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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
A REFORMA PSIQUIÁTRICA EM DISCURSOS DE CUIDADORES
DE SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS
NA CIDADE DE RECIFE - PE
Isaac Alencar Pinto
Recife – PE
Fevereiro – 2011
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Isaac Alencar Pinto
A REFORMA PSIQUIÁTRICA EM DISCURSOS DE CUIDADORES
DE SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS
NA CIDADE DE RECIFE - PE
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade Federal
de Pernambuco como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Pedro de Oliveira Filho
Recife – PE
Fevereiro – 2011
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A todos aqueles que buscam inventar
novas formas de lidar com a loucura.
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AGRADECIMENTOS
Desejo, em primeiro lugar, agradecer aos meus pais, Edna e Cícero, e aos meus
irmãos, Lucas e Davi, por terem sempre me apoiado e auxiliado nas minhas
empreitadas. Apesar de me considerar um andarilho, sempre terei minha casa.
A Pedro, por me aceitar como orientando e por acreditar, até o último momento,
na realização deste trabalho, apesar de todas as dificuldades institucionais e pessoais.
Mais do que orientador, lhe tenho como um grande amigo.
A Ary, pelo companheirismo e por ter me dado força para plantar várias
sementinhas nos últimos dois anos. Tenho certeza de que colheremos belas flores
nesse jardim.
Meus sinceros agradecimentos aos meus amigos de longa data: Vanina e Julian
(sem o apoio de vocês não teria chegado aonde cheguei), Juliana, Nayara, Jorge, Deco,
Larissa, Einstein, Alessandra, Natércia, Halline, Fabiana, Carla, Francisco e Laís.
Vocês moram no meu coração!!
Todo o meu carinho aos novos amigos que fiz durante o Mestrado: Pedrinho,
Fernanda, Juliana Catarine, Ludmila, Márcio, Estácio e, em especial, à Amanda e
Simone. Recife se tornou uma cidade mais colorida com vocês!
À Profª. Thelma e à Profª. Jaileila por terem aceito o convite para participar da
banca, na certeza de que as suas contribuições enriquecerão o trabalho.
À Alda, João e Alexandre, por terem quebrado diversos galhos durante esses
dois anos.
À Christianne Macêdo, que trabalha no DGGT da Prefeitura do Recife, por ter
auxiliado (e encontrado meu Projeto diversas vezes quando ele se encontrava perdido
no meio da burocracia institucional) na aprovação do meu projeto de pesquisa pela
Gerência de Saúde Mental.
À CAPES, por ter financiado o desenvolvimento da pesquisa.
E aos meus mentores espirituais, por me orientarem e por me demonstrarem que
a vida é sempre mais!
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Minha casa é meu reino
“Meu Reino”, Biquíni Cavadão
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LISTA DE SIGLAS
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial
CONASP - Conselho Consultivo da Administração Pública Previdenciária
DSM III - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders III
INPS – Instituto Nacional de Previdência Social
SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência
SRT – Serviço Residencial Terapêutico
SUDS – Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
TR – Técnico de Referência
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12
2. DE PACIENTES A MORADORES: OS SERVIÇOS RESIDENCIAIS TERAPÊUTICOS15
2.1 Abordagens Teóricas e Modalidades de Serviços Residenciais Terapêuticos ............ 19
2.2 A reabilitação psicossocial .......................................................................................... 25
2.3 A Reforma na cidade de Recife – PE .......................................................................... 32
3. PSICOLOGIA DISCURSIVA ............................................................................................ 35
3.1 Função ......................................................................................................................... 43
3.2 Variabilidade ............................................................................................................... 51
3.3 Construção ................................................................................................................... 56
3.4 Retórica ....................................................................................................................... 61
4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ........................................................................ 65
5. SOBRE CARÊNCIA, CRISES E AUSÊNCIAS: POSICIONANDO OS MORADORES 70
6. OS POSICIONAMENTOS CONTRUÍDOS SOBRE OS CUIDADORES ........................ 82
7. DESCREVENDO O SERVIÇO: AS DIFICULDADES DE TRABALHAR COMO
CUIDADOR .............................................................................................................................. 103
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................ 142
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RESUMO
Em sua versão mais recente, a Reforma Psiquiátrica brasileira tem objetivado a
desinstitucionalização, a qual tem sido compreendida enquanto a desconstrução de
saberes, discursos e práticas psiquiátricas que reduzem a loucura à doença mental e que
reforçam o modelo hospitalocêntrico. Nesse sentido, a elaboração da Portaria nº
106/2000, do Ministério da Saúde, introduz os Serviços Residenciais Terapêuticos
(SRTs) no âmbito do SUS. Os SRTs seriam moradias ou casas inseridas na comunidade
que teriam como principal foco o cuidado com os egressos de longas internações
psiquiátricas que não possuem laços sociais e familiares, viabilizando, assim, sua
inserção social e reabilitação psicossocial. Nesse sentido, a referida portaria estabelece
que os SRTs possuam equipe técnica composta, no mínimo, pelos seguintes
profissionais: a) 01 (um) profissional de nível superior da área de saúde com formação,
especialidade ou experiência na área de saúde mental, denominado de Técnico de
Referência (TR); b) 02 (dois) profissionais de nível médio com experiência e/ou
capacitação especifica em reabilitação psicossocial, denominados de cuidadores, os
quais devem atuar no sentido de viabilizar o processo de reabilitação psicossocial dos
moradores. Nesse sentido, os cuidadores podem ter uma função dúbia nos SRTs: podem
tanto funcionar enquanto facilitadores do processo de reabilitação psicossocial através
da organização de atividades dos moradores junto à comunidade, por exemplo; ou
podem exercer uma função coercitiva: os cuidadores podem funcionar enquanto agentes
que ditam o que é permitido ou proibido na casa, instituindo suas próprias regras. Tendo
em vista tais questões, realizamos uma pesquisa com onze cuidadores que atuam nos
SRTs masculino e feminino localizados no Distrito Sanitário V da cidade de Recife –
PE, tendo como objetivo analisar discursos dos cuidadores dos Serviços Residenciais
Terapêuticos na cidade de Recife - PE sobre a Reforma Psiquiátrica. Para análise dos
dados utilizamos o referencial teórico da Psicologia Discursiva, a qual compreende que
a linguagem não é um mero reflexo, um espelho da realidade, mas que a linguagem
constrói a realidade. Dessa forma, os cuidadores posicionaram os moradores como
sujeitos infantilizados, que são dependentes da atenção dos cuidadores. Já em relação ao
posicionamento construído sobre os próprios cuidadores, eles se apresentaram como
sujeitos atenciosos, que dispensavam todo o carinho e amor que os moradores
necessitavam, por serem sujeitos dependentes. Vale ressaltar que eles também
construíram um posicionamento dialético na relação cuidador-morador: eles afirmaram
que os moradores teriam se tornado sua segunda família, ao mesmo tempo em que eles
teriam se tornado a família dos moradores, os quais não possuiriam ou teriam vínculos
bastante fragilizados com seus familiares. Em relação à descrição construída sobre o
serviço, eles afirmaram que receberam uma capacitação muito superficial, bem como
relataram que o SRT é a segunda casa dos moradores. Consideramos, então, que os os
cuidadores necessitam de uma capacitação mais adequada para evitar a reprodução de
velhas práticas psiquiátricas dentro dos serviços substitutivos.
PALAVRAS-CHAVE: serviços residenciais terapêuticos; cuidadores; psicologia
discursiva; análise de discurso
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ABSTRACT
In its latest release, The Psychiatric Reform has aimed at deinstitutionalization,
which has been understood as the deconstruction of knowledge, discourses and
practices that reduce psychiatric madness to mental illness and strengthen the hospital-
centered model. In this sense, the elaboration of Ordinance No. 106/2000, the Ministry
of Health introduces the Therapeutic Residential Services (SRT) under the SUS. The
SRTs were entered homes or homes in the community who have mainly focused on
the care of the graduates of lengthy psychiatric hospitalizations that lack social and
family networks, enabling thus their social and psychosocial rehabilitation. In this
sense, that decree states that the technical team SRTs have at least the following
professionals: a) 01 (a) higher level professional in the health field with training,
expertise or experience in the mental health field, called Technical Reference (TR), b)
02 (two) mid-level professionals with experience and / or specific training in
psychosocial rehabilitation, called caregivers, who must act to facilitate the process of
psychosocial rehabilitation of the residents. Accordingly, the caregivers may have a
dubious role in SRT: can either operate as facilitators of the process of psychosocial
rehabilitation through the organization of activities of the residents in the community,
for example, or may have an enforcement function: the caregivers can act as agents
that dictate what is allowed or prohibited in the house, setting up their own rules.
Considering these issues, we conducted a survey of eleven caregivers who work in
male and female SRTs located in the Sanitary District V of the city of Recife - PE,
with the aim of analyzing the discourses of the caregivers of residential therapeutic
services in Recife - PE on Psychiatric Reform. For data analysis we used the
theoretical Discursive Psychology, which understands that language is not a mere
reflection, a mirror of reality, but that language constructs reality. Thus, caregivers
positioned infantilized residents as subjects, which are dependent on the attention of
caregivers. In relation to the positioning built on the caregivers themselves, they
presented themselves as caring individuals, that dismissed all the love and care that
residents need, because they are dependent subjects. It is noteworthy that they also
built a dialectical position in the resident-caregiver relationship: they said that
residents would become his second family, while they would become the family of
residents, which does not possess or have links rather fragile with their families.
Regarding the description built on the service, they said they received a very
superficial training, and reported that the SRT is the second house of residents. We
consider, then, that the caregivers need a more adequate training to prevent the
reproduction of old practices within the psychiatric services in replacement.
KEY WORDS: residential care, caregivers, discursive psychology, discourse analysis
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1. INTRODUÇÃO
Participei, durante minha graduação em Psicologia, na Universidade Estadual da
Paraíba em Campina Grande, do grupo de pesquisa Psicologia da Saúde através da
minha inserção na linha de pesquisa Saúde, Identidade e Práticas Discursivas. Na época
de meu desligamento do referido grupo (devido à incompatibilidade entre o horário de
reunião do grupo e o meu novo emprego), as pesquisas se voltavam para a questão da
Reforma Psiquiátrica naquela cidade.
Nesse mesmo período, também foquei minha atenção sobre a Reforma
Psiquiátrica a partir do anteprojeto de pesquisa que escrevi para me submeter à seleção
do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco, o qual buscava
compreender o posicionamento dos vigias e cuidadores dos Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRTs) nas cidades de Campina Grande – PB e Recife - PE. Uma vez
selecionado, continuei com a mesma temática, porém com duas diferenças.
Uma primeira diferença foi a proposta de pesquisar apenas na cidade de Recife –
PE. A segunda mudança que ocorreu no projeto foi a redução dos sujeitos da pesquisa:
seriam entrevistados apenas cuidadores, posto que os SRTs de Recife, ao contrário dos
que funcionam em Campina Grande, não possuem vigias.
Os SRTs são casas inseridas na comunidade para egressos de longas internações
psiquiátricas que possuem condição de retorno ao convívio social. Esta é uma estratégia
que vem sendo ampliada no Brasil: em 2004, existiam 1.363 moradores em SRTs e em
2009 esse número sobe para 2.829.
Simultaneamente ocorre a expansão de SRTs implantados no país: em 2004
encontramos 262 SRTs, dos quais 5 operavam em Pernambuco. Já em 2009
encontramos um total de 533 SRTs em funcionamento no país, dos quais 14 SRTs estão
localizados em Pernambuco, todas na cidade de Recife. Ainda no tocante à
Pernambuco, cabe ressaltar que no final de 2010 foi aberta a primeira residência de
Olinda e que, no início de 2011, foram abertas três residências no município de Paulista,
a partir do fechamento do Hospital Alberto Maia.
Porém, se faz necessário problematizar a abertura de SRTs, como se isso, per
si, bastasse para construir novas formas de lidar com a loucura: as residências seriam
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locais que proporcionariam um novo olhar sobre a loucura ou, ao contrário, seriam um
local de (re)produção do modelo psiquiátrico utilizado nos hospitais?
É nesse sentido que os cuidadores, profissionais de nível médio encarregados
de realizar a reabilitação psicossocial dos moradores, podem tanto facilitar o processo
de reabilitação psicossocial dos moradores, através do exercício da autonomia dos
moradores, bem como podem exercer uma função coercitiva, ditando o que é permitido
ou proibido na casa, instituindo suas próprias regras.
Perguntamo-nos, então: Esses sujeitos conhecem o discurso reformista? Se
conhecem, como definem o processo de Reforma Psiquiátrica? Como se posicionam em
relação ao processo? Se percebem implicados nesse processo? Quais as posições
identitárias que constroem sobre si mesmos, sobre os moradores e quais as descrições
que constroem sobre o serviço?
Estabelecemos, assim, como objetivo geral dessa pesquisa: analisar discursos
dos cuidadores dos Serviços Residenciais Terapêuticos na cidade de Recife - PE sobre a
Reforma Psiquiátrica, e possuindo como objetivos específicos: analisar descrições do
serviço, de si mesmos e dos moradores, procurando identificar posicionamentos em
relação ao serviço, definições do papel do mesmo no processo de reforma e as posições
identitárias construídas para si mesmos e para os moradores; identificar e analisar, nos
posicionamentos identitários construídos discursivamente para os moradores, exemplos
de combate à imagem tradicional do louco em nossa sociedade ou de reprodução da
mesma; e identificar e analisar os argumentos mobilizados para apoiar ou combater a
Reforma Psiquiátrica.
Na medida em que estudaamos a produção de sentidos sobre a Reforma
Psiquiátrica em discursos de sujeitos tão importantes para o bom funcionamento de um
de seus serviços, a pesquisa realizada procurou contribuir para uma maior compreensão
das dificuldades no caminho de um conjunto de políticas públicas de indiscutível
impacto social, políticas que procuram definir um novo lugar para a loucura em nossa
sociedade. Dito de outra forma, a pesquisa em questão mostra toda a sua relevância
quando se considera que é importante, para o aperfeiçoamento de uma política pública
essencial para o desenvolvimento social do estado de Pernambuco, saber se e como
cuidadores reproduzem ou combatem o modelo hospitalocêntrico.
Para tanto, estruturamos essa dissertação em seis capítulos. No capítulo inicial,
abordamos os SRTs dentro do contexto da Reforma Psiquiátrica. Além disso, também
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apresentamos alguns tipos de dispositivos residenciais utilizados em outros países, as
principais abordagens utilizadas para promoção da reabilitação psicossocial e a Reforma
Psiquiátrica no contexto da cidade de Recife.
No segundo capítulo, apresentamos o referencial teórico da Psicologia
Discursiva, utilizado na análise das entrevistas. O terceiro capítulo aborda as questões
metodológicas da pesquisa: instrumento utilizado, participantes, procedimentos para
análise das entrevistas, etc.
Já os capítulos quatro, cinco e seis apresentam a análise realizada a partir dos
discursos construídos pelos cuidadores sobre a Reforma Psiquiátrica, buscando
compreender os argumentos mobilizados para combater e/ou apoiar a Reforma, as
descrições de si mesmos, dos moradores e do serviço.
Por fim, apresentamos algumas considerações a título de reflexão, apontando
sugestões na tentativa de implementar o processo de Reforma Psiquiátrica no país,
através de melhor capacitação dos trabalhadores que atuam na saúde mental e, em
especial, os cuidadores dos SRTs.
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2. DE PACIENTES A MORADORES: OS SERVIÇOS RESIDENCIAIS
TERAPÊUTICOS
De acordo com Amorim e Dimenstein (2009), a Reforma Psiquiátrica
brasileira é um processo em construção e um projeto com diferentes versões. Para as
autoras, em sua versão mais recente, a Reforma brasileira, a qual fundamenta as
políticas de atenção em saúde mental, tem objetivado a desinstitucionalização.
No bojo dessas discussões, a desinstitucionalização tem sido compreendida
como um processo de desconstrução de saberes, discursos e práticas psiquiátricas que
reduzem a loucura à doença mental e que reforçam o modelo hospitalocêntrico, no qual
a principal referência na atenção à saúde é o hospital. No caso da atenção em saúde
mental, o hospital psiquiátrico (AMARANTE, 1996).
Amarante (1994) afirma que, em nosso país, durante a década de 1960, a doença
mental é transformada em mercadoria, posto que o Estado começa a comprar serviços
psiquiátricos particulares a partir da criação do Instituto Nacional de Previdência Social
(INPS). Durante esta época, ocorre a expansão de hospitais psiquiátricos privados nos
grandes centros urbanos a partir do investimento do capital privado.
Tal expansão acarretou uma sobrecarga financeira para o Estado, que se viu
obrigado a adotar, a partir de 1980, algumas medidas reguladoras e disciplinadoras do
capital privado. Para tanto, foi implantado a Co-Gestão entre os Ministérios da Saúde e
da Previdência Social e foram criados o Conselho Consultivo da Administração Pública
Previdenciária (CONASP), os Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde e o
Sistema Unificado de Saúde (SUDS e SUS, respectivamente).
Neste momento, inicia-se o processo de descentralização e municipalização da
saúde, além da participação de setores representativos da sociedade na formulação e
gestão do sistema de saúde, tal como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde
Mental, o qual lança, em 1987, o lema “Por uma sociedade sem manicômios”
(AMARANTE, 2007).
Outro momento que destacamos foi a realização da II Conferência Nacional de
Saúde Mental, ocorrida em 1992. Nessa Conferência foi discutida a importância
estratégica, para o avanço da Reforma, da implantação dos denominados “lares
abrigados” (BRASIL, 2004).
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Durante esse período, ocorrem algumas iniciativas que visavam à
desinstitucionalização dos pacientes de hospitais psiquiátricos. De acordo com Suyiama,
Rolim e Colvero (2007), os Lares Abrigados, como eram conhecidos na época, surgiram
nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul e possuíam como objetivo a saída dos
usuários das enfermarias para a sua participação na cidade.
Furtado (2006) também aponta experiências de desinstitucionalização em Porto
Alegre (RS), Campinas (SP), Santos (SP), Ribeirão Preto (SP) e Rio de Janeiro (RJ). As
experiências supracitadas serviram como base para a elaboração da Portaria nº
106/2000, do Ministério da Saúde, a qual introduz os SRTs no âmbito do SUS
(BRASIL, 2004), constituindo o que Amarante (2007) denomina de estratégias de
residencialidade.
De acordo com a referida Portaria, os Serviços Residenciais Terapêuticos
(SRTs) seriam moradias ou casas inseridas na comunidade que teriam como principal
foco o cuidado com os egressos de longas internações psiquiátricas que não possuem
laços sociais e familiares, viabilizando, assim, sua inserção social e reabilitação
psicossocial (BRASIL, 2000).
No tocante à estrutura física e funcionamento, os SRTs devem estar localizados
fora de unidades hospitalares, possuindo como estrutura mínima: sala de estar com
mobiliário adequado; dormitórios com cama e armário; copa e cozinha equipadas; e
devem oferecer um mínimo de três refeições por dia. Eles devem comportar, no
máximo, 08 usuários, distribuídos na proporção de até 03 por dormitório.
Um ponto a se destacar, no tocante aos moradores dos SRTs, é que estes devem
estar vinculados a um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial). Aqui residem duas
questões. A primeira é que os SRTs devem funcionar como moradias e não como
espaços terapêuticos em si. Apesar de receberem o nome de terapêuticas, o objetivo
maior dos SRTs não é promover um espaço terapêutico, tal como se define usualmente
(MOREIRA; ANDRADE, 2007; FURTADO, 2006). Os SRTs devem, principalmente,
funcionar como espaço de moradia, como uma nova forma da loucura se relacionar com
a cidade a partir do habitar (BRASIL, 2004).
O termo “terapêuticas” é usado devido à necessidade de vincular o serviço ao
Ministério da Saúde, garantindo verbas para seu funcionamento: No que diz respeito ao
financiamento desses serviços substitutivos, cabe destacar que a verba destinada à
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manutenção de pacientes em hospitais psiquiátricos devem ser redirecionadas aos SRTs
a partir do encaminhamento do usuário a esses novos serviços.
Vasconcelos (2008a, p. 98) aponta que a estratégia de referencialidade entre as
alternativas de moradias para os usuários que necessitam de cuidado contínuo e os
serviços de atenção psicossocial, como os CAPS, “constituem elementos-chave na
substituição dos leitos asilares e de enfermarias psiquiátricas convencionais”, evitando
que tal população seja simplesmente transferida para outras instituições, como
delegacias, penitenciárias, asilos, etc, bem como impede a simples desospitalização e
negligência social, principalmente ao levar em consideração a grande parcela dessa
população que se encontra sem vínculos familiares.
Já o segundo ponto se refere à relação estabelecida entre os moradores dos SRTs
e o CAPS de referência. Nesse sentido, vale destacar que os moradores que buscam os
serviços do CAPS devem ser tratados como qualquer outro usuário, pois a idéia de
promover a cidadania dos moradores perpassa a idéia de serem tratados como usuários
comuns (MOREIRA; ANDRADE, 2007; FURTADO, 2006). De acordo com Gonçalves
e Sena (2001, p. 51) “espera-se, muito mais, o resgate ou o estabelecimento da
cidadania do doente mental, o respeito à sua singularidade e subjetividade, tornando-o
sujeito de seu próprio tratamento sem a idéia de cura como o único horizonte”.
Para a implantação dos SRT, o Ministério da Saúde repassa uma verba no valor
de R$ 10.000,00 objetivando a realização de pequenos reparos no imóvel, compra de
móveis, eletrodomésticos e demais utensílios necessários. Juntamente com esses
recursos, há um repasse mensal que pode atingir o valor de R$ 7.000,00 a R$ 8.000,00,
advindos do repasse financeiro acarretado pelo fechamento de leitos em hospitais
psiquiátricos a partir da inserção dos usuários nos SRTs.
Dessa forma, Vasconcelos (2008a) aponta que os SRTs possuem o papel
fundamental de evitar o simples fechamento dos leitos em hospitais psiquiátricos e a
extinção dos recursos destinados à manutenção dos serviços de saúde mental.
Nessa direção, o atual contexto de políticas sociais neoliberais,
com um vertiginoso desinvestimento nos programas sociais,
revelou um caráter até então pouco reconhecido nas análises do
sistema asilar, tradicionalmente centradas mais no caráter
segregador e de controle social da instituição psiquiátrica: a de
que estas geralmente enormes instituições constituem uma forte
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concentração geográfica de recursos patrimoniais e humanos no
campo da saúde mental (VASCONCELOS, 2008a, p. 99).
Assim, o autor aponta para o fato de que o processo de desinstitucionalização
exige a conversão e desconcentração dos recursos necessários para o funcionamento dos
serviços de saúde mental, tendo em vista que esta é uma das formas de implementar
serviços substitutivos descentralizados dentro das comunidades, evitando, assim, que
tais recursos sejam simplesmente extintos (VASCONCELOS, 2008a).
Os usuários devem ser encaminhados para os SRTs tendo em vista os critérios
propostos pelos gestores municipal ou estadual do SUS. Também cabe às secretarias
estaduais e municipais de saúde estabelecer a rotina de supervisão, acompanhamento,
controle e avaliação da qualidade dos serviços prestados nos SRTs.
Dentro das ações voltadas à desinstitucionalização dos internos de hospitais
psiquiátricos, encontramos também o Programa de Volta para Casa. O seu objetivo é
possibilitar a inserção social dos sujeitos que possuem algum transtorno mental com
história de longa internação psiquiátrica (dois anos ou mais), através da instituição de
um auxílio-reabilitação psicossocial, no valor de R$240,00, que deve ser pago
diretamente ao beneficiário (BRASIL, s/d).
Os beneficiários podem ser pessoas acometidas de transtorno mental egressos de
internações psiquiátricas em hospitais cadastrados no SIH/SUS (Sistema de Informação
de Hospitalares), por um período ininterrupto de, no mínimo, dois anos e com uma
situação clínica e social não justifique sua permanência em regime hospitalar; assim
como pessoas inseridas nos SRTs, egressos de Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico, por período igual ao supracitado (BRASIL, s/d).
Diversos autores (MOREIRA; ANDRADE, 2007; DIMENSTEIN, 2006;
SUYIAMA; ROLIM; COLVERO, 2007) que estudam a reforma psiquiátrica e, mais
especificamente, os SRTs, afirmam que este é um dispositivo potente “para propiciar a
inserção do portador de transtorno mental na cidade, para fazê-los circular por outros
circuitos, que não os cronificantes” (DIMENSTEIN, 2006, p. 77).
