e

todos, assim... (Paula, 29 anos, ensino superior completo

(psicologia), atua na residência feminina).

(Marcos) - Entendeu? Uma faixa de 70% do pessoal que

trabalham na residência hoje são psicólogos. No caso da gente

aqui, de doze, de doze, parece que é sete ou é oito são

psicólogos.

(Entrevistador) - Mais da metade, né?

(M) - É. Mais da metade são psicólogos. Alguns já são

formados, a maioria são formados e tem dois que tão cursando

ainda e um termina agora, esse ano e outro no próximo ano.

(E) - Humrum.

(M) - Uma grande parte são psicólogos, né? Aí... Eu acho por

conta também do curso que fizeram, do trabalho aqui, né? É...

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Que tem um relacionamento com a personalidade, né? (Marcos,

32 anos, ensino superior incompleto (enfermagem), atua na

residência mista).

(Entrevistador) - Então chamaram mais ou menos umas cento e

vinte pessoas?

(Roberta) - Não, porque teve muita gente eliminada. Que

chegou atrasado, desistiram, quando foi, porque assim, a

maioria, esse concurso, a maioria que se inscreveu foi de nível

superior, a maioria psicólogos que se inscreveram. Eles não

conheciam o serviço de cuidador, não (inaudível, mas ela

parece dizer “sabiam”) nada, e se inscreveram porque o edital

vinha com, com, dizendo tudo que deveria a, a psicologia, a

maioria dos assuntos, aí foi a maioria dos psicólogos se

inscreveram. Aí realmente de nível médio acho que só umas

três pessoas entraram. Porque a maioria foi, era o assunto era

tudo pra, referente a, a psicologia. Psicopatologia, muitas

cadeiras que eles dão na faculdade de psicologia foi que, que

caiu. A maioria que entrou foi, teve psicólogo, teve TO, teve

assistente social que entrou. Foi muito (Roberta, 47 anos,

ensino médio completo (auxiliar de enfermagem), atua na

residência feminina).

Segundo Paula e Marcos, a maioria dos cuidadores que estão atuando nos SRTs

do Distrito Sanitário VI são psicólogos.

Marcos afirma que cerca de “70% do pessoal que trabalham na residência hoje

são psicólogos”. Mais especificamente, Marcos afirma que no Distrito Sanitário VI

existem doze cuidadores, sendo que “sete ou é oito são psicólogos”. Segundo o

cuidador, “a maioria são formados”, sendo que existem “dois que tão cursando ainda e

um termina agora”, enquanto um outro termina “no próximo ano”.

Interessante na fala de Marcos é a explicação que ele constrói para justificar o

grande número de psicólogos que atuam como cuidadores de residências terapêuticas:

segundo o entrevistado, os psicólogos se identificariam com o trabalho de cuidador “por

conta também do curso que fizeram”, posto que atuar nos SRTs teria “um

relacionamento com a personalidade”.

Assim como Marcos, Roberta também afirma que a maioria das pessoas que se

inscreveram para o concurso foi “de nível superior”, sendo a “maioria psicólogos que se

inscreveram”. Mas a explicação que Roberta constrói para justificar a inscrição de

grande número de psicólogos difere da explicação oferecida por Marcos: para a

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cuidadora, os psicólogos se inscreveram sem “conhecer o serviço de cuidador” e só o

fizeram porque os assuntos eram referentes a disciplinas que “eles dão na faculdade de

psicologia”, como “Psicopatologia”. Por fim, ela menciona os outros profissionais de

nível superior que passaram no concurso afirmando que existem cuidadores “terapeutas

ocupacionais” e “assistentes sociais” ao lado dos “psicólogos”.

Os cuidadores também se posicionaram como pessoas que construíram um

“vínculo” com os moradores, que possuem uma relação afetuosa com os mesmos, além

de se posicionarem como “familiares” dos moradores.

Mas eu considero a relação de todos os cuidadores com os

moradores muito afetuosa, sabe? É... Como eu te falei, acho que

a gente tem a sorte de trabalhar com uma equipe que, de uma

maneira geral, trabalha muito bem, tem uma relação muito boa,

sabe? (Claudia, 22 anos, ensino superior completo (psicologia),

atua na residência feminina).

Cuidadores são pessoas que vivem no dia a dia dos moradores,

né? Que sempre está presente, mesmo estando fora a gente tá

sempre pensando neles, né? Mas, assim, a gente cuida deles.

Como se eles fossem, é... Assim... Pessoas da própria família. A

gente termina pegando até um vínculo familiar com eles. Por,

pelo cuidado que a gente tem com eles, né? E até o dia a dia

mesmo, convivência, a gente vive como se morasse aqui

também, entendesse? Então a gente cuida dele e ao mesmo

tempo a gente termina se apegando a elas e a eles, né? Porque

tem homens, também, né? Só (Bruna, 30 anos, ensino superior

completo (pedagogia), atua nas duas residências).

Assim, são todos muito engajados, assim, não tão aqui só por

dinheiro, não é só o trabalho por si não, realmente todos tem

uma filosofia de mudar mesmo o comportamento dessas

pessoas, de ajudarem, porque é como eu também já te disse,

tem esse vínculo afetivo. Então as pessoas fazem por amor

mesmo, assim, querem ver aniversário, todo mundo se mobiliza

para fazer o aniversário delas, Natal... Então assim, é uma coisa

muito, e como elas também participam do momento da gente,

que eu vou casar agora e tá todo mundo falando: “ah! Não vejo

a hora!”, lembram do dia, querem comprar presente pra mim.

Então assim, tem esse vínculo além do trabalho, né? Que é o

vínculo afetivo mesmo, que vai além do trabalho que a gente

deve exercer na residência (Paula, 29 anos, ensino superior

completo (psicologia), atua na residência feminina).

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A gente se apega. Teve uma que faleceu, eu chorei, a gente

chorou, chora. Se apega demais. Até porque não tem família, a

família delas é a gente, né? A gente termina se apegando muito

a elas (Gisele, 28 anos, ensino superior completo (psicologia),

atua na residência feminina).

A gente pega um vínculo com elas, assim, é como se fosse uma

família, a segunda família (risos). Tem assim, a gente já teve

duas que faleceram e assim, as duas eram muito apegadas, (diz

o nome da moradora) era muito apegada com a gente tudinho.

Aí faleceram, pra gente foi como se fosse uma pessoa da família

(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de

enfermagem), atua na residência feminina).

E a gente termina sendo, a gente pode até comparar, assim,

como um parente mais próximo. Porque a convivência nos

ajuda a respeitar essas pessoas e eles respeitam a gente, né? Eles

tem muito apego a gente, muito respeito, pedem conselho,

questionam as coisas, mas sempre ali, dentro do tratamento

respeitoso (Tiago, 42 anos, ensino médio completo, atua na

residência mista).

Porque tem gente aqui que não tem família. Então, tem que, a

gente tem que fazer o papel de tudo: do cuidador, tem que fazer

o papel da família deles, porque eles necessitam de, de, de tudo,

de atenção, de amor, de cuidado (Silvana, 28 anos, ensino

médio completo (técnica de enfermagem), atua na residência

feminina).

No discurso construído por Claudia, ela afirma que, na sua opinião, todos os

cuidadores que trabalham com ela possuem uma relação bastante “afetuosa” com os

moradores. Ao utilizar o termo afetuosa, a cuidadora constrói a idéia de que os

cuidadores que atuam nas residências do Distrito Sanitário VI cuidam muito bem dos

moradores das residências, suprindo todas as necessidades dos mesmos.

Tal fato é reiterado pela entrevistada, de maneira mais explícita, com o que ela

afirma em seguida: ela tem a sorte de trabalhar com uma equipe “que, de uma maneira

geral, trabalha muito bem”. A utilização de tal expressão produz dois efeitos: I) por um

lado, o fato dela afirmar que possui a sorte de trabalhar com uma equipe que “trabalha

muito bem”, é uma maneira de afastar os maus cuidadores, localizando-os em equipes

de outros territórios; e II), por outro lado, permite apresentar a sua equipe de trabalho

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como uma equipe normal: uma equipe que tem momentos de relação harmoniosa, assim

como também apresenta conflitos, o que permite tornar seu discurso mais factual.

Segundo Bruna, os cuidadores são pessoas que convivem com os moradores e

que estão sempre presentes, inclusive nos momentos de folga, posto que “a gente tá

sempre pensando neles”. Dessa maneira, encontramos mais uma vez uma cuidadora

afirmando ser uma boa trabalhadora ao afirmar que se preocupa com os moradores até

quando não está em seu horário de trabalho.

Ainda em seu discurso, ela afirma que os cuidadores cuidam dos moradores

como se eles fossem “pessoas da própria família” e que esse cuidado origina um

“vínculo familiar com eles”. Ao posicionar os moradores como se fossem pessoas de

sua família, os cuidadores também se posicionam como familiares dos moradores,

constituindo uma relação dialética na qual o posicionamento de um está em relação ao

posicionamento do outro.

É interessante observar que a cuidadora busca explicar esse “vínculo” a partir do

“dia a dia mesmo, convivência”, como se o SRT fosse sua segunda casa. Por fim, ela

afirma que o cuidado e o apego desenvolvidos na relação com o morador se constituem

mutuamente no cotidiano da casa: “a gente cuida dele e ao mesmo tempo a gente

termina se apegando a elas e a eles”.

Já Paula afirma que os cuidadores “são todos muito engajados”, que “não tão

aqui só por dinheiro, não é só o trabalho por si não”. Para ela, todos os cuidadores “tem

uma filosofia de mudar mesmo o comportamento dessas pessoas” que se origina desse

“vínculo afetivo”. Paula afirma que o verdadeiro motivo dos cuidadores exercerem sua

atividade é fazer “por amor mesmo”, posicionando os cuidadores como pessoas

extremamente boas, desapegadas de questões materiais e que estão dispostos a dar

carinho, atenção e cuidado, ou seja, tudo o que os moradores necessitariam a partir de

seu posicionamento como pessoas dependentes, tal como analisado no capítulo anterior.

Aqui podemos perceber mais claramente como a maneira pela qual o

posicionamento construído tanto sobre os moradores como sobre os cuidadores é

produzido numa relação dialética: os moradores são sujeitos “carentes” enquanto os

cuidadores são pessoas que oferecem “amor” e “carinho”, todos constituindo uma

“família”, no caso dos cuidadores uma “segunda família” e, no caso, dos moradores

seria “como se fosse uma família”.

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Dessa forma, assim como em uma família, quando “querem ver aniversário, todo

mundo se mobiliza para fazer o aniversário deles”, assim como outras comemorações

festivas, como o Natal. Vale ressaltar que não é só os cuidadores que participam da vida

dos moradores, pois o contrário também é válido: “elas também participam do momento

da gente”, como no caso da entrevistada, que vai casar e as moradores querem

presenteá-la. Segundo Paula, então, “tem esse vínculo além do trabalho” que é um

“vínculo afetivo mesmo”.

Gisele inicia seu discurso afirmando que “a gente se apega”. Ela exemplifica

esse apego citando o exemplo de uma moradora que “faleceu”, afirmando que ela

chorou, “a gente chorou” e, ainda hoje, “chora”. Para ela, os cuidadores terminam “se

apegando muito a elas”, “até porque” os moradores “não tem família, a família delas”

são os cuidadores.

A cuidadora, assim como as outras entrevistadas, justifica através de seu

discurso tanto o posicionamento construído para os moradores assim como o dos

cuidadores através do discurso da família: como os moradores não possuem família, a

família deles termina sendo os cuidadores. Nesse sentido, ela busca explicar que “eu

chorei, a gente chorou” quando a morador faleceu, posicionando os cuidadores como

pessoas próximas e que desejam sempre o bem dos cuidadores.

No discurso construído por Roberta, ela afirma que “a gente pega um vínculo

com elas”, “como se fosse uma família, a segunda família”. E, assim como Gisele, ela

cita que “já teve duas que faleceram” e que as duas moradores “eram muito apegadas”

com todos os cuidadores. Ela afirma, ainda, que a morte das moradores foi vivenciada

como “se fosse uma pessoa da família”.

Encontramos no discurso de Roberta, então, mais uma vez o discurso do “como

se fosse uma família” e a citação do falecimento das moradores como uma forma de

expressar o vínculo construído com os moradores.

Tiago constrói também, em seu discurso, a imagem dos cuidadores como

“parente mais próximo”. No entanto, ao contrário dos outros entrevistados, ele justifica

esse posicionamento a partir de um discurso sobre o respeito. Para o entrevistado, é a

convivência que ajuda a respeitar os moradores, assim como os moradores também

respeitam os cuidadores. De acordo com seu discurso, os moradores “tem muito apego”,

“muito respeito”, “pedem conselho”, e até “questionam as coisas” aos cuidadores, mas

sempre no “tratamento respeitoso”.

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Tiago produz, em seu discurso, a imagem de que os cuidadores são pessoas que

podem tratar bem os moradores, principalmente aqueles que são disciplinados e acatam

respeitosamente o que é proposto pelos cuidadores.

No que diz respeito ao posicionamento sobre os cuidadores produzidos por

Silvana, ela afirma que existem moradores que “não tem família”. Dessa maneira, cabe

aos cuidadores exercerem o papel de “tudo”: de cuidador e “tem que fazer o papel da

família deles”. Vale a pena observar como o posicionamento dos cuidadores como

familiares dos moradores resulta, mais uma vez, num movimento dialético: os

moradores necessitam de “atenção, de amor, de cuidado” e os cuidadores são aqueles

que podem suprir essas necessidades, originando uma relação de dependência.

Por fim, antes de passarmos ao próximo tópico, vale a pena analisarmos a

utilização de uma expressão bastante recorrente nas entrevistas, utilizada por dez dos

onze entrevistados. Essa estratégia foi utilizada em todas as entrevistas no momento em

que o entrevistador realizou a pergunta “Quem são os cuidadores das residências

terapêuticas pra você?”, e consistiu em o entrevistado realizar a pergunta retórica:

“quem são os cuidadores?”.

Entrevistador - Certo. É... Quem são os cuidadores das

residências terapêuticas para você?

Paula - Quem são o que: pra eu descrever cada um ou de uma

forma geral? (Paula, 29 anos, ensino superior completo

(psicologia), atua na residência feminina).

Entrevistador (E) - Certo. É... Quem são os cuidadores das

residências pra você?

Roberta (R) - Quem são? São... Tu quer saber em que sentido?

(E) - No sentido geral.

(R) - No sentido geral? (risos) Quem são os cuidadores...

(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de

enfermagem), atua na residência feminina).

Entrevistador - É... Quem são os cuidadores das residências

terapêuticas pra você?

Silvana - Rapaz... Cuidadores? (risos) (Silvana, 28 anos, ensino

médio completo (técnica de enfermagem), atua na residência

feminina).

Entrevistador - É... E quem são os cuidadores das residências

terapêuticas pra você?

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Marcos - Quem são os cuidadores? (Marcos, 32 anos, ensino

superior incompleto (enfermagem), atua na residência mista)

Entrevistador - E quem são os cuidadores das residências

terapêuticas pra você?

Claudia- Quem são os cuida... (risos) Quem são os cuidadores?

(Claudia, 22 anos, ensino superior completo (psicologia), atua

na residência feminina).