Em consonância com os autores supracitados, Vasconcelos (2008a) afirma que,
no tocante aos interesses específicos dos usuários, os SRTs são elementos fundamentais
na constituição de seu bem-estar físico e psíquico, além de ser importante referencial no
campo da saúde mental. Nesse sentido, os SRTs permitem que os moradores possam se
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reapropriar, de maneira muito mais efetiva, das dimensões real e simbólica do corpo, do
espaço e do tempo, dos usos dos objetos e da criação de vínculos interpessoais.
Para o autor, já o caso inverso, ou seja, a inexistência de moradia constitui um
fator altamente estressante, o qual pode acarretar novas crises e novas internações
psiquiátricas. A existência de moradia, então, está no cerne da reinserção social dos
moradores, possibilitando o aumento das trocas e do poder contratual dos usuários.
Dessa forma, uma vez exposta as principais questões relacionadas ao
funcionamento de um SRT, apresentamos as principais abordagens que orientam o
funcionamento dos dispositivos residenciais.
2.1 Abordagens Teóricas e Modalidades de Serviços Residenciais Terapêuticos
Vasconcelos (2008a) identificou três abordagens existentes na literatura
internacional que orientam a práxis dos SRTs:
a) A abordagem da Psiquiatria Democrática Italiana - consiste na integração
de idéias advindas do marxismo de Gramsci, das teorias do desvio social e,
em particular, do interacionismo simbólico, de Foucault e da fenomenologia
existencial. Em nosso país essa abordagem vem sendo difundida a partir da
tradução das obras dos próprios autores italianos, como Basaglia e Rotelli,
além de autores brasileiros que comentam e sistematizam a experiência
italiana, como Delgado;
b) As abordagens escandinava e anglo-saxônica da normalização e do
“empowerment” – possuem várias características, das quais podemos citar: a
existência de diversos grupos organizados (grupos de usuários, mistos de
usuários, familiares e profissionais, usuários individuais que tentam formar
grupos); defesa da organização autônoma dos usuários; a maioria dos grupos
objetiva, além de modificar a relação da sociedade com a loucura, a
constituição de grupos e serviços próprios e/ou dirigidos por usuários e/ou
ex-usuários, como clubes, grupos de auto-ajuda, serviços residenciais ou de
suporte domiciliar, etc (VASCONCELOS, 2008b);
c) A epidemiologia aplicada a serviços de saúde mental – a epidemiologia se
dedica ao estudo da prevalência e incidência das doenças, seus determinantes
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e aspectos biológicos, histórico-sociais, culturais, ambientais e demográficos
associados. Mais recentemente, a epidemiologia também vem se
preocupando em estudar a forma pela qual os aspectos supracitados incidem
na qualidade dos serviços de saúde pública. Nesse sentido, a epidemiologia
busca estudar, nos SRTs, o papel terapêutico, a validade assistencial, o custo
e o impacto sobre a saúde dos moradores (VASCONCELOS, 2008a).
Além das abordagens citadas, o referido autor afirma que os SRTs recebem
contribuições teóricas de algumas abordagens disciplinares mais específicas, tais como:
Intervenção terapêutica grupal e institucional em saúde mental;
Fenomenologia do morar/habitar e dos processos de reconstrução do
espaço pessoal, tal como desenvolvida por Bachelard;
Da antropologia e do interacionismo simbólico, objetivando a análise da
reconstrução da identidade pessoal;
Da representação social da saúde e da doença, como em Jodelet, assim
como das estratégias de enfretamento do estigma associado à loucura;
Dos aspectos arquitetônicos da construção ou adaptação de prédios para
acomodarem os SRTs, entre outras.
Segundo esse autor, a forte tradição hegemônica de nosso país de oferecer
serviços de saúde mental do tipo estatal, caracterizados por uma cultura terapêutica
mantenedora de relações verticalizadas e hierarquizadas entre os profissionais e os
usuários poderia levar a crer que existem apenas serviços residenciais oferecidos pelo
Estado e com funcionamento atrelado aos profissionais de saúde mental. Ocorre, porém,
que encontramos diversos exemplos internacionais que mostram que a estruturação dos
serviços residenciais pode ser muito mais flexível do que se imagina:
O princípio básico que orienta a proposta desse leque mais
amplo de opções residenciais é ofertar dispositivos adequados à
variedade de quadros diferenciados de dependência e
autonomia, à situação social, familiar e comunitária e ao desejo
expresso, de cada cliente singular (VASCONCELOS, 2008a,
p;114).
Ramon (1996, citado em Vasconcelos, 2008a), destaca os seguintes tipos de
dispositivos residenciais existentes no contexto europeu:
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a) Esquemas residenciais adaptados dentro do ambiente hospitalar
Também denominados de hospital hostels ou hospital wards in the community,
possuem sua origem na Itália durante a década de 1970, sendo difundido de maneira
mais ampla durante os anos 1980. Consistem em uma adaptação de alas de hospitais
para suítes, apartamentos ou casas, nos quais os moradores possuiriam a chave. São
destinados à moradores mais dependentes ou com comportamentos mais desafiantes, ou
usuários com longo histórico de internação psiquiátrica que optam por continuar
morando na instituição. Contam com o auxílio de trabalhadores que realizam supervisão
e oferecem suporte aos moradores por 24 horas ou, ao menos durante o turno noturno.
Esta modalidade também vem sendo utilizada para usuários com delitos penais
associados, os quais exigem maior supervisão e controle.
No tocante às limitações, Vasconcelos (2008a) aponta que os pontos avaliados
estão relacionados à:
Adaptação e similaridade com um ambiente doméstico;
Grau de autonomia dos usuários para gestão da residência e participação
nas decisões em conjunto com os trabalhadores;
Número de usuários por quarto e por residência, além do grau de
privacidade;
Capacidade de circulação social;
Possibilidade dos trabalhadores reproduzirem a antiga cultura
institucional;
Grau de desvalorização e estigmatização produzido pelo ambiente e pelos
trabalhadores.
O autor ainda afirma que experiências desse tipo ocorreram nas cidades
italianas de Trieste e Arezzo, onde foram construídas instalações adaptadas em hospitais
localizados na área urbana, nos quais os moradores, denominados hospedes, escolheram
continuar a viver.
No Brasil, os antigos asilos tem utilizado essa estratégia de readaptação para
continuarem a funcionar, principalmente ao levar em consideração a idade e as
limitações físicas da maior parte dos usuários, geralmente internos de longa duração,
que vivem nessas instituições.
22
b) Esquemas de recolocação em famílias
Constitui uma das maneiras mais antigas de resolver problemas relacionados à
saúde mental. Um dos casos mais antigos encontrados é o da cidade belga de Gheel.
Esta cidade desenvolve desde o século XVIII um sistema de famílias adotivas para
adultos que haviam saído do hospital psiquiátrico local. No entanto, alguns estudos,
como o realizado por Roosnes (1979, citado em Vasconcelos, 2008a), apontam para a
sobrevivência do estigma relacionado aos loucos.
Outro exemplo está nas cidades francesas de Du-sur-Arun e Aine-le-Chateau,
sendo esta última analisada em pesquisa realizada por Jodelet. Nessa pesquisa, Jodelet
analisou como 1195 usuários considerados sem problemas sociais graves se
relacionavam nas 439 famílias que os acolheram durante os anos de 1980. Tais famílias
ganhavam uma ajuda financeira para manter os novos moradores, o que resultou na
mobilização das famílias mais pobres, gerando muitos problemas, dos quais a autora
destaca:
A permanência do estigma, do medo e da institucionalidade legal em
relação aos pacientes;
A insuficiência de programas de reinserção social;
A falta de privacidade e/ou do direito de receber visitas na casa.
c) As experiências de “Group Homes” (casas coletivas)
Tais experiências vêm sendo desenvolvidas na Europa desde a década de 1960
e exigem um grande investimento em planejamento, infra-estrutura, auxílios
financeiros, seleção e preparação dos residentes e dos trabalhadores, manutenção física
e investimento constante em recursos humanos na casa, possuindo como outras
características relevantes:
As características e localização da casa na cidade e nas redes de troca
social;
Número de residentes e a adequação da casa às suas necessidades e
privacidade;
Capacidade dos moradores gerirem individual e coletivamente a
residência;
23
O regime, a filosofia implícita e a qualidade da supervisão, tendo em
vista as relações de dependência, necessidade de suporte e/ou
autonomia;
Acesso à rede de serviços públicos e aos serviços de atenção
psicossocial.
Vasconcelos (2008a) afirma que os melhores resultados dessa modalidade de
residência estão relacionados ao baixo grau de reinternamento em hospitais
psiquiátricos, e à melhora do poder contratual dos usuários, do autocuidado e da
qualidade de vida dos mesmos. No entanto, o alto custo de manutenção tem sido
apontado como o principal desafio à popularização dessa modalidade, principalmente se
comparado ao custo de manutenção dos hospitais psiquiátricos, onde os internos vivem
apenas de serviços considerados básicos.
Outro ponto negativo destacado pelo autor é o fato de que essas residências
são, de maneira geral, desenhadas para abrigar os internos mais antigos dos hospitais
psiquiátricos, excluindo os denominados “novos crônicos” (usuários mais jovens e com
exigências de cuidado mais desafiadoras).
d) Serviços residenciais integrados
Neste tipo de experiência encontramos várias unidades residenciais com
grande grau de autonomia e vida independente (apartamentos individuais, duplos, por
exemplo), integrados a um serviço de suporte, aberto 24 horas por dia e 7 dias por
semana. Neste tipo de dispositivos podem ser incluídos moradores que possuem
transtorno mental, demência ou deficiências de vários tipos.
Como aspecto positivo a ser ressaltado, encontramos o fato que estas
residências permitem uma passagem mais tranqüila de um nível de autonomia para
outro, assim como permite um maior contato entre os residentes.
Já em relação aos aspectos negativos podemos citar a manutenção da
segregação, isolamento, a possibilidade de iniciar um processo de
transinstitucionalização, principalmente se as residências não estimularem a reinserção
social dos moradores.
e) Comunidades Terapêuticas
24
Surgiram na Europa e nos Estados Unidos a partir da Segunda Guerra
Mundial, quando passaram a ser utilizadas como serviços especializados para soldados,
e a partir de então foram construídas no interior dos espaços hospitalares. A
característica central desse modelo é o acoplamento do atendimento terapêutico e de
atenção psicossocial disponíveis internamente ou acoplados ao serviço.
No entanto, diante do contexto de gastos orçamentários que ocorreu durante a
década de 1980, vários desses serviços foram fechados por serem considerados
excessivamente dispendiosos.
Além disso, esse tipo de modalidade recebeu duras críticas do grupo que
liderava o movimento da Reforma Democrática Italiana por reproduzir em vários
aspectos o antigo modelo hospitalocêntrico, tais como a segregação e exclusão dos
usuários.
f) Aluguéis e outros esquemas individuais no mercado privado de
moradias
O aluguel convencional de uma residência é uma das opções que o usuário
possui, mas nesse processo ele pode encontrar algumas dificuldades, tais como:
dificuldades do pagamento de aluguel e/ou falta de cuidado com a moradia; reclamações
dos vizinhos sobre comportamentos indesejáveis dos moradores; solidão e falta de apoio
comunitário em locais hostis.
Para que essa opção possa ser realmente efetivada, é necessário contar com o
suporte de profissionais ou de um grupo formado por profissionais e leigos no sentido
de ajudar a solucionar os impasses citados acima, além de outros, como acesso à rede de
atenção psicossocial e serviços sociais e educacionais em geral.
Dessa forma, encontramos em comum entre diversas modalidades de serviços
residenciais o fato de sempre exigirem, em maior ou menor grau, a atenção de algum
profissional da área de saúde mental. Nesse sentido, em nosso país a Portaria nº
106/2000 estabelece que os SRTs possuam equipe técnica composta, no mínimo, pelos
seguintes profissionais:
a) 01 (um) profissional de nível superior da área de saúde com formação,
especialidade ou experiência na área de saúde mental, denominado de Técnico de
Referência (TR);
25
b) 02 (dois) profissionais de nível médio com experiência e/ou capacitação
especifica em reabilitação psicossocial.
Estes profissionais devem atuar na assistência e supervisão das atividades
desenvolvidas nos SRTs. Vale ressaltar que os profissionais de nível médio
encarregados de cuidar dos moradores são denominados de cuidadores (BRASIL,
2004).
Na tentativa de inserir os moradores socialmente e de inventar uma nova forma
de lidar com a loucura, os cuidadores dos SRTs devem atuar no sentido de viabilizar o
processo de reabilitação psicossocial dos moradores. Mas qual o significado do termo
reabilitação psicossocial no contexto da reforma psiquiátrica?
2.2 A reabilitação psicossocial
De acordo com Sidrim (2010), a prática da reabilitação surgiu relacionada à
prática médica e tinha como objetivo a retomada da funcionalidade do paciente e a
compensação ou eliminação de déficits ocasionados pelo adoecimento. Este modelo
funcionalista e organicista foi transposto para o campo da psiquiatria, sendo
denominado de reabilitação psiquiátrica ou reabilitação psicossocial.
Para a autora, a doença mental, a partir desta transposição, passou a ser vista
como algo naturalizado, destituído de condicionantes histórico-sociais (inclusive em
seus próprios conceitos teóricos), sendo o louco considerado um ser sem subjetividade.
Assim, originalmente foi a partir dessa concepção de reabilitação psicossocial de cunho
organicista e adaptacionista que o conceito de reabilitação foi inserido no campo da
saúde mental.
Posteriormente, foram desenvolvidas outras perspectivas de reabilitação
psicossocial a partir da utilização de várias técnicas de orientação cognitiva ou
educacionais. Saraceno (1999), citado por Fonseca (2006), destaca os seguintes modelos
de reabilitação psicossocial: Modelos de Social Skill Training, Modelos Psico-
educativos e Modelo de Spinak (de orientação comportamentalista), e o Modelo de Luc
Ciompi, o qual possui uma orientação psicossocial.
Modelos de Social Skill Training
26
Utilizando a teoria da aprendizagem de orientação comportamentalista, tal
modelo objetiva promover a aquisição, generalização e a permanência de habilidades.
Busca desenvolver treinamentos, ações protetoras ou potencializadoras de habilidades
específicas para enfretamento de situações estressantes. No entanto, tais treinamentos
tendem a falhar fora dos settings terapêuticos, posto que a complexidade das situações
que ocorrem na vida cotidiana exigem habilidades mais sofisticadas do que aquelas
treinadas durante o setting.
Modelos Psico-educativos
Também de orientação comportamentalista, difere do anterior por utilizar
contribuições da Teoria das Emoções Expressas, desenvolvida durante a década de
1960. Segundo esta teoria, o grau de tensão exposto nas expressões verbais e/ou não-
verbais entre os pacientes e as demais pessoas poderia favorecer ou não o
desenvolvimento de crises psicóticas.
Este modelo, no entanto, reduz o objetivo da reabilitação ao tratamento de
sintomas e à prevenção de recaídas. Além disso, por esta abordagem centrar suas
atenções na família, ela acaba por desconsiderar ou minimizar outros aspectos do
contexto no qual o paciente está inserido enquanto espaço fundamental para sua
reabilitação.
Modelo de Spinak
Possui como objetivo o estudo das maneiras pelas quais o sujeito se dessocializa,
tendo como foco a compreensão de formas de evitar tal dessocialização. Este modelo
possui como pressuposto a idéia de que os pacientes apresentam um déficit de
competência social e pessoal, além de uma reação negativa ao meio.
A principal intervenção está em neutralizar o processo cronificador através da
articulação do sujeito com o ambiente, aumentando sua capacidade para enfrentar as
normas estabelecidas socialmente. Sua principal atuação reside, dessa forma, no
paciente e não no ambiente no qual ele está inserido.
Modelo de Luc Ciompi
Utilizando contribuições oriundas da epidemiologia, este modelo trouxe
importantes contribuições na maneira de compreender a psicose enquanto um artefato
social. Os aspectos cronificantes da psicose seriam, então, decorrentes de determinantes
sociais e não individuais.
27
Este modelo busca atuar com todos os atores envolvidos no processo de
reabilitação, rompendo com o modelo comportamentalista de atuação individual.
Apesar desse avanço, ele não critica os pressupostos do modelo hospitalocêntrico.
Segundo Fonseca (2006), a Reforma Italiana, a qual inspira o processo de
Reforma no Brasil, não possui um modelo ou teoria sobre a reabilitação psicossocial.
Para esta perspectiva, existe um conjunto de ações reabilitadoras que devem levar em
consideração o poder contratual do indivíduo.
Amarante (1994) afirma que Franco Basaglia, principal expoente da Reforma
Democrática Italiana, desenvolve em Potere ed istituzionalizzazione uma estratégia de
relacionamento, de cunho contratual, a qual apostava na idéia de que a função da
psiquiatria e a situação dos enfermos deveria ser de responsabilidade comum entre
técnicos e internos. Seria necessária então a invenção de novas estratégias de mediação,
que iriam desde estratégias médicas ou psicológicas até estratégias culturais, sociais e
políticas e que seriam posteriormente denominadas de reabilitação psicossocial
(AMARANTE, 1996).
Alguns autores, como Saraceno (1999), citado por Fonseca (2006), e Lussi,
Pereira e Junior (2006) afirmam que o objetivo maior da reabilitação psicossocial é
permitir que pacientes crônicos desenvolvam ao máximo sua autonomia em ambientes
normais. Segundo Hirdes e Kantorski (2004), a reabilitação psicossocial é bastante útil
no exercício do cuidar na comunidade, tal como proposto através da
desinstitucionalização.
Segundo Saraceno (2001a), a reabilitação psicossocial não é uma tecnologia
mas, isto sim, uma abordagem ou estratégia que deve objetivar mais do que
simplesmente passar o usuário de um estado de desabilidade para um estado de
capacidade. Nesse sentido, a reabilitação não deve ser compreendida enquanto uma
técnica específica, mas enquanto uma estratégia global que mobiliza todos os atores
envolvidos em seu processo: usuários, profissionais e comunidade.
Desenvolvendo um pouco mais esta linha de argumentação, Kinoshita (2001)
afirma que o doente mental, de maneira geral, é caracterizado a partir de sua
negatividade, ou seja, daquilo que lhe falta, tornando nulo seu poder contratual.
Segundo o autor, o poder contratual de uma pessoa está baseada em três dimensões
fundamentais: trocas de bens, de mensagens e de afetos.
28
Assim, ao ser denominada de doente mental, uma pessoa possui seus bens postos
sob suspeita, sendo considerada incapaz de se comunicar, tornando suas mensagens
incompreensíveis e seus afetos são considerados desnaturados. Neste sentido, reabilitar
pode ser compreendido como um processo de restituição do poder contratual do usuário,
objetivando a ampliação de sua autonomia (KINOSHITA, 2001).
Cabe destacar ainda que, para Kinoshita (2001), autonomia não deve ser
compreendida enquanto auto-suficiência ou a total independência do usuário. De
maneira diferente, autonomia, dentro do contexto da reabilitação psicossocial, deve ser
compreendida enquanto capacidade que o indivíduo possui de gerar normas, ordens para
a vida, de acordo com as diversas situações nas quais esteja inserido.
Para tanto, faz-se necessário exercer a contratualidade dos indivíduos a partir de
três eixos, como afirma Saraceno (1996), citado por Randemark (2009): o morar, a rede
social e o trabalho. O morar é visto como um habitar, com todas as implicações que
supõe: direito à privacidade, expressão de sentimentos, negociação para resolução de
problemas cotidianos, etc.
A compreensão de rede social se estende da família até a comunidade em geral.
É na criação de novos vínculos que os usuários encontram a capacidade de exercerem
novas relações contratuais. É no espaço comunitário que o usuário pode mobilizar
diversos recursos no intuito de resolver possíveis problemas.
Já o eixo do trabalho não deve ser compreendido enquanto trabalho alienante, tal
como proposto por Pinel e seu tratamento moral. O trabalho deve, isto sim, ser utilizado
enquanto ponto de partida, e não ponto de chegada: é através da possibilidade de
trabalhar e de ganhar pelo trabalho que o sujeito se reconhece enquanto sujeito de
direito e sujeito de desejo.
O processo de reabilitação psicossocial exige, a partir do exercício dos três
eixos, não apenas uma relação entre técnicos e moradores, mas entre os diversos atores
envolvidos no desenrolar das instituições que, no caso dos SRTs, seriam técnicos,
moradores, famílias e comunidade (SANTOS, 2008).
Os técnicos são vistos, dessa forma, enquanto peças fundamentais na construção
dos eixos supracitados, servindo como mediadores do processo entre os usuários e o
contexto. É nessa medida que faz-se necessário o esforço dos técnicos no sentido de
promover a singularidade dos sujeitos, adotando estratégias que viabilizem o exercício
29
de suas potencialidades, objetivando a construção de uma melhor qualidade de vida para
os usuários (RANDEMARK, 2009).
A contratualidade do usuário, primeiramente, vai estar
determinada pela relação estabelecida pelos próprios
profissionais que o atendem. Se estes podem usar de seu poder
para aumentar o poder do usuário ou não. Depois pela
capacidade de se elaborar projetos, isto é, ações práticas que
modifiquem as condições concretas de vida, de modo que a
subjetividade do usuário possa enriquecer-se, assim como, para
que as abordagens terapêuticas específicas possam
contextualizar-se (KINOSHITA, 2001, pp. 56-57).
A reabilitação psicossocial é compreendida, então, como um processo de
estabelecimento ou de resgate de cidadania, a qual deve ser entendida enquanto
admissão da pluralidade de sujeitos, com suas singularidades e diferenças, como afirma
Amarante (1996).
No entanto, vários autores (PITTA, 2001; SARACENO, 2001b; BERTOLOTE,
2001) apontam algumas críticas tanto na utilização do conceito de reabilitação
psicossocial quanto no desenvolvimento dos serviços ao utilizarem essa nomenclatura.
De acordo com Pitta (2001), a utilização do termo Reabilitação Psicossocial traz
consigo alguns valores implícitos quando analisado a partir de sua etimologia. Para a
autora, o prefixo RE apresenta a idéia de movimento para traz e/ou repetição. Já
HABILITAÇÃO é o fato de habilitar-se através da aquisição de conhecimentos, aptidões,
capacidades. Já do ponto de vista jurídico, esse termo ainda apresentaria a idéia de
formalidades necessárias para aquisição de um direito ou demonstração de capacidade
legal para exercício de alguma atividade.
Quando juntos na palavra Reabilitação, impõe um sentido de
recobrança de crédito, estima ou bom conceito perante a
sociedade. Recupera faculdades físicas ou psíquicas dos
incapacitados e é este sentido “ortopédico” de reabilitação de
funções físicas o que mais facilmente ocorre no imaginário
brasileiro. Os serviços de reabilitação física existem
concretamente e são conhecidos e utilizados pelos usuários,
prevalecendo um modelo mecânico de concerto de disfunções,
30
fraturas, buscando um retorno à fisiologia “normal” (PITTA,
2001, p. 23).
Outra crítica advém do fato de que o termo re-habilitar carrega implicitamente a
idéia de um retorno a um passado considerado normal, o qual deve ser retomado a todo
custo, produzindo:
tensão em relação a um passado inexistente;
referência à idéia de cura, revelando a insistência de normalização e de controle
social;
a exigência de um resgate, o qual reproduz o estigma de redimir a doença;
a separação dos âmbitos da cura, reabilitação e prevenção (VENTURIN;
GALASSI; RODA; SERGIO, 2003).
Outra crítica que alguns autores realizam (SARACENO, 2001b; BERTOLOTE,
2001) reside no fato da reabilitação social ser uma prática à espera de teoria. Segundo
Saraceno (2001b), as práticas terapêuticas derivadas da prática clínica são consideradas,
atualmente, insatisfatórias, posto que as doenças mentais são uma das poucas doenças
onde a morbidade não tem se modificado no curso do tempo.
Para o autor, enquanto a clínica vem gerando um modelo insatisfatório, outras
práticas, como a reabilitação psicossocial, vêm demonstrando alcançarem bons
resultados. Apostando na idéia de negociação, a reabilitação psicossocial tem apostado
no aumento da capacidade relacional do sujeito a partir das trocas sociais. No entanto,
ainda que as teorias que embasam a reabilitação psicossocial possam estar em
construção, o autor adverte para o perigo de velhas práticas serem retomadas:
A ideologia de capacitar os descapacitados a tomarem partido
numa sociedade forte e, então, pensar a Reabilitação
Psicossocial como um processo de fortalecimento de fraquezas,
ou ideologias populistas que pensam que os fracos devem ser
apoiados pois a sociedade, muito má, os condenou à
marginalidade, que é um ranço de uma retórica reabilitivo-
populista muito perigosa e ideológica (SARACENO, 2001b, p.
152).