Entrevistador (E) - É... É a última pergunta é quem são os

cuidadores das residências terapêuticas pra você?

Bruna (B) - Quem são os cuidadores?

(E) - É, quem são os cuidadores. (Bruna, 30 anos, ensino

superior completo (pedagogia), atua nas duas residências).

Entrevistador (E) - Certo. O que são os cuidadores das

residências terapêuticas pra você?

Joana (J(- O que são?

(E) - O que é que são? De maneira geral, se alguém

perguntasse: o que é ser cuidador pra você? As características

do cuidador da residência? O que é que você responderia.

(J) - O que é ser cuidador? (Joana, 36 anos, ensino médio

completo, atua na residência feminina)

Entrevistador (E)- É... Então, a próxima pergunta é: quem são

os cuidadores da residência terapêutica pra você? (duas

moradoras se aproximam e pedem cigarro, e Gisele pede para

elas esperarem, que tá quase acabando e que se elas ficarem lá

vai demorar mais ainda)

Gisele (G) - Sim, o que foi?

(E) - É...

(G) - O que era os cuidadores...

(E) - Quem são os cuidadores das residências terapêuticas pra

você?

(G) - Hmmm... Pra mim, né? Pro pessoal, não. (Gisele, 28 anos,

ensino superior completo (psicologia), atua na residência

feminina).

É interessante observar o efeito produzido pelos entrevistados a partir da

utilização da pergunta retórica “quem são os cuidadores?”. Essa pergunta foi utilizada

pelos entrevistados como uma forma de produzir dois efeitos.

Em primeiro lugar, essa pergunta serviu para os entrevistados categorizarem os

cuidadores de maneira mais ampliada ou de maneira mais focada: ou, como diz Paula, a

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pergunta serviu para os entrevistados saberem se descreveriam “cada um ou de uma

forma geral”.

Em segundo lugar, a utilização da pergunta retórica permitiu aos entrevistados

saberem, de maneira mais específica, o que o entrevistador gostaria de saber, como se

eles dissessem: “me diga o que você quer saber mais especificamente para que eu saiba

como lhe responder”.

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7. DESCREVENDO O SERVIÇO: AS DIFICULDADES DE TRABALHAR COMO

CUIDADOR

A maioria dos cuidadores mencionou dificuldades nos primeiros dias de trabalho

nos SRTs, à exceção de uma cuidadora, que afirmou não ter vivenciado nenhuma

dificuldade.

Foi muito complicado no início, porque assim, eu não era

acostumada, não sabia o que era, né? Logo nos primeiros dias

assim, quando eu cheguei, era chorando, o tempo todo, porque

eu me deparei com coisas assim, que eu nunca tinha visto em

canto nenhum (Gisele, 28 anos, ensino superior completo

(psicologia), atua na residência feminina).

Tiago (T) - Mas inicialmente foi muito difícil porque os salários

atrasavam. E atrasava dois, três meses. E a gente se incomodava

com isso, até pela própria necessidade de subsistência.

Entrevistador (E) - Humrum.

(T) - Isso aí mexia com a gente também. Dava raiva, dava

desânimo. A gente pensava em parar. Mas sempre havia alguém

incentivando para que a gente não desistisse diante do desafio

que é o serviço e da importância que é o cuidado. E a gente aí

foi prosseguindo, né? Até que as coisas mudaram e aí veio a

oportunidade de fazer o concurso. Nós participamos desse

concurso. E, tivemos a felicidade de passar nesse concurso. E

hoje somos funcionários públicos dentro desse serviço (Tiago,

42 anos, ensino médio completo, atua na residência mista).

Entrevistador (E) - Certo. É... Me fala um pouco, então, agora

sobre tua trajetória dentro das residências, como é que é, como

é que foi e tá sendo tua passagem dentro das residências?

Roberta (R) - No começo foi mais difícil.

(E) - Foi?

(R) - Foi. Foi bem mais difícil, eu quase não me adaptava, achei

assim... Pedia até em pedir... Pensei em pedir demissão. Aí

depois eu fui agüentando, fui agüentando, me acostumei, mas

no começo foi muito difícil. Primeiro que no hospital, assim,

você tá lá toda hora, você tem um médico de plantão, você tem

pra onde você correr, apesar de que o CAPS aqui é bem

pertinho.

(E) - Humrum.

(R) - Só que... É mais dificultoso, ai você tem que sair, tem que

ir pro médico, tem a dificuldade de você sair com elas de

ônibus, sair com elas na rua, de, de táxi. Ai é difícil, né?

(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de

enfermagem), atua na residência feminina).

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Segundo Gisele, a falta de experiência na área de saúde mental tornou o início de

suas atividades no SRT “complicado” pois, como ela mesma afirma, “não era

acostumada, não sabia o que era”. Enfatizando seu relato, ela afirma que, ao começar a

trabalhar como cuidadora, vivia “chorando, o tempo todo”, devido a ter se deparado

“com coisas assim, que eu nunca tinha visto em canto nenhum”.

Assim como Gisele, Tiago também afirma que o início “foi muito difícil”.

Porém, ele utiliza um argumento diferente para justificar as dificuldades que ele

encontrou: ao contrário de Gisele, ele afirma que as dificuldades ocorreram “porque os

salários atrasavam”, durante um longo período de tempo, como “dois, três meses”.

Segundo o entrevistado, esse atraso no pagamento dos salários “incomodava”, causando

“raiva” e “desânimo”, levando-os a pensar em “parar”.

No entanto, “sempre havia alguém incentivando” os cuidadores para que eles

não desistissem “diante do desafio que é o serviço e da importância que é o cuidado”. E

foi pelo fato de persistirem que participaram do concurso, no qual tiveram a “felicidade

de passar” e se tornarem “funcionários públicos dentro desse serviço”.

Roberta também afirma que “no começo foi mais difícil”. A utilização da

expressão “mais” nessa sentença sugere, implicitamente, que o exercício do trabalho no

serviço continua difícil, embora não tão difícil quanto no começo.

Logo em seguida, a entrevistada enfatiza a sua dificuldade inicial ao reafirmar

que “foi bem mais difícil”, que “quase não me adaptava”, sendo que tal fato fez com

que ela pensasse “em pedir demissão”. As expressões supracitadas foram utilizadas pela

entrevistada com o objetivo de construir a imagem de que o trabalho dos cuidadores é

um trabalho difícil, que exige muito do profissional.

Posteriormente, a cuidadora compara o SRT ao hospital. Para ela, no hospital é

mais fácil porque, além de “você tá lá toda hora”, existe o auxílio de outros

profissionais no exercício do trabalho: “você tem um médico de plantão”. Isso não

aconteceria nos SRTs, apesar de existir médico no CAPS e ele ser “bem pertinho”.

No entanto, apesar do CAPS ser “pertinho”, ela afirma que “é mais dificultoso”

encontrar suporte nessa instituição, e “ai você tem que sair, tem que ir pro médico, tem

a dificuldade de você sair com elas de ônibus, sair com elas na rua”.

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Como já afirmamos, uma única cuidadora apresenta um relato diferente dos

supracitados, afirmando que ela não enfrentou dificuldades no começo de suas

atividades no SRT.

Meus primeiros dias foram ótimos. Fui bem aceita por elas,

tanto na residência feminina quanto na residência mista. E eu

fui bem aceita. Não sei também se é porque eu sou uma pessoa

muito comunicativa. Eu falo demais (risos) Converso com elas,

bastante. E... A comunicação também ela requer muita coisa,

né? Porque através da comunicação você termina conhecendo

um pouco a vida deles, né? O que eles sentem, assim... O que

eles... Falam, né? Aí a gente vai pegando aquela afinidade

(Bruna, 30 anos, ensino superior completo (pedagogia), atua nas

duas residências).

A entrevistada afirma que seus “primeiros dias foram ótimos”, sendo “bem

aceita” tanto na “residência feminina quanto na residência mista”. Para explicar essa

ampla aceitação, utiliza o argumento de que ela é uma “pessoa muito comunicativa”,

que conversa “com elas, bastante”. Para ela, a comunicação seria importante porque

através dela você conhece “um pouco a vida deles” ou , então, você descobre “o que

eles sentem” e eles acabam falando. Teria sido através dessa comunicação que ela foi

construindo uma “afinidade” com os moradores.

Outro tópico de interesse em relação aos SRTs que são discutidos em estudos já

publicados é a questão da capacitação que os cuidadores receberam para iniciarem suas

atividades.

No que diz respeito a esse assunto, os cuidadores classificaram a capacitação

recebida, de maneira geral, como um treinamento que deixou a desejar, mas também

existiram cuidadores que afirmaram que a capacitação foi “válida”, bem como alguns

cuidadores afirmaram que não receberam orientação por terem sido contratados após a

realização do concurso.

Entrevistador (E) - É, eu queria, se tu pudesse falar agora um

pouquinho mais sobre o treinamento que vocês receberam.

Como é que foi esse treinamento?

Gisele (G) - Esse curso...

(E) - Esse...

(G) - Esse curso introdutório, né? Que eu tô falando...

(E) - Esse curso introdutório.

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(G) - Bem, esse curso introdutório foi, na verdade, um... Deixa

eu dizer pra tu mais ou menos... Não sei o que as meninas

falaram, mas... Eu acho que, na verdade, esse curso introdutório

foi um, uma semana de massacre (ênfase) para ver quem

agüentava, assim... Uma semana pra ver quem agüentava ficar,

né? Porque não teve nada... (...) É, aí no curso introdutório

primeiro tem a prova, né? Depois teve esse curso que é tipo

um... Pra quem agüenta, realmente, porque na verdade ele não,

não era nada, não. Não fizeram nada.

(E) - O que foi que eles fizeram, então?

(G) - Não, eles mostraram, eles tinham um... Tinha um, teve

um, foi uma aula, assim, teve um psiquiatra, que na verdade não

falou muito nem sobre as medicações, assim... Se a gente pegar

uma bula de medicamento eu acho que sabe mais um

pouquinho. Passaram dois filmes, aquele Bicho de 7 Cabeças,

que passa constantemente na televisão, falou um pouquinho

sobre o filme... Assim, olhe, não... Aquilo ali foi cansativo, mas

não teve nada de bom ali, não. Não passou nada, tô dizendo pra

você, algumas pessoas que passaram no concurso foram

cuidadores, também, que passaram no, no, na prova, né?

Inicialmente, e foram pro curso introdutório. Porque depois do

curso introdutório tinha uma prova, porque o curso introdutório

era pra fazer uma prova, ainda. E tinha que somar com a nota

do concurso, a nota da primeira prova, né? E junto com essa

nota do curso introdutório, aí dividia por dois.

(E) - Aí essa era a nota final?

(G) - Porque... É, a nota final.

(E) - Humrum.

(G) - O curso introdutório era, na verdade, tipo um... Umas

aulas que a pessoa tinha que fazer uma prova depois pra somar

e dividir por dois, aí dava uma nota final. Era isso. Mas assim, a

prova... Olhe... Nem adianta falar, porque... Sinceramente, viu?

As pessoas que, que... Pronto, aí deixa eu dizer, os cuidadores

que conseguiram passar na prova e tavam lá no curso

introdutório foi quem ajudou mais a gente, foi o que eu tava

falando antes. Que falaram da experiência delas aqui, e, muitas

vezes, ficavam falando na sala de aula, né? Sobre a experiência

na residência terapêutica. Muitas vezes uma psicóloga, ou quem

tava dando aula na hora, é... Falava alguma coisa, ela dizia:

“Não é assim que tá acontecendo lá, não. Não é assim que

acontecem lá, não.” A gente tem que fazer junto mesmo. Muitas

vezes, tem que fazer com eles, porque na residência, é, muitas

vezes ele não quer fazer... E vai ficar a casa fedendo? Não sei o

que...” Tá entendendo? Aí... Não ajudou muito não, aquele

curso introdutório não ajudou muito, não. Se fosse uma

capacitação, onde o que eu tô dizendo, num caso desse, de, de

(moradora com epilepsia), que tem um problema epiléptico, aí a

gente vai pra uma casa que tem uma moradora que tem

epilepsia, eu vou pra uma casa, não sei nem o que é epilepsia

direito. Que tipo de procedimento eu vou fazer quando a

criatura tiver uma crise? Olhe, quando essa mulher teve uma

crise, eu não sabia nem como fazer. Aí quando ela teve uma

crise, eu, eu fiquei louca, menino. Eu cheguei em casa, no outro

dia eu tava com isso aqui todo dolorido, porque eu me joguei

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em cima dela, botei meu corpo. Porque ela começa a se debater,

eu sabia que tinha que colocar ela de lado, eu já tinha visto, eu

vi... Acho que foi na televisão, tinha que colocar a pessoa de

lado e colocar a cabeça numa... Numa almofada, né? Coloquei

meu corpo todinho segurando ela. No outro dia eu tava

completamente quebrada. Assim, liguei pro SAMU, o SAMU

graças a Deus veio e, assim, desde que ela chegou a gente só

vive chamando o SAMU. É o tempo todinho tendo crise, aí se

tivesse uma capacitação mesmo, mesmo (ênfase), daquela

capacitação adequada, que a pessoa: “vai ao psiquiatra?”

Pronto. Vai chegar o psiquiatra, a pessoa vai, orienta a gente,

como é que a pessoa pega o prontuário... Homem, não tem isso

não. Não valeu de nada aquela, aquela capacitação, não, aquele

curso introdutório. Foi isso que teve. A gente, entre aspas, uma

“recepção”, porque a gente é lotado no CAPS, né? A gente é

lotado no CAPS, o CAPS teve uma, uma recepção, assim,

explicou, na verdade, mais ou menos o que era uma residência

terapêutica, mas a gente já sabia mais até do que eles mesmo,

porque o cuidador explicou pra gente o que era (Gisele, 28

anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência

feminina).

Ao ser solicitada a relatar como foi o “treinamento” que receberam, a

entrevistada modifica o termo utilizado pelo entrevistador, denominando agora de

“curso introdutório”. Ela afirma que “esse curso introdutório”, na realidade, foi “uma

semana de massacre” para “ver quem agüentava ficar”, até porque “não teve nada”.

Em seguida, ela reafirma a idéia de que o “curso é tipo um... Pra quem agüenta,

realmente, porque na verdade ele não, não era nada, não. Não fizeram nada”. Em seu

discurso, então, a entrevistada constrói a imagem de que o referido “curso” foi utilizado,

pela gestão, para massacrar os trabalhadores, numa verdadeira prova de resistência para

ver quem agüentava ficar até o final e receber o prêmio de se tornar servidor público.

Em seguida, o entrevistador questiona “o que foi que eles fizeram” no curso

introdutório? Ao que a entrevistada responde utilizando expressões que objetivam

continuar desqualificando esse “curso”.:ela relata que teve uma “aula” com um

psiquiatra, o qual nem “falou muito nem sobre as medicações” e que “se a gente pegar

uma bula de medicamento eu acho que sabe mais um pouquinho”.

Ela afirma que “passaram dois filmes”, sendo que um foi o “Bicho de 7

Cabeças”, do qual ela desdenha afirmando que “passa constantemente na televisão”. E,

ainda no sentido de pintar um quadro de “massacre”, ela afirma que “foi cansativo”, não

teve nada de bom”, “não passou nada” e que ainda foram submetidos à realização de

uma prova.