31
Para o autor, o desafio para a construção de uma teoria que oriente a prática da
reabilitação psicossocial é justamente o de reconstruir um campo de encontro entre
usuários e profissionais que produza sentido.
É a produção de sentido, em lugar da reprodução, de um
encontro onde as identidades estão há muito tempo pré-
definidas: “Eu sou TO, você é psicótico”. O encontro de maus
profissionais, conhecimentos técnicos e identidades pré-
estabelecidas gera reprodução de doença, reprodução de
poderes, reprodução de ideologias. Reprodução no lugar de
produção de sentido, ou seja, produção de saúde (SARACENO,
2001b, p.153).
Neste sentido, Bertolote (2001), em consonância com Saraceno (2001b), afirma
que a reabilitação psicossocial deve estar preocupada também com questões
relacionadas à linguagem, posto que a reprodução de antigas práticas hospitalocêntricas
podem continuar através da utilização de determinados conceitos, por exemplo.
A linguagem da reabilitação passa ao largo da terminologia
médica, e até por hábito, tradição ou vício, nós estaremos
prestando um desserviço à Reabilitação Psicossocial e às
pessoas que dela poderiam se beneficiar. O conceito com os
quais estamos trabalhando de deficiência, incapacidade, de
desvantagem, me parece que suprem e superam com grandes
vantagens a terminologia médica de doença, síndrome ou
transtorno (BERTOLOTE, 2001, p. 157).
Por todas as críticas expostas até o momento, e também na tentativa de
estabelecer um novo sentido ao conceito de reabilitação psicossocial, passaremos a
utilizar o termo habilitação psicossocial, posto que ele permite: olhar para um presente
que contém os condicionamentos do passado, mas que se abre a perspectivas que
avançam para além das doenças e seus determinantes; e poder voltar-se à parte saudável
e não àquela doente do paciente, desenvolvendo as potencialidades e possibilitando a
construção de uma identidade positiva para o sujeito.
Portanto, se podemos utilizar a metáfora da remoção de barreiras para
compreender a habilitação psicossocial, temos que começar a remover as barreiras
32
lingüísticas, as barreiras comunicacionais que dificultam a vida daqueles que estão
envolvidos de alguma maneira com a prática da habilitação psicossocial.
2.3 A Reforma na cidade de Recife – PE
O início do movimento de Reforma Psiquiátrica na cidade de Recife – PE data
do começo da década de 1990 (COUTO et al., 2001; OLIVEIRA, 2008). Segundo
Couto et al. (2001), foram criados um conjunto de propostas e dispositivos sanitários
que possuíam como objetivo promover uma política de desospitalização progressiva, a
medida em que eram criados recursos assistenciais extra-hospitalares e da integração da
atenção em Saúde Mental ao Sistema Único de Saúde (SUS).
De acordo com Leite (2009), a política de Saúde Mental empreendida na cidade
de Recife – PE, tem se configurado a partir dos questionamentos realizados diante da
qualidade da assistência oferecida aos usuários de tal política. A questão posta por tal
política é a de não curar a doença mas, isto sim, cuidar do sujeito, compreendendo-o a
partir de sua singularidade.
Dessa maneira, dentro do processo de municipalização dos serviços de saúde,
foram instituídos os seguintes pressupostos para atuação na área de Saúde Mental:
redimir não apenas o sintoma, mas ir além destes,
compreendendo a complexidade da existência do sujeito, seus
desejos e necessidades; possibilitar a este sujeito a construção
de estratégias capazes de diminuir tal sofrimento e aumentar o
seu poder de contratualidade com a família e a vizinhança
garantindo o seu espaço social independente de sua forma de ser
e compreender o mundo (LEITE, 2009, p.15)
Em relação aos seus objetivos, tal política pretendeu firmar o modelo de atenção
territorial baseada na divisão da cidade em distritos, compreendendo todos os níveis de
atenção em saúde; realizar a inclusão social dos usuários junto às suas famílias e
comunidade, desenvolvendo o processo de habilitação psicossocial; desconstruir a
atenção baseada no modelo hospitalocêntrico; discutir a idéia de transversalidade dentro
da área da Saúde Mental.
33
Foram implantados, na tentativa de concretizar a política descrita acima,
diversos serviços substitutivos. Em 2001, a cidade possuía apenas um CAPS público,
sendo este número continuamente ampliado a partir da implantação de mais 14 CAPS,
localizados em diferentes distritos, sendo sete para adultos com transtornos psíquicos
(um atendendo em regime de 24 horas), dois CAPSi (voltados para os usuários infanto-
juvenis) e seis CAPSad (que atendem pessoas que desenvolveram transtornos causados
pelo uso de álcool, fumo e drogas ilícitas). Vale destacar que cinco CAPSad possuem
albergues terapêuticos, que são pensões protegidas destinadas àqueles usuários que
necessitam de atenção intensiva (LEITE, 2009).
Foram implantados, também, diversos ambulatórios de Psiquiatria e Psicologia
distribuídos nas Políclinicas instaladas em 10 unidades de saúde e foram mantidos os
seis hospitais privados e conveniados ao SUS, os quais disponibilizam 1.384 leitos.
Também encontramos o Projeto ReHabitar enquanto um dos principais eixos
articuladores das propostas de Saúde Mental no município de Recife - PE. De acordo
com Mendonça (2007), seu principal objetivo é promover a vida autônoma aos
pacientes no contexto extra-institucional, sendo constituído, de acordo com Leite
(2009), pelo Projeto de Volta à Família e pelo Projeto de Residências Terapêuticas.
Segundo a autora, o Projeto de Volta à Família, destinado àqueles que residem
em hospitais psiquiátricos e instituições asilares que têm condições de retornar à sua
comunidade e família, também compõe o projeto ReHabitar, assim como o projeto de
Residências Terapêuticas, o qual é composto por quatorze SRTs, localizadas nos
seguintes bairros: Cajueiro, Campina do Barreto, Tamarineira, Casa Amarela, Iputinga,
Cordeiro, Afogados e IPSEP, distribuídos em cinco Distritos Sanitários (II, III, IV, V e
VI).
O projeto de Residências Terapêuticas foi iniciado em 12 de Novembro de 1999,
quando foi implantado um Lar Abrigado dentro do espaço hospitalar. No entanto, Leite
(2009) afirma que essa experiência não foi a primeira do Estado, posto que há o registro
de duas experiências semelhantes no Hospital Alcides Codiceira, localizado no
município de Igarassu – PE.
Além disso, esta não foi a primeira experiência na qual se buscou a
desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos e seu retorno à comunidade no Estado
de Pernambuco. Segundo Oliveira (2008), houve uma experiência de
desinstitucionalização datada da época em que o psiquiatra Ulisses Pernambucano
34
assumiu o cargo de diretor do antigo Hospício da Tamarineira, o qual era denominado,
naquela época, de Hospital de Doenças Nervosas e Mental.
Por volta da década de 1930 e sob coordenação-geral de Ulisses Pernambucano
foram instituídas uma série de dispositivos de assistência aos doentes mentais: o
Manicômio Judiciário, a Colônia Agrícola de Barreiros, o Serviço Aberto, o de Higiene
Mental, e o Serviço de Assistência a Psicopatas de Pernambuco. Todo esse aparato tinha
como função combater e estancar o aumento de casos de doenças mentais no Estado de
Pernambuco através, inclusive, da realização de pesquisas e da profusão do
conhecimento gerado na Academia.
Dos serviços supracitados, cabe destacar aqui, devido ao nosso objeto de estudo,
o Serviço Aberto. Tais serviços possuíam como premissa a idéia de assistência
heterofamiliar, a qual consistia na adoção, por parte de alguma família, de algum doente
mental que, comprovadamente, não oferecesse perigo a ninguém. A família que
acolhesse o doente mental também receberia um determinado valor destinado à ajudar
com as despesas do novo morador. Assim, todos seriam beneficiados: o próprio doente
mental e sua terapêutica, a família que o acolhia, e as finanças do Estado.
Dessa maneira, como podemos observar pelo exposto até o momento, os SRTs
são dispositivos de fundamental importância para o avanço da Reforma Psiquiátrica e
do processo desinstitucionalização no Brasil. Enquanto que em 2004, o país possuía
1.363 moradores em SRTs, em 2009 esse número sobe para 2.829.
Tal fato também é apontado pelo número de SRTs implantados no país: em 2004
encontramos 262 SRTs distribuídos por 14 estados brasileiros, dos quais 5 operavam em
Pernambuco (BRASIL, 2004). Já em 2009 encontramos um total de 533 SRTs em
funcionamento no país, dos quais 14 SRTs estão localizados em Pernambuco, além do
que estão em processo de implantação mais 10 SRTs nesse mesmo estado (BRASIL,
2009).
A partir de sua implantação, os SRTs objetivam o encontro dos egressos de
hospitais psiquiátricos com a cidade, tendo em vista a possibilidade de circulação das
diferenças, de produção de novas subjetividades, enfim, de viver na cidade, objetivando
a construção de uma inserção cidadã.
Porém, tal como nos alerta Dimenstein (2007, p.26), “não se trata apenas da
substituição dos hospitais psiquiátricos; é preciso desmontar dispositivos práticos e
35
discursivos que, diferentemente daqueles presentes nas formas asilares de tratamento,
apresentam-se como novas clausuras invisíveis”.
Destarte, a referida autora nos instiga a questionar se realmente há uma
mudança no olhar sobre a loucura ou se ocorre a reprodução de práticas de controle. Os
serviços substitutivos seriam esses locais que proporcionariam um novo olhar sobre a
loucura ou, ao contrário, seria um deslocamento do antigo hospital psiquiátrico
subjugando ainda mais severamente os sujeitos: a prisão sem grades?
Nesse sentido, os cuidadores podem ter uma função dúbia nos SRTs: podem
tanto funcionar enquanto facilitadores do processo de habilitação psicossocial através da
organização de atividades dos moradores junto à comunidade, por exemplo; ou podem
exercer uma função coercitiva: os cuidadores podem funcionar enquanto agentes que
ditam o que é permitido ou proibido na casa, instituindo suas próprias regras.
Perguntamo-nos, então: O discurso reformista faz parte do repertório
lingüístico dessas pessoas? Esses sujeitos conhecem o discurso reformista? Se
conhecem, como definem o processo de Reforma Psiquiátrica? Como se posicionam em
relação ao processo? Se percebem implicados nesse processo? Quais as posições
identitárias que constroem sobre si mesmos e sobre os moradores?
Para tanto, na realização dessa pesquisa, utilizamos o referencial teórico
proposto pela Psicologia Discursiva. Dessa forma, consideramos necessária, nesse
momento, uma breve explanação sobre os principais conceitos que embasam a teoria
utilizada.
3. PSICOLOGIA DISCURSIVA
O material discursivo coletado para este estudo foi analisado a partir do
referencial teórico da Psicologia Discursiva. Dessa maneira, consideramos de
fundamental importância explicitarmos aqui o que é a Psicologia Discursiva, além de
apresentarmos uma breve história de sua constituição e seus principais conceitos.
Segundo Wiggins e Potter (2008), a Psicologia Discursiva estuda a maneira
como os conceitos psicológicos são construídos, entendidos e compartilhados nas
interações cotidianas e em situações institucionais.
36
Descrições de estados psicológicos não são apenas observações
soltas que as pessoas fazem, e sim versões localizadas,
retóricas, performáticas que estão conectadas a outros detalhes
dos relatos narrativos (Edwards, 2005, p. 196).
Ao contrário do que ocorre com a maioria das teorias psicológicas, os autores
afirmam que essa perspectiva não está interessada em processos mentais, regularidades
comportamentais ou eventos neurais que acontecem por trás das interações entre os
sujeitos.
Mais do que isso, essa perspectiva objetiva explicar a maneira como as
categorias, construções e orientações utilizadas nas interações entre os sujeitos podem
construir um senso de agenciamento, por exemplo, ou na maneira através da qual ocorre
o processo de significação em um momento particular de um processo de interação
através do discurso (WIGGINS; POTTER, 2008).
Potter e Hepburn (2007) afirmam que a Psicologia Discursiva surgiu de uma
vertente específica de análise do discurso desenvolvida na Psicologia Social durante a
década de 1980. O primeiro artigo sobre essa perspectiva teórica foi publicado, segundo
Potter (2003), em um jornal de psicologia no ano de 1985 e sua obra fundamental foi
publicada logo em seguida, no ano de 1987, sob o título de Discourse and Social
Psychology1 (POTTER; WETHERELL, 1987).
Esta obra abordou uma série de conceitos fundamentais para a Psicologia Social,
tais como atitude, categorização e self, tentando demonstrar as vantagens de analisar tais
conceitos a partir de uma perspectiva discursiva. Por exemplo, ao invés de considerar as
categorias enquanto esquemas para processamento de informação, elas poderiam ser
compreendidas a partir de seu papel interacional numa conversa (POTTER, 2003).
Outra contribuição que esta obra trouxe, e que foi posteriormente aprofundada
em Wetherell e Potter (1992), foi o desenvolvimento do conceito de repertórios
interpretativos: um conjunto de termos utilizados pelos sujeitos para descreverem a
realidade e que freqüentemente estão organizados ao redor de metáforas (POTTER;
HEPBURN, 2007). O interesse nesse conceito estava relacionado com a tentativa de
compreender como a organização de narrativas, e a utilização dos termos que
1Tradução do autor: Discurso e Psicologia Social. Vale ressaltar aqui que, apesar dessa obra ser
fundamental para a compreensão da Psicologia Discursiva, até o momento de publicação dessa
dissertação ela não havia sido traduzida para o português.
37
construíam tais narrativas, podiam ser utilizados para manter a reprodução social da
iniqüidade e do privilégio entre diferentes grupos sociais (POTTER, 2003).
Paralelo ao desenvolvimento dessa perspectiva de análise do discurso ocorreu a
emergência de estudos retóricos dentro da Psicologia Social. No seu primeiro artigo
publicado em 1985 e na obra Argumentando e Pensando2, publicada originalmente em
1987, Billig analisou a dimensão retórica de diversos conceitos utilizados na Psicologia
Social. Por exemplo, a expressão de atitudes pode ser analisada enquanto discurso
orientado para a ação em contextos nos quais haja a possibilidade de argumentação.
Dessa forma, um sujeito pode, simultaneamente, justificar uma determinada posição e,
combater discursos alternativos (POTTER, 2003; BILLIG, 2008).
Já na década de 1990, ocorreu o desenvolvimento da Psicologia Discursiva fora
da análise do discurso. Em parte, isso ocorreu enquanto uma tentativa de distinguir essa
perspectiva de outras formas de análise do discurso, tais como a lingüística,
sociolingüística, pós-estruturalismo e psicologia cognitiva. Por outro lado, também
houve a tentativa de enfatizar que a Psicologia Discursiva não era apenas uma nova
teoria sobre a comunicação face-a-face mas, mais do que isso, era uma reestruturação
do objeto de estudo da Psicologia (POTTER, 2003).
A Psicologia Discursiva compreende, por exemplo, conceitos como os de
memória e de atribuição de causalidade não enquanto entidades ou processos mentais
mas, ao contrário, busca compreendê-los enquanto práticas discursivas: relembrar um
fato pode ser compreendido em termos de uma descrição contextualizada e a atribuição
pode ser vista como uma maneira do falante manejar a responsabilidade e o
agenciamento (POTTER; HEPBURN, 2007).
Atualmente, a maioria dos trabalhos na Psicologia Discursiva tem focado a
maneira pela qual as descrições são construídas pelos sujeitos de modo a se tornarem
factuais e a forma pelas quais os conceitos cognitivos e psicodinâmicos podem ser
compreendidos sob novas perspectivas a partir de seu papel na interação (POTTER,
2003).
Porém ao adotarmos uma perspectiva discursiva, faz-se necessário também
especificarmos o que compreendemos por discurso. Segundo Iñiguez (2005), existem
diferentes maneiras de se compreender o que é discurso, sendo este um campo
2 Título original da obra: Arguing and Thinking: A Rethorical Approach to Social Psycology.
38
polissêmico. Conceituar o que é o discurso se torna necessário, então, para marcar um
posicionamento relativo às diferentes tradições de análise do discurso.
De maneira geral, o discurso é apresentado das seguintes maneiras nas ciências
sociais:
a) Discurso como enunciados ou conjunto de enunciados
efetivamente falados por um/a falante.
b) Discurso como conjunto de enunciados que constroem um
objeto.
c) Discurso como conjuntos de enunciados falados em um
contexto de interação – nesta concepção ressalta-se o poder de
ação do discurso sobre outra ou outras pessoas, o tipo de
contexto (sujeito que fala, momento e espaço, história, etc.).
d) Discurso como conjunto de enunciados em um contexto
conversacional (e, portanto, normativo).
e) Discurso como conjunto de restrições que explicam a
produção de um conjunto de enunciados a partir de uma posição
social ou ideológica específica.
f) Discurso como conjunto de enunciados em que é possível
definir as condições de sua produção. (IÑIGUEZ, 2005, p. 123).
Encontramos várias dessas noções de discurso na conceitualização das práticas
de análise do discurso. Apesar de diferentes, essas concepções de discurso não se
excluem mutuamente: mais do que incompatibilidade, elas apresentam possibilidades de
se superporem umas às outras.
Na tentativa de firmar um caminho que se situe entre os interesses e as
demandas das diversas concepções sobre o discurso, Iñiguez e Antaki optam pela
seguinte definição:
Um discurso é um conjunto de práticas lingüísticas que mantêm e
promovem certas relações sociais. A análise consiste em estudar
como essas práticas atuam no presente, mantendo e promovendo
essas relações: é trazer à luz o poder da linguagem como uma
prática constituinte e reguladora (IÑIGUEZ; ANTAKI, 1994, p.
63).
Tal como ocorre com o conceito de discurso, a compreensão do que é análise do
discurso também é permeada por diferentes perspectivas. Iñiguez (2005) afirma que,
39
originalmente, o termo análise do discurso designava uma área da lingüística.
Atualmente, encontramos contribuições de diversos campos de conhecimento na análise
do discurso: psicologia, antropologia, sociologia, filosofia, comunicação, entre outros.
Todos esses saberes, de diferentes maneiras e utilizando métodos específicos,
incorporaram a prática da análise do discurso.
Iñiguez (2005) afirma que, apesar de encontrarmos as mais diferentes tradições
de análise do discurso, cada uma com seu método e objetos distintos, existiria algo em
comum entre todas elas: o interesse em analisar o idioma em seu uso, quer seja o idioma
falado ou escrito. Já para Gill (2008), apesar de existirem, no mínimo, cerca de 57
formas de análise do discurso, o que todas essas perspectivas apresentariam em comum
seria a rejeição da idéia de que a linguagem é uma forma neutra de descrever a
realidade, apostando na idéia de que a linguagem e, conseqüentemente, o discurso
ocupam papel central na construção da vida social.
Dessa forma, apresentaremos, ainda que de maneira sucinta, as correntes de
análise do discurso consideradas mais importantes, de acordo com Iñiguez (2005): a) a
Sociolingüística Interacional; b) a Etnografia da Comunicação; c) a Análise
Conversacional; e d) a Análise Crítica do Discurso.
A sociolingüística interacional possui como matrizes a antropologia, a sociologia
e a lingüística. Tal como apontado por Iñiguez (2005), essa tríplice filiação ocorreria
devido ao interesse pela cultura, pela sociedade e pela linguagem.
Tendo como principais expoentes Goffman e Gumperz, a sociolingüística
interacional busca focar a linguagem e o seu contexto de produção. Para os autores, a
linguagem não seria apenas um meio de comunicação, mas seria também um meio de se
construir significados a partir do contexto em que ela é utilizada. Para essa corrente, o
foco da análise está em compreender o contexto no qual os significados foram
produzidos.
A etnografia da comunicação possui como referenciais a antropologia e a
lingüística e apresenta como principal foco o interesse pela competência comunicativa.
Tal interesse está baseado na tentativa de compreender como o conhecimento social,
psicológico, cultural e lingüístico orienta o uso adequado da linguagem.
Baseados no conceito de Chomsky de gramática generativa, a qual busca
explicar como um falante possui a capacidade de compreender um número ilimitado de
frases inéditas para ele, etnógrafos da comunicação, como Hymes, acrescentaram a idéia
40
de buscar compreender as regras que permitem que uma pessoa interprete o significado
de um enunciado.
Mais recentemente, essa corrente passou a se denominar de antropologia
lingüística, sendo definida enquanto “o estudo da linguagem como recurso da cultura e
da fala como prática cultural” (Iñiguez, 2005, p. 113).
Já a análise da conversação possui suas origens vinculadas à etnometodologia.
Para a análise da conversação, o que deve estar em foco é “descobrir como a sociedade
está organizada e como funciona a partir das próprias ações das pessoas que nela
interagem” (Iñiguez, 2005, p. 115).
Para tanto, a análise da conversação abdica da idéia de que os significados
estejam aprisionados no interior das palavras pronunciadas pelos falantes. Para os
pesquisadores dessa corrente, a atenção deveria estar centrada nos contextos em que as
pessoas criam seus relatos.
A análise da conversação busca compreender a forma como as pessoas
organizam seus discursos na vida cotidiana objetivando determinados fins. O discurso é
considerado não como uma manifestação de um conceito, mas como um meio através
do qual as pessoas produzem determinados efeitos sobre as outras pessoas, quer de
maneira oculta ou óbvia.
A análise crítica do discurso, por sua vez, não seria, a rigor, uma modalidade de
análise do discurso, mas uma perspectiva diferente. Tal perspectiva estaria relacionada,
principalmente, à forma de análise e a teoria que embasa a análise crítica: os analistas
dessa corrente tentam não pré-configurar a maneira de realizar a análise e o campo de
indagação. A teoria é aqui utilizada enquanto ferramenta para que o pesquisador possa
abrir novas perspectivas a partir de sua interação com aquilo que estuda.
A análise crítica do discurso enfoca o caráter constitutivo da linguagem a partir
da análise de três dimensões: o discurso enquanto texto (oral ou escrito); o discurso
como prática discursiva produzido numa situação concreta; o discurso como
constituinte de e constituído pelas instituições (IÑIGUEZ, 2005).
A Psicologia Discursiva, então, seria uma perspectiva de análise do discurso que
estaria mais próxima às perspectivas que Iñiguez denomina de análise conversacional e
de análise crítica do discurso. Por compreender o discurso enquanto estância
fundamental para compreensão da vida social é que essa perspectiva se opõe à maneira
tradicional de explicar os fenômenos psicológicos. Segundo Potter (2008), as
41
perspectivas da psicologia tradicional objetivam explicar a vida social a partir de teorias
sobre os estados, processos e entidades psicológicas “reais” que sustentam e subjazem à
ação.
Dessa forma, a Psicologia Discursiva propõe uma nova maneira de conceber
diversos conceitos oriundos, principalmente, da Psicologia Cognitiva, a qual
compreende as ações humanas como produto de processos cognitivos. Na visão do
cognitivismo, o discurso é tratado como a expressão de pensamentos, intenções ou
alguma outra entidade cognitiva (POTTER, 2006).
Edwards (2006) afirma que a Psicologia Cognitiva compreende o discurso
como: 1) um input para ou output de categorias e esquemas usados nos processos e
modelos mentais; e 2) uma ferramenta metodológica para pesquisar os estados mentais e
as representações.
Em contraste com essa perspectiva, a Psicologia Discursiva, ao invés de tratar o
discurso enquanto dependente de e explicável por processos cognitivos, busca estudar a
maneira pela qual o discurso é construído enquanto tópico de interesse para os
participantes. Assim, ela compreende a mente, personalidade, as emoções, intenções,
etc, na forma como esses conceitos são construídos e orientados para a interação
(POTTER, 2006).
Potter (2008) afirma que a Psicologia Discursiva não está baseada na idéia de
que existe um espaço mental verificável e comprovado por investigações científicas,
mas que existem interações humanas que constroem conceitos psicológicos que estão
presentes no cotidiano das pessoas.
Dessa forma, enquanto os psicólogos cognitivos apresentam suas teorias
baseadas numa história de comportamentos produzidos a partir do processamento de
inputs perceptuais, os quais seriam originados a partir de uma realidade exterior ao
sujeito, os psicólogos discursivos estudam como o discurso realiza ação a partir de
práticas situadas, através da construção de diversos conceitos como, por exemplo, os de
“realidade” e “mente” (POTTER; EDWARDS, 2001).
Ao invés de tentar investigar as idéias que as pessoas trazem dentro de suas
cabeças, como fazem os psicólogos cognitivistas na tentativa de estudar essas entidades,
o foco dos psicólogos discursivos está na visão de que falas e textos são práticas sociais
(POTTER; HEPBURN, 2007).
42
Podemos exemplificar, ainda que de maneira sucinta, tais diferenças mostrando
como as duas perspectivas abordam um conceito central para a psicologia social, a
noção de atitudes.