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Vale a pena observar como a cuidadora também utiliza expressões que buscam

desqualificar a realização da referida “prova”. Para tanto, ela afirma, sobre a prova, que

“olhe... Nem adianta falar, porque... Sinceramente, viu?”. As expressões utilizadas, em

nossa cultura, consistem em uma maneira do falante não abordar as minúcias do assunto

desqualificado, como se o assunto se tornasse, a partir da utilização da expressão

“sinceramente, viu”, algo negativo.

Gisele continua, então, afirmando que o curso foi ineficaz, posto que foram “os

cuidadores que conseguiram passar na prova e tavam lá no curso introdutório” que

“ajudou mais a gente”, falando da “experiência delas”, compartilhando o saber-fazer

que haviam construído, assim como também questionavam os palestrantes, dizendo que

“não é assim que tá acontecendo lá, não”.

A seguir, ela exemplifica o despreparo causado pela falta de uma “capacitação”

através do caso da moradora que é portadora de epilepsia, afirmando que o que ela

aprendeu sobre epilepsia não foi repassado pelos profissionais da gestão, mas que, isto

sim, ela viu na “televisão”.

No próximo momento, ela exemplifica como seria uma verdadeira

“capacitação”. Para tanto, ela cita o caso de uma moradora que necessita ir ao

“psiquiatra”. Nesse caso, segundo a cuidadora, o psiquiatra deve orientar os cuidadores

na maneira “como é que a pessoa pega o prontuário”, mas que isso não existiu.

Por fim, ela relata que os cuidadores tiveram uma recepção no CAPS e que,

nesse momento, lhes foi explicado o que era uma residência, mas eles já sabiam até

mais do que a gestão sobre o funcionamento da residência, pois já haviam sido

informados pelos antigos cuidadores do trabalho desenvolvido no SRT.

Assim como Gisele, Tiago também descreve com termos negativos o

treinamento recebido pelos cuidadores.

Entrevistador (E) - É... Então, você recebeu algum treinamento?

Tiago (T) - Olha, treinamento foi muito pouco. Nós recebemos

uma capacitação no início da residência, que foi uma

capacitação aí de apenas algumas horas, eu não lembro nem

mais a duração de horas, só sei que foi uns dois ou três

encontros que passaram o modo que a gente ia trabalhar em

linhas gerais. Mesmo depois do concurso, aliás, no período do

concurso foi obrigatório uma capacitação de uma semana. Mas

também muito vaga. Pra gente que já tinha passado pelo início

do processo, a gente tava mais rico no aprendizado, mas pra

quem iria entrar a gente via que era uma coisa que... Não se

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podia dizer que era uma capacitação, porque não tratava bem do

dia a dia (incompreensível) era uma coisa muito teórica

(E) - Humrum.

(T) - Longe daquilo que a gente ia viver no dia a dia.

(E) - Como foi então, assim... Como foi pra tu, no caso, ver...

Você já tava no serviço, como contratado, depois foi pro

concurso, né?

(T) - Isso. Exatamente.

(E) - Como é que foi pra tu, tá dentro do, do, dessa segunda

capacitação e ter vivenciado, já ter experiência do dia a dia?

Como é que tu percebeu? Assim, o que foi repassado nessa

capacitação, nesse treinamento?

(T) - Vê só: eu consegui, teoricamente, aprender mais algumas

coisas, viu? Que a gente sempre aprende quando está aberto pra

isso.

(E) - Humrum.

(T) - Mas a prática ela era muito mais valiosa porque eu estava

ali no dia a dia com os pacientes, sentindo a necessidade deles,

sentido que eu precisava, também, avançar. Então, o curso, ele

não fornecia aquilo que a gente precisava, o algo mais que a

gente precisava. Mas valeu a pena porque, repito, teoricamente

nos deu alguma coisa a mais. Agora poderia ser bem melhor,

né? Se eles olhassem aquelas pessoas que estavam se

candidatando ao serviço como, como realmente num

treinamento, né? Que não foi um treinamento. Foi mais um

período de informação (Tiago, 42 anos, ensino médio completo,

atua na residência mista).

Tiago inicia seu discurso afirmando que o “treinamento foi muito pouco”. Para

legitimar esta afirmação, ele relata que receberam uma “capacitação no início da

residência”19

, a qual durou “apenas algumas horas” e foi realizada em “dois ou três

encontros”, nos quais foi repassado a “o modo como a gente ia trabalhar em linhas

gerais”.

Em seguida ele afirma que, “no período do concurso foi obrigatório uma

capacitação de uma semana”, a qual foi “também muito vaga”. No entanto, para “quem

já tinha passado pelo início do processo”, ou seja, para os cuidadores contratados que

foram efetivados pelo concurso e que estavam “mais rico no aprendizado”, essa

capacitação não fez muita diferença. Para os novos cuidadores, que entraram a partir do

concurso, “não se podia dizer que era uma capacitação, porque não tratava bem do dia a

dia” pois “era uma coisa muito teórica”, “longe daquilo que a gente ia viver no dia a

dia”.

19

Vale a pena ressaltar que Tiago atuou nos SRTs tanto como contratado como concursado e que, nesse

momento, ele se refere à capacitação que recebeu enquanto atuava como contratado.

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O entrevistador questiona, então, como foi para Tiago ter participado das duas

capacitações, ao que ele responde que ele conseguiu “teoricamente, aprender mais

algumas coisas” na segunda capacitação, pois “a gente sempre aprende quando está

aberto pra isso”. Mas, segundo o cuidador, a capacitação não valeu tanto quanto a

experiência prática que o mesmo já possuía, pois “a prática era muito mais valiosa

porque eu estava ali no dia a dia com os pacientes, sentindo a necessidade deles”.

Em seguida, ele modera seu discurso, afirmando que “teoricamente nos deu

alguma coisa a mais”, mas que “poderia ser bem melhor” se a gestão tivesse olhado

“aquelas pessoas que estavam se candidatando ao serviço” como “num treinamento” de

verdade. Pois, para ele, “não foi um treinamento”.

Assim como Tiago, Roberta também participou da capacitação nos dois

momentos: como contratada e como concursada.

Entrevistador (E) - Você recebeu algum treinamento, caso sim

fale sobre esse treinamento.

Roberta (R) - Recebi. Recebi. Depois de... Assim que eu entrei

a gente teve um treinamento, passamos uma semana tendo um

treinamento, na própria residência, na primeira vez que eu fui

contratada. E como contratada a gente teve uma reunião lá no

Lessa de Andrade, passamos uma semana também tendo um

curso, até certificado a gente tem.

(E) - Como foi esse curso assim?

(R) - Foi bem proveitoso.

(E) - Foi?

(R) - Foi.

(E) - Tu lembra mais ou menos o que foi debatido, assim? Ou

alguma coisa, qualquer coisa que tu lembre da época? Tu

lembra alguma coisa?

(R) - Lembro. Lembro, a gente teve psicopatologia, a gente

teve... Administração de medicação, foi muita coisa, foi muito

provei... Faz muito tempo, visse? Foi bem (ênfase) legal.

(E) - Foi uma semana, que tu falou?

(R) - Foi uma semana.

(E) - Foram todos os, os...

(R) - Todos os cuidadores.

(E) - E da segunda vez?

(R) - Da segunda vez a gente teve uma semana. Nós, foi assim,

continuação do concurso. Teve um curso introdutório, teve um

concurso introdutório, foi a continuação do concurso.

(E) - Como assim?

(R) - A gente passou, fez a prova, a primeira prova, aí

selecionaram três vezes o número de vagas, daí foi que ficou.

Aí a gente chegava nesse curso, chegava de sete da manhã, aí,

acho que era umas seis horas da noite a gente largava, tinha

horário de almoço. Aí se você chegasse atrasado, era bem rígido

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mesmo, você já perdia o concurso, já tava eliminado (Roberta,

47 anos, ensino médio completo (auxiliar de enfermagem), atua

na residência feminina).

Roberta afirma que “como contratada” ela recebeu “um curso” no qual ela

ganhou “até certificado”. No entanto, ao ser questionada sobre como foi o curso, ela

tentou manejar o discurso numa tentativa de mudar o foco da entrevista. Para tanto, ela

respondeu à pergunta afirmando apenas que “foi bem proveitoso”. O entrevistador,

então, utilizou a pergunta reflexiva “foi?” na tentativa de produzir um maior

detalhamento sobre o curso, ao qual ela manteve a mesma postura de responder de

maneira direta: “foi”.

Em seguida, como o entrevistador persiste questionando se ela possui alguma

lembrança do que foi debatido na época, ela afirma que “teve psicopatologia”,

“administração de medicação”. Nesse momento, ela justifica suas respostas diretas,

afirmando que “foi muita coisa” e que “faz muito tempo”.

Já em relação ao período em que ela se tornou concursada, ela afirma que teve

um “treinamento”, um “curso introdutório” de “uma semana” que foi, na realidade, a

“continuação do concurso”, pois ele teve a função de eliminar candidatos, pois “se você

chegasse atrasado, era bem rígido mesmo, você já perdia o concurso, já tava eliminado”.

Nesse sentido, seu discurso está em consonância com o discurso de Gisele, bem

como com o discurso de Claudia e de Marcos (apresentados a seguir), ambos afirmando

que o “curso introdutório” oferecido foi uma forma encontrada, pela gestão, para

eliminar o excesso de candidatos que passaram no concurso.

E na verdade era uma capacitação que poucas pessoas estavam

interessadas no sentido de aprendizagem, tavam ali porque se

faltasse tava fora do concurso. Então é isso, né? O que me

chama atenção é que não tem uma manutenção (ênfase),

digamos assim, desses cuidados. Não se tem mesmo. Né? Em

dois anos eu nunca fui pra uma, uma capacitação, né? Não

reuniões pra discutir... Tô falando capacitações, que eu digo o

tempo inteiro: como é que a gente tá aqui e não sabe trabalhar

com primeiros socorros? É preciso, que acontece, né? Como é

que a gente tá aqui e não sabe efeito de medicações? Como é

que a gente tá aqui e isso acontece de bolo em outras

residências, eu vejo até coisa pior, né? Eu digo que eu tenho a

sorte de trabalhar com pessoas que gostam do que fazem de

alguma forma e que tem essa sensibilidade, mas podia ser

pessoas que não tão nem ai que também estariam aqui do

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mesmo jeito (Claudia, 22 anos, ensino superior completo

(psicologia), atua na residência feminina).

Entrevistador (E) - Como foi pra você a entrada na instituição?

Como foi o começo de tudo?

Marcos (M) - No começo eu já tinha uma idéia mais ou menos,

porque o concurso foi duas etapas aí teve uma etapa que foi a

primeira prova aí depois teve a outra etapa, que foi um curso

introdutório. Aí nesse curso introdutório, aí abrangeu muito a

área de residência terapêutica.

(E) - Humrum.

(M) - Aí pronto, aí a gente teve uma formação teórica, não de

prática, teórica, não prática, né? (...)

Entrevistador (E) - Humrum. Certo. É, então, você já falou um

pouco que recebeu treinamento, não foi? Foi. Tu pode falar pra

mim como é que foi esse curso? O que é que eles falaram, essas

coisas?

Marcos (M) - Esse curso e treinamento, quando a gente fez o

concurso, foi um curso, um curso introdutório, que também era

eliminatório.

(E) - Humrum.

(M) - Depois desse curso tinha que fazer uma prova, aí essa

prova era eliminatória. Esse curso falou, abordou essa parte,

assim, de, de, é... Crises psiquiátricas, momentos de crise, como

lidar com a crise.

(E) - Humrum,

(M) - É... Algumas medicações que eram tomadas, tem que

conhecer, conheci também alguns transtornos: esquizofrenia,

transtorno bipolar.

(E) - Humrum.

(M) - Aí falou muito essas coisas, assim. Como era o

comportamento de um paciente de residência terapêutica.

Abordou muito essa parte... No curso, né?

(E) - E... No aspecto prático? Que tu falou assim: eles

abordaram também?

(M) - Não, no prático, não. Esse curso foi só teórico, como era

eliminatório, foi só teórico. Não teve curso prático.

(E) - Humrum.

(M) - Teve curso teórico (Marcos, 32 anos, ensino superior

incompleto (enfermagem), atua na residência mista).

Claudia afirma em seu discurso que existiu uma “capacitação”, mas “que poucas

pessoas estavam interessadas no sentido de aprendizagem” e que, na realidade, elas

estavam “ali porque se faltasse tava fora do concurso”.

A seguir, ela questiona a inexistência de “manutenção desses cuidados”. Ela

exemplifica, então, a falta de investimento da gestão em capacitação com a questão dos

primeiros socorros e questionando “como é que a gente tá aqui e não sabe efeito de

medicações”? Em seguida, ela busca afastar a idéia de que ela e seus companheiros de

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trabalho são pessoas sem interesse pelo trabalho. Ela teria tido “a sorte de trabalhar com

pessoas que gostam do que fazem de alguma forma e que têm essa sensibilidade”.

Marcos também afirma que o concurso constou de duas etapas: “teve uma etapa

que foi a primeira prova aí depois teve a outra etapa, que foi um curso introdutório. Aí

nesse curso introdutório, aí abrangeu muito a área de residência terapêutica”. Em

consonância com o discurso construído por Tiago, Gisele e Claudia, ele também afirma

que “teve uma formação teórica, não de prática”.

E assim como Gisele, Roberta e Claudia, Marcos também afirma que o “curso

introdutório” “também era eliminatório”. Já em relação ao conteúdo ministrado no

“curso”, ele relata que os temas abordados foram “crises psiquiátricas”, “como lidar

com a crise”, “medicações” e “transtornos”.

Paula foi outra cuidadora que relatou predominantemente aspectos negativos

sobre o “curso preparatório”.

Entrevistador (E) - Você recebeu algum treinamento? Caso

tenha recebido, me fale um pouco sobre ele.

Paula (P) - Não. Na verdade, o concurso constou de duas

etapas: a primeira foi prova escrita, a segunda seria um curso

preparatório mas que não foi, foi só o mesmo assunto que era da

coisa, assim a gente não teve nenhuma preparação no sentido

assim, de dizer a gente, tanto é que teve muita confusão porque

assim muita gente achava, entrou achando que ia exercer a

função de psicólogo, de um acompanhante terapêutico, de

alguma coisa. Então houve muita confusão nesse sentido, que

até hoje a gente ainda sente por não ter tido essa preparação,

então, muita gente, eu já tinha esse conhecimento que a gente,

enquanto cuidador, a gente podia, é, limpar um chão, fazer uma

comida, então muita gente não tinha essa clareza e houve muita

confusão por a gente não ter sido preparado. Então a gente,

assim, assumiu já de cara. A preparação que a gente teve foi o

que? Da turma antiga passar pra gente, que na verdade, não

tinha muito o que passar. Eles tavam muito revoltados porque

tinham perdido o lugar e não houve, a gente foi aprendendo na

prática, como a gente aprende ainda até hoje.

(E) - Aprendendo na prática?

(P) - No dia-a-dia, não, a gente assim, não teve nenhuma

preparação. No dia-a-dia a gente ia aprendendo, tinha situações

que pegava a gente, a gente não sabia como fazer, ligava pra

técnica (técnica de referência do CAPS), a técnica dava esse

suporte. Mas assim, preparação assim, no sentido da gente ter

um período, um tempo, uma pessoa orientando, a gente não

teve. De acordo com o momento, quando ia surgindo a coisa era

que a gente ia sendo orientado, como é até hoje (Paula, 29 anos,

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ensino superior completo (psicologia), atua na residência

feminina).