Segundo Potter e Wetherell (1987), existem diversas concepções sobre atitudes.
Porém, os autores dirigem sua atenção especificamente para o conceito utilizado por
McGuire, o qual sugere que é possível formular uma definição com algum grau de
consenso: quando as pessoas expressam suas atitudes elas estão localizando o objeto
julgado em alguma escala de julgamento. Ou seja: as pessoas possuem alguma idéia
sobre algum objeto em questão e elas posicionam tal objeto em alguma hierarquia de
valores através da fala. Subjacente a essa visão, encontramos a idéia de que as atitudes
são entidades mentais de caráter duradouro que programariam os comportamentos dos
sujeitos diante dos objetos.
No entanto, numa perspectiva discursiva, podemos definir a atitude não como
uma entidade mental, mas como uma construção que serve para produzir julgamentos e
os possíveis efeitos realizados por tais julgamentos.
Vamos tomar como exemplo uma resposta a uma pesquisa hipotética nas quais
os sujeitos fossem questionados se são favoráveis ou não ao fechamento dos hospitais
psiquiátricos. Tal resposta poderia ser: “não sou favorável ao fechamento dos hospitais
psiquiátricos por que lá é o local de tratamento da loucura”.
A partir da visão da Psicologia Cognitiva, a atitude expressa por nosso sujeito
imaginário categorizá-lo-ia enquanto um sujeito não-simpatizante ao processo de
Reforma Psiquiátrica, alguém que possuiria uma predisposição comportamental
agressiva em relação a essa temática.
Ao contrário, na perspectiva discursiva, tal atitude poderia ser compreendida
enquanto produtora de um julgamento contrário aos ideais preconizados pela Reforma
Psiquiátrica, produzindo o possível efeito de impedir o retorno dos loucos a suas
comunidades, por exemplo. Mais ainda, podemos afirmar que esta resposta pode ser
compreendida a partir do contexto na qual foi produzida. Em outra ocasião, o sujeito
poderia, por exemplo, defender o retorno dos loucos à comunidade desde que haja ajuda
financeira para as famílias.
Assim, tal como afirmam Potter e Hepburn (2007), mais do que considerar as
atitudes enquanto entidades mentais que orientam o comportamento, a Psicologia
Discursiva reorienta tal conceito para as questões da construção de julgamentos e da
43
maneira através das quais esses julgamentos são utilizados para produzir determinados
efeitos.
Diferentes perspectivas teóricas contribuíram, a partir de determinados
conceitos, para a construção da Psicologia discursiva. Nesse sentido, podemos citar a
Análise da Conversação, a Etnometodologia, o Construcionismo, a Filosofia Analítica,
a Semiologia e a Retórica. Potter e Wetherell (1987) utilizaram as perspectivas citadas
na elaboração e justificação de quatro tópicos centrais para a Psicologia Discursiva:
função, construção, variabilidade e retórica.
A seguir, abordaremos a forma como cada perspectiva teórica contribuiu para a
construção dos tópicos supracitados.
3.1 Função
Segundo Potter, Wheterell, Gill e Edwards (1990), diferentes tradições teóricas
que estudam a linguagem tem apontado que ela é um meio orientado para ação.
Segundo os autores, as mais óbvias são a Filosofia Analítica e, em particular, a Teoria
dos Atos de Fala, assim como a Análise da Conversação e a Etnometodologia.
De acordo com Potter e Wetherell (1987), a principal idéia apresentada pela
Etnometodologia e pela Teoria dos Atos de Fala é a idéia de que as pessoas usam a
linguagem para fazer diferentes coisas: através da linguagem as pessoas ordenam,
questionam, solicitam, acusam, se defendem, etc. Mas como essas duas teorias
contribuíram para a construção do conceito de função?
Potter e Wheterell (1987) afirmam que a etnometodologia está preocupada com
o estudo dos métodos cotidianos utilizados pelas pessoas para produzirem sentido no
cotidiano. Dito de outra maneira, os etnomedologistas afirmam que, assim como os
pesquisadores sociais, as pessoas comuns também procuram compreender o que está
acontecendo e utilizam essa compreensão para produzir comportamentos apropriados
para aquela determinada situação.
Um conceito central para compreendermos a idéia apresentada acima é o de
reflexividade. Tal conceito destaca o fato de que as descrições de mundo realizadas
pelas pessoas não são apenas descrições, mas que elas também produzem algo: as
descrições não se limitam a representar o mundo, mas a construí-lo (POTTER, 1998).
Assim, dizer “eu não vou denunciar” para um conhecido que cometeu um crime não é
44
um simples comentário sobre a futura ação de ficar calado e não denunciar, pois ela
constitui essa realidade de conivência com o crime, assim como o próprio ato de ficar
calado.
No tocante à Filosofia Analítica, Potter (2001) afirma que existem dois autores
fundamentais para compreender as contribuições advindas desse ramo da Filosofia:
Wittgenstein e Austin.
As Investigações Filosóficas, uma das principais obras de Wittgenstein,
possuíam como um de seus objetivos combater a imagem tradicional da linguagem na
qual a linguagem é vista como uma pintura. Nesta visão, a linguagem seria concebida
como um meio para raciocínios abstratos e seria, também, uma série de nomes
relacionados a cada objeto existente. Já a posição defendida por Wittgenstein, ao
contrário, apontava que a linguagem seria heterogênea e também seria orientada para a
ação.
Ainda de acordo com Potter (2001), Wittgenstein propôs uma visão alternativa
de linguagem enquanto caixa de ferramentas: ao pensarmos numa caixa de ferramentas,
afirma Wittgenstein, pensamos em pregos, martelos, cola, régua, etc, sendo as funções
das palavras tão diversas quanto as funções desses objetos.
Nesse sentido, o conceito de descrição desenvolvido por Wittgenstein também
contribui para a visão da linguagem enquanto orientada para a ação. Para o autor, ao
descrevermos alguma coisa nós não apenas reproduzimos as palavras. Mais do que isso,
descrições são atos que são usados para realizar diferentes performances. Assim, as
descrições não apenas descrevem, como também produzem algo.
Outro autor que também compartilha dessa visão da linguagem enquanto ação é
Austin. Para Austin a linguagem não seria um sistema abstrato cuja função central seria
a de descrever o mundo. Nesse sentido, o autor buscou ressaltar a natureza prática da
linguagem, compartilhando com Wittgenstein a perspectiva de que a linguagem é um
meio de ação (POTTER, 1998).
Para desenvolver sua teoria, denominada de Teoria dos Atos de Fala, Austin
iniciou com a observação de que existe uma classe de sentenças cuja principal função é
fazer coisas, ao invés de apenas descrever coisas. Por exemplo, a sentença “Eu declaro
guerra às Filipinas” não é uma descrição do mundo que pode ser confirmada enquanto
verdadeira ou falsa, mas é um ato com conseqüências práticas: quando dita nas
45
circunstâncias corretas, ela origina uma guerra entre estados. A esse tipo de sentenças,
Austin denominou de performativos (POTTER; WHETERELL, 1987; POTTER, 2001).
Austin também afirma que existe um segundo tipo de sentenças, as quais a
primeira vista, parecem ser apenas sentenças descritivas e que podem ser verificadas
enquanto verdadeiras ou falsas. A esse tipo de sentenças, Austin nomeou de constativos.
Ao contrário das sentenças constativas, as performativas não são passíveis de
verificação em relação a sua falsidade ou veracidade. No entanto, elas podem apresentar
outras formas de fragilidades. Ao pensarmos, por exemplo, na sentença “Eu te nomeio
Sir Lancelot”, encontramos diversas maneiras da mesma falhar enquanto nomeação do
cavaleiro Sir Lancelot. Talvez a pessoa que a nomeie não seja a apropriada (no caso o
rei); talvez o cavaleiro não esteja vestido adequadamente para a ocasião, invalidando a
mesma; talvez toda a encenação seja uma brincadeira para divertir os outros cavaleiros
da Tábula Redonda (POTTER; WHETERELL, 1987).
De todo modo, os problemas que podem surgir não dizem respeito à falsidade ou
veracidade das sentenças, mas a questão principal é que certas condições devem ser
realizadas para que os performativos sejam efetivos. A tais condições, Austin nomeou
de felicidades (POTTER; WHETERELL, 1987; POTTER, 2001). A seguir,
apresentamos as condições descritas por Austin:
(A.1) Deve existir um procedimento convencionalmente aceito
que apresente um determinado efeito convencional e que
inclusa o proferimento de certas palavras, por certas pessoas, e
em certas circunstâncias; e além disso, que
(A.2) As pessoas e circunstâncias particulares, em cada caso,
devem ser adequadas ao procedimento específico invocado.
(B.1) O procedimento tem de ser executado, por todos os
participantes de modo correto e
(B.2) completo
(r.1) Nos casos em que, como ocorre com freqüência, o
procedimento visa às pessoas com seus pensamentos e
sentimentos, ou visa à instauração de uma conduta
correspondente por parte de alguns dos participantes, então
aquele que participa do procedimento, e o invoca deve de fato
ter tais pensamentos ou sentimentos, e os participantes devem
ter a intenção de se conduzirem de maneira adequada, e, além
disso,
(r.2) devem realmente conduzir-se dessa maneira
subsequentemente (AUSTIN, 1990, p.31).
46
No entanto, na obra Quando dizer é fazer, Austin inicia com esta separação entre
performativos e constativos para, posteriormente, concluir que todas as sentenças são,
simultaneamente, performativas e constativas. Por exemplo, podemos concluir da
sentença “Eu aposto com você que meu time vencerá no jogo de hoje”, que ela é um
performativo, pois ela não está descrevendo um ato de apostar: ao proferi-la o locutor
está apostando. No entanto, ela se torna problemática se não existir time para jogar ou
se não houver jogo hoje. Assim, concluímos que as sentenças performativas não são tão
independentes das questões de falsidade ou veracidade (POTTER; WHETERELL,
1987; POTTER, 2001).
Do outro lado, os constativos podem também, como os performativos, serem
infelizes. Por exemplo, na sentença “Aquele cachorro se chama Lassie mas eu não
acredito nisso”, não existe questão de falsidade ou veracidade, pois o cachorro pode ou
não se chamar Lassie e o falante pode ou não aceitar este fato. O que se encontra em
questão é a falta de crenças apropriadas que colaborem com afirmações deste tipo.
Nesse sentido, essa sentença viola a condição r.1designada logo acima (POTTER;
WHETERELL, 1987).
Após essas constatações, Austin abandona a distinção pura e simples entre
constativos e performativos. De suas elaborações teóricas, podemos concluir duas
importantes conseqüências para o estudo da linguagem: 1) as sentenças tanto realizam
ações quanto descrevem coisas; e 2) existem convenções ou condições de felicidade que
implicam as sentenças aos contextos sociais (POTTER; WHETERELL, 1987;
POTTER, 2001).
O trabalho de Austin começa a deslocar a discussão da idéia de
que as afirmações – descrições, informes – advém de algum
espaço conceitual do qual se pode comparar com algum aspecto
do mundo, e foca a atenção nas afirmações como ações
realizadas em alguns contextos e produzindo determinados
resultados (POTTER, 1998, p. 25)3.
3 Tradução livre de: “El trabajo de Austin empleza a alejar la discusión de la idea de que las afirmaciones
– descripciones, informes – cuelgan de algún espacio conceptual donde se pueden comparar com algún
aspecto del mundo, y centra la atención en las afirmaciones como acciones realizadas em unos contextos
y com unos resultados determinados”.
47
Outra perspectiva que aposta na idéia de que o discurso produz ação é a Análise
de Conversação. Wooffitt (2005) afirma que este estilo de trabalho teve início a partir
das pesquisas de Harvey Sacks. Segundo o autor, Sacks procurou estudar um corpus de
ligações telefônicas gravadas no Centro de Prevenção ao Suicídio de Los Angeles. Uma
das questões colocadas pelos atendentes nas ligações era a obtenção do nome do ligador
sendo que, no entanto, estes se recusavam a falar seus nomes com receio de serem
identificados.
Segundo Wooffitt (2005), para estudar tal questão, Sacks a problematizou da
seguinte maneira: em que momento da conversa poderíamos afirmar que a pessoa não
gostaria de falar seu nome? Para ilustrá-la, Wooffitt utiliza o seguinte trecho (Sacks,
1992, citado em Wooffitt, 2005, p. 6):
A: Aqui é o Sr. Smith, posso lhe ajudar
B: Não consigo lhe ouvir
A: Aqui é o Sr. Smith4
B: Smith5
A partir desse trecho, ele iniciou o estudo da expressão “Não consigo lhe ouvir”.
No entanto, ao invés de considerar esse trecho como uma mera comunicação de um
problema telefônico, Sacks analisou-o na tentativa de descobrir o que ele estava
produzindo. Nesse percurso, ele descobriu que esta fala foi produzida de tal maneira que
permitisse ao ligador não revelar seu nome, ao mesmo tempo em que não o recusasse de
maneira explícita. Nesse caso, então, a expressão do ligador sobre uma possível
dificuldade com a qualidade da ligação é um método que pode ser utilizado para a ação
de “não relatar o nome” de maneira implícita.
Wooffitt (2005) ressalta, no entanto, que Sacks não estava afirmando que em
todas as ocasiões nas quais alguém falasse “não consigo lhe ouvir” os sujeitos estariam
4 O grifo sob o nome Smith é uma forma encontrada pelos analistas conversacionais para reproduzir
aspectos como entonação, silêncios, etc.
5Tradução livre do seguinte trecho:
A: this is Mr. Smith, may I help you
B: I can´t hear you
A: This is Mr Smith
B: Smith
48
se recusando a revelar seus nomes ou, tampouco, que a utilização dessa expressão seja a
única maneira de realizar tal tarefa. Na verdade, o que ocorre é que devemos analisar
tais extratos considerando que aquela expressão particular, naquele momento, construiu
determinado efeito em um determinado trecho da fala.
Ao utilizarem uma perspectiva pragmática da linguagem, os analistas
conversacionais se opõem à idéia de que existe um possível discurso verdadeiro que se
encontra camuflado por trás de um discurso aparente. Ao contrário desta idéia, os
analistas conversacionais utilizam uma visão pragmática da linguagem: devemos
analisar o discurso tal qual nos aparece.
Potter e Wiggins (2008) afirmam que esta preocupação com o estudo do
discurso em si e com a análise minuciosa das expressões possui importância
fundamental na Psicologia Discursiva, na medida em que está interessada no processo
de interação entre os sujeitos.
Outra contribuição ao conceito de função tal como proposto pelos psicólogos
discursivos advém do Construcionismo. De acordo com Potter (1996), não existe uma
teoria simples, unificada, neutra e objetiva a qual podemos denominar de
Construcionismo (até porque esta é uma formulação que o Construcionismo rejeita).
Nesse mesmo artigo, o autor cita, por exemplo, doze perspectivas teóricas que se
aproximam do Construcionismo, tais como a Análise de Conversação, Análise do
Discurso, Etnometodologia, Estudos Feministas, o Pós-Estruturalismo, a Retórica, entre
outros.
No entanto, Gill (2008) afirma que, apesar de serem marcadas por diferenças,
existiriam algumas características-chaves apresentadas por essas perspectivas:
1. Uma crítica à idéia de conhecimento dado e uma visão cética sobre a idéia de
que o mundo se revela ao homem em sua autenticidade;
2. O reconhecimento de que a maneira pela qual compreendemos o mundo é
situada histórica e culturalmente;
3. A idéia de que o conhecimento é construído socialmente; e
4. O objetivo de investigar como os conhecimentos estão ligados às práticas das
pessoas.
Em consonância com o exposto por Gill (2008), Potter (1996) aponta três
características centrais para as perspectivas construcionistas: 1) uma oposição ao tipo de
ciência que aposta na idéia de que a realidade existe independente das práticas
49
discursivas; 2) a idéia de que a mente e as ações são contingentes à formas culturais
específicas – nesse sentido, podemos citar o livro A Mente Discursiva, escrito por Rom
Harré e Grant Gillett (1999), no qual ele afirma que a mente não é uma essência mas,
isto sim, é construída a partir de práticas discursivas; e 3) todas consideram o discurso
enquanto meio fundamental para organização da vida social.
Porém, podemos questionar: de que forma esse movimento foi introduzido na
Psicologia? Segundo Gergen e Gergen (2008), existem várias maneiras de contar o
desenvolvimento da perspectiva construcionista dentro da Psicologia. Para os autores,
uma das histórias poderia nos remeter aos trabalho de Vico, Nietzche, Dewey,
Wittgenstein, Berger e Luckmann, dentre outros. No entanto, eles afirmam que os
movimentos sociais, assim como uma efervescência intelectual, que ocorriam durante a
década de 1960 nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, foram os fatores mais
influentes para a reverberação dos ideais construcionistas na Psicologia.
Dentre esses movimentos, podemos destacar a resistência à Guerra do Vietnã; o
engajamento político da comunidade acadêmica; e um profundo ceticismo com a ordem
estabelecida6. Tais movimentos resultam em três grandes críticas que serviriam de base
para a maioria das pesquisas construcionistas na Psicologia: uma crítica ideológica, a
partir das contribuições do marxismo e do feminismo ao trabalho de Foucault; uma
crítica retórica, que a partir do desenvolvimento da semiótica na lingüística e da
desconstrução proporcionada por Derrida; e uma crítica à maneira tradicional de realizar
a ciência, desenvolvida, principalmente, a partir da obra de Thomas Kuhn, Feyerabend e
Latour (GERGEN; GERGEN, 2008).
Potter e Hepburn (2008) utilizam o termo construcionismo discursivo, afirmando
que o discurso é orientado para ação: é o meio pelo qual são construídas versões do
mundo. Para estes autores, o construcionismo discursivo trabalha com o conceito de
construção a partir de dois significados.
Por um lado, se compreende que o discurso é construído, utilizando uma
variedade de diferentes recursos objetivando uma organização estrutural. Em outras
palavras, nos referimos às próprias palavras e a estrutura gramatical discursiva, mas, por
outro lado, também nos referimos às categorias, metáforas, idiomas, estratégias retóricas
e repertórios interpretativos.
6 Nesse sentido, podemos mencionar o movimento de Maio de 68, ocorrido na França (ainda que os
autores não o citem).
50
Por outro lado, se compreende que o discurso é construtor, pois a forma como as
palavras, repertórios, etc, são organizados objetivam manter e estabilizar determinadas
versões de mundo, de ações e eventos.
Condizente com tal idéia, Gergen (2007) combate a idéia de que o discurso é
uma representação tanto de uma realidade exterior quanto de uma realidade interior as
quais poderiam ser acessadas pelo sujeito. Ao contrário, para o autor, a linguagem deve
ser compreendida numa perspectiva pragmática.
Assim, considerando a linguagem utilizada na área de saúde mental, por
exemplo, Gergen (2007, p. 285) afirma que
Contrastemos a orientação pictórica sobre a linguagem mental
com outra, a qual podemos chamar de pragmática. Com este
objetivo, ponhamos entre parênteses o enfoque da linguagem
mental como indicador de estados interiores e consideremos a
linguagem como ummeio constituinte das relações sociais.7
Segundo o autor, podemos dizer que a linguagem psicológica obtém seu
significado e importância na forma em que são usadas na interação humana, ou seja, nas
relações sociais. Dessa forma, ao refletir sobre a significação realizada do conceito
“triste”, que poderia ser utilizada na expressão “estou triste”, devemos considerar que
tal significação não decorre de uma relação com o estado de meus neurônios ou de meu
campo fenomenológico mas, isto sim, decorre de realizar uma determinada função
social. Esta expressão pode ser utilizada pelo sujeito, então, para pôr fim a uma
determinada situação desagradável, para conseguir o apoio de alguém ou para provocar
opiniões. Tanto as condições na qual a expressão foi proferida quanto as funções as
quais ela serve são circunscritas pelo contexto social.
Após essa explanação, podemos introduzir o segundo tópico de interesse para a
Psicologia Discursiva: o conceito de variabilidade. Segundo Potter, Wheterell, Gill e
Edwards (1990), o fato do discurso ser orientado para a ação, ou em outras palavras, as
funções do discurso só podem ser compreendidas a partir da análise da variabilidade.
7 Tradução livre de: “Contrastemos la orientación pictórica respecto al lenguaje mental com otra, que
podemos llamar pragmática. Con este propósito, pongamos entre parêntesis el enfoque del lenguaje
mental como indicador referencial de estados interiores y consideremos dicho lenguaje como um rasgo
constituyente de las relaciones sociales”. Grifo no original.
51
3.2 Variabilidade
Um segundo tópico de interesse construído por Potter e Wheterell (1987) é a
variabilidade. Para explicar tal conceito, podemos pensar nas diferentes vezes em que
nos descrevemos. Podemos pensar nas vezes em que queremos construir uma imagem
positiva para determinados ouvintes ou, ao contrário, quando ressaltamos algumas
características negativas em nossa descrição (o que pode nos favorecer, dependendo de
quem esteja nos ouvindo e de nossas intenções).
De maneira semelhante, também podemos pensar sobre como podemos
descrever de maneira diferente, em diferentes situações, uma mesma pessoa. Se você
gostar da pessoa, você irá atribuir características positivas a ela. No entanto, se você não
gostar dessa pessoa, ou você irá atribuir características negativas à mesma ou, então, as
mesmas características positivas atribuídas anteriormente poderão se tornar agora
negativas.
Outra situação seria pensarmos numa variação contextual: e se mudasse a pessoa
para a qual estamos descrevendo? Imagine a situação na qual você estaria descrevendo
um colega de trabalho para um amigo ou para um parente. Novamente encontraremos
variações nas características apontadas: para um amigo você poderia falar sobre alguns
atos de delinqüência realizados pela pessoa descrita, o que seria mais improvável de
acontecer caso o ouvinte fosse seu parente.
Para Potter e Whetherell (1987), ao analisarmos o discurso não descobriremos
apenas que ele possui diferentes funções, mas que ele também é bastante variável.
Nesse sentido, a fala de uma pessoa irá variar de acordo com o propósito da fala, ou em
outras palavras, o discurso irá variar a partir de sua função (POTTER et al, 1990;
WHETERELL; POTTER, 1996).
Assim, dependendo da variação da função discursiva, poderemos descrever de
diferentes maneiras um acontecimento, um grupo social, uma pessoa, uma política
pública, etc. Em tais descrições, o sujeito poderá culpabilizar, negar, avaliar positiva ou
negativamente, combater outros discursos, etc, de tal maneira que nos será
proporcionado uma perspectiva variada de seus mundos sociais (WHETERELL;
POTTER, 1996).
Nesse sentido, a filosofia analítica, através do pensamento de Wittgenstein,
apresenta uma grande contribuição para a constituição do conceito de Variabilidade
através do conceito de jogos de linguagem (POTTER, 2001; GERGEN, 1999).
52
Segundo Potter (2001), em consonância com Gergen (1999), Wittgenstein
desenvolve essa metáfora para exemplificar sua visão da linguagem. Nessa visão, a
linguagem seria formada por diferentes jogos, cada um possuindo diferentes objetivos e
regras. Caso o sujeito não siga essas regras, ele não se fará ser compreendido pelos seus
ouvintes.
Esse conceito possui importância fundamental, pois condiciona a linguagem ao
seu uso em determinados contextos e situações. Dessa maneira, ao utilizar diferentes
palavras para (re)produzir a realidade, os sujeitos estarão sendo inseridos em diferentes
jogos de linguagem, de acordo com o objetivo ou, nas palavras de Potter e Wheterell
(1987), de acordo com a função do discurso.
Outro conceito que nos ajuda a compreender o conceito de Variabilidade é o de
indexicabilidade, construído a partir de estudos da Etnometodologia. Segundo Potter
(1998), a idéia principal do conceito de indexicabilidade é a afirmação de que o
significado de uma palavra não pode ser compreendido independentemente do contexto
no qual ela foi proferida. Ou, em outras palavras, o estudo do significado de uma
expressão não será satisfatório se o pesquisador não levar em consideração o contexto
no qual ela foi utilizada.
Vale ressaltar que o contexto não se limitaria à ocasião em que a expressão é
utilizada, mas deve-se considerar também quem está falando, qual seu status, o que ele
disse anteriormente, o que deve acontecer em seguida, etc. Nesse sentido, a utilização
de diferentes expressões pelo falante produzirá diferentes efeitos discursivos: a
variabilidade discursiva produz, também, a variação da função do discurso.
Assim, a questão central colocada pela etnometodologia é que o significado de
uma expressão é construído a partir da combinação das palavras e do contexto no qual
elas são proferidas. A compreensão da linguagem não seria resultado de representações
semânticas compartilhadas, como uma espécie de dicionário mental ao qual os falantes
pudessem consultar, mas seria o produto de procedimentos utilizados (como as escolhas
das palavras) para gerar significado dentro de determinados contextos (POTTER, 1998).