Em seu discurso, Paula afirma que ela não recebeu treinamento. Para tanto, ela

justifica seu posicionamento “a segunda” etapa do treinamento “seria um curso

preparatório, mas que não foi”. Segundo seu relato, a falta de uma orientação inicial no

curso preparatório provocou uma confusão entre os concursados, pois “muita gente”

“entrou achando que ia exercer a função de psicólogo, de um acompanhante

terapêutico”.

Ela também afirma que já tinha “conhecimento” de que “enquanto cuidador, “a

gente podia, é, limpar um chão, fazer uma comida” e que existia “muita gente que não

tinha essa clareza” devido à falta de capacitação.

Para ela, a preparação que os cuidadores tiveram foi o repasse informal,

realizado pelos cuidadores contratados, das atividades que vinham sendo desenvolvidas.

E que também “não tinha muito o que passar”, pois os antigos cuidadores estavam

“muito revoltados porque tinham perdido o lugar”. Por isso ela afirma que foi

“aprendendo na prática”, “no dia-a-dia”, na medida em que surgiam “situações que

pegava a gente”. Nesses casos, o suporte era realizado pela técnica de referência do

CAPS “de acordo com o momento, quando ia surgindo a coisa”.

Já Silvana afirma que o curso foi bom, mas que deixou a desejar em alguns

aspectos.

Silvana (S) - A gente entrou assim: quando eu entrei, a gente

não ficava só, a gente ficava com outro cuidador que já tava e a

gente ficava sempre com esse cuidador acompanhando pra ver

como era o sistema e tal, como funcionava. E depois, logo em

seguida, a gente teve esse curso de cuidador. A gente até

completar, um certificado, né? Aí ajudou muito, deu pra

esclarecer muitas coisas, mas muitas coisas ficaram ainda

obscuras, né? Assim...

(E) - Como assim?

(S) - Assim, o modo como tratar, por que eles, a gente tinha

muita dúvida com respeito a medicamento, como a gente tem

até hoje. Pra que serve cada medicação? Eles tomam inúmeras

medicações. E assim, as mais importantes eram faladas pra que

servia, como agia no organismo, se tinha, é, se causava algum

problema, né? E tal... Que tem também aquela questão do, do

paciente e medicações que impregnam, então a gente tem que

saber o que era impregnação... E aí foi relatado algumas coisas,

questão de medicação pra gente, outras a gente pesquisou, tem

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umas que até hoje a gente ainda pesquisa pra saber o que tem, o

médico mudando de medicação, né? Agora em relação como

lidar com o paciente, a gente aprende no dia a dia, porque o que

se fala, o que se falou lá, a teoria é uma coisa, na prática a

situação é outra. Então na prática, a gente aprendeu no dia a dia,

mesmo porquê o, a, essa palestra que a gente teve, esse curso,

não ajudou essas coisas todas, não. Foi no dia a dia que a gente

foi aprendendo, é por isso que eu falo que ficou algumas coisas

em aberto assim, pra gente, porque não, não fechou, a gente até

falava que precisava de ter outros cursos, outras palestras, que é

pra gente conseguir entender melhor o paciente, né? Aí por isso

que eu falo que precisaria ter, que... Teve o que? Dois anos, um

ano e pouco, faz quatro anos, vai fazer cinco anos que eu tô

aqui, com tudo, contando com contrato, com tudo, então faz

muito tempo que não se tem. O pessoal do concurso que entrou,

né? Nunca teve assim, uma palestra para tirar alguma dúvida.

(E) – No caso, tu tá falando, é, foi no primeiro momento ou

nesse segundo momento esse treinamento que vocês tiveram?

(S) - Não. Foi no primeiro momento. Foi no início, quando só

tinha era contrato.

(E) - Certo.

(S) - Que teve. Aí depois desse tempo pra cá não se teve mais.

(E) - Certo.

(S) - Que era pra ter, né? Porque a gente tem que ter um apoio,

né? Pra tirar nossas dúvidas e a gente tem uma reunião aqui na

residência, que as vezes é uma vez no mês, as vezes fica um,

dois meses sem ter reunião, pra gente esclarecer os problemas

da residência, o que tá acontecendo, morador que não tá bem,

entendeu?

(E) - Humrum.

(S) - Mas aí eu acho que precisava de uma palestra com

psiquiatras, pessoas que, né? Pudessem falar pra gente o que a

gente faz pra entender o paciente, que tem paciente que é difícil

a gente entender o que ele quer, o que a gente pode fazer pra

mudar. Por exemplo, quando chegou, (diz o nome de uma

moradora), que é uma moradora novata, ela é muito na dela,

muito fechada, e a gente, ela só fala o que a gente pergunta. A

gente pergunta: “você jantou?”, ela diz “jantei”. Ela não

consegue manter um diálogo com a gente. Então a gente quer

mudar esse comportamento dela mas não sabe como (Silvana,

28 anos, ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua

na residência feminina).

Assim como em discursos supracitados, Silvana também afirma que os

cuidadores contratados foram responsáveis por repassarem as atividades realizadas aos

cuidadores concursados. Segundo ela, os cuidadores concursados não ficavam sozinhos

nos SRTs: “a gente ficava sempre com esse cuidador acompanhando pra ver como era o

sistema e tal, como funcionava”. Em seguida, ela diz que “a gente teve esse curso de

cuidador” “até completar, um certificado”.

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Para Silvana, esse processo “ajudou muito”, mas ficou aquém do desejado, posto

que “muitas coisas ficaram ainda obscuras” como, por exemplo, como “tratar” os

moradores e de dúvidas relacionadas a questão de “medicamento”.

Em relação ao medicamento, a cuidadora afirma que “as mais importantes”

foram “faladas pra que servia, como agia no organismo”, mas que sobre outras drogas

foram os próprios cuidadores que pesquisaram, sendo esse processo ainda bastante

comum pois o médico as vezes muda o medicamento prescrito e não repassa as

informações necessárias aos cuidadores.

No tocante a “como lidar com o paciente”, ela afirma que é um aprendizado

cotidiano, que “a gente aprende no dia a dia”, pois existiria, segundo a cuidadora e em

consonância com o discurso produzido por Tiago, uma dissonância entre a teoria e a

prática. Para ela, a “teoria é uma coisa” e “na prática”, no lidar com o paciente, “a

situação é outra”. Nesse sentido, é que ela enfatiza que “essa palestra que a gente teve,

esse curso, não ajudou essas coisas todas, não” e que “foi no dia a dia que a gente foi

aprendendo”. Em seguida, ela utiliza o momento de entrevista para cobrar da gestão

mais investimento em capacitação ao contabilizar, por exemplo, que “vai fazer cinco

anos que eu tô aqui” e que o “pessoal do concurso que entrou” nunca teve nenhuma

“palestra para tirar alguma dúvida”.

Posteriormente, ela adota um tom mais moderado em seu discurso ao afirmar

que no SRT existem reuniões “pra gente esclarecer os problemas da residência”, mas

que, ainda assim, tais reuniões são insuficientes. A cuidadora exemplifica, então, a

necessidade de uma melhor capacitação citando o caso da moradora que “só fala o que a

gente pergunta”, pois os cuidadores tentam modificar o “comportamento dela, mas não

sabe como”.

Já para Verônica, a capacitação, apesar de cansativa, foi bastante positiva.

Entrevistador (E) - Então, assim, você falou que você teve um

curso, né?

Verônica (V) - Foi durante uma semana.

(E)- Tu pode me falar assim, como foi esse curso, como foi essa

semana desse curso?

(V) - Essa semana foi assim: muito (ênfase) corrida, a gente

passava o dia lá. Cansativo demais. A gente almoçava por lá

mesmo, questão, na hora de almoço. E a gente tinha aula

durante o dia todo. E lá, lá você teve contato realmente com,

com pessoas que, como é que se diz, vive com a mão na massa,

né? Psiquiatra, psicólogo, né? Tem também as pessoas que já

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trabalhavam na residência que tinham passado, que também

ajudava ali também, numa conversa, numa dúvida, que pudesse

tirar. Eu gostei, foi muito válido o curso (Verônica, 40 anos,

ensino superior incompleto (biologia), atua na residência mista).

Segundo a entrevistada, o “curso” foi “cansativo demais” pois “a gente passava

o dia lá”, “tinha aula o dia todo”. No entanto, apesar de “cansativo”, foi no “curso” que

os cuidadores tiveram contato com quem “vive com a mão na massa”: “psiquiatra,

psicólogo”, além de ter o apoio das “pessoas que já trabalhavam na residência que

tinham passado”, o que tornou “muito válido o curso”.

Já Bruna, Fernanda e Joana afirmam que não receberam capacitação.

Eu não recebi nenhum treinamento, mas recebi orientações, né?

De como funcionava a residência. Se eram pacientes com

problemas neurológicos, tudinho. Então assim, eu sempre sabia,

mais ou menos, como era mais ou menos assim a residência,

antes de chegar, assim, pá, né? Aí a gente teve essa orientação,

pelo menos eu tive (Bruna, 30 anos, ensino superior completo

(pedagogia), atua nas duas residências).

Entrevistador (E) - É, então, você recebeu algum treinamento

pra trabalhar aqui?

Fernanda (F) - Não.

(E) - Não?

(F) - Porque já tinha experiência de psiquiatria, né? Que eu já

vinha de lá, aí pronto (Fernanda, 40 anos, ensino médio

completo (técnica de enfermagem), atua nas duas residências).

Entrevistador (E) - Você recebeu algum treinamento?

Joana (J) - Não.

(E) - Não?

(J) - Não. Tipo, eu tô como se fosse um, um... Tão me

ensinando ainda, eu não peguei assim, ainda não fiz nada

sozinha, né?

(E) - Certo.

(J) - As meninas que tão me passando todo o trabalho (Joana,

36 anos, ensino médio completo, atua na residência feminina).

Bruna relata que não recebeu “nenhum treinamento” mas que recebeu

“orientações” do modo de funcionamento da residência, “se eram pacientes com

problemas neurológicos”. Dessa maneira, ela afirma que já sabia “como era mais ou

menos assim a residência, antes de chegar”.

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Fernanda afirma que também não recebeu nenhum treinamento para atuar como

cuidadora mas, para ela, a falta de treinamento não fez tanta diferença pois ela “já tinha

experiência de psiquiatria”.

Joana, assim como Bruna e Fernanda, afirma que não recebeu treinamento ao se

tornar cuidadora. Segundo seu discurso, ela ainda estaria aprendendo o seu trabalho na

residência: “as meninas que tão me passando todo o trabalho”.

Consideramos, então, que tais discursos foram produzidos pelas cuidadoras pelo

fato de ambas estarem há pouco tempo no SRT, pois Bruna está há aproximadamente

três meses e Joana há uma semana. É interessante observar também a maneira pela qual

os discursos supracitados buscam minimizar a falta de capacitação das referidas

cuidadoras: todas afirmam que tiveram alguma forma de informação sobre o trabalho de

cuidador para atuarem nos SRTs, seja através “orientações”, de uma experiência prévia

em “psiquiatria” ou o “repasse” realizado por outros cuidadores.

Em relação à questão “o que é a residência terapêutica?”, a maioria dos

cuidadores mobilizou a imagem do hospital psiquiátrico em suas respostas, seja a partir

da contraposição entre o SRT e o hospital psiquiátrico ou afirmando que são

reproduzidas, na residência, algumas práticas tradicionais utilizadas nos hospitais.

Entrevistador (E) - É... Pra você, o que é a Residência

Terapêutica?

Roberta (R) - A Residência Terapêutica? Residência. Pra mim

ou pra elas?

(E) - Pra você.

(R) - Pra mim a residência terapêutica é o meu trabalho e que

assim, eu me identifico bastante, até porque eu já tenho uma

experiência, treze anos de psiquiatria, mas assim, o vínculo que

a gente pega é diferente do vínculo de hospital. A gente pega

um vínculo com elas, assim, é como se fosse uma família, a

segunda família (risos). Tem assim, a gente já teve duas que

faleceram e assim, as duas eram muito apegadas, (diz o nome

da moradora) era muito apegada com a gente tudinho. Aí

faleceram, pra gente foi como se fosse uma pessoa da família

(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de

enfermagem), atua na residência feminina)

É, que aqui eles são, aqui é uma vida, né? Aqui é a casa deles,

aqui eles fazem serviço, lá [no hospital psiquiátrico] eles não

fazem, lá eles ficam mais assim, aprendendo. Lá eles ficam

mais aprendendo, assim, terapia, né? [uma moradora chama a

cuidadora mas ela não dá atenção] E aqui não, aqui eles fazem

comida, eles cuidam da casa, eles ajeitam roupa, estende, dobra.

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Essas coisas (Fernanda, 40 anos, ensino médio completo

(técnica de enfermagem), atua nas duas residências).

Pra mim, no início era... Como se fosse um mini-hospital, na

verdade. Um mini-hospital (...) Se eu for definir a residência

terapêutica eu defino como... Um...Um... Um espaço que o... De

convívio mais sociável do que um hospital psiquiátrico.

Entrevistador (E) - Humrum.

(G) - Tá entendendo? Que, se eu for preferir um hospital

psiquiátrico, que no início eu disse: é um mini-hospital, mas eu

prefiro uma residência terapêutica, entendeu? Porque aqui tem a

gente. Tem os cuidadores, sabe? Aqui elas podem receber uma

visita, uma visita de uma família, tem o vizinho... Aqui elas

conhecem todo mundo daqui, menino.

(E) - É?

(G) - Conhece até mais gente que eu. Passa aqui: “ô [diz o

nome de uma moradora], ô [diz o nome de outra moradora], não

sei o que...”, sabe? Conversam e riem e choram e a gente tá aqui

perto, se quiserem alguma coisa, tem aqui o telefone, ela entra

aqui, liga, sabe? Tem uma geladeira... Liga... Não sei se, não sei

se tu percebeu, mas a geladeira é aqui dentro porque elas, como

elas tomam muita medicação, elas acordam de madrugada e se a

gente, era ali a geladeira [apontando para dentro da casa], mas

elas comiam muito (ênfase) assim, o tempo todo,

compulsivamente, (incompreensível). Outra coisa que, tu já

percebeu, mas o cigarro é controlado, porque se a gente der

uma... Elas têm dinheiro, né? O dinheiro, tu sabe que eles

recebem uma verba mas, se a gente der... Acho que pode! Na

outra residência, lá é, a gente dá, tem gente que fica com a

carteira, tudinho. Mas se a gente der uma carteira, acaba em um

minuto. Um minuto, não. Em dez. Em dez minutos. Aí haja

dinheiro, né? (Gisele, 28 anos, ensino superior completo

(psicologia), atua na residência feminina).

Não, assim, eu acho lindo o projeto, eu acho muito bonito.

Sempre, assim, quando eu fiz o concurso, pensei mesmo, eu

digo assim, realmente... E eu entrei nesse sentido, de conhecer

mesmo, de ver como era que funcionava e tal, e acho muito

bonito. Agora assim... Lógico que por ser um projeto “novo”,

assim novo entre aspas, mas que ainda precisa muito melhorar,

assim. Mas que o projeto em si ele é muito bonito, assim... Tava

realmente precisando de um projeto desse, quer dizer, das

pessoas saírem dos hospitais, por que hospital não é lugar de

ninguém residir. Então, foi uma coisa que, eu acho...