Já os analistas conversacionais, ao analisarem o discurso pressupondo que a
linguagem está orientada para a ação, produziram a seguinte questão: de que maneira o
discurso é manejado pelo falante para produzir determinado efeito? Assim, a Análise de
Conversação abre espaço para discutirmos sobre o conceito de Variabilidade.
53
Assim, ao estudar a conversação partiram do pressuposto de
que o que se diz não se diz por acidente, que as formas das
palavras não são imprecisas nem improvisadas, senão que estão
desenhadas com todo detalhe para que sejam sensíveis ao seu
contexto seqüencial e a seu papel na interação (POTTER, 1998,
p. 82)8.
Em outras palavras, o que o autor afirma é que as palavras ditas pelo falante não
são escolhidas aleatoriamente: o falante escolhe as palavras certas na tentativa de
manejá-las objetivando a produção do determinado efeito.
Um exemplo citado pelo autor para caracterizar tal afirmação foi a investigação
realizada pelo próprio Potter e por Edwards (1992, citado em POTTER, 1998), na qual
os autores buscaram analisar as diferentes maneiras pelas quais jornalistas foram
descritos em uma determinada conferência de impressa. Em seu argumento, Potter
afirma que ao construir diferentes discursos para descrever os jornalistas, os próprios
jornalistas(!) que haviam escrito a matéria produziram também diferentes efeitos
discursivos. Como exemplo, Potter (1998) cita trechos de dois desses artigos, ambos
publicados no mesmo jornal, no mesmo dia:
1. 10 jornalistas totalmente experts em taquigrafia9.
2. Por tanto, os cadernos dos caça-notícias só contem um resumo
superficial...10
.
Segundo o referido autor, as palavras foram utilizadas pelos jornalistas para
produzirem diferentes efeitos. No caso do primeiro trecho citado, o jornalista utilizou o
termo experts para descrever seus colegas, produzindo o efeito de que todos os
jornalistas são bons profissionais e que podem ser utilizados enquanto fontes confiáveis.
Já a construção produzida no segundo caso, ao utilizar o termo caça-notícias, pode
produzir o efeito de que os jornalistas são profissionais com interesses cínicos,
destruindo a confiabilidade dos mesmos.
Dessa maneira, dependendo da construção realizada pelo falante ou, em outras
palavras, dependendo da variabilidade discursiva, podem ser produzidos diferentes
8 Tradução livre de: “Así, al estudiar la conversación partieron de la presuposición de que lo que se dice
no se dice por accidente, que las formas de las palabras no son imprecisas ni improvisadas, sino que están
diseñadas con todo detalle para que sean sensible a su contexto secuencial y a su rol en la interacción”. 9 Tradução livre de: “10 periodistas totalmente expertos en taquigrafia”. Grifado no original.
10 Tradução livre de: “Por tanto, los cuadernos de los cazanotícias sólo contienen um resumen
superficial...”. Grifado no original.
54
efeitos. No exemplo citado, os jornalistas poderiam ser descritos, dentre diversas
maneiras, como funcionários velhos e cansados, como manipuladores da verdade ou, ao
contrário, como heróis que buscam sempre a verdade (POTTER, 1998).
Gergen é outro autor que também aponta para o fato de que a utilização de
determinados conceitos em detrimento de outros produz diferentes efeitos. Em um
estudo realizado pelo próprio Gergen e Quosh (2008), ele aponta como conceitos
relacionados à saúde mental gera a dependência da população dos serviços e
profissionais de saúde mental.
Nesse estudo, os autores analisaram a partir de uma perspectiva histórica o
contexto de produção do conceito de Transtorno de Estresse Pós-traumático. Segundo
eles, tal história sobre o conceito teve início com o conceito de síndrome traumática, o
qual foi utilizado pela primeira vez por John Erich Erichsen em 1866, quando este
identificou que vítimas de acidentes de trem desenvolviam uma condição física
anormal. Paralelamente, surge o interesse da indústria farmacêutica pelos acidentes
industriais.
Já Hermann Oppenheim desenvolveu a noção de neurose traumática, a qual
afirmava que tal neurose estava associada à um dano nervoso causado por algum evento
chocante. Ao construir o trauma enquanto um evento neurológico as portas estavam
abertas para a psicologia, na medida em que problemas psicológicos estavam associados
às condições cerebrais.
Em seguida, Charcot estabeleceu a relação existente entre o trauma físico e a
doença mental e, juntamente com Freud e Pierre Janet, chegou a conclusão de que a
síndrome traumática teria uma base psicológica. Já Freud desenvolveu a noção de
histeria enquanto resultante do trauma, associando o conceito de trauma à
psicopatologia.
No entanto, os autores destacavam que o conceito de trauma foi modificado no
período da I Guerra Mundial. Muitos dos soldados que sobreviveram à I Guerra foram
diagnosticados com um quadro denominado de “shell lock”, o qual se pensava que fosse
causado por um defeito no sistema nervoso. Com o passar do tempo, no entanto, o
mesmo comportamento foi interpretado como uma neurose defensiva denominada de
neurose traumática originada pela guerra11
.
11
Tradução livre de: “traumatic neurosis of war” (QUOSH; GERGEN, p. 99).
55
Já a Guerra do Vietnã trouxe uma nova apreensão do trauma como patologia. Os
veteranos que retornaram do Vietnã foram afetados por problemas severos de
ajustamento. Um grupo denominado de Grupo de Trabalho dos Veteranos do Vietnã,
então, trouxe ao conhecimento público o sofrimento, as experiências horríveis e os
efeitos prejudiciais produzidos pela guerra. Este Grupo se tornou, dessa maneira, a
principal força em promover o diagnóstico e tratamento de Transtorno de Estresse Pós-
traumático, o qual foi posteriormente embasado cientificamente através de estudos e
pesquisas.
Muitas das sugestões propostas pelo referido Grupo foram incorporados ao
diagnóstico que foi denominado de Transtorno do Estresse Pós-traumático a partir da
publicação do DSM III,. Segundo Quosh e Gergen (2008), a batalha para estabelecer
este diagnóstico transformou as experiências e efeitos das pessoas traumatizadas em
uma categoria psiquiátrica, e possibilitou-as receber cuidados em saúde mental,
assistência financeira, aceitação pública e (numa passagem um tanto irônica dos
autores) até simpatia!
Dessa forma, podemos perceber aqui a implicação das diversas concepções
envolvendo a noção de trauma, até ser constituído o conceito de Transtorno de Estresse
Pós-traumático e seus efeitos sociais. Ao se constituir enquanto patologia, o Transtorno
de Estresse Pós-traumático possibilitou dar visibilidade ao sofrimento dessas pessoas ao
mesmo tempo em que constituiu e legitimou uma série de procedimentos institucionais:
a produção de remédios pela indústria farmacêutica, a criação de centros de saúde
mental, a instituição de procedimentos terapêutico, a realização de pesquisas científicas
que dêem suporte (ou não) a tais procedimentos, etc.
Ao considerar essa função constitutiva do discurso, Gergen (2007, p.107) afirma
que “nossas inteligibilidades favorecem certas formas de vida ao passo em que
possivelmente destroem outras12
”. Assim, analisar o conceito de variabilidade é de
fundamental importância para compreendermos os efeitos produzidos pelo discurso a
partir de sua orientação para a ação (WHETERELL; POTTER, 1996). Ou, em outras
palavras, ao analisarmos a função e a variabilidade discursiva, também devemos
considerar seus efeitos através do conceito de construção.
12
Tradução livre de: “nuestras inteligibilidades favorecen ciertas formas de vida a la vez que
posiblemente destruyen otras”.
56
3.3 Construção
A metáfora da construção é importante para compreendermos três pressupostos
da Psicologia Discursiva. Em primeiro lugar, o termo construção nos lembra que o
discurso são construídos a partir de uma variedade de recursos lingüísticos disponíveis
na cultura. Em segundo lugar, construção implica em atividade seletiva: alguns recursos
são selecionados enquanto outros são omitidos. E, por fim, o termo construção enfatiza
os efeitos produzidos pelo discurso (POTTER; WHETERELL, 1987).
Tal como exposto anteriormente, Potter (2003) afirma que o discurso é
construído e construtor. Ele é construído na medida em que é formado por vários
recursos lingüísticos, como palavras, categorias, metáforas, argumentos retóricos,
descrições, histórias, lugares comuns, teorias explicativas, etc. Dessa forma, esses
recursos lingüísticos são utilizados na interação entre os sujeitos para realizarem
determinadas ações (POTTER; EDWARDS, 2001).
Já o discurso é construtor na medida em que versões da realidade, de eventos e
ações, ou em outras palavras, o mundo social do sujeito é construído e estabilizado
através da linguagem (POTTER, 2003). Ao utilizar a metáfora da construção, então, a
Psicologia Discursiva está interessada em estudar a maneira como o discurso constrói
versões do mundo. Isto é, a Psicologia Discursiva estuda como versões da “realidade
interna” do sujeito, de circunstâncias locais, de história e de grupos sociais são
produzidos para realizarem diversas ações na interação (POTTER; EDWARDS, 2001).
Para a Análise da Conversação, o processo interacional é produzido através de
perguntas e respostas. Assim, é importante focar o pressuposto de que há trechos na
interação onde determinados tipos de resposta são esperados ou apropriados
(WOOFFITT, 2005).
Tal foco é importante por permitir compreender a idéia de que a interação verbal
possui uma estrutura ou arquitetura, a qual pode ser descrita formalmente pela
referência à relação entre ações realizadas pelo discurso. Em outras palavras, questões
vão exigir respostas, convites, etc.
No entanto, segundo o autor citado, ainda que o sujeito que pergunta não
obtenha uma resposta adequada à sua questão, tal fato parece não diminuir as
57
expectativas que sustentam a interação interpessoal. O autor cita como exemplo o
fragmento de um corpus de chamadas para o serviço de informação de vôo da British
Airways (A é a atendente da companhia e C é um usuário da empresa):
A: Serviço de Informação de vôo. Posso lhe ajudar? (1.3)13
Olá?
C: Oi
A: Posso lhe ajudar senhor?
C: Oh sim eu tenho uma nota aqui para saber sobre um vôo de Gatwick.
Nessa passagem, a agente da companhia ofereceu ajuda e a resposta é ou uma
aceitação ou uma recusa. E, como o usuário ligou para o serviço de vôo da companhia,
partirmos do pressuposto de que ele necessita de algum tipo de serviço. No entanto, não
há resposta imediata para a pergunta da atendente. Assim, após uma espera de 1.3
segundos, ela pergunta “olá?”.
Esse “olá” produz duas ações. Primeiro, ele procura certificar que a linha está
funcionando (ele significa – Olá? Tem alguém ai?). Mas, por outro lado, ele também
indica que o ligador pode estar distraído momentaneamente e que ainda não percebeu
que ele está conectado (como um Olá – Eu estou aqui). O restante da passagem sugere
que ele não percebeu que já estava conectado: ele responde com outro oi, fazendo com
que a agente ofereça novamente seus serviços.
A análise desse trecho nos informa sobre a arquitetura da interação. De um lado,
a agente realizou a ação de oferecer seus serviços, esperando que o ligador aceitasse
essa oferta. No entanto, não foi isso que aconteceu. A agente poderia, então, conectar
outro usuário no lugar de nosso ligador, mas ativamente ela procura uma resposta: seu
“oi” realizou a tarefa de saber se a linha telefônica estava funcionando corretamente ou
se o ligador estava distraído momentaneamente. A ação da agente criou um caminho
para uma reação particular do ligador.
Já a Filosofia Analítica apresenta uma grande contribuição ao conceito de
Construção através dos conceitos de jogos de linguagem e formas de vida. Conforme
apontado anteriormente, Wittgenstein concebe a linguagem a partir da metáfora do jogo:
o discurso só se torna compreensível se o falante obedecer a determinadas regras tendo
em vista conseguir determinados objetivos (GERGEN, 1999; POTTER, 2001).
13
O símbolo (1.3) significa que houve um intervalo de 1.3 segundos entre a última expressão proferida e
a próxima.
58
Assim, para dotar a expressão “bom dia” de significado, o falante deve estar de
acordo com o jogo de saudação. De fato existe uma série de regras implícitas que dão
significado às saudações: cada participante deve falar por vez e existe um limitado
número de movimentos que alguém pode utilizar para responder adequadamente ao
“bom dia” (GERGEN, 1999).
Você pode responder da mesma maneira ou, então, dizer “como vai?”, mas você
será considerado fora do jogo se você chutar a pessoa ou cuspir nela. Da mesma
maneira, a sentença “bom dia” pode ser considerada sem sentido fora do jogo da
saudação. Se você está em uma conversa sobre desemprego e, de repente, você diz
“bom dia”, você poderia ser considerado louco. Dessa maneira, podemos afirmar que as
palavras são dotadas de significado a partir de seu uso nos jogos de linguagem.
Porém, segundo o referido autor, Wittgenstein afirma que o significado das
palavras não são expressas apenas pelos jogos de linguagem, mas pela sua relação com
as formas de vida promovida pelos jogos. Para explicar o que seriam as formas de vida,
utilizaremos a metáfora do xadrez.
No xadrez existem diferentes nomes para diferentes peças (por exemplo, bispo,
rei, rainha) e vários movimentos (como o xeque-mate). No entanto, estas palavras não
possuem significado devido apenas aos nossos padrões lingüísticos (jogos de
linguagem), mas em sua relação com o jogo como um todo. Ou seja, para realizarmos
um xeque-mate nós necessitamos de um tabuleiro de xadrez, peças dispostas em uma
determinada posição, dois jogadores, etc.
Os jogos de linguagem, dessa maneira, estão articulados com amplos padrões de
ações e objetos, os quais são denominados por Wittgenstein de formas de vida. Nessa
concepção, a linguagem não é um espelho da realidade, mas ela constrói a realidade por
si mesma. Retomando a metáfora da pintura, Wittgenstein não propõe que a linguagem
apenas pinta o mundo, mas, conforme aponta Austin, nós construímos coisas com as
palavras (GERGEN, 1999; POTTER, 2001).
Já os construcionistas buscam promover a compreensão de que o discurso
científico é construído como outro discurso cotidiano (GERGEN, 1999; GERGEN,
2007; QUOSH; GERGEN, 2008). E, como todo discurso, ele produzirá efeitos sobre a
realidade.
Gergen (1999) cita duas obras para exemplificar a maneira pela qual o discurso
científico produz efeitos: de um lado encontramos A Construção Social da Realidade,
59
escrito por Berger e Luckmann, e de outro temos A Estrutura das Revoluções
Científicas, de Kuhn.
Na primeira obra, os autores afirmam que a experiência individual do cientista
no mundo, ou seja, o que ele vê, ouve, toca, é traçado na esfera social. Para chegarem a
essa conclusão, Berger e Luckman propõem que nós somos socializados em
determinadas estruturas (determinadas formas de compreender o mundo que são
sustentadas por argumentos racionais). Como nós reificamos esta estrutura, ela se torna
natural para nós, ou seja, a realidade se torna naturalizada. Assim, os fenômenos se
tornam pré-arranjados em padrões que parecem independentes da forma como os
apreendo (GERGEN, 1999).
A linguagem utilizada no dia a dia me proporciona a objetivação necessária e me
proporciona o sentido pelo qual o cotidiano é dotado de significado por mim. Dessa
forma, a linguagem constrói as coordenadas de minha vida em sociedade e preenche
minha vida com objetos significativos.
Já Kuhn destrói a concepção de que a ciência esteja em constante progresso, o
qual seria obtido através da realização de pesquisas, que ao testarem hipóteses, nos
aproximariam cada vez mais da verdade. De acordo com seu ponto de vista, nossas
proposições sobre o mundo estão imersos em paradigmas, como uma teoria particular,
concepção de sujeito e práticas metodológicas. Assim, as nossas mensurações mais
exatas só são sensíveis se interpretadas no contexto desse paradigma.
O progresso científico, para Kuhn, seria apenas a mudança de paradigmas: de
um menos objetivo para outro mais exato, o qual é alcançado apenas no interior desse
novo paradigma. Desse modo, segundo Kuhn, os resultados de pesquisas realizadas em
paradigmas diferentes se tornariam incomensuráveis: um neurologista não pode medir a
profundidade de uma alma devido ao fato da alma não ser um objeto para o
neurologista.
No entanto, podemos questionar: como são construídos novos paradigmas? Para
o autor, novos paradigmas são construídos a partir de anomalias, como fatos que não
podem ser explicados a partir do paradigma vigente. Novos paradigmas podem ser
construídos à medida que novos problemas são explorados – novos conceitos e objetos
de estudo, por exemplo.
60
Dessa maneira, Kuhn desconstrói a noção de Verdade produzida
cientificamente, transformando-a em uma verdade que deve ser compreendida a partir
de sua construção imersa em um determinado paradigma.
Outra maneira que os construcionistas utilizam para exemplificar a noção de
Construção, e que está intimamente relacionada com a afirmação acima, é o pressuposto
de que os conceitos constroem a realidade. Para isso, basta lembrar o caso citado
anteriormente sobre o conceito de Transtorno de Estresse Pós-traumático, o qual
possibilitou diversas mudanças na sociedade: alocação de recursos públicos, instituição
de centros de saúde mental, etc (QUOSH; GERGEN, 2008).
Assim, ainda no âmbito do exemplo citado, os referidos autores afirmam que a
produção de conceitos relacionados à saúde mental e as conseqüências sociais
produzidas por tais conceitos promovem a destruição de formas locais de lidar com a
loucura, por exemplo. Segundo o autor, o trabalhador de saúde mental de orientação
construcionista deveria levar em consideração as formas culturais locais de lidar com as
questões relacionadas à loucura, aumentando a capacidade de resiliência da população.
Ao sugerirmos que o discurso pode produzir determinados efeitos a partir de sua
variabilidade e/ou construção, nós não pretendemos afirmar que não existe nenhuma
regularidade. O que pretendemos afirmar é que as regularidades não devem ser
associadas ao falante individual. As inconsistências e diferenças discursivas são
diferenças entre unidades lingüísticas interdependentes e consistentes, as quais foram
denominadas de Repertórios Interpretativos (WHETERELL; POTTER, 1996).
Ao analisarmos o discurso a partir dos conceitos de Função, Variabilidade e
Construção, devemos também levar em consideração o conceito de Repertórios
Interpretativos, que são um conjunto de termos, descrições e figuras frequentemente
associados à determinadas metáforas ou figuras de linguagem. Ou seja, os Repertórios
são sistemas de significação, similares a blocos de construção, que são utilizados para
construir versões factuais da realidade ou para realizarem determinadas ações
(POTTER; WHETERELL, 1987; WHETERELL; POTTER, 1992; WHETERELL;
POTTER, 1996).
Assim, podemos considerar os repertórios como os elementos fundamentais que
os falantes utilizam para construir versões de ações, processos cognitivos e outros
fenômenos. Eles estão constituídos por uma restrita quantidade de termos utilizados
estilística e gramaticalmente de maneira específica (WHETEREL; POTTER, 1996).
61
Uma vez apresentado o conceito de construção, podemos discutir sobre outro
ponto central para a Psicologia Discursiva: a retórica.
3.4 Retórica
Segundo Halliday (1990), a utilização da retórica até pouco tempo estava fadada
à descrença. A utilização de expressões como “Isso é pura retórica!” ou, então, “Tudo
que você me diz não passa de retórica” levavam as pessoas a desacreditarem a retórica.
Nas palavras de Billig (2008, p. 85):
A própria palavra “retórica” tem uma conotação desfavorável.
Ela dá a idéia de um discurso ao qual falta substância e a
palavra parece pedir a qualificação adicional de “pura” ou
“vazia”. “Pura” retórica é muitas vezes contrastada com a
realidade de feitos. O retórico é “apenas” uma pessoa falante
pretensiosa que lança frases cheia de som e fúria, mas às quais
falta um significado adequado. Pior ainda, o retórico pode ser
considerado um embusteiro que vende palavras vazias como se
fossem o artigo verdadeiro (grifos do autor).
Nesse sentido, o autor afirma que desde a época de Platão essas críticas à
retórica já se faziam presentes. Segundo o mesmo, Platão descreve em diversas obras a
forma como Sócrates combatia os retóricos, acusando-os de criar frases que buscariam
agradar ao público.
O autor também afirma que não é sem razão que tais críticas eram (e ainda são)
realizadas, posto que existia uma certa pretensão em dar prioridade ao estilo da oratória
em detrimento do conteúdo. Porém, nossa atenção deve estar voltada não para o estilo
do que está sendo dito, mas para a argumentação utilizada na construção de
determinadas versões da realidade.
Apesar de Halliday (1990) afirmar que a retórica possui enquanto precursor o
sábio egípcio chamado Ptahhope, por ter explanado generalizações sobre o poder e o
uso das palavras e destacar as contribuições de Aristóteles para essa antiga disciplina,
Billig (2008) busca fundamentar sua teoria a partir do pensamento de outro autor: o
sofista Protágoras.
62
Protágoras foi um homem bastante respeitado, em sua época, inclusive por
outros filósofos, como Platão. A originalidade de sua obra consiste, no tocante à
retórica, em um ponto bastante simples e de múltiplas conseqüências: em todas as
questões, sempre há dois lados de um argumento e ambos estão em contraposição um ao
outro).
Esse pensamento de Protágoras enfoca a importância da contradição na retórica:
“se sempre existem dois lados possíveis em todas as questões, então há sempre a
possibilidade de contradição” (BILLIG, 2008, p. 100). A própria ambigüidade do termo
argumento implica em uma contradição, uma vez que ele possui um significado
“individual” e outro “social”.
Do ponto de vista “individual”, refere-se a construção de uma cadeia de
raciocínio de tal maneira que o orador produza uma argumentação convincente. Já do
ponto de vista “social”, refere-se a disputas existentes entre pessoas estabelecidas
através de opiniões ou cadeias argumentativas.
Dessa forma, não podemos distinguir os dois significados do termo argumento,
pois se existem dois lados para qualquer questão, então o próprio significado individual
é controverso, fazendo parte de uma argumentação social. Nesse sentido, qualquer
afirmação pode ser contraposta por uma contra-afirmação ou, nos termos de Billig
(2008): qualquer logos poderá ser combatido por um antílogos14
.
Nesses termos, Protágoras chegou a uma conclusão surpreendente: de que é
impossível contradizer, posto que um logos pode se tornar antílogos, ou seja, que toda e
qualquer argumentação individual pode ser seu antílogos na esfera social. Ao rejeitar a
possibilidade de contradição, Protágoras postula a premissa sociopsicológica segunda a
qual toda pessoa possui a capacidade (e geralmente o faz) de contradizer o logos.
Ao concordar com Protágoras e ao colocar a argumentação enquanto principal
conceito para os estudos retóricos, Billig abre um novo caminho para a compreensão de
diversas questões da Psicologia.
Teorias psicológicas unilaterais parecem convidar uma resposta
protagoriana, que indica um aspecto contrário e ignorado.
Teorias que enfatizam nossa agressividade inerente invocam
teorias contrárias que enfatizam nossa capacidade de
cooperação; as teorias comportamentalistas, que sugerem que
14
Logos era o termo utilizado para designar a construção de argumentações.
63
nos comportamos, mas não pensamos, serão seguidas por
teorias cognitivas que serão todas sobre pensamento e nenhuma
ação (BILLIG, p. 107, 2008).
Dentre os inúmeros debates provocados pela utilização do pensamento de
Protágoras na Psicologia, encontramos a desconstrução de determinadas categorias
impostas como verdadeiras pela Psicologia Cognitiva15
.
Segundo Potter (1998), a retórica ganha espaço no discurso científico a partir das
discussões travadas a partir da Sociologia do Conhecimento. Segundo o autor, um dos
teóricos mais importantes para esse momento da Sociologia do Conhecimento foi
Collins.
Uma das questões abordadas por Collins é de que os cientistas deveriam adotar
uma postura metodológica relativista frente à realidade.
Quer dizer, as afirmações dos cientistas sobre o que é
verdadeiro e o que é falso não devem ser compreendidas como
ponto de partida para a análise, mas deveriam converter-se em
tema de análise por direito próprio16
(POTTER, 1998, p. 43).
Dessa forma, Collins propõe que se analise a retórica do discurso científico. Em
outras palavras, a análise retórica do discurso científico deveria responder a seguinte
pergunta: quais recursos são mobilizados pelos cientistas para tornarem suas versões
mais confiáveis do que outras?
Apesar de Collins não apresentar uma definição clara sobre o que ele
compreendia por retórica, Potter (1998, p. 52) a conceituou como um “discurso
utilizado para reforçar versões particulares do mundo e para proteger tais versões da
crítica”17
.
15
Ainda que Potter e Wheterell tenham discutido tais questões na sua obra Discourse and Social
Psychology (1987), consideramos a obra de Billig enquanto precursora, posto que a primeira edição
inglesa de Argumento e Pensando foi editada em 1985. 16
Tradução livre de: “Es decir, las afirmaciones de los científicos sobre qué es verdadero y qué es falso
no deben tomar como punto de partida para el análisis, sino que deberían convertirse em tema de análisis
por derecho próprio”.
17
Tradução livre de: “discurso utilizado para reforzar versiones particulares del mundo y para proteger
estas versiones de la crítica”.
64
A retórica apresenta-se enquanto contribuição para a Psicologia Discursiva a
partir de dois pontos: enquanto forma de instituir versões da realidade; e enquanto
princípio metodológico (EDWARDS, 2005).
Ao falarem, as pessoas constroem versões da realidade. Assim, a retórica surge
enquanto forma de questionar ao discurso: que verdade está sendo instituída? Que
discursos estão sendo combatidos e/ou reproduzidos a partir do discurso produzido por
aquele que fala? Quais elementos são mobilizados na fala da pessoa para convencer os
seus interlocutores de que aquele discurso é verdadeiro e legítimo? Quais as possíveis
contraversões discursivas que estão sendo abordadas aqui?
Dessa forma, Cirilo e Oliveira Filho (2008, p. 321) afirmam que “a uma
abordagem discursiva interessa principalmente o modo como o discurso é organizado
para tornar determinadas versões da realidade factuais, verdadeiras”.
A Psicologia Discursiva, ao utilizar contribuições da retórica, busca
compreender o discurso como produzido por pessoas que mobilizam recursos para
produzirem determinados efeitos, sendo um destes efeitos a construção de um discurso
verdadeiro, em detrimento de outros.
Vale ressaltar, após termos explanado as idéias centrais para a compreensão da
Psicologia Discursiva, que os conceitos de Função, Variabilidade, Construção e
Retórica não devem ser compreendidos enquanto conceitos estanques e independentes
entre si. Ao contrário, estes conceitos são completamente interdependentes e a análise
de qualquer um desses conceitos pode levar o analista ao próximo conceito, de tal
maneira que todos estão relacionados.
Dessa maneira, levando em consideração a apresentação do referencial teórico
adotado, poderemos apresentar a Metodologia utilizada para a realização da pesquisa.
65
4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Para coleta de dados, utilizamos a entrevista semi-estruturada. Este tipo de
entrevista combina perguntas abertas e fechadas, consistindo em um roteiro de
perguntas (APÊNDICE A) estabelecidas a priori, sendo permitido ao entrevistador
realizar novas perguntas objetivando o detalhamento de alguns aspectos da narrativa do
sujeito, tendo em vista os objetivos da pesquisa (BONI; QUARESMA, 2005).
Segundo Potter e Wheterell (1987), possuir um roteiro de pesquisa para conduzir a
entrevista pode ser importante para conduzir o entrevistador através das questões,
oferecendo a certeza de que as mesmas questões são realizadas para cada entrevistado,
além de permitir registrar outras informações que podem ser utilizadas pelo
pesquisador.
Em consonância com o exposto pelos autores, Gaskell (2008, p. 73) afirma que
Embora o conteúdo mais amplo seja estruturado pelas questões
da pesquisa, na medida em que estas constituem o tópico guia, a
idéia não é fazer um conjunto de perguntas padronizadas ou
esperar que o entrevistado traduza seus pensamentos em
categorias específicas de resposta. As perguntas são quase que
um convite ao entrevistado para falar longamente, com suas
próprias palavras e com tempo para refletir.
Os pesquisadores que trabalham na perspectiva da Psicologia Discursiva, ao
utilizar a entrevista, não se detém em investigar, por exemplo, a consistência das
respostas dos participantes, tal como ocorre na maioria das pesquisas tradicionais em
Psicologia Social. A consistência é importante para os psicólogos discursivos apenas na
medida em que é utilizada pelo pesquisador para identificar padrões regulares na
linguagem em uso (POTTER; WHETERELL, 1987; WHETERELL; POTTER, 1992).
Dessa forma, a consistência não é tão desejável numa perspectiva discursiva,
principalmente se levarmos em consideração o interesse dessa perspectiva no estudo do
discurso em si e na maneira como os sujeitos realizam determinadas ações ao falar. O
pesquisador, então, deve estar atento também às variações e contradições que surgem
nas entrevistas, pois estas permitem identificar os diferentes discursos que estão sendo
combatidos explícita ou implicitamente pelo sujeito, além de permitir a visualização de
66
diversos repertórios interpretativos utilizados pelos sujeitos na construção de suas
versões da realidade.
Os autores propõem, então, duas dicas para que as entrevistas possam gerar a
maior variedade de respostas possíveis. A primeira, e mais óbvia, é não restringir a
resposta dos entrevistados a categorias como “sim” ou “não”. A segunda consiste em
realizar uma entrevista bastante intervencionista e confrontativa. Em outras palavras, os
autores sugerem que o pesquisador deve tentar gerar alguns contextos interpretativos
correlacionados às respostas que o entrevistado constrói, de tal forma que a função e
variabilidade do discurso se torne clara. Uma forma de realizar tal sugestão é perguntar
para o sujeito a mesma questão de diversas maneiras e em diversos momentos da
entrevista.
Um outro ponto a se destacar são as diferentes concepções da função do
entrevistador nas pesquisas tradicionais e na perspectiva discursiva. Na pesquisa
tradicional, o entrevistador é concebido enquanto um agente neutro que está ali para
fazer com o que o entrevistado revele suas opiniões sobre o tema da pesquisa. Já na
perspectiva discursiva, o entrevistador deve ser considerado como mais um elemento no
contexto de produção da entrevista, ou seja, as perguntas realizadas pelo pesquisador
são construtivas e não neutras ou passivas e, como tal, também deve ser consideradas no
processo de análise dos dados.
Nesse sentido, Gaskell (2008) afirma que a realização de entrevistas é um
processo social, uma interação ou empreendimento cooperativo, produzido
discursivamente. Ao contrário do que se possa imaginar, não é um processo de troca de
informações unilateral: de um lado temos as respostas construídas pelos entrevistados e
do outro lado temos os dados capturados pelo entrevistador. Ao contrário, a entrevista é
uma interação na qual ocorre a construção (entre pesquisador e entrevistado) de
significados, estando ambos implicados no processo de produção de conhecimento.
“Deste modo, a entrevista é uma tarefa comum, uma partilha e uma negociação de
realidades” (GASKELL, 2008, p. 74).
Em consonância com o exposto, Potter e Wheterell (1987) afirmam que as
entrevistas possuem a vantagem de permitir ao pesquisador intervir na interação, além
de proporcionar a possibilidade de coletar uma amostra de respostas dos sujeitos sobre
as mesmas questões, possibilitando a comparação entre as respostas e ocasionando uma
maior simplicidade na codificação inicial.
67
As entrevistas foram realizadas entre os dias 29 e 31/12/2010 com os
profissionais que trabalham nos 02 SRTs, uma feminina e outra mista, do Distrito
Sanitário V da cidade de Recife – PE, os quais indicaram o local onde seria realizada a
entrevista. Destacamos, ainda, que a escolha do Distrito Sanitário V se deu por
indicação da Prefeitura de Recife e que a realização das entrevistas só ocorreu após a
permissão do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco.
Dessa forma, foram realizadas entrevistas com onze dos treze cuidadores do
referido Distrito, sendo 09 mulheres e 02 homens, com idade entre 22 e 47 anos, e com
escolaridade variando entre o ensino médio completo ao superior completo com pós-
graduação. Dos en
Vale ressaltar que uma das entrevistas não ocorreu por haver choque de horários
entre o entrevistador e a cuidadora em todas as tentativas de agendamento, enquanto
que, no outro caso, não conseguimos um telefone de cuidado para acessar o cuidador.
Aos participantes da pesquisa foram informados os objetivos da pesquisa e foi
garantido tanto o seu anonimato quanto a possibilidade de revelação velada (SPINK,
2000), assim como ao final da entrevista foi explicitada as possíveis contribuições do
entrevistado para a área da pesquisa (GASKELL, 2008). Os entrevistados também
assinaram um termo de livre consentimento (APÊNDICE B).
O quadro 1 apresenta um perfil dos cuidadores entrevistados relativo ao seu
período de entra nos SRTs.
NOME Contrato Pré-concurso Concurso Contrato Pós-Concurso
SILVANA X X
TIAGO X X
ROBERTA X X
FERNANDA X
JOANA X
VERÔNICA X
CLAUDIA X
MARCOS X
GISELE X
PAULA X
BRUNA X Quadro 1 – Perfil dos cuidadores baseado no período de admissão na Prefeitura de Recife – PE.
As entrevistas, então, foram gravadas e, posteriormente, transcritas. No tocante à
transcrição, Gill (2008) aponta que nessa fase o pesquisador deve tomar o cuidado de
68
registrar o maior número possível de detalhes do discurso a ser analisado. Segundo a
autora, “a transcrição não pode sintetizar a fala, nem deve ser „limpada‟, ou corrigida;
ela deve registrar a fala literalmente, com todas as características possíveis da fala”
(GILL, 2008, p.251, grifo da autora).
Assim como Gill (2008), Potter e Wiggins (2008) também afirmam que o
pesquisador não deve se enganar pensando que existem detalhes triviais que devem ser
ignorados na pesquisa. Ao contrário, segundo os autores, diversas pesquisas, utilizando
a análise conversacional, têm demonstrado que detalhes, como a entonação do que é
dito ou os silêncios, por exemplo, constituem de maneira significativa o discurso
enquanto orientado para a ação.
Já Potter e Wheterell (1987) afirmam que uma boa transcrição é essencial para a
realização da próxima etapa que pode ser considerada uma pré-análise, a qual envolve
ler e reler diversas vezes o material transcrito.
Foram realizadas diversas leituras do material. As repetidas leituras devem
contribuir para uma familiarização com o material, permitindo uma aproximação do
pesquisador com o corpus do discurso. Vale ressaltar que, no entanto, não devemos
compreender o material como um a priori, mas devemos adotar uma postura de
estranhamento em relação aos discursos (GILL, 2008).
Em seguida, realizamos a categorização, a qual consiste em organizar as
categorias de interesse, tendo em vista os objetivos do trabalho (POTTER;
WETHERELL, 1987; GILL, 1996).
Para Potter e Wheterell (1987), o objetivo da categorização é o de transformar
grandes corpus do discurso em pedaços menores e mais manejáveis. Porém, podemos
questionar: a partir de quê devemos criar as categorias de pesquisa? Para os autores, as
categorias devem ser originadas a partir das questões da pesquisa e devem ser o mais
inclusivas quanto possíveis, posto que durante o processo de análise novas categorias
podem ser criadas enquanto outras podem ser excluídas (POTTER; WHETERELL,
1987; WHETERELL; POTTER, 1992; POTTER; WIGGINS, 2008; GILL, 2008).
Para análise foi utilizado o referencial teórico da Psicologia Social Discursiva,
tal como exposto no capítulo anterior. Nesse sentido, focalizamos nossa atenção no
modo como o discurso é construído, na sua forma de organização, nos seus efeitos e
funções.
69
Cabe destacar que Potter e Wheterell (1987), assim como Gill (2008) afirmam
que nesse momento existem duas fases intimamente relacionadas. A primeira seria a de
procurar padrões nos discursos, os quais aparecerão na forma de variabilidade:
diferenças nos conteúdos e nas formas dos discursos construídos pelos entrevistados, e a
consistência: a identificação de características compartilhadas entre os discursos. Já a
segunda fase consistiria em focar a atenção na função e nos efeitos do discurso,
formulando hipóteses explicativas sobre tais funções e efeitos e procurando por
evidências que validem tais hipóteses nos discursos.
É preciso também explicitar que os dados colhidos nesta investigação e os
resultados provenientes dela serão utilizados exclusivamente para propósitos de
apresentação de debate acadêmico ou científico, para divulgação ou publicação
científica e educativa. Os dados publicados não permitirão a identificação pessoal dos
sujeitos pesquisados.
Entre os possíveis benefícios da pesquisa está o aprimoramento dos Serviços
Residenciais Terapêuticos da cidade de Recife – PE, pois esta ajudará a instituição e
seus profissionais a pensar em programas/atividades que promovam uma melhor
qualidade de vida, a partir da idéia de habilitação psicossocial, para os moradores.
Já entre os riscos, refletimos que a presença de uma pessoa estranha, nos
Serviços Residenciais Terapêuticos, pode ocasionar constrangimentos e inibições por
parte dos moradores. Em virtude deste aspecto, e caso os entrevistados optem por
realizar as entrevistas nos SRTs, é significativo que o pesquisador freqüente a
instituição antes do início da pesquisa, visando estabelecer uma boa relação com os
mesmos.
Em relação à devolução dos resultados da pesquisa aos voluntários, serão
disponibilizados na Secretaria de Saúde da cidade de Recife – PE uma cópia impressa e
em CD do trabalho desenvolvido.
70
5. SOBRE CARÊNCIA, CRISES E AUSÊNCIAS: POSICIONANDO OS
MORADORES
Nas produções discursivas dos cuidadores dos SRTs, os moradores das
residências terapêuticas são posicionados algumas vezes como pessoas “carentes”,
pessoas marcadas pela falta de carinho, de cuidado e de atenção. As intervenções de
Tiago, Fernanda e Silvana ilustram bem esse modo de posicionar subjetivamente os
moradores.
Então assim, eles são dóceis, são carinhosos, e também
carentes, né? Da, da simpatia (Tiago, 42 anos, ensino médio
completo, atua na residência mista).
Aqui eles são mais carência. Eles vêm de muitos anos de
hospital, né? Aí quando eles vêm pra residência eles querem
mais o que? Carinho, atenção, querem passear, as vezes a gente
vai sair: “me leva!, deixa eu ir”. Fica pedindo as coisas pra
gente: “tia, traz isso pra mim, eu queria isso, eu queria aquilo”,
mais assim, essa carência que eles têm (Fernanda, 40 anos,
ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas
residências)
Eu vejo como pessoas necessitadas de amor, de atenção, de
carinho. Porque pessoas que viveram quinze, vinte anos no
hospital, elas precisam disso! Então são pessoas que a gente tem
que tá ali, acompanhando, tá do lado, dar atenção, amor,
carinho, eu vejo como pessoas necessitadas, né? Da atenção da
gente. Eu vejo dessa forma (Silvana, 28 anos, ensino médio
completo (técnica de enfermagem), atua na residência
feminina).
É interessante observar como Fernanda e Silvana explicam essa suposta
carência. Na fala de Fernanda, ela é atribuída implicitamente ao hospital. Depois de
falar da carência dos moradores, ela afirma que “eles vêm de muitos anos de
hospital...”. O hospital, nessa fala, portanto, produz carência afetiva ou pelo menos
torna mais intensa uma carência pré-existente. Em contraposição ao tratamento
oferecido pelo hospital, os cuidadores das residência seriam provedores de “carinho” e
“atenção”.
71
Assim como Fernanda, Silvana busca explicar a carência dos moradores
recorrendo ao fato de terem vivido “quinze, vinte anos no hospital”, levando-a a
concluir que “elas precisam disso”. De maneira mais explícita do que Fernanda, ela
apresenta os cuidadores como atentos provedores do carinho e atenção necessários para
suprir as carências afetivas dos moradores: “Então são pessoas que a gente tem que tá
ali, acompanhando, tá do lado, dar atenção, amor, carinho...”.
Nas falas de Fernanda e Silvana, o hospital e a residência terapêutica formam
um par dicotômico: o hospital psiquiátrico produz carência afetiva e a residência
terapêutica supre as carências afetivas produzidas ou acentuadas pelo hospital.
Há que se ressaltar que posicionar insistentemente os moradores de residências
terapêuticas como seres marcados pela falta, pela carência e pela docilidade é algo
muito próximo de colocá-los na posição de seres infantilizados que sempre necessitam
de um excesso de proteção dos cuidadores, postura que pode dificultar o processo de
desenvolvimento da autonomia dos moradores. Nesse sentido, o trabalho dos cuidadores
dos SRTs deveria ser importante para os moradores não necessariamente pelo exercício
da proteção, por si só, mas pelo exercício da autonomia.
A (re)produção dessa imagem dos moradores nos serviços substitutivos é um
bom indício das dificuldades encontradas no caminho da desospitalização dos
internados e desinstitucionalização da loucura, na medida em que os que lutam por esses
objetivos entendem que um dos principais obstáculos no caminho de sua realização é
justamente a permanência da imagem do louco como um ser marcado pela falta
(SILVA; EWALD, 2006).
As falas analisadas corroboram conclusões de autores como Kinoshita (2001)
para os quais o doente mental, de maneira geral, é caracterizado a partir de sua
negatividade, ou seja, daquilo que lhe falta, o que torna nulo seu poder contratual e
impossibilita o desenvolvimento do processo de habilitação psicossocial.
Outra posição identitária construída para os moradores é a de pessoas
caracterizadas pela instabilidade emocional em decorrência da vulnerabilidade às crises.
As meninas são um doce. Quando elas não tão em crise, são um
doce (...) As meninas são maravilhosas assim, agora quando
elas entram em crise (GISELE, 28 anos, cuidadora da residência
feminina).
72
O mais complicado assim é quando eles estão no momento de
crise, né? Mas fora isso... (Verônica, 40 anos, ensino superior
incompleto (biologia), atua na residência mista).
Jardim e Dimenstein (2007), baseadas em Foucault (2006), afirmam que o
conceito de crise era bastante utilizado na medicina no início do século XIX por ser
simultaneamente uma noção teórica e um instrumento prático. No entanto, ainda de
acordo com as autoras, este conceito torna-se obsoleto devido ao surgimento da
anatomia patológica.
A anatomia patológica permitiu a individualização das doenças de acordo com
as lesões que os sujeitos apresentavam, permitindo o desenvolvimento de um
diagnóstico diferencial.
Ocorre que a psiquiatria, sendo uma especialidade médica, desenvolveu-se
através de outro movimento: para esta disciplina importa o estabelecimento de um
diagnóstico absoluto. Dito de outra forma, é a partir do estabelecimento de um
diagnóstico absoluto que a psiquiatria atua e não a partir do diagnóstico diferencial.
No mais, a psiquiatria também é uma disciplina caracterizada pela ausência de
corpo. Neste sentido, a anatomia patológica com sua busca incessante entre a doença e
seus correlatos orgânicos, não seria útil à psiquiatria, apesar de variados esforços na
tentativa de estabelecimento de tais relações.
Sendo assim, pode-se questionar: como a psiquiatria pôde ser exercida com a
utilização do diagnóstico absoluto e sem a presença do corpo? A resposta está
justamente na crise, a qual era compreendida como a “verdade da doença” revelada,
proporcionando ao médico a sua legitimação para intervir na doença mental, por um
lado, e construindo essa doença mental enquanto demanda que chega a ele.
Este modelo de atuação psiquiátrica também foi reforçado pela Psiquiatria
Preventiva. Essa disciplina promoveu a construção de uma rede de atendimento extra-
hospitalar em saúde mental nos Estados Unidos, tendo como objetivo reduzir os gastos
do Estado com essa população (AMARANTE, 2007).
Nesse momento, com os loucos fora dos hospitais, eram as crises que
importunavam a comunidade e a família, devendo ser controladas a partir da utilização
de remédios. Segundo Jardim e Dimenstein (2007, p.176), “a medicação instrumentaliza
a norma e passa a ser item indispensável para uma pseudoconvivência em sociedade,
visto que o louco não é acolhido por ela, mas sobrevive a sua margem”.
73
A situação de crise é definida, de maneira geral, pelas pessoas que acompanham
o louco. Neste sentido, é a família, a sociedade e, algumas vezes, o paciente que decide
se a crise se configura enquanto urgência psiquiátrica ou não. “A crise é vista enquanto
urgência a partir do momento que afeta diretamente a rotina da família (ou do
responsável) e que se decide denominar o acontecimento enquanto tal” (JARDIM;
DIMENSTEIN, 2007, p. 178).
Vale ressaltar que, no caso das residências, quem define o que é crise ou não são
os próprios cuidadores que lidam no cotidiano com os moradores, o que pode tornar tal
definição um instrumento de poder utilizado pelos cuidadores cotidiano, afinal definir
uma situação como uma situação de crise pode legitimar a utilização de medicamentos
que apaziguam ou mesmo o retorno, mesmo que temporário, a ambientes mais
institucionalizados como o hospital psiquiátrico.
Outra forma de posicionar os moradores, sempre cercada de excessivos
cuidados, é fazer alusão a supostos comportamentos agressivos ou de insubordinação.
Tô trabalhando com eles, é, as vezes eles são agressivos, as
vezes não, as vezes eles são, eles distratam a gente, mas faz
parte, né? (Fernanda, 40 anos, ensino médio completo (...) As
vezes ela fica agressiva, aí não quer... (Fernanda, 40 anos,
ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas
residências).
Como eu definiria? Tem uns que é fácil de lidar, são
cooperativos, alguns, tem outros que é meio difícil, que a gente
tem que... Aos poucos, trabalhar, né? (Joana, 36 anos, ensino
médio completo, atua na residência feminina).
É como eu lhe disse, que tem uns que é mais fácil de se
trabalhar e outros mais difíceis assim. É assim, tanto faz ter a
aceitação deles como, de repente, também ter recusas, né?
Então fica fácil e ao mesmo tempo não fácil (Bruna, 30 anos,
ensino superior completo (pedagogia), atua nas duas
residências).
Em sua fala, Fernanda descreve os moradores como às vezes “agressivos, às
vezes não”. Ao fazer isso ela, ao mesmo tempo que destaca a agressividade potencial
dos moradores, apresenta-se como alguém que é atenta para a complexidade das pessoas
com transtorno mental. Afinal ela reconhece que nem sempre eles são agressivos, que
não podem ser definidos somente a partir dessa característica.
74
Se em Fernanda há uma dicotomia intrapessoal, já que a mesma pessoa pode ser
às vezes agressiva e às vezes não, nas falas de Joana e Bruna a dicotomia é intragrupal.
Há duas categorias no interior do grupo de moradores, os “fáceis” e os “difíceis”.
Para Joana, existem moradores que são fáceis “de lidar”, que “são cooperativos,
alguns”. É importante observar como ela busca ressaltar que não são todos os
moradores que são do tipo “fácil” ao utilizar a expressão “alguns”. Já existem outros
“que é meio difícil” e que é justamente esses moradores que devem ser trabalhados,
“aos poucos”.
Bruna, assim como Joana, também posiciona os moradores como “fáceis” e
“difíceis”. Para a entrevistada, “tem uns que é mais fácil de se trabalhar e outros mais
difíceis”. Ela complementa sua fala afirmando que “tanto faz ter a aceitação deles como,
de repente, também ter recusas”. Tal fato faria com que o trabalho de cuidador ficasse
“fácil e ao mesmo tempo não fácil”.
Nas falas de Bruna e Joana, em resumo, os moradores são classificados em duas
categorias. Há os que ajudam nas atividades da casa, que não causam problemas, os
“fáceis”, aqueles que foram retratados nas falas anteriores como “dóceis” e
“carinhosos”, e há os que são “difíceis”, desobedientes, “agressivos”, aqueles que
precisam ser trabalhados.
É interessante observar que Bruna relaciona: I) o fato dos moradores serem
“fáceis” ou “difíceis” ao fato do trabalho ser “fácil e ao mesmo tempo não fácil”; e que
II) ela utiliza a expressão “não fácil” ao invés da expressão “difícil” para se referir ao
seu trabalho. Ao utilizar a expressão “não fácil”, a entrevistada busca minimizar os
possíveis efeitos produzidos pela expressão “difícil”, tentando construir a imagem do
trabalho de cuidador como algo que, apesar das dificuldades, é possível de ser realizado.
Outra posição identitária construída para os moradores é aquela na qual
aparecem como pessoas essencialmente sofredoras.
Então, como é que eu vou definir elas? Eu vou definir... São o
sofrimento em pessoa. Todas elas. Elas sorriem, elas, elas...
Elas conversam, elas... Tem uma que, ela recebe o filho dela,
tudinho. Mas, na verdade, elas não sabem o que é alegria não.
Elas não sabem, elas vivem no constante delírio. Não, não... Sei
não... Eu acho que, eu acho que elas podem viver uma alegria
momentânea, sabe? Um carinho, um gesto... Mas daqui a pouco
elas já pensam em outra coisa, já passa pra... Sabe? É isso. Elas
75
são o sofrimento (Gisele, 28 anos, ensino superior completo
(psicologia), atua na residência feminina).