Acrescentar, e isso veio a mudar a cabeça da gente, que até hoje

a gente ainda acha que... A gente ainda meio que ainda tá

engessado, que a gente ainda age como se tivesse num hospital,

como se... Essa relação de poder que a gente tem com os

moradores mas que isso, vez ou outra a gente ainda se pega

pensando, não, o tempo inteiro a gente ainda tá se

questionando: não, residência terapêutica não é isso, assim. A

gente tá o tempo inteiro fazendo com que eles façam sozinhos,

é... Vá para um banco sozinhos, vá fazer compras sozinhos, que

a residência, o papel é justamente esse, né? A gente dar sentido

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à vida deles, tornar eles singular mesmo, de cada um poder

decidir sobre a sua comida, sobre a sua roupa, onde quer

dormir, quer dizer... Não sei se você reparou, mas a casa é toda

enfeitada, porque é como eles querem: a cor do quarto, eles

escolheram, “eu quero colocar foto no quarto”. Então assim,

tudo foi pensado com eles. Então, assim, é legal a gente ver isso

assim, que no hospital todos... A gente até costuma dizer assim:

eles trouxeram fotos, dos hospitais, quando moravam lá. A

gente via foto de festa mesmo, todas tinham a mesma roupa, a

mesma estampa, quer dizer, como se fosse só mais um ali. E

hoje não. Assim, a gente faz aniversário de uma, uma diz onde

quer comemorar, a roupa que quer vestir, então assim cada

detalhe desse assim, que pra gente é insignificante, assim, pra

eles a gente vê uma coisa bonita, como eles se tornando seres

humanos e desejantes mesmo (Paula, 29 anos, ensino superior

completo (psicologia), atua na residência feminina).

Pra mim, eu vejo a residência terapêutica como um espaço

aonde as pessoas que são parte das residências, no caso os

usuários, os moradores, né? Eles podem continuar suas vidas,

principalmente naquilo que foi interrompido, né? A sua

liberdade, o seu direito de escolha, eles podem ter opções,

enquanto que, no lugar que eles vieram, provavelmente não

havia, essa liberdade de escolha, essa, esse leque de opções,

essa, podia acordar hoje e dizer: “eu vou fazer tal coisa sem

ninguém mandar que eu faça”, ou então pedir para ser realizado

um desejo seu. Uma residência terapêutica eu vejo isso, assim,

como um lugar de oportunidades. Oportunidades que antes

foram negadas (Tiago, 42 anos, ensino médio completo, atua na

residência mista).

Ao produzir seu discurso Roberta busca, inicialmente, localizar o ponto de vista

a partir do qual irá falar: “pra mim ou pra elas?”. Ao se certificar que seria o seu ponto

de vista que importava, ela afirma que a residência terapêutica é o seu “trabalho” e que

ela se identifica bastante, justificando tal identificação por já possuir uma “experiência”

de treze anos de psiquiatria”.

Nesse momento de seu discurso, ela diferencia o vínculo que é construído no

SRT com o vínculo construído no hospital psiquiátrico: ela relata que na residência os

vínculos são mais fortes do que os vínculos construídos no hospital psiquiátrico,

reforçando sua visão com a idéia de que os moradores do SRT são sua “segunda

família”.

Fernanda também compara, em seu discurso, o SRT a um hospital psiquiátrico.

Segundo ela, o SRT “é a casa deles”, “é uma vida” pois “aqui eles fazem serviço”:

“fazem comida, eles cuidam da casa, eles ajeitam roupa, estende, dobra”. Enquanto que

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no hospital psiquiátrico “eles não fazem”, “lá eles ficam mais aprendendo, assim,

terapia”.

Gisele, no início de sua entrevista, define o SRT como “um mini-hospital, na

verdade”, buscando confirmar sua opinião ao reutilizar a expressão, logo em seguida,

“um mini-hospital”.

Mais adiante, em sua entrevista, ela procura diferenciar as duas instituições ao

justificar a comparação do SRT a um hospital psiquiátrico. Para tanto, ela afirma que o

SRT é “de convívio mais sociável do que um hospital psiquiátrico” e que ela, na

verdade, prefere “uma residência terapêutica”, apesar de ter afirmando, “no início”, que

a residência “é um mini-hospital”.

A entrevistada afirma que uma das vantagens do SRT é “por que aqui tem a

gente. Tem os cuidadores”, bem como lá “elas podem receber uma visita”, “tem o

vizinho”. Ao relatar que “tem os cuidadores”, Gisele enfatiza que tais profissionais são

necessários para o bom desempenho do SRT. Já ao afirmar que “podem receber uma

visita” e que “tem o vizinho”, a cuidadora constrói a imagem do SRT como o de uma

residência normal, onde as pessoas podem receber suas visitas e manter contato com

seus vizinhos.

Ela reproduz diálogos de vizinhos com as moradoras: “ô [diz o nome de uma

moradora], ô, [diz o nome de outra moradora], não sei o que”, se referindo ao fato dos

vizinhos conversarem com os moradores como sujeitos normais, que “conversam e riem

e choram”; e os cuidadores, como bons prestadores de serviço, sempre estão “por

perto”, caso os moradores queiram “alguma coisa”, bem como permitem que os

moradores utilizem o telefone da residência.

No entanto, nesse momento de sua entrevista, ela busca justificar algumas

medidas restritivas nos SRTs. Segundo seu discurso, a “geladeira” fica dentro do quarto

do cuidador porque “elas acordam de madrugada” e “elas comiam muito”,

“compulsivamente”. Dessa maneira, a geladeira foi retirada da cozinha e colocada no

quarto do cuidador, onde permanece sob sua vigilância.

Ela afirma que “outra coisa” é que “o cigarro é controlado na residência

feminina porque “se a gente der...”. Buscando se posicionar como uma pessoa que

defende a liberdade dos moradores, ela afirma ser favorável à idéia dos moradores

gastarem a “verba” que recebem com cigarros, assim como exemplifica tal situação

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apresentando o caso da residência mista, onde os moradores podem ficar “com a

carteira, tudinho”.

Paula inicia seu discurso justificando as falhas que existem na política de saúde

mental em relação aos SRTs. A entrevistada acha “lindo o projeto”, mas entende que ,

por ser um “projeto novo” “ainda precisa muito melhorar”. Apesar das falhas, ela afirma

que “tava realmente precisando de um projeto desse”, um projeto que fizesse as

“pessoas saírem dos hospitais”, posto que “hospital não é lugar de ninguém residir”.

Ela também afirma que os cuidadores ainda agem como se estivessem “num

hospital”, fazendo referência a “relação de poder que a gente tem com os moradores”, o

que produz constantes questionamentos nos profissionais: “não, residência terapêutica

não é isso”.

Para ela, a função dos cuidadores é fazer “com que eles façam sozinhos”, é “dar

sentido à vida deles, tornar eles singular mesmo”. É nesse sentido que ela afirma que “a

casa é toda enfeitada, porque é como eles querem”, o que torna os moradores sujeitos

ativos no processo de gestão da casa: “tudo foi pensado com eles”.

Neste momento da entrevista, ela compara a qualidade de vida dos moradores no

SRT e nos hospitais, afirmando que nas “fotos” que os moradores trouxeram dos

hospitais podia se perceber que “todos tinham a mesma roupa, a mesma estampa”,

“como se fosse só mais um”, enquanto que “hoje não”: “a gente faz aniversário de

uma”, a aniversariante “diz onde quer comemorar, a roupa que quer vestir”.

Em seu discurso, Tiago afirma que “a residência terapêutica” é um “espaço” no

qual os moradores “podem continuar suas vidas, principalmente naquilo que foi

interrompido”: “o seu direito de escolha”. No SRT eles “podem ter opções”, enquanto

que no hospital psiquiátrico não haveria “essa possibilidade de escolha”, “esse leque de

opções”.

Para tornar mais factual a sua versão do SRT, o cuidador usa o discurso direto:

segundo ele os moradores, ao iniciarem o dia na residência, falariam “eu vou fazer tal

coisa sem ninguém mandar que eu faça”, ou eles poderiam até mesmo “pedir para ser

realizado um desejo seu”. Para ele, a residência seria um “lugar de oportunidades.

Oportunidades que antes foram negadas”.

Já outros cuidadores afirmam que a residência é um espaço de “possibilidades”,

no qual o morador poderá desenvolver sua autonomia.

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Claudia (C) - Pra mim a residência terapêutica é... É uma saída

muito interessante, muito importante pra esse movimento da

Reforma, que acho que é um espaço interessante, muito

importante, mas pouco investido, né? Eu acho que depois que

se tira do hospital, tirou do hospital. Já tá muito bom.

Entende? Então bota lá e... Deixa, né? E aí eu acho que perde

por isso, por essa falta de investimento depois que já é retirado.

Entende? Mas a residência terapêutica pra mim é um espaço

extremamente rico, extremamente rico mesmo. É um espaço de

n possibilidades, é um espaço muito interessante, pra vida de

cada morador e até dos cuidadores também, porque a gente

aprende mais do que, do que acha que vai aprender, né? Acha

que chega lá e vai ensinar, e vai, não, a gente aprende muito

todos os dias. Eu acho que é um espaço muito rico mas

infelizmente pouco investido, ao meu ver, muito (ênfase) pouco

investido mesmo.

Entrevistador (E) - Falta investimento em que sentido?

(C) - Falta de investimento que eu acho é no sentido de cuidado.

Cuidado com quem tá lá dentro em todas as partes, o cuidador e

o morador, entende? Agora assim, eu tô falando muito dessa

realidade... (Claudia, 22 anos, ensino superior completo

(psicologia), atua na residência feminina)

Entrevistador (E) - É... Pra você, o que é a residência

terapêutica?

Verônica (V) - O que é a residência terapêutica? Eu acho que é

um... Uma grande chance de você dar dignidade pras pessoas

que já levaram tantas... Nas costas, da sociedade. É... Como é

que eu posso dizer, assim? Preconceito, entendeu? Eu acho que

isso aqui é... É uma oportunidade. Você realmente... Dá, dá

condições pra pessoa pra uma pessoa pra ela se sentir bem, se

sentir amada, se sentir acolhida, né? Ter uma pessoa que possa

conversar, que possa contar, eu acho que residência é isso aqui,

é... Ter carinho com essas pessoas. E elas merecem, são gente,

merecem. Merecem respeito, merecem carinho, são pessoas que

já são assim, muito... Já nasceram com esse, né? Algumas

adquiriram, outras já nasceram assim, então já é difícil, né? Eu

acho que, você podendo amenizar, eu acho que é interessante,

muito válido (Verônica, 40 anos, ensino superior incompleto

(biologia), atua na residência mista).

Para Claudia, a residência “é uma saída muito interessante, muito importante pra

esse movimento da Reforma”, sendo que esse é um movimento “pouco investido”.

Segundo a cuidadora, “depois que se tira do hospital, tirou do hospital”, ou seja, “já tá

muito bom”, no entanto, tirar do hospital por si só não resolve a questão da

desospitalização e a Reforma perderia “por essa falta de investimento” depois que o

morador “é retirado” do hospital.

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Ela busca, também, se mostrar favorável à Reforma afirmando que “a residência

terapêutica pra mim é um espaço extremamente rico, extremamente rico mesmo”, “um

espaço de n possibilidades, é um espaço muito interessante, pra vida de cada morador e

até dos cuidadores”, pois “a gente aprende mais do que, do que acha que vai aprender”.

No entanto, após apontar os pontos positivos da Reforma, ela retoma a idéia de

que “é um espaço muito rico mas infelizmente pouco investido, muito pouco investido

mesmo”. Nesse sentido, ela busca enfatizar seu discurso, utilizando mais uma vez a

estratégia de repetir a expressão “pouco investido” acompanhada dos termos “muito” e

“mesmo”.

Ao ser questionada sobre o que seria essa falta de investimento, Claudia

responde que “é no sentido de cuidado”, “cuidado com quem tá lá dentro em todas as

partes, o cuidador e o morador”. Ao final do seu discurso, ela também explicita que ela

está falando da realidade do SRT no qual ela trabalha, ou seja, ela afirma que essa é

uma “realidade” específica daquela residência e que não pode ser transposta para todos

os SRTs.

Compreendemos, então, que a entrevistada utilizou esse momento de entrevista

para reivindicar que a gestão olhe os SRTs com um olhar mais cuidadoso: tanto para

com os moradores quanto para com os cuidadores.

Verônica também compartilha com a idéia de que o SRT é “uma grande chance

de você dar dignidade pras pessoas que já levaram tantas... Nas costas, da sociedade”,

que sofrem “preconceito”. O SRT seria uma “oportunidade” de oferecer condições “pra

uma pessoa pra ela se sentir bem, se sentir amada, se sentir acolhida”, de minimizar o

sofrimento dessas pessoas.

Já ao final desse trecho de seu discurso, Verônica se mostra receosa de utilizar

expressões que denotem preconceito com os moradores. Nesse sentido, ela utiliza

algumas sentenças inacabadas: “pessoas que já são assim, muito...”, “já nasceram com

esse, né?”, “algumas adquiriram, outras já nasceram assim, então já é difícil, né?”.

Para outros cuidadores, o SRT seria uma “residência normal”, “um lar pra

algumas moradoras”.

Entrevistador (E) - Pra você o que é a residência terapêutica?

Joana (J) - O que é que eu acho da residência terapêutica? É

uma residência normal, como uma qualquer, né? A diferença é

que tem pacientes. E... Tem que ter cuidado com eles e tentar

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incentivá-los. Acho que é isso (Joana, 36 anos, ensino médio

completo, atua na residência feminina).

A residência terapêutica? É um, é um lar pra algumas

moradoras, né? Que viviam em hospitais e tão acabando com os

hospitais, né? Pra eles conviver como se fosse uma família. E

reintegrar ele à sociedade, né? Aos poucos, né? Porque você

sabe que é lentamente o processo, né? Mas alguns já tão bem

adiantados, né? (Bruna, 30 anos, ensino superior completo

(pedagogia), atua nas duas residências)

Para Joana, a diferença entre o SRT e uma residência qualquer é que o SRT “tem

pacientes”, os quais merecem receber cuidado dos cuidadores, sempre na tentativa de

“incentivá-los” a fazerem as coisas sozinhos.

Bruna, assim como Joana, afirma que o SRT “é um lar pra algumas moradoras”

poderem “conviver como se fosse uma família” e serem reintegradas à sociedade, num

processo lento, pois “tão acabando os hospitais”. Ao final de seu discurso, ela afirma

que o SRT vem desempenhando suas funções, pois existem “alguns” moradores que “já

tão bem adiantados” no processo de reintegração à sociedade.

Já outros cuidadores apontam que o SRT é um espaço para a promoção da

“reabilitação social” e de “ressocialização”.

Silvana (S) - Rapaz... Pra mim... Eu acho que é um... É um

trabalho de reabilitação social, né? Porque eu acho que

(incompreensível) não trata ninguém. Então, pra mim, eu acho

que aqui é uma coisa muito boa que criaram, por quê a pessoa, é

um, é um trabalho que a gente faz que as pessoas voltam a viver

como se tivesse em casa com a família, né? Então pra mim é

um trabalho, uma coisa ótima (ênfase) que fizeram. Porque o

pessoal fica em hospital, as vezes a gente chega num hospital,

não tem nenhum problema mental, assim, mas quando começa a

tomar medicações fortes demais... Teve aquela época do choque

elétrico que hoje em dia é proibido mas muita gente levou

choque elétrico e piorou muito a situação das pessoas, né?

Então eu acho que é devido muito... Tem hospital, por exemplo,

tem o Ulisses Pernambucano, que na minha opinião é o único

dos hospitais que tem que eu acho que tem o tratamento bom.

Mas a gente sabe que tem muitos hospitais, tem aquele HPP em

Boa Viagem, não sei se tu conhece o HPP em Boa Viagem.

Entrevistador (E) - Já ouvi falar.

(S) - Que até eu vou ter um estágio lá, sábado, no outro sábado,

mas assim, tem um colega meu que trabalha ali, que é... É

péssimo, assim, o tratamento não é legal, a pessoa é tratada

como bicho, né? Então eu acho que aqui, na minha opinião é

um trabalho de reabilitação que traz a pessoa pra vida, né? A

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pessoa tá no hospital, ela não tá vivendo ali, ela tá vegetando.

Ela só faz aquilo que as pessoas querem. Elas não têm vontade

própria dentro do hospital. E aqui elas fazem o que querem. O

que elas quiserem, o que elas querem comer, elas comem, pra

onde quiser passear elas passeiam. Então elas voltam à vida, de

novo, a viver de novo. Então pra mim é isso, uma reabilitação,

assim, de vida mesmo: social, tudo (Silvana, 28 anos, ensino

médio completo (técnica de enfermagem), atua na residência

feminina).

Entrevistador (E) - É, então, pra você o que é a residência

terapêutica?

Marcos (M) - Pra mim a residência terapêutica é um

acolhimento de pessoas com transtorno men, é... Com menor

intensidade do que outras, né? Porque para (incompreensível)

você tem que tá com a mesma intensidade de agravamento do

que outras, né?

(E) - Humrum.

(M) - Um acompanhamento assim, mais humanizado, bem

dizer. Um acompanhamento mais humanizado. Você tá em

contato com aquela pessoa e faz ela se ressocializar.

(E) - Humrum.

(M) - Entrar numa ressocialização com mais facilidade do que

num hospital, né? Tem mais disponibilidade de tempo para

acompanhar esse desenvolvimento do morador, né? (Marcos, 32

anos, ensino superior incompleto (enfermagem), atua na

residência mista)

Segundo Silvana, o SRT “é um trabalho de reabilitação social”, é um “trabalho”

que os cuidadores fazem para as “pessoas” voltarem “a viver como se tivesse em casa

com a família”.

A cuidadora relata, ainda, que ao contrário do SRT, o hospital psiquiátrico

produziria um processo de adoecimento pela utilização de “medicações fortes demais”

e, antigamente, “choque elétrico”.

Nesse momento da entrevista, ela afirma que o Ulisses Pernambucano “é o único

dos hospitais que eu acho que tem o tratamento bom”. No entanto, como se sentisse a

possibilidade de ser posicionada como uma pessoa favorável aos hospitais psiquiátricos,

ela logo afirma que “tem muitos hospitais” nos quais “o tratamento não é legal, a pessoa

é tratada como bicho”, pois a pessoa no hospital “ela não tá vivendo ali, ela tá

vegetando”.

Ela justifica então a utilização do termo “vegetando”, afirmando que as pessoas

no hospital são como zumbis: “ela só faz aquilo que as pessoas querem”, “elas não tem

vontade própria dentro do hospital”, enquanto que no SRT “elas fazem o que querem”,

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“o que elas quiserem, o que elas querem comer, elas comem, pra onde quiser passear

elas passeiam”. Dessa forma, Silvana relata que “elas voltam à vida, de novo, a viver de

novo”. E “voltar a vida” seria para ela o processo de reabilitação.

Para Marcos, “a residência terapêutica é um acolhimento de pessoas com

transtorno”. Vale a pena observar que o entrevistado não completa a expressão

“transtorno mental”. Entendemos que ele não utiliza essa expressão na tentativa de

evitar a possibilidade de ser posicionado como preconceituoso, posto que os usuários da

residência, de acordo com o discurso reformista, devem ser tratados pelo termo

moradores.

Ele continua afirmando que na residência é possível desenvolver “um

acompanhamento mais humanizado”, no sentido de “você tá em contato com aquela

pessoa e faz ela se ressocializar”, inclusive com “mais facilidade do que num hospital”,

pois os cuidadores “tem mais disponibilidade de tempo para acompanhar esse

desenvolvimento do morador”.

Nos foi relatado também como seria esse processo de “reabilitação”, quando

solicitamos que os cuidadores falassem sobre como é o seu dia típico de trabalho. Dessa

maneira, alguns cuidadores relataram que no decorrer de um dia no SRT, eles devem

“estimular” os moradores a realizar as atividades cotidianas sozinhos, além de

apresentarem um discurso marcado pela questão da medicação e de idas ao médico.

Entrevistador (E) - Humrum. Certo. É, você poderia falar um

pouco sobre o cotidiano nas casas, como é o cotidiano na casa e

da relação entre vocês e os moradores?

Roberta (R) - O cotidiano da casa é como uma casa normal, é

como a minha, como a sua. Elas acordam, aí tomam, fazem

café, (diz o nome da moradora) faz o café, divide pra todo

mundo. Aí depois elas cuidam da casa, faz a limpeza da casa, o

cuidador sempre tá lá (ênfase) pra estimular e pra orientar.

(E) - Humrum.

(R) - A gente fica sempre, aí depois elas, as vezes, dão uma

voltinha, vão na outra residência, vão no mercado com a gente.

Pra todo canto elas vão com a gente. Aí quando tem consulta,

vão pra consulta. Elas ficam, as vezes elas ficam enquanto a

gente vai no mercado, as outras ficam só (Roberta, 47 anos,

ensino médio completo (auxiliar de enfermagem), atua na

residência feminina).

Segundo Roberta, “o cotidiano da casa é como uma casa normal”, ou seja, é uma

residência “como a minha, como a sua”. Segundo a cuidadora “elas acordam”, e

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realizam as atividades domésticas:“fazem café”, “divide pra todo mundo”, “faz a

limpeza da casa”, sempre acompanhadas pelo cuidador, o qual está lá “pra estimular e

pra orientar”.

No segundo trecho de seu relato, ela utiliza a expressão “às vezes” para afirmar

que os moradores também participam de algumas atividades atípicas: “dão uma

voltinha, vão na outra residência, vão no mercado com a gente”, “vão pra consulta”. No

entanto, o cuidador está sempre junto com o morador: “pra todo canto elas vão com a

gente”.

Em consonância com o resto de seu discurso, Roberta afirma que “as vezes elas

ficam enquanto a gente vai no mercado, as outras ficam só”. Ou, em outras palavras,

Roberta afirma que o trabalho dos cuidadores apresenta resultados concretos: as

moradoras conseguem ficar sozinhas.

Entrevistador (E) - Certo. É... Você poderia falar um pouco

sobre o cotidiano na casa? Como é que é o cotidiano?

Silvana (S) - O que acontece de manhã? De manhã...

(E) - De maneira geral.

(S) - É, amanhece o dia, de maneira geral, de manhã elas se

levantam, tomam um “banhinho”, né? Aí elas tomam café, elas

mesmo preparam o café da manhã. Tomam o café, aí já

começam cada uma a fazer alguma coisa na casa, uma varre a

casa, outra lava o banheiro. Tem aquelas que não tem muita

coragem, não, mas (risos) a gente estimula, né? Aí sempre, uma

diz: “ai, dona Silvana, hoje eu lavei os pratos” ai eu digo:

“nossa! Que bom, né? É bom, de vez em quando, quando você

tem vontade, você fazer aquilo que, né? Pra você se sentir útil”,

eu digo pra elas, fico sempre estimulando. (incompreensível) dá

um apoio, dá uma ajuda, mas tipo: sempre deixa o livre-arbítrio

para elas fazerem, né? Se tiver médico, que elas vão muito pra

médico, a gente leva pra consulta. Quem tá organizando a noite,

já deixa organizado, e tal, já deixa: “vamo tomar banho”, acorda

mais cedo, se organiza todo mundo pra ir pro médico, então...

Aí, depois almoça, tem lanche, tem os horários das medicações,

então é tudo cronometrado: a medicação, tem aquela horinha

certa, almoço, né? Almoço nem tanto, porque quando dá fome

elas já querem comer. (risos) Aí a noite elas jantam. Quando dá

assim, na faixa de umas dez, dez e meia, já estão tudo

sonolenta, mas vêem novela, tem duas ou três que gostam de

assistir novela, né? As vezes, senta no sofazinho, vê a novela

até o final.

(E) - Vai até...

(S) - Ôxi, então! Ai quando acaba a novela, aí é hora de dormir.

Já vai dormir, porque o sono já tá... O olho já pesando de sono,

tem a medicação também...

(E) - Humrum.

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(S) - Aí vão dormir. Então, assim, é aquele, é um cotidiano,

assim, né? Mas final de semana, elas passeiam, agora sábado

passado foram pra praia. Nem todas vão, porque nem todas

gostam, mas ai, as que gostam, se uma tá (incompreensível) a

gente leva.

(E) - Humrum.

(S) - Né? E aí elas: “ah, foi bom a praia, foi ótimo a praia! Se

pudesse amanhã eu ia de novo!” (risos do entrevistador) Então

eu digo: eu acho ótimo, assim, porque acho que passeio

estimula muito, elas irem para um lugar, saírem desse cotidiano,

do dia a dia, né?

(E) - Humrum.

(S) - Porque durante a semana é aquilo ali: faz feira quando tem

que ir, elas gostam de ir, acompanham a gente, né? Vai ao

banco resolver alguma coisa, a gente sempre tá acompanhando,

né? Que elas nunca saem sozinhas, só pra próximo aqui, vão

comprar pão na padaria, aí tem uma ou duas que sabem onde é a

padaria e a gente confia.

(E) - Humrum.

(S) - Né? Aí elas vão, mas tem outras que se for a gente sabe

que vai se perder. Então aí tem que ir junto com o cuidador,

mas aquela a gente sempre tenta dar autonomia, né? Pra elas

irem. Mas aí o que eu tô, é mais passeio, entendeu? É assim, o

cotidiano é, é assim. Agora final de semana a gente tenta. Tem

umas que gostam de teatro, aí já tá se planejando para ir ver

teatro, né? E assim vai, como uma família normal, você no seu

dia a dia, você trabalha, faz sua faculdade, né? Aquele dia a dia.

Então final de semana tem que mudar um pouquinho pra... Né?

Tirar o stress, né? (Silvana, 28 anos, ensino médio completo

(técnica de enfermagem), atua na residência feminina)

Segundo o relato de Silvana, o dia começa quando “elas se levantam, tomam um

banhinho”. Em seguida, elas tomam “café”, o qual é preparado pelas próprias

moradoras. Após o café, elas “começam cada uma a fazer alguma coisa na casa, uma

varre a casa, outra lava o banheiro”. No entanto, “tem aquelas que não tem muita

coragem, não”. Nesses casos, o cuidador “estimula”.

Logo em seguida, em seu discurso, ela utiliza uma série de citações

supostamente literais, objetivando uma descrição mais real dos fatos. Além disso, essas

citações são utilizadas para afirmar, mais uma vez, que o “estímulo” dos cuidadores

também funciona: segundo seu relato, a moradora teria dito “hoje eu lavei os pratos”

enquanto ela responde “nossa! Que bom”, na tentativa de ficar “sempre estimulando”,

dar “um apoio”, “uma ajuda”, mas sempre deixando espaço para o “livre-arbítrio” das

moradoras.

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Ao construir a imagem de que os moradores possuem o livre-arbítrio, a

cuidadora posiciona implicitamente o SRT enquanto um espaço diferente do hospital

psiquiátrico, que seria um espaço marcado pela falta de espaço para a escolha do

paciente.

Ela continua seu relato afirmando que “se tiver médico” pela manhã, o cuidador

da noite já organiza tudo e ai o cuidador da manhã leva “pra consulta”, tem o horário

“cronometrado” da “medicação”. Ela afirma também que os moradores tem liberdade de

comer “quando dá fome”, que alguns “gostam de assistir e novela” e, após a novela,

devido à “medicação” e ao avançar da hora, elas vão dormir.

O final de semana aparece, em seu relato, como um espaço para atividades que

não são comuns, para “tirar o stress”, atividades que saem “desse cotidiano”: os que

gostam “foram pra praia” e, ao voltarem ao SRT, teriam afirmado que “foi ótimo a

praia”; outros gostam de “teatro”.

Entrevistador (E) - Certo. É, você poderia falar sobre o

cotidiano na casa de das relações entre vocês e os moradores?

Fernanda (F) - Como é o cotidiano aqui?

(E) - Humrum.

(F) - Tenta ajeitar, é, incentivar eles a organizarem a casa, né?

Pra ficar uma casa que as pessoas venham (incompreensível) e

o cotidiano é melhorar, né? (o telefone toca e a moradora

atende).

(E) - Então a gente tava na questão assim, descreve pra mim

como é que é um dia típico aqui na residência terapêutica? O

que é que vocês fazem? Como é o trabalho, essas coisas assim.

(F) - Um dia da gente aqui é, tipo: começa pela comida, né? A

gente chega, a medicação, depois aí vem incentivar eles a

tomarem o lanche, tomar o banho pra quem se disponibiliza, aí

tomam banho, depois, é, a gente vai ver o que dá pra fazer pra

comida, vai ver o que tem na geladeira feito, o que não tiver

feito a gente vai procurar incentivar eles a ajeitarem, depois

vem a arrumação da casa, com essa reforma aí, fica sempre

cheio de poeira aqui, tem que tá ajeitando. Eles estão um pouco

difícil assim, manter o banheiro, assim, tem que sempre tá

mandando eles ajeitar o banheiro, por aí (Fernanda, 40 anos,

ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas

residências)

Segundo Fernanda, o cotidiano no SRT é tentar “ajeitar”, incentivando “eles a

organizarem a casa”. Segundo a cuidadora, em um dia típico, o dia na residência

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“começa pela comida”. Logo após a “medicação”, os cuidadores incentivam eles a

“tomarem o lanche, tomar banho”.

Em seguida, os cuidadores vêem “o que dá pra fazer pra comida, vai ver o que

tem na geladeira feito”, sendo que o que “não tiver feito a gente vai procurar incentivar

eles a ajeitarem”. A próxima etapa seria “a arrumação da casa”, pois com a “reforma”

que estavam fazendo no SRT, a casa sempre fica cheia de poeira e “tem que tá

ajeitando. Por fim, ela afirma que o banheiro é a parte da casa mais difícil de

permanecer arrumada, “tem que sempre tá mandando eles ajeitar o banheiro”.

Entrevistador (E) - Então, me fala um pouco como é o cotidiano

da casa e da relação entre os cuidadores moradores?

Marcos (M) - O cotidiano da casa é assim: de manhã chega, dá

a medicação, que é prescrita pelo médico, aí, quem é da noite,

separa essa medicação porque a noite, como é a noite, tem

menos atividade durante o dia.