No discurso de Gisele os moradores são pessoas com um histórico de
sofrimento, pessoas que desconhecem o sentimento de alegria, pessoas que vivem em
“constante delírio”. Quando muito, teriam uma “alegria momentânea”, originada pela
presença de um filho, por uma conversa, por um carinho, mas tudo seria fugaz.
A construção de uma identidade essencializada para as pessoas com transtorno
mental, na qual o sofrimento mórbido é uma constante, intencionalmente ou não,
termina por colocar essas pessoas numa posição de fragilidade, impotência,
dependência.
Vale ressaltar, ainda, que o processo de habilitação psicossocial, segundo
Saraceno (2001a), não é uma tecnologia, é uma abordagem ou estratégia que deve
objetivar mais do que simplesmente passar o usuário de um estado de desabilidade para
um estado de capacidade. Neste sentido, consideramos que posicionar os moradores
como seres essencialmente sofredores é promover o processo de cristalização de uma
imagem associada à debilidade, dificultando, assim, a sua inserção social.
Por sua vez, os discursos produzidos por Claudia e Roberta ressaltam, entre
outras coisas, a perda dos vínculos familiares.
(Claudia) – (...) Eu definiria, assim: são pessoas que... São
pessoas que perderam todos os seus vínculos familiares, né? A
maioria. São pessoas que precisam de cuidado, que precisam de
alguém o tempo inteiro na casa. São pessoas muito
dependentes, extremamente dependentes, né? Não saem só, não
fazem nada só, é nesse sentido que eu falo de dependência.
(Entrevistador) - Humrum.
(C) - E pessoas abandonadas... São pessoas abandonadas,
inclusive eu escutei até uma, uma, a gente conversando, eu
escutei uma moradora dizer que foi enterrada viva e que isso
não é cuidado. Ela tava falando referente aos hospitais
psiquiátricos, ela: “minha família me enterrou viva e ainda
dizem que me entendem, eu não entendo como eles dizem que
me entendem, que cuidam de mim, se me enterraram viva
durante tantos anos”, né? Isso fala de uma revolta, isso fala de
um, um, de algo que dói de alguma forma nela, né? E por isso
que eu falo de abandono. Eu definiria eles assim (Claudia, 22
anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência
feminina).
76
São pessoas que não tem vínculo afetivo com a família, que
antes viviam em hospitais psiquiátricos, que conseguiram uma
vaga de residência terapêutica, e que é como se fosse o lar
deles, a casa deles, eles cuidam como se fosse a casa deles
(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de
enfermagem), atua na residência feminina).
Claudia inicia seu discurso afirmando que os moradores “são pessoas que
perderam todos os seus vínculos familiares”. Observe que no trecho citado ela inclui
todos os moradores na categoria “moradores que perderam vínculos familiares”. Logo
em seguida, ela utiliza um recurso retórico bastante comum que possui o efeito de tornar
o discurso mais factual: ela aponta exceções, com o uso do termo a “maioria”, logo após
uma generalização.
Prossegue afirmando que “são pessoas que precisam de cuidado”, “muito
dependentes, extremamente dependentes”. Nesse sentido, o efeito produzido por
discursos com esse teor seria o de manter os moradores numa posição de dependência, o
que poderia ser útil aos cuidadores por dois motivos: I) tal discurso legitimaria o
exercício de um maior controle sobre os mesmos; e II) o discurso sobre a dependência
dos moradores justificaria a própria presença dos cuidadores, já que os moradores “não
saem só, não fazem nada só”.
No segundo trecho de seu discurso, a cuidadora enfatiza a questão de serem
“pessoas abandonadas”, retratando tal abandono a partir da citação literal de uma
conversa realizada com uma moradora a qual teria afirmado que foi enterrada viva em
um hospital psiquiátrico: “minha família me enterrou viva e ainda dizem que me
entendem, eu não entendo como eles dizem que me entendem, que cuidam de mim, se
me enterraram viva durante tantos anos”.
Podemos perceber, neste trecho do discurso, outra estratégia retórica utilizada na
tentativa de tornar verdadeira, factual, a descrição que faz dos moradores. Tal estratégia
consiste na utilização do discurso direto, na reprodução de uma fala supostamente literal
produzida por uma das moradoras ao relatar seu abandono pela família.
Podemos observar, ainda no discurso construído por Claudia, a maneira como
ela busca justificar a presença e/ou a ausência da família na vida dos moradores.
(Claudia) – (...) Tem uma outra moradora aqui que tem um
vínculo mas inclusive a gente teve que brigar na justiça porque
era uma pessoa que ficava com a curatela dela, né? E... Dava
77
pouquíssimo dinheiro a ela, ficava com bem mais pra ele que
era o tio e agora ela recebe o dela, não tem mais visita de
ninguém, acho que a ligação deles era mais ligada ao financeiro.
(Entrevistador) - Humrum.
(C) - Tem uma outra, a que tem mais visita familiar é uma que
tá aqui que o filho vem vê-la toda sexta-feira, passa cinco, dez
minutos aqui, vai embora. É a que mais tem. E as vezes vem
irmã, as vezes alguém... Tem uma outra que as vezes... Então
são pessoas que, as vezes, vem alguém, pode ser uma vez no
ano, duas ou três vezes no ano, mas, as vezes, entende? Perdido,
assim. A maioria delas não tem ninguém. Ninguém, ninguém
mesmo. Não... Enfim. Tanto que uma faleceu mês passado e
não tinha ninguém além da gente no velório. Nenhuma pessoa,
que ela não tinha nenhum vínculo. Né? Então são pessoas assim
que... E esse contato com a família é esse contato com que eu
falei assim. Alguém vem aqui, passa dez minutos e vai embora.
Quanto se tem é assim, né? Ou como essa que tinha por causa
do dinheiro (Claudia, 22 anos, ensino superior completo
(psicologia), atua na residência feminina).
Segundo a entrevistada, havia “uma outra moradora” que possuía vínculo com
um tio. No entanto, ele “dava pouquíssimo dinheiro a ela, ficava bem mais pra ele”.
Após uma briga na justiça, “agora ela recebe o dela” e, no entanto, a moradora não
“recebe mais a visita de ninguém”. Tal fato leva a cuidadora a supor que “a ligação
deles era mais ligada ao financeiro”.
“Tem uma outra, a que tem mais visita familiar” é uma moradora cujo “filho
vem vê-la toda sexta-feira, passa cinco, dez minutos aqui, vai embora”. Destaca que
essa moradora “é a que mais tem” visitas. No caso da moradora que faleceu, “não tinha
ninguém além da gente no velório”, o que levou a entrevistada a afirmar que “ela não
tinha nenhum vínculo”.
Dessa maneira, Claudia constrói seu discurso com o objetivo de justificar a
presença e/ou ausência de vínculos, argumentando que o contato com a família ou é
inexistente ou é superficial e baseado em interesses financeiros: “esse contato com a
família é esse contato com que eu falei assim. Alguém vem aqui, passa dez minutos e
vai embora. Quanto se tem é assim, né? Ou como essa que tinha por causa do dinheiro”.
Em consonância com o discurso produzido por Claudia, Roberta aponta que os
moradores de SRTs são pessoas que “viviam em hospitais psiquiátricos”, que
“conseguiram uma vaga de residência terapêutica”, a qual se tornou “o lar” deles e que
não possuem “vínculo afetivo com a família”.
78
Em contraponto às produções discursivas de natureza mais essencialista que
diferenciam os moradores das pessoas sem histórico de transtorno mental atribuindo aos
primeiros uma ou mais características que lhes seriam próprias, o sofimento, a
docilidade, a falta de vínculos, encontramos outras que aproximam os moradores dos
mortais comuns, algumas vezes produções discursivas de entrevistados que em outros
momentos descreveram os moradores com traços mais essencialistas. Os sofrimentos, as
crises, a instabilidade ainda estão presentes nesses discursos, mas, nesses momentos,
apresentam-se como características de todos os seres humanos, e não como
características exclusivas de um grupo em particular.
E aqui, é... As pessoas aqui são muito, são tranqüilas, né? A
maior dificuldade, assim, é quando eles estão, assim, em crise,
né? Que as vezes tem uma parte, assim, eu me vejo, assim, em
crise, né? É até normal isso, né? (Verônica, 40 anos, ensino
superior incompleto (biologia), atua na residência mista).
(Entrevistador) - Certo. Mas de maneira geral, tem alguma
característica que juntasse todos eles, assim, que passasse por
todos?
(Marcos) - Não, no geral não tem, não. Porque assim, como eu
falei pra você, cada um tem sua personalidade, tem aquele que é
mais preguiçoso, tem aquele que é mais trabalhador, tem aquele
que fica na dele, não quer fazer nada ou faz quando quer.
(E) - Humrum.
(M) - Então não tem como fechar um grupo...
(E) - Humrum.
(M) - Com todas pessoas. Porque assim, uns são totalmente
instáveis, né? Tanto faz tá bem quanto tá... Com alguma...
(E) - Humrum. Certo.
(M) - Alteração de... (Marcos, 32 anos, ensino superior
incompleto (enfermagem), atua na residência mista).
Era tudo um só, quer dizer, eram todos, eram pessoas que
tinham transtorno mental. Com o passar do tempo, na
convivência a gente vai percebendo, vai tendo afinidade mais
com um do que com outros, vai criando mais carinho por uns,
vai criando antipatia por outros. Então assim, hoje eu consigo
perceber a personalidade de cada um, consigo me identificar
mais com uns do que com outros, mas assim, que... Que...
Assim, eu vejo todos assim como pessoas ainda desejantes,
pessoas que ainda tem vontade de sair daqui, de levar uma vida,
tem planos de casar, de formar uma família, de voltar para sua
família. São pessoas assim, que tão além do transtorno em si,
assim, que a gente costuma ver pacientes, principalmente esses
de longa data como só um paciente com transtorno mental. E
não, assim, na residência, no convívio, a gente vai percebendo
79
uma pessoa fora daquela doença (Paula, 29 anos, ensino
superior completo (psicologia), atua na residência feminina).
Segundo Verônica, as “pessoas” que moram na residência são muito
“tranquilas”. Destaca a questão da crise em relação aos moradores, afirmando que ela é
a “maior dificuldade”, mas relativiza a importância desse fator ao afirmar que “eu me
vejo, assim, em crise” e que isso é “normal”. Em outras palavras, ao utilizar a expressão
“eu me vejo, assim, em crise”, a cuidadora procura destacar que é normal todas as
pessoas terem crise (inclusive ela mesma) e que, dessa maneira, os moradores também
seriam como todas as pessoas.
Marcos e Paula procuram aproximar os moradores dos mortais comuns
posicionando-os como sujeitos singulares, cada um com características particulares, o
que não permitiria agrupá-los todos em um grande grupo sem diferenças internas.
Retratando-os assim, esses cuidadores os posicionam como seres que não podem, tal
como todos os outros seres humanos, ser definidos a partir de uma única característica.
Assim, para Marcos, cada morador “tem sua personalidade”, sendo um
“preguiçoso”, outro “mais trabalhador”, outro que “fica na dele” e que “não quer fazer
nada ou faz quando quer”, sendo que tal singularidade não permite “fechar um grupo”.
Tal idéia também é compartilhada por Paula, a qual afirma que “eram todas
pessoas que tinham transtorno mental”. No entanto, “com o passar do tempo, na
convivência”, ela foi se aproximando de alguns moradores ao passo em que se
distanciava de outros. Em outras palavras, ela pôde “perceber a personalidade de cada
um”, o que teria determinado uma maior identificação com alguns deles.
No relato de Paula, o contato com os moradores fez com que eles passassem da
condição de “pessoas que tinham transtorno mental” para “pessoas ainda desejantes”,
que “ainda tem vontade de sair daqui, de levar uma vida, tem planos de casar, de formar
uma família, de voltar para sua família”. Os moradores são posicionados, neste
discurso, como pessoas que “estão além do transtorno em si”, pois no convívio existe a
possibilidade de perceber “uma pessoa fora daquela doença”.
A imagem dos moradores produzida por Paula ecoa outros textos sociais sobre a
relação dos sujeitos com a doença, textos como o de Amarante (2007), que afirmam a
necessidade de colocar a doença entre parênteses. Esse autor afirma que Basaglia
80
criticava a separação entre um objeto fictício, que seria a doença, da existência global e
multifacetada dos sujeitos e da sociedade.
Esse modelo teórico da psiquiatria possui suas origens no modelo biomédico.
Segundo Matta e Camargo Jr (2010, p.130), a biomedicina seria o “conjunto de saberes
que tem como objeto a doença em sua relação de causalidade com a objetividade
material do corpo, com pretensões universalistas fundado por um lado no discurso
biológico e por outro no método científico”.
O modelo da biomedicina está embasado em um exercício de saber construído a
partir do estudo das patologias em uma perspectiva baseada nas ciências biológicas,
buscando explicar a construção do processo saúde-doença a partir dos domínios da
anátomo-fisiologia e da microbiologia.
A biomedicina passa, então, a estudar a doença separada do sujeito concreto, o
qual se tornou pano de fundo: o sujeito foi colocado entre parênteses. No entanto,
Basaglia buscou justamente retomar o sujeito em sua proposta. Inspirado nas idéias de
Edmund Hurssel, ele propôs colocar a doença entre parênteses.
Ao colocar a doença entre parênteses, Basaglia objetivou suspender o
conhecimento sobre determinada situação, originando a possibilidade de construção de
novos contatos empíricos com o fenômeno em questão.
Assim, o discurso utilizado por Paula é constituído por temas, conceitos e
imagens que circulam entre os adeptos da Reforma Psiquiátrica Brasileira. O contato da
entrevistada com o discurso reformista certamente se deu na época de sua graduação em
psicologia.
É interessante observar que, apesar de Marcos e Paula apontarem para a
singularidade dos sujeitos, eles explicam tal singularidade a partir de diferentes
argumentos. No discurso de Marcos, diferentemente do de Paula, a singularidade de
cada morador é produzida também pela instabilidade decorrente da condição de alguns
deles e não somente pelo fato de que “cada um tem sua personalidade”.
Num outro trecho da entrevista realizada com Verônica, a cuidadora continua
procurando aproximar os cuidadores das pessoas comuns, de uma suposta zona de
normalidade, mas agora colocando em foco aquilo que seria uma necessidade de
estabelecer um diálogo terapêutico com outros seres humanos.
81
Uma coisa que eu tentei muito assim, quando eu entrei aqui, foi
justamente isso: é que ele sente falta de pessoas que escutem.
Eu acho que isso é problema não só da, não só deles, é um
problema do mundo todo, né? Hoje em dia as pessoas falam
demais e todas querem falar ao mesmo tempo porque querem
uma pessoa que escutem e não encontram (Verônica, 40 anos,
ensino superior incompleto (biologia), atua na residência mista).
Segundo Verônica, o morador da residência “sente falta de pessoas que
escutem”. No entanto, ela expande essa característica para além do SRT, afirmando que
“eu acho que isso é problema não só da, não só deles, é um problema do mundo todo”.
Ampliando o enfoque generalizante do trecho anterior, ela conclui afirmando
que “hoje em dias as pessoas falam demais e todas querem falar ao mesmo tempo
porque querem uma pessoa que escutem e não encontram”. A utilização do termo
“todas” no trecho citado aponta para a inclusão de todos os sujeitos, sejam moradores
ou não, produzindo o efeito de posicionar os moradores como sujeitos próximos da
normalidade.
Em outros trechos de seu discurso, Verônica retrata os moradores como
“amigos” e como pessoas que fazem parte de sua família.
Aqui eu, fiz amigos, as pessoas me receberam muito bem, né?
Me chamam de tia, ganhei um bocado de sobrinho! (...) Como
eu definiria os moradores dessa casa? Bem, primeiramente são
pacientes, né? Só que são, são amigos. Eu sempre digo assim
que isso aqui é a continuação de minha família, que você cria
vínculo, não tem como dizer que não cria, né? Certo que são
pessoas que tem lá os seus problemas, tem suas limitações, a
gente sabe das limitações, mas são meus amigos! Eu fiz amigos
aqui. Isso é muito legal (Verônica, 40 anos, ensino superior
incompleto (biologia), atua na residência mista).
O discurso produzido por Verônica é organizado de tal maneira que a apresenta
como uma pessoa que tem intimidade com os moradores. Para ela, os moradores são
seus “amigos”, pessoas que a “receberam muito bem”, apesar de terem suas
“limitações”. Além disso, ela busca posicioná-los como seus familiares, uma vez que
“aqui é a continuação de minha família”.
Após termos analisado os posicionamentos produzidos sobre os moradores,
analisaremos os posicionamentos construídos sobre os próprios cuidadores, ressaltando,
desde já, que ambos os posicionamentos tendem, muitas vezes, a se complementarem.
82
6. OS POSICIONAMENTOS CONTRUÍDOS SOBRE OS CUIDADORES
Quando solicitados a falar sobre os primeiros contatos com a função de
cuidador, alguns entrevistados afirmaram desconhecer os serviços substitutivos de
atenção em saúde mental e/ou a função de cuidador antes de trabalharem nas
residências.
Na primeira vez, que eu entrei como cuidador, eu achei assim,
essa profissão, até o nome eu achava estranha, era muito
estranho. O povo perguntava: tu é o que? E eu dizia: cuidador,
mas assim, “cuidador...” (tom de desprezo) mas eu achava tão
esquisito a palavra cuidador. Agora eu já me acostumei também
com o nome cuidador, muitas pessoas já sabe o que é ser
cuidador de residência e outras pessoas não sabe ainda, a
maioria das pessoas (Roberta, 47 anos, ensino médio completo
(auxiliar de enfermagem), atua na residência feminina).
Rapaz, eu não sabia nem o que era na verdade um cuidador de
residência terapêutica. Na verdade eu pensei que fosse pra...
realmente cuidar de... Cuidar de pessoas, mas assim, pensei que
fosse uma coisa mais estruturada, né? (Gisele, 28 anos, ensino
superior completo (psicologia), atua na residência feminina)
Assim, ela falou depois, que ela entregou um currículo meu
aqui, eu nem sabia. Aí ligaram pra mim, eu fiz: “Oxente,
CAPS?”, eu não sabia nem que isso existia! Juro a tu, não sabia
não. Que não era muito divulgado, né? Até hoje em dia eu acho
que precisa de mais divulgação (Silvana, 28 anos, ensino médio
completo (técnica de enfermagem), atua na residência
feminina).
Porque, assim, eles mostraram, abrangeu muito essa parte, pra
quem não tinha noção de nada, como eu, não tinha, nunca tive
contato com nada disso (Marcos, 32 anos, ensino superior
incompleto (enfermagem), atua na residência mista).
Roberta relata uma sensação de estranhamento em relação à profissão, inclusive
em relação à própria denominação de “cuidador”. Ela ressalta, inclusive, a preocupação
com a questão do reconhecimento social da profissão de cuidador, o desconforto que
83
sentia quando lhe perguntavam sobre sua profissão. Um trecho no qual aponta
explicitamente a falta de reconhecimento social da profissão é aquele no qual afirma
que “muitas pessoas já sabe o que é ser cuidador de residência e outras pessoas não sabe
ainda, a maioria das pessoas”.
Assim como Roberta, Gisele afirma que “não sabia nem o que era na verdade
um cuidador de residência terapêutica” e que, na verdade, ela pensava que “fosse pra...
realmente cuidar de... Cuidar de pessoas, mas assim, pensei que fosse uma coisa mais
estruturada”. É interessante destacar, ainda em sua fala, que ao utilizar a expressão
“fosse uma coisa mais estruturada”, a entrevistada critica moderadamente, mas de
maneira inequívoca, o modelo de atuação realizado pelos profissionais tanto da
residência na qual ela trabalha quanto do CAPS ao qual ele está vinculado.
Já Silvana constrói seu discurso de maneira a ressaltar o fato de que desconhecia
os serviços de saúde mental. Para tanto, ela utiliza uma expressão bastante utilizada no
nordeste do país e que indica um misto de dúvida e espanto: “Oxente, CAPS?”.
Buscando ressaltar ainda mais esse fato, ela utiliza uma estratégia discursiva que
consiste em afirmar um determinado fato e, em seguida, realizar a mesma afirmação
juntamente com a expressão “juro”: “eu não sabia nem que isso existia! Juro a tu, não
sabia não”. Por fim, ela afirma que “até hoje em dia eu acho que precisa de mais
divulgação”.
O trecho da fala de Marcos foi retirado do contexto onde ele aborda a questão do
treinamento que os cuidadores receberam para atuarem nos SRTs. Marcos “não tinha
noção de nada” na área de saúde mental antes de trabalhar como cuidador. Dessa
maneira, ele afirma que o curso “abrangeu muito essa parte, pra quem não tinha noção
de nada”, e, assim como os outros cuidadores supracitados, também nunca teve “contato
com nada disso”.
Vale a pena, nesse momento da análise, relembrar que existem cuidadores: I)
que estão nas residências desde a sua inauguração; II) que iniciaram suas atividades na
residência após serem aprovados no concurso; e III) que entraram através de contrato
mesmo após a realização do concurso.
Assim, destacamos a seguir que os cuidadores efetivos constroem uma posição
identitária para si próprios contrastando suas funções na residência com as dos antigos
cuidadores não concursados.
84
Primeiro, assim, houve um choque muito grande por que as
pessoas que trabalhavam aqui, a maioria não tinha nem nível
médio. Então, assim... Era mais assim, o serviço que elas
exerciam era mais aquela coisa mecânica, mais de doméstica,
de fazer as coisas por elas, de fazer por elas. Então, quando a
gente entrou, aí houve primeiro esse choque da gente tá
tomando o lugar delas, mas aí depois a gente foi mudando, e
foi... Assim, aos poucos elas foram percebendo também, porque
houve a passagem, né? Do serviço delas pra gente. Então houve
meio que as coisas. Então, os moradores ainda ficavam, a gente
teve também um pouquinho essa rejeição com, dos moradores
com a gente por que isso passava dos trabalhadores, dos
cuidadores antigos, e passava pra elas, que a gente veio pra
tomar o lugar, que não sei o que, não sei o que. Então, a gente,
assim,teve um pouco de resistência, os moradores ficavam meio
assim, que queria o pessoal antigo, que isso e aquilo mas isso
foi logo, logo mudado, porque eles foram percebendo o trabalho
que a gente foi desenvolvendo, que a gente dava muito mais
atenção a eles, a forma de cuidar era diferente e que isso só veio
a trazer ganhos para eles (Paula, 29 anos, ensino superior
completo (psicologia), atua na residência feminina).
De ser visto aqui como... É... Empregada doméstica. Porque na
verdade aqui a gente tenta fazer as coisas com elas, né? Mas...
Mas que não pode fazer por elas, né? Mas algumas pessoas, no
início, antes do trabalho, antes do, do concurso fazia por elas
pra... Economizar, digamos assim, tempo, né? Não tinha
paciência de ficar incentivando, né? De ficar... Assim: “bora
fazer, bora... Tentar fazer assim, porque assim é melhor”, né?
Não tinha, não tinha paciência e fazia, né? E o trabalho da gente
não é esse Aí, assim, no início a gente começou a ganhar
trezentos reais. Queriam realmente que a gente, foi exonerado
mais de metade das pessoas que foram, que passaram no
concurso. Metade foi saíram, assim... Aí isso tudo foi levando
assim. No início teve muita frescura, essas turbulências que
fizeram muita gente desistir... (Gisele, 28 anos, ensino superior
completo (psicologia), atua na residência feminina).
A gente da residência, a gente era obrigado, a gente trabalha
como cuidador e não como faxineiro, né? A nossa obrigação é
cuidar do bem estar do morador. A gente, fazer com que ele
tenha autonomia e tal, né? Não é fazer limpeza assim. Então a
gente sempre foi estimulado a fazer com que os moradores
fizessem as coisas dentro da casa porque é a casa deles, né? E
fazendo todo dia eles vão tendo uma autonomia e tal. Mas, no
início, a gente era obrigado a ter que ajudar... A gente ajuda,
85
assim, dá um apoio, mas antes queria que a gente fizesse tudo
dentro da casa, assim... E hoje em dia, não. A gente tem uma
pessoa que de quinze dias vem fazer uma limpeza geral na casa,
pra ajudar e antes isso era altamente proibido (Silvana, 28 anos,
ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua na
residência feminina).