(E) - Humrum.

(M) - Durante o dia, que é meu plantão, o tempo que eu fico é

durante o dia. Durante o dia, a gente administra a medicação, se

faltar alguma coisa para precisar comprar a gente vai comprar

esse produto que tiver faltando, e a gente acompanha, chama ele

pra ir com a gente. Se algum quiser ir, pode ir, também se não

quiser ir, não obriga, não é obrigado a ir com a gente. A gente

chama assim: “quer ir na feira, comprar alguma coisa?”... Se

algum quiser ir, quiser dar uma passeada, eles vão. Assim, final

de semana, se quiserem um passeio, a gente convida pra um

passeio, aí chama. Não pode ir só com um, né? Porque assim, o

pessoal quer ir, só tem um, aí não adianta, né? Porque tem que

pelo menos ir com um grupo, três, quatro, pra poder formar

aquela coisa, pra não ir só um, ficar aquele negócio... Mas o

cotidiano é isso aí, é, é chegar de manhã, dar medicação, depois

durante o dia, se quiser resolver alguma coisa, a gente também

resolve problemas de... Consultas médicas, a gente faz a

marcação da consulta, a gente vai levar no dia da consulta, a

gente que acompanha diretamente, porque assim... Como a

gente tem o convívio maior com eles, a gente sabe falar pro

médico qual que tá havendo o problema.

(E) - Humrum.

(M) - Aqui tem alguns que são hipertensos, tem alguns que são

diabéticos, né? A gente tenta acompanhar a taxa de

hiperglicemia, glicemia, de... Da pressão arterial.

(E) - Humrum.

(M) - Aí, pronto. Aí o convívio da gente diretamente com eles é

isso aí. Tem também algumas queixas que eles tem, tão

arengando um com o outro, aí a gente tem que olhar, quem tá

errado e quem tá certo, né? Pra poder, né? Interferir algum

problema que tiver que possibilite até levar mais...

(E) - Humrum.

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(M) - A gente tem que interferir em problemas que se agravem.

Pra poder depois não gerar uma coisa muito grande. O cotidiano

da gente é baseado nisso aí, mesmo (Marcos, 32 anos, ensino

superior incompleto (enfermagem), atua na residência mista)

Marcos inicia seu discurso relatando que o cotidiano da casa, pela manhã, é dar

“a medicação prescrita pelo médico”, o qual é separado pelo plantonista noturno, pois

“como é a noite, tem menos atividade”.

Em seguida, ele reduz seu relato ao que ocorre durante “o dia, que é meu

plantão”. Nesse sentido, “durante o dia” é administrada “a medicação”, bem como “se

faltar alguma coisa” os cuidadores vão comprar, convidando os moradores a irem junto.

No entanto, “se algum quiser ir, pode ir, também se não quiser ir, não obriga”. Nesse

momento da entrevista, ele utiliza a citação direta para tornar seu discurso mais factual,

bem como se apresenta como uma pessoa educada ao afirmar que “a gente chama

assim: quer ir na feira, comprar alguma coisa?”. No final de semana, se um grupo de

moradores quiser ir passear, “a gente convida”.

Marcos também afirma que eles também realizam “marcação da consulta”,

levam os moradores “no dia da consulta” e que “acompanha diretamente”, pois,

segundo ele, os cuidadores que tem “o convívio maior com eles” é que “sabe falar pro

médico qual que tá havendo o problema”. Nesse sentido, Marcos posiciona os

moradores como seres incapazes de falar sobre si mesmos, contribuindo para a

construção de uma imagem de dependência em relação aos cuidadores.

Ainda no tocante à saúde dos moradores, ele afirma que alguns “são

hipertensos” outros são “diabéticos” e que, por isso, eles precisam “acompanhar a taxa

de hiperglicemia, glicemia”, da “pressão arterial”.

Por fim, ele relata algumas questões relacionadas ao convívio dos moradores:

“tem tão arengando um com o outro, aí a gente tem que olhar, quem tá errado e quem tá

certo” pra poder “interferir em problemas que se agravem”. Nesse sentido, os

cuidadores atuariam como agentes que regulariam a dinâmica social da casa,

principalmente nos momentos de conflito entre os moradores.

Entrevistador (E) - Você pode me falar um pouco sobre como é

o cotidiano na casa? E na relação entre os cuidadores e os

moradores?

Verônica (V) - Assim, tu fala os cuidadores gerais ou tu fala...

Porque eu trabalho só a noite.

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(E) - Se você achar melhor falar sobre o período que você passa

aqui, pode ser também.

(V) - Você fala em relação, assim, a que?

(E) - Assim, como é um dia, no teu caso, uma noite de trabalho

pra tu, na residência?

(V) - Como é uma noite de trabalho?

(E) - Isso.

(V) - Bem, a noite é mais tranqüilo, né? Até por que... Devido

ao horário mesmo, né? Então a noite, tem a hora da medicação,

tem a hora do lanche, tem a hora que a gente fica conversando

um pouquinho com um, conversa um pouquinho com outro.

Daqui a pouco um chama, vai pro quarto, a gente tem que ir lá,

tudinho... Mas, quando dá assim, umas dez horas, dez e meia...

Né? Tem uns que assistem televisão até mais tarde. Mas depois

vão dormir. É tranqüilo. A noite é... Mais tranqüila.

(E) - A noite é mais tranqüila?

(V) - É.

(E) - E de manhã, como é que é, assim?

(V) - De manhã? De manhã aqui já tem aquele que vai varrer a

casa, já tem aquele que faz o café, tem aquele que é sempre

orientado, é... Pelo cuidador, o cuidador sempre tá observando.

Aí vai, bota a chaleira no fogo, né? Um ovo pra fritar, uma

mortadela pra fritar, vai preparar o café. A gente tá sempre aqui,

pra tá orientando, né? E quando a gente... Assim, de manhã, já é

automático, já tem um que vai limpar a casa sem você falar

nada, ele já levanta, pega lá a vassoura, começa a limpar

tudinho, né? Ai você vai, orienta. Questão do lixo, né? Como

lidar, como condicionar o lixo, botar lá fora, quando o

caminhão vai passar... A limpeza da casa, e outros ficam

responsável aqui, pela cozinha. Mas a gente sempre fica com

um e com outro, né?

(E) - Humrum.

(V) - Sempre é: olha um, olha outro, olha um, orienta um,

orienta outro. E assim as coisas vão fluindo, assim é muito

natural (incompreensível).(Verônica, 40 anos, ensino superior

incompleto (biologia), atua na residência mista).

Verônica inicia seu discurso orientando seu relato para as questões que ocorrem

a noite, posto que ela trabalha “só a noite”, que é um turno “mais tranqüilo”. No

entanto, o relato sobre o que ocorre a noite é muito semelhante ao relato do que ocorre

de dia: “tem a hora da medicação, tem a hora do lanche, tem a hora que a gente fica

conversando um pouquinho”, “tem uns que assistem televisão até mais tarde” mas que

“depois vão dormir”.

Ao responder sobre o que ocorre de manhã, ela utiliza o termo “já” para

expressar que o turno matutino é diferente: já tem aquele que vai varrer a casa, já tem

aquele que faz o café”, alguns com mais autonomia, mas “tem aquele é sempre

orientado”, pois o “cuidador sempre tá observando”. Em suas palavras, o cuidador está

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na residência para “sempre estar observando”, idéia que ela reafirma ao dizer que “a

gente tá sempre aqui, pra tá orientando” e que “sempre é: olha um, olha outro, olha um,

orienta um, orienta outro”.

Entrevistador (E) - Você poderia falar sobre o cotidiano na

casa? Das relações entre vocês e os moradores. Se alguém

perguntasse pra você: como é que é um dia típico, o que você

faz num dia típico de trabalho?

Bruna (B) - No caso eu ou eles?

(E) - É, você com eles.

(B) - Ah! Eu com eles. Certo. Tem o café da manhã quando eu

chego, né? Eles já tem preparado o próprio café da manhã. As

oito horas tem a medicação deles, que é remédio controlado.

Então a medicação tem que ser sempre no horário, né? Depois é

servido um lanche. Elas mesmas participam da organização da

casa e, sempre vem uma moça também, né? Que toda semana

vem fazer a faxina geral, mas sempre são elas que fazer a

organização.

(E) - Humrum.

(B) - Também elas fazem trabalho de grupo no CAPS, o médico

vem também aqui na residência, então é isso, a gente cuida

delas pra que elas tomem o remédio sempre na hora, porque se

deixar pra elas tomarem, elas não sabem. Então por isso que

também precisa de cuidador, não é? Pra dar sempre a

medicação na hora, conversar com elas, passear, como eu já

tinha falado, levar ao médico, e é isso. O dia a dia delas é esse e

o nosso também, o cotidiano (Bruna, 30 anos, ensino superior

completo (pedagogia), atua nas duas residências).

Bruna inicia seu discurso perguntando se a descrição do SRT que ela construirá

será baseado na sua visão enquanto cuidadora ou não visão que ela possui dos

moradores: “no caso eu ou eles?”.

Após o entrevistador afirmar que seria sua visão enquanto cuidadora, ela afirma

que quando ela chega “tem o café da manhã”, que “eles já tem preparado”. Após o café

“tem a medicação deles, que é remédio controlado” e que, por isso, “tem que ser sempre

no horário”. “Elas mesmas participam da organização da casa”, apesar de existir uma

moça que “vem fazer a faxina geral”. A cuidadora continua seu discurso afirmando que

elas “fazem trabalho de grupo no CAPS” e que “o médico vem também aqui na

residência”.

Ela também justifica a permanência de cuidadores no SRT utilizando como

argumentos o fato de que elas precisam tomar “o remédio sempre na hora” e é “por isso

que também precisa de cuidador”: “pra dar a medicação na hora”.

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Entrevistador (E) - Você poderia falar sobre o cotidiano da casa

e da relação entre o cuidador e os moradores? Se alguém

perguntasse pra tu, como é um dia típico de trabalho? No caso,

teu primeiro dia, como é que foi?

Joana (J) - Ah! Meu primeiro dia foi sair com eles... Os mais...

Conscientes, né? Pra ir ao supermercado, comprar algumas

coisas, teve Nancy também, que é bem orientada, também foi

comprar roupa pra ela, nesse dia, ai foi esse que a gente teve.

(E) - Humrum.

(J) - Levei um também ao médico. No primeiro dia.

(E) - De maneira geral foram essas tuas...

(J) - Atividades, foi no primeiro dia (Joana, 36 anos, ensino

médio completo, atua na residência feminina).

Segundo Joana, em seu “primeiro dia” de trabalho ela saiu com os moradores

mais “conscientes” para ir ao supermercado, fato que ela reafirma ao relatar que foi com

uma moradora que “é bem orientada” para “comprar roupa”. Ela termina seu relato

afirmando, tal como outros cuidadores, que levou os moradores “também ao médico”.

Já Tiago constrói seu discurso sobre o cotidiano no SRT aproximando-o de outra

residência qualquer.

Tiago (T) - Então discutem, as vezes brigam. A gente tenta,

assim, pra que não se agridam, né? Acontece casos, as vezes, de

ter agressão, mas o nosso serviço é pra isso também, pra evitar

essa possibilidade, evitar ao máximo isso aí. E eles se percebem

como pessoas boas, ou, as vezes, como uma, uma, uma

companhia indesejada, né? Alguns que querem uma certa

distância de outros, não é? Por entenderem assim, pela sua

individualidade, né? Tem, as vezes um mexe no objeto do

outro, o outro não gosta.

Entrevistador (E) - Humrum.

(T) - E por causa disso xinga e pede pra que não se aproxime.

Então é assim, é as coisas que realmente acontecem em nossa

vida, né? A aproximação por afeição ou as vezes a distância por

realmente não gostar de certas atitudes.

(E) - Humrum.

(T) - Mas, no geral, a relação é boa. A relação é saudável. É

aquela coisa da convivência torna a amizade mais forte.

(E) - Humrum.

(T) - E alguns convivem só por conviver, realmente. Se

suportam e nada mais além do que isso (Tiago, 42 anos, ensino

médio completo, atua na residência mista).

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Para ele, os moradores “discutem, as vezes brigam” e os moradores, nesses

momentos, “tenta, assim, pra que não se agridam”. Em consonância com o discurso

produzido por outros cuidadores, Tiago também legitima a permanência de cuidadores

no SRT: o “serviço” dos cuidadores é pra “evitar essa possibilidade, evitar ao máximo”

que eles possam se agredir.

Ele continua seu discurso afirmando que os moradores “se percebem como

pessoas boas” ou “como uma companhia indesejada”, sendo nesse sentido que “alguns”

“querem uma certa distância de outros”. Ele exemplifica a “companhia indesejada”

afirmando que “as vezes um mexe no objeto do outro, o outro não gosta” e que “por

causa disso xinga e pede pra que não se aproxime”.

Tiago, ao afirmar que existem moradores que possuem uma convivência

afetuosa, bem como existem moradores que não possuem afinidade, retrata o SRT como

uma casa próxima das casas ditas “normais”, com sujeitos que ora estão em conflito e

que ora convivem harmoniosamente, tal como “as coisas que realmente acontecem em

nossa vida”, ou seja, “a aproximação por afeição ou as vezes a distância por realmente

não gostar de certas atitudes”.

Esse mesmo discurso é reiterado em outro momento de seu relato, quando ele

afirma que “a relação é boa”, pois a “convivência torna a amizade mais forte”, enquanto

“alguns convivem só por conviver”, “se suportam e nada mais além do que isso”.

Já Paula constrói seu relato apontando para as diferenças entre o SRT feminino e

o masculino.

Entrevistador (E) - Humrum. Certo. É... Você poderia falar

sobre o cotidiano na casa, da relação entre vocês e os

moradores?

Paula (P) - Posso. É... Assim... Primeiro a gente trabalha em

duas residências, né? Então se fala primeiro de uma depois da

outra. A residência mista é muito tranqüila, o pessoal, os

moradores são muito tranqüilos, eles são mais independentes e

os cuidadores tem uma relação muito boa com eles. Essa daqui,

que é a feminina, tem um pouquinho mais de dificuldade pelas

pessoas precisarem de mais atenção. São pessoas mais

debilitadas, que requerem mais atenção. Mas que também é

muito tranqüilo, eles já criaram um vínculo com a gente, já

sente falta, quando a gente entra de férias, já fica perguntando,

então assim, é um convívio muito tranqüilo. Cobram passeios, a

gente faz passeio. É um vínculo assim, mais que de trabalhador,

é aquele vínculo afetivo mesmo (Paula, 29 anos, ensino superior

completo (psicologia), atua na residência feminina).

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Segundo a entrevistada, “a residência mista é muito tranqüila”, “eles são mais

independentes e os cuidadores tem uma relação muito boa com eles”. Já na feminina, os

cuidadores “tem um pouquinho mais de dificuldades pelas pessoas precisarem de mais

atenção” por serem “pessoas mais debilitadas”.

No entanto, ela afirma, logo em seguida, que “é muito tranqüilo” pois as

moradoras “já criaram um vínculo” com os cuidadores, “já sente falta” quando algum

“entra de férias”.

O relato de Paula reproduz, por um lado, uma idéia bastante presente em nossa

sociedade: o fato das moradoras do SRT feminino serem descritas como mais

“debilitadas” se deve mais ao fato de associar a idéia do feminino à fragilidade, ainda

mais se estiver associada à loucura.

No momento tá, essa confusão, assim. É... É... Tá gravando?

[diz o nome da Moradora 1]. Não sei se você viu, ela tá faz

pouco tempo, é uma moradora que a gente tá tendo muita

dificuldade com ela, assim. Ela consegue fazer, ela ajuda muito

na dinâmica da casa, da limpeza, tudinho... Mas ela tem

dificuldade de... Ela é muito introspectiva. Ela não conversa

com a gente, ela não conversa com as outras moradoras. E

depois dessa situação com [diz o nome da Moradora 2], ela

começou a querer dormir fora da casa. Ela, com medo, na

verdade de dormir. Aí já aconteceu duas vezes , né? Uma na

outra casa, e aqui duas, né? Aí a segunda só fez reforçar, aí ela

tá com medo de dormir, não dorme mais no quarto. Tá com

medo de dormir dentro da casa, agora tá dormindo fora, naquela

partezinha, ela pegou, ela tava dormindo no chão. Aí ela não

queria comprar nada, não sei o que, aí consegui, consegui,

comprou o colchão. Outro colchão, né? Que ela... Ela [diz o

nome da Moradora 2] não tocou fogo no dela, tocou fogo na do

outro, as duas vezes. Ela não tocou fogo no dela, tocou na do

outro, fogo. É assim: tá vendo como tem aquele pinguinho de

consciência? Nâo é uma loucura total? É uma confusão danada.

Bem, a dinâmica da casa é essa. A gente chega, um plantão de

doze por sessenta, mas na verdade a gente tem plantão fixo. A

gente só fica trocando assim,o... O sábado e o domingo a gente

fica rodando, é... Aqui são seis cuidadores, lá também são seis.

É como aqui, são seis cuidadores. As meninas, elas, elas, a

convivência com elas é assim, a maioria das vezes, são boas,

assim. A maioria das vezes, elas vivem bem, assim. [moradora

1] é que não consegue, ainda... Não consegue conviver bem,

com elas, ainda. [moradora 2] não faz nada, assim, não ajuda

em nada na residência. Nem [moradora 2] nem [moradora 3],

que [moradora 3] diz que é intelectual demais para ajudar em

alguma coisa. Que ela diz que é chique demais. (Gisele, 28

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anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência

feminina)

Enfim, mas a dinâmica assim é.. Levar pro médico, faz um

passeio... É, a gente assim, quando a gente faz um passeio a

gente pergunta o que elas querem fazer. Geralmente passeio, dia

de final de semana, ou então dia de sábado, ou então alguma

data comemorativa, assim, dia das mães... “Que é que vocês

querem fazer?”, quero almoçar não sei aonde... Um churrasco...

Aí a gente vê quanto de dinheiro tem na casa... “Dá pra

churrasco, não. Dá pra comer um... Sei lá, uma pizza, então

bora comer pizza de noite”. A gente vai comer pizza. Se não

quiser ir comer pizza, a gente chama a pizza aí eles vem pra cá

(Gisele, 28 anos, ensino superior completo (psicologia), atua na

residência feminina).

Entrevistador - Você poderia falar sobre o cotidiano da casa e

sobre as relações entre vocês e os moradores?

Claudia - Ó, no dia a dia da casa, eu posso falar pelo dia que eu

troco com as cuidadoras, né? É o seguinte: os cuidadores

chegam, né? E aí o dia começa com as tarefas da casa, de

limpeza e não sei o que... Tanto que ela chega “vamo fazer

isso”... Tem a pessoa que cozinha que já vai fazer o almoço, a

moradora. Aí a limpeza da casa as vezes uma não quer fazer, as

vezes outra não quer fazer, ai o cuidador fica no pé, e

“nãnãnã”... Tem essa relação de obrigatoriedade pela, pela

manhã isso acontece com mais freqüência, né? E ai acontece,

tem uma moradora que geralmente tá mais (incomprensível) ai

vezes ela fica mais agressiva, aí o cuidador se encerra lá atrás,

ela fica aqui querendo bater nele, no cuidador, então fica essa

coisa meio você lá e eu aqui, né? Mas, aí começa, por exemplo,

tem muito médico o cuidador vai, leva pra médico, e traz.

Então, pelo dia é muito essa relação mesmo de... De obrigação

no sentido de tarefas a fazer, que tem que fazer mesmo, né?

(Claudia, 22 anos, ensino superior completo (psicologia), atua

na residência feminina)

Já Gisele e Claudia constroem seu discurso afirmando que o cotidiano na casa é

marcado pela agressividade dos moradores.

Gisele inicia seu discurso afirmando que “no momento” a residência “tá, essa

confusão”. Segundo ela, existe uma moradora (moradora 1) com a qual os cuidadores

possuem “muita dificuldade com ela”: “ela consegue fazer, ela ajuda muito na dinâmica

da casa, da limpeza, tudinho” mas “ela é muito introspectiva”.

Nesse sentido, “ela não conversa com a gente, ela não conversa com as outras

moradoras” e, após a situação que a moradora 2 ateou fogo no colchão por duas vezes, a

moradora 1 “começou a querer dormir fora da casa”. Esse fez com que a moradora 1

não “quisesse comprar nada”, mas a cuidadora conseguiu fazer com que ela comprasse

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“outro colchão”. Segundo a cuidadora, a moradora 2, que ateou fogo no colchão, possui

“um pinguinho de consciência”, pois ela “não tocou fogo no dela, tocou fogo na do

outro, as duas vezes”.

Após esse relato, Gisele afirma que os cuidadores se revezam em “um plantão de

doze por sessenta ,mas na verdade” os cuidadores possuem “plantão fixo”, apesar de no

“sábado e domingo” eles ficarem “rodando”.

Em seguida, ela afirma que a convivência com “as meninas”, na “maioria das

vezes, são boas, assim”. No entanto, algumas moradoras não “vivem bem” por não

fazerem “nada”, não ajudarem “em nada na residência”.

No segundo trecho de seu discurso, ela afirma que a dinâmica da casa é “levar

pro médico, faz um passeio” e, na verdade, as moradoras é quem decidem o local onde

elas querem visitar. Geralmente esses passeios ocorrem no “final de semana” ou então

quando tem “alguma data comemorativa, assim, dia das mães...”.

Ela termina seu relato afirmando que o SRT é um serviço com poucos recursos,

posto que quando é necessário ver “quanto de dinheiro tem na casa” para decidir para

onde as moradoras podem ir.

Claudia inicia seu discurso afirmando que irá falar “pelo dia que eu troco com as

cuidadoras”, posto que seu plantão é noturno. Segundo a cuidadora, “o dia começa com

as tarefas de casa, de limpeza”, além de ter a moradora que cozinha que já vai fazer o

almoço”. Ela relata também que alguns moradores são indisciplinados, que “as vezes

não quer fazer” e o cuidador tem que ficar “no pé” e que pode ocorrer de alguma estar

“mais agressiva”, “o cuidador se encerra lá atrás”, enquanto “ela fica aqui querendo

bater nele”. Outra atividade relatada é a ida ao médico”, onde “o cuidador vai, leva pra

médico, e traz”. Ao final desse trecho de seu discurso, ela afirma que “pelo dia é muito

essa relação mesmo” de “obrigação no sentido de tarefas a fazer, que tem que fazer

mesmo”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos discursos produzidos pelos cuidadores predomina uma imagem dos

moradores, de maneira geral, associada a uma série de atributos que se apóiam

mutuamente: seres marcados pela falta, pela carência e pela docilidade; agressivos ou

insubordinados; pessoas sofredoras e instáveis em decorrência de constantes crises e da

falta de vínculo familiar.

Esse tipo de discurso, o qual podemos denominar de discurso do déficit, tende a

posicionar os moradores ora como “coitadinhos”, “sofredores” que merecem toda

atenção e o carinho do zeloso cuidador, ora como sujeitos “agressivos”, “instáveis”,

reproduzindo o ideal da loucura associada à periculosidade.

Já em relação aos posicionamentos produzidos sobre os cuidadores, a maioria

dos entrevistados afirmaram desconhecer os serviços substitutivos de atenção em saúde

mental e/ou a função de cuidador antes de trabalharem nas residências.

Outro ponto a se destacar é a contraposição produzida discursivamente entre os

cuidadores concursados e os antigos cuidadores não concursados, onde estes atuariam

de maneira errada no SRT, levando-os a serem denominados de “empregadas” e

“lixeiros”.

Esse discurso é reforçado também por alguns entrevistados que relacionaram, de

maneira geral, os cuidadores à profissionais de nível superior, principalmente pelo fato

de existirem muitos psicólogos atuando nos SRTs.

Ao relatarem o que é ser cuidador, a maioria dos entrevistados afirmaram que

ser cuidador exige “ter paciência”; que são anjos dispostos melhorar a vida dos

moradores, possuindo como ferramentas três pontos básicos: “ajudar”, “ter muita

tolerância” e “ter amor”.

Os cuidadores também se posicionaram como pessoas que construíram um

“vínculo” com os moradores, que possuem uma relação afetuosa com os mesmos, além

de se posicionarem como “familiares” dos moradores.

Esse tipo de discurso surge, então, como mais uma forma de infantilizar aos

moradores, promovendo, quiçá-, um excesso de proteção que subestima suas

capacidades e dificultando o processo de habilitação psicossocial.

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Em relação à descrição dos serviços, a maioria dos cuidadores mencionou que

sentiram dificuldades nos primeiros dias de trabalho nos SRTs, à exceção de uma

cuidadora, que afirmou não ter vivenciado nenhuma dificuldade.

No tocante à capacitação, os cuidadores afirmaram que: I) foi um treinamento

que deixou a desejar; II) outros afirmaram que a capacitação foi “válida”; III) bem como

existiram cuidadores que não receberam orientação, por terem sido contratados após a

realização do concurso.

Ao responderem a pergunta “o que é a residência terapêutica?”, a maioria dos

cuidadores comparou os SRTs ao hospital psiquiátrico, ora a partir da contraposição

entre o SRT e o hospital psiquiátrico, ora afirmando que são reproduzidas, na

residência, algumas práticas tradicionais utilizadas nos hospitais.

Já outros cuidadores afirmam que a residência seria uma “residência normal”,

“um lar pra algumas moradoras”, um espaço de “possibilidades”, no qual pode ser

viabilizado a promoção da “reabilitação social” e da “ressocialização” dos moradores.

Os cuidadores também narram como seria o seu dia típico de trabalho: eles

devem “estimular” os moradores a realizar as atividades cotidianas sozinhos, além de

apresentarem um discurso marcado pela questão da medicação e de idas ao médico.

Também encontramos discursos que apontam para as diferenças entre o SRT

feminino e o masculino, além de discursos que narram o cotidiano na casa caracterizado

a partir da agressividade dos moradores.

Consideramos, então, que a produção desses discursos está associada à

reprodução de maneiras tradicionais de lidar com a loucura. Em outras palavras,

encontramos no discurso dos cuidadores a reprodução de velhas práticas lingüísticas

que posicionam o sujeito portador de transtorno mental como sujeitos dependentes e/ou

perigosos, mesmo estando em um espaço externo ao hospital psiquiátrico.

Faz-se necessário pensar em estratégias de capacitação para os trabalhadores de

saúde mental e, em especial, para os cuidadores de SRTs, para que possamos romper

com a reprodução do modelo hospitalocêntrico nos denominados serviços substitutivos.

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APÊNDICES

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Apêndice A

Roteiro da entrevista

Dados sócio-econômicos: idade, religião e escolaridade

1) Me fale um pouco sobre sua trajetória profissional?

2) Me fale um pouco sobre sua trajetória na instituição.

3) Como foi para você a entrada na instituição?

4)Você recebeu algum treinamento? Caso sim, me fale sobre o treinamento.

5) Para você, o que é a Residência Terapêutica?

6) Como você definiria os moradores desta casa?

7) Você poderia falar sobre o cotidiano na casa e das relações entre vocês e os

moradores?

8) Antes de trabalhar na Residência Terapêutica, você já tinha alguma aproximação

com pessoas como as que moram aqui?

9) Quem são os cuidadores das Residências Terapêuticas para você?

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Apêndice B

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Duas vias: uma sob posse do pesquisador e outra do entrevistado

Eu, _______________________________________________________, fui

convidado(a) e aceitei participar, como voluntário(a), da pesquisa “A Reforma Psiquiátrica em

Discursos de Vigias e Cuidadores de Serviços Residenciais Terapêuticos da cidade de Recife –

PE”, realizada pelo mestrando Isaac Alencar Pinto sob orientação do Prof. Dr. Pedro de Oliveira

Filho, e que possui como objetivo analisar as suas construções discursivas sobre a Reforma

Psiquiátrica. Recebi informações que me fizeram entender sem dificuldades e sem dúvidas que:

1. Participarei deste estudo por minha própria vontade, sem receber qualquer incentivo

financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o sucesso da pesquisa;

2. Minha participação neste estudo não trará nenhum dado à minha integridade física,

social e emocional;

3. Se por ventura, como possível risco, ocorrer algum desconforto moral/emocional ou for

por mim revelado, receberei orientação para buscar serviço adequado à minha

necessidade;

4. Sempre que desejar, serão fornecidos esclarecimentos sobre cada etapa da pesquisa;

5. Minha colaboração se fará de forma anônima, por meio de entrevista, a qual será

transcrita e ficará sob guarda pessoal do pesquisador;

6. O sigilo será garantido e não será revelado, em nenhuma circunstância, o nome de

qualquer participante;

7. A divulgação das informações obtidas nesta pesquisa só será feita entre os profissionais

estudiosos do assunto;

8. A qualquer momento, poderei recusar a continuar participando do estudo e, também,

poderei retirar este meu consentimento, sem que isso me traga qualquer penalidade ou

prejuízo;

9. As informações por mim fornecidas serão úteis para a produção de conhecimento na

área da saúde, gerando debates e publicações que podem contribuir para a melhoria da

qualidade dos serviços públicos;

10. Ao final do projeto, como benefício da pesquisa, será entregue uma cópia impressa e em

CD para a Gerência de Saúde Mental, onde ficará disponível para consulta, assim como

será entregue um documento com orientações para os entrevistados construído a partir

dos resultados da pesquisa.

Em caso de dúvida ou de algum problema relacionado à pesquisa, entrar em contato

com o pesquisador Isaac Alencar Pinto, cujo endereço residencial é Rua Professor Chaves

Batista, nº 350, Ap. 205, Cidade Universitária, Recife – PE, CEP: 50740-030, email:

[email protected], telefone: (81) 8512 5428. Ou, também, entrar em contato com o

Comitê de Ética em Pesquisa, cujo endereço é: Av. Prof. Moraes Rego s/n, Cidade

Universitária, Recife – PE, CEP 50670-901, telefone: 81 2126 8588.

Após ter lido e conversado com o entrevistador, os termos contidos neste

consentimento, concordo em participar como informante, colaborando, desta forma, com a

pesquisa.

Recife, _____/______/_______

Assinatura:________________________________________________________________

Nome completo:___________________________________________________________

Entrevistador- assinatura: ____________________________________________________

Nome completo:____________________________________________________________

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ANEXO

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