Paula afirma que houve um “choque muito grande” inicialmente porque a
maioria das pessoas que trabalhavam na residência “não tinha nem nível médio”,
exercendo o serviço de maneira “mecânica”, realizando a função “mais de doméstica”,
qualificando as antigas práticas como práticas exercidas sem a devida reflexão sobre o
processo saber-fazer. Em seu discurso, a entrevistada sugere tacitamente que cuidadores
de nível médio não possuiriam a capacidade de refletir criticamente seu trabalho,
realizando-o de qualquer jeito. Por fim, ela critica os antigos cuidadores por fazerem “as
coisas por elas”.
Ela afirma, ainda, que ao entrarem houve um “choque”, mas que elas foram
“mudando” concomitantemente à “passagem” do “serviço delas pra gente”. Segundo a
entrevistada, “houve um pouco de resistência” posto que os moradores “queriam o
pessoal antigo”, mas que “isso foi logo, logo mudado porque eles foram percebendo o
trabalho que a gente foi desenvolvendo”, dando “muito mais atenção a eles”, exercendo
uma “forma de cuidar” que era “diferente” e que “só veio a trazer ganhos para eles”.
A utilização da expressão “era mais assim”, em sua fala, também busca excluir a
idéia de que todo o serviço realizado pelos antigos cuidadores era mecânico e
relacionado aos afazeres domésticos, mas que estes serviços se sobressaíam em relação
aos demais. E ao utilizar a expressão “aos poucos”, ela busca ressaltar que o processo de
mudança não foi um processo realizado subitamente, do “dia para a noite”, e que, isto
sim, foi um processo que ocorreu de maneira gradativa.
Podemos observar, também, que a cuidadora utiliza nesse trecho de seu discurso
uma série de verbos conjugados no gerúndio: “tá tomando”, “foi mudando”, “foram
percebendo” e “foi desenvolvendo”, todos relacionados à temática do repasse das
informações que teria ocorrido entre os cuidadores contratados, que estavam saindo, e
os cuidadores concursados. Partimos do pressuposto de que, ao utilizar tais verbos, a
entrevistada utilizou um recurso discursivo para construir a idéia de que a passagem dos
cuidadores antigos para os cuidadores concursados foi uma passagem gradual e não uma
86
mudança drástica e com total ruptura, posto que verbos utilizados pela entrevistada,
quando conjugados no gerúndio, geralmente expressam ações que ocorreram
gradualmente, como “foi desenvolvendo”.
Ainda no tocante ao discurso de Paula, é interessante observar a maneira como
ela desqualifica o trabalho exercido pelos antigos cuidadores ao afirmar que “a maioria
não tinha nem nível médio” e que o “serviço que elas exerciam era mais aquela coisa
mecânica, mais de doméstica, de fazer as coisas por elas, de fazer por elas”.
Ao utilizar a expressão “nem nível médio”, ela desqualifica o trabalho realizado
pelos antigos cuidadores, retomando uma idéia bastante presente em nossa cultura, que
é a de que quanto maior o grau de escolarização do sujeito, melhor será o seu
desempenho laborial.18
A entrada de novos cuidadores teria modificado tal situação: “isso foi logo, logo
mudado, porque eles foram percebendo o trabalho que a gente foi desenvolvendo, que a
gente dava muito mais atenção a eles, a forma de cuidar era diferente e que isso só veio
a trazer ganhos para eles”. Nesse trecho da entrevista, de maneira mais explícita, ela
afirma que os novos cuidadores trouxeram “uma forma de cuidar diferente”, o que
implicou em uma melhora da qualidade de vida dos moradores.
Tal construção pode ser observada também em outros trechos de seu discurso no
qual ela menciona novamente o “ensino médio” dos antigos cuidadores e a
“efetividade” do trabalho dos novos cuidadores:
Então assim, a gente só veio a contribuir: a gente melhorou
muito o serviço, a forma de perceber, porque antes as pessoas
era, era... De nível, é... Médio ou talvez nem terminasse nível
médio. Então assim, a forma que a gente lida com os
moradores, eles percebem que são de uma forma mais diferente
assim, mais educativa, e que a gente tem visto ganhos por isso
(Paula, 29 anos, ensino superior completo (psicologia), atua na
residência feminina).
Assim como no discurso de Paula, Gisele afirma que os cuidadores, ainda hoje,
são vistos como “empregada doméstica”, uma suposta herança do tempo em que
18
Nesse sentido, vale ressaltar que Paula possui graduação em Psicologia e que alguns cuidadores
construíam seu próprio posicionamento a partir, também, do fato de alguns cuidadores possuírem
graduação em psicologia.
87
“algumas pessoas, no início”, “antes do concurso fazia por elas”. Nesse sentido, ela
busca não se referir explicitamente aos antigos cuidadores, utilizando a expressão
“algumas pessoas”. Consonante com o objetivo da habilitação psicossocial, ela afirma
em seu discurso que os novos cuidadores devem exercitar a autonomia dos moradores,
buscando não “fazer por elas”, posto que sua função enquanto cuidadora de SRT não é
essa.
Outra cuidadora que reitera tais posicionamentos é Gisele:
Porque, na verdade, no início, no início, eles pensavam que a
gente na verdade era empregada doméstica, como os outro
também eram tratados, na época. A gente, agora, eu acho que
tem um, eles tem uma postura um pouquinho diferenciada, por
sinal até Paula, não sei elas comentaram contigo, Paula foi
chamada pra assumir um cargo de gerência administrativa no
CAPS. Assim, na verdade, desvio de função, vai ganhar um
pouquinho mais do que ela ganha, mas, assim, já é uma grande
coisa, né? Aí, assim, é uma coisa diferenciada, né? (Gisele, 28
anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência
feminina).
Já Gisele busca justificar, em seu discurso, a maneira pela qual os antigos
cuidadores exerciam suas atividades. Segundo a entrevistada, os antigos cuidadores
faziam “por elas” na tentativa de “economizar, digamos assim, tempo” e porquê “não
tinha paciência de ficar incentivando”. Dessa maneira, podemos afirmar que o discurso
de Gisele busca responsabilizar, os antigos cuidadores pela maneira “incorreta” de
realização do trabalho.
Silvana, assim como Paula e Gisele, também posiciona os cuidadores
diferenciando-os da imagem de “faxineiro”. Segundo a entrevistada, “a gente da
residência” “trabalha como cuidador e não como faxineiro”. A obrigação do cuidador,
em sua perspectiva, “é cuidar do bem estar do morador”, “fazer com que ele tenha
autonomia” e “não fazer limpeza”.
É interessante observar como a entrevistada reitera novamente esse discurso,
repetindo que “a gente sempre foi estimulado a fazer com que os moradores fizessem as
coisas dentro da casa”, o que acarretaria no desenvolvimento de “uma autonomia”, mas
que “no início, a gente era obrigado a ter que ajudar”. Com essa reiteração, ela busca
88
firmar seu posicionamento contrário ao trabalho do cuidador como “faxineiro”, o qual
supostamente seria exercido pelos antigos cuidadores.
No entanto, logo em seguida, ela busca minimizar a ênfase anterior no
afastamento dos cuidadores das atividades domésticas ao afirmar que “a gente ajuda,
assim, dando um apoio” mas que hoje existe uma pessoa que auxilia na limpeza da casa
de quinze em quinze dias, fato que anteriormente era “altamente proibido”. Nesse trecho
de seu discurso, a cuidadora busca construir a idéia de que ela pode até realizar
trabalhos de faxina na casa, mas que este não deve ser o foco da atuação do cuidador no
SRT.
Já o discurso de Claudia também aponta para a questão das tarefas atribuídas aos
cuidadores, mas, agora, referindo-se ao treinamento que os cuidadores concursados
receberam ao entrar na Residência.
(Entrevistador) - Então, a próxima pergunta é justamente sobre
treinamento. Você me falou que recebeu esse treinamento de
quatro dias, né?
(Claudia) - É.
(E) - Tem alguma questão que você queira colocar, alguma
coisa que te chamou a atenção na época? Ou que te chamou a
atenção justamente por faltar, enfim?
(C) - Humrum. Bem, na época, o que me chamou a atenção foi,
é... A coisa do... Lembro que quem tava falando era até...
Esqueci o nome dela... Enfim, uma moça lá e ela tava falando
que como cuidador, quem trabalha com saúde mental tem que
estar disposto a tudo, né? E, de alguma forma eu já sabia, por
algumas experiências de estágio, mas aí eu ouvia pessoas
falarem que cuidador vai fazer o que for, o que tiver que fazer,
se tiver que desentupir privada, vai ter que desentupir... Isso
assim, conversas... Né?
(E) - Humrum.
(C)- E que ela, ela confirmou, meio que essa idéia, a professora
lá. Meu Deus, como assim, né?! Cuidador de residência
terapêutica vai ter que limpar cocô, vai ter que, não sei o que...
Então isso eu lembro que me foi estranho nessa capacitação e...
(Claudia, 22 anos, ensino superior completo (psicologia), atua
na residência feminina).
Podemos observar a maneira como Claudia inicia seu discurso de maneira
bastante vaga. Nesse sentido, ela utiliza pausas entre as frases proferidas, simbolizadas,
89
textualmente, pelas reticências “...”, as quais possuem a função de deixar as sentenças
inacabadas: “o que me chamou a atenção foi, é...”, “a coisa do...” e “lembro que quem
tava falando era até...”. Por fim, ela também não cita nem o nome da palestrante,
afirmando que “esqueci o dome dela...”.
Supomos, então, que ao construir seu discurso de maneira vaga, a cuidadora
sugere tacitamente que a capacitação não foi importante para ela, uma vez que, em
nossa cultura, uma das formas de mostrar a alguém que um evento teve pouca
importância é descrevê-lo de maneira vaga, sem entrar em detalhes.
Ainda segundo a entrevistada, a “moça lá” afirmou que “como cuidador, quem
trabalha com saúde mental tem que estar disposto a tudo”, como “desentupir privada”, e
que, de alguma forma, ela já sabia disso, através de “estágio”.
A expressão “conversas”, utilizada pela entrevistada, é freqüentemente usada em
nosso contexto para relatar algo que dizem que aconteceu, mas de que não se tem
certeza. Ou seja, é mais uma forma de podermos afirmar que alguém falou algo, ou que
algo aconteceu, sem identificar as fontes que nos informaram. No discurso da
cuidadora, “conversas” é mais uma estratégia de construção de um discurso
aparentemente explícito mas que, ao analisarmos, torna-se um discurso repleto de
recursos retóricos com o intuito de deixá-lo vago.
O discurso de Claudia busca, também, responsabilizar individualmente os
cuidadores pela boa ou má atuação na residência.
Não é qualquer pessoa que pode ser um cuidador, né?
Entendeu? Mexe com muitas questões pessoais, mexe com o
jeito mesmo de cada um e com objetivo, cada um quer o que
trabalhando como cuidador, né? Só dinheiro, (incompreensível),
né? E... E botar como concurso pra se trabalhar com isso, um
concurso você (incompreensível), né? E você tá dentro, já. Né?
E ai a gente vê as coisas que acontece: cuidador que agride,
cuidador que faz isso, tudo... Então isso me foi estranho,
quando eu entrei (...) Lidar com crises, lidar com isso da
medicação, efeitos das medicações, não sabe. Entende? Quem
quiser, busque, quem não quiser, pode ficar aí trabalhando sem
saber (...) De tudo que acontece, de acontecer de qualquer
forma, de deixar à mercê dos cuidadores, que podem fazer o
que bem entender ali dentro. Foi um ótimo cuidador, que bom!
Mas também se não foi, pode destruir aquilo ali... (Claudia, 22
90
anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência
feminina).
Nos trechos destacados, vale a pena observar a utilização de diversas expressões
que responsabilizam os cuidadores pelo sucesso ou fracasso das residências. Nesse
sentido, a entrevistada afirma que ser cuidador “mexe com muitas questões pessoais,
mexe com o jeito mesmo de cada um”, que “quem quiser” aprender a “lidar com crises”
ou conhecer os “efeitos das medicações” que “busque, quem não quiser, pode ficar aí
trabalhando sem saber”, e isso tudo faz com que exista “cuidador que agride”, deixando
o serviço “à mercê dos cuidadores, que podem fazer o que bem entender ali dentro”.
Assim, se “foi um ótimo cuidador, que bom”, porém, “se não foi, pode destruir aquilo
ali”.
Já para Joana, ser cuidador é uma profissão que exige “ter paciência”.
O que é ser cuidador? Acho que ser cuidador é uma pessoa que
tem que ter paciência com eles. Tentar incentivá-los. Acho que
é isso (Joana, 36 anos, ensino médio completo, atua na
residência feminina).
Em seu discurso, Joana afirma, de maneira muito resumida, que ser cuidador é
ter “paciência” com os moradores, sempre buscando “incentivá-los”. Verônica, por sua
vez, posiciona os cuidadores como seres angelicais que ajudam a melhorar a vida dos
moradores.
Quem são os cuidadores das residências terapêuticas? Ai! Os
cuidadores das residências terapêuticas... Eu acho assim, que
são anjos, sabe? São pessoas que... Tão aqui pra ajudar, tão aqui
pra (incompreensível), pra ajudar a melhorar a vida deles
(Verônica, 40 anos, ensino superior incompleto (biologia), atua
na residência mista).
Em seu discurso, a cuidadora posiciona os cuidadores como “anjos” que estão
“pra ajudar a melhorar a vida deles”. Constrói a imagem dos cuidadores a partir de uma
figura religiosa: o anjo. Dessa maneira, a cuidadora posiciona os cuidadores como seres
91
livres da maldade, como pessoas bondosas, repletas de amor no coração e que estão no
SRT para exercer o bem cuidando dos moradores.
Discurso semelhante é construído por Fernanda. Segundo ela, trabalhar como
cuidador é “ajudar”, “ter muita tolerância” e “ter amor”.
(Entrevistador) - Humrum. E quem são os cuidadores das
residências terapêuticas pra você?
(Fernanda) - Quem são? São meus amigos, né? De trabalho.
(E) - Seus amigos? E assim, pra descrever, se alguém te
perguntasse: o que é ser cuidador, o que é trabalhar sendo
cuidador, o que você responderia?
(F) - Trabalhar sendo cuidador? Ajudar, né? Ajudar... Se dar,
né? Que a gente tem que ter muita tolerância pra trabalhar num
lugar assim. E amor, né? Tem que ter amor (Fernanda, 40 anos,
ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas
residências).
Ao ser questionada sobre “quem são os cuidadores das residências terapêuticas”,
a entrevistada afirma que “são meus amigos” e, mais especificamente, amigos “de
trabalho”. Como a entrevistada parece não desejar abordar muito o assunto, o
entrevistador insiste um pouco mais, solicitando que ela descreva o “que é trabalhar
sendo cuidador”. Em seguida, ela afirma que trabalhar sendo cuidador é “ajudar”, “se
dar”, pois é necessário ter “muita tolerância para trabalhar num lugar assim”, além de
ter que “ter amor”.
Ao utilizar a expressão “num lugar assim”, a cuidadora sugere tacitamente que o
SRT é um lugar desprezível, caracterizado pelo estigma da diferença e da loucura, e que
por isso se faz necessário ter tanta “tolerância” para se trabalhar ali.
Fernanda também posiciona os cuidadores como pessoas pacientes e,
principalmente, pessoas amorosas, dispostas a doar esse amor no trabalho cotidiano com
os moradores. Aqui encontramos, mais uma vez, o posicionamento produzido sobre os
cuidadores sendo construído dialeticamente a partir da imagem dos moradores: os
moradores seriam sujeitos infantilizados, pobres coitados dignos de piedade, enquanto
os cuidadores seriam “anjos” dispostos a amar e a proteger os pobres coitados, o que é
uma reprodução do discurso cristão de que devemos amar os desgraçados, os leprosos,
os doentes.
92
O posicionamento dos cuidadores como pessoas que “ajudam” também pode ser
encontrado em outro trecho de seu discurso.
Eles vêem na gente, né? Uma pessoa que eles podem ter muitas
coisas se a gente puder ajudar eles, né? (Fernanda, 40 anos,
ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas
residências)
Nesse momento, a entrevistada afirma que os moradores percebem os cuidadores
como “uma pessoa que eles podem ter muitas coisas”. Nesse sentido, ela realça a
dependência dos moradores afirmando ainda que, apesar dos moradores serem pessoas
dependentes, “eles podem ter muitas coisas se a gente puder ajudar”.
Já alguns entrevistados posicionaram os cuidadores, de maneira geral, como
profissionais de nível superior.
(Entrevistador) - E quem são os cuidadores das residências
terapêuticas pra você?
(Claudia)- Quem são os cuida... (risos) Quem são os
cuidadores? Olhe... A curto e grosso modo, os cuidadores de
residência terapêutica, pra mim, primeiro que são pessoas muito
diversas, assim, diversificadas porque tem pessoas de “n” áreas.
Mas... de uma maneira geral são pessoas que... Eu posso falar
sobre os daqui?
(E) - Fique a vontade.
(C)- São pessoas que primeiro trabalham, que precisam de
dinheiro, né? Em primeiro lugar. São pessoas que tem uma
preocupação com os moradores, com cada coisa que acontece
aqui, falando daqui. (risos) E... Que eu vejo assim, né? E são
pessoas que tem determinadas responsabilidades com tudo que
acontece aqui dentro.
(E) - Humrum.
(C) - E que precisam estar muito atento as coisas. Mas os
cuidadores, de uma maneira geral, cuidadores, essa categoria,
digamos assim, cuidador de residência terapêutica são pessoas
que são vistas como mais uma peça que trabalha dentro da
área... De saúde. Sabe? Pessoas que tem que fazer tudo, pessoas
que tem que cuidar, que tem que limpar o chão e que tem que
fazer isso e tem que fazer aquilo. Precisam se sujeitar a
qualquer coisa, né? Pra mim essa é a visão que se tem dos
cuidadores dentro do, da rede, digamos assim. Essa foi a minha
93
visão de cuidador (Claudia, 22 anos, ensino superior completo
(psicologia), atua na residência feminina).
Não sabia que ia ter tanto profissional assim, já formado,
porque o concurso, quando a gente foi ver, só tinha gente
formada, né? Era, aqui tem psicólogo, tem TO, tem assistente
social, tudo aqui dentro (Gisele, 28 anos, ensino superior
completo (psicologia), atua na residência feminina).
Claudia inicia seu discurso com uma tentativa de responder a pergunta com
sinceridade: quando utilizamos a expressão “a curto e grosso modo” indicamos que
iremos abordar alguma temática “de maneira direta”, “sem arrodeios”. No entanto, logo
em seguida ela orienta seu discurso por outro caminho, sendo cuidadosa com as
expressões que irá utilizar. Assim, ela tenta iniciar uma pontuação do que vai falar,
utilizando a expressão “primeiro”.
A cuidadora, então, posiciona os cuidadores como um grupo heterogêneo,
caracterizado pela diversidade, afirmando que existem cuidadores de “n” áreas. Vale a
pena ressaltar que, diante da diversidade, ela exclui os cuidadores de nível médio: em
nossa cultura nós não nos referimos aos trabalhadores de nível médio com o termo
“área”, o qual é utilizado para fazer referência a profissionais de nível superior, como
por exemplo na expressão “ele é da área da saúde”.
Em seguida, após tentar construir a imagem dos cuidadores “de uma maneira
geral”, ela passa a enfocar os cuidadores “daqui”. Na tentativa de construir, mais uma
vez, a idéia de que seu discurso é sincero, a entrevistada afirma que os cuidadores “são
pessoas que trabalham, que precisam de dinheiro”. Nesse caso, devemos lembrar que os
valores culturais da sociedade brasileira, de maneira geral, não vê com bons olhos
sujeitos que afirmam trabalhar por dinheiro. Em nossa sociedade, o trabalho é visto
mais como um meio de dignificar o homem do que uma forma de sustento para o ser
humano.
Em seguida, ela afirma que os cuidadores são pessoas preocupadas com o bem-
estar dos moradores e que tem responsabilidade pelo que acontece na residência, mas,
nesse momento, ela especifica, utilizando expressões como: “acontece aqui, falando
daqui” e “tudo que acontece aqui dentro”, que seu discurso se refere apenas à residência
na qual ela atua.
94
No último trecho do discurso supracitado, Claudia afirma que ser “cuidador” é
ser visto “como mais uma peça dentro da área... de saúde”, como pessoas que
necessitam “se sujeitar a qualquer coisa”: tem que “cuidar”, “limpar o chão”, etc.
Supomos, então, que em seu discurso, Paula se apresenta como uma trabalhadora ciente
das atividades que os cuidadores devem desempenhar, dentre as quais ela cita “limpar o
chão”.
Por fim, ela afirma que outros profissionais que atuam na gestão compartilham
dessa visão de cuidador, afirmando que “essa é a visão que se tem dos cuidadores dentro
do, da rede”.
Assim como Claudia, Gisele também posiciona os moradores como profissionais
de diversas áreas. É interessante observar, no discurso construído por Gisele, que ela
afirma que, quando prestaram atenção, só havia “gente formada” no concurso, como
psicólogo, terapeuta ocupacional e assistente social. No entanto, Gisele exclui os
profissionais de nível médio que atuam na residência terapêutica, citando apenas os
profissionais que possuem ensino superior.
Gisele, ao afirmar que existem profissionais de nível superior trabalhando como
cuidadores de SRTs, apresenta a categoria com alguma importância. Nesse sentido, ela
tenta remodelar a idéia de que os cuidadores das residências são “empregadas
domésticas”.
Já outros entrevistados constroem a imagem de cuidador relacionando-a com o
fato de existirem psicólogos atuando nos SRTs.
É como eu já te disse, a maioria são formados em psicologia, e
todos, assim... (Paula, 29 anos, ensino superior completo
(psicologia), atua na residência feminina).
(Marcos) - Entendeu? Uma faixa de 70% do pessoal que
trabalham na residência hoje são psicólogos. No caso da gente
aqui, de doze, de doze, parece que é sete ou é oito são
psicólogos.
(Entrevistador) - Mais da metade, né?
(M) - É. Mais da metade são psicólogos. Alguns já são
formados, a maioria são formados e tem dois que tão cursando
ainda e um termina agora, esse ano e outro no próximo ano.
(E) - Humrum.
(M) - Uma grande parte são psicólogos, né? Aí... Eu acho por
conta também do curso que fizeram, do trabalho aqui, né? É...
95
Que tem um relacionamento com a personalidade, né? (Marcos,
32 anos, ensino superior incompleto (enfermagem), atua na
residência mista).
(Entrevistador) - Então chamaram mais ou menos umas cento e
vinte pessoas?
(Roberta) - Não, porque teve muita gente eliminada. Que
chegou atrasado, desistiram, quando foi, porque assim, a
maioria, esse concurso, a maioria que se inscreveu foi de nível
superior, a maioria psicólogos que se inscreveram. Eles não
conheciam o serviço de cuidador, não (inaudível, mas ela
parece dizer “sabiam”) nada, e se inscreveram porque o edital
vinha com, com, dizendo tudo que deveria a, a psicologia, a
maioria dos assuntos, aí foi a maioria dos psicólogos se
inscreveram. Aí realmente de nível médio acho que só umas
três pessoas entraram. Porque a maioria foi, era o assunto era
tudo pra, referente a, a psicologia. Psicopatologia, muitas
cadeiras que eles dão na faculdade de psicologia foi que, que
caiu. A maioria que entrou foi, teve psicólogo, teve TO, teve
assistente social que entrou. Foi muito (Roberta, 47 anos,
ensino médio completo (auxiliar de enfermagem), atua na
residência feminina).
Segundo Paula e Marcos, a maioria dos cuidadores que estão atuando nos SRTs
do Distrito Sanitário VI são psicólogos.
Marcos afirma que cerca de “70% do pessoal que trabalham na residência hoje
são psicólogos”. Mais especificamente, Marcos afirma que no Distrito Sanitário VI
existem doze cuidadores, sendo que “sete ou é oito são psicólogos”. Segundo o
cuidador, “a maioria são formados”, sendo que existem “dois que tão cursando ainda e
um termina agora”, enquanto um outro termina “no próximo ano”.
Interessante na fala de Marcos é a explicação que ele constrói para justificar o
grande número de psicólogos que atuam como cuidadores de residências terapêuticas:
segundo o entrevistado, os psicólogos se identificariam com o trabalho de cuidador “por
conta também do curso que fizeram”, posto que atuar nos SRTs teria “um
relacionamento com a personalidade”.
Assim como Marcos, Roberta também afirma que a maioria das pessoas que se
inscreveram para o concurso foi “de nível superior”, sendo a “maioria psicólogos que se
inscreveram”. Mas a explicação que Roberta constrói para justificar a inscrição de
grande número de psicólogos difere da explicação oferecida por Marcos: para a
96
cuidadora, os psicólogos se inscreveram sem “conhecer o serviço de cuidador” e só o
fizeram porque os assuntos eram referentes a disciplinas que “eles dão na faculdade de
psicologia”, como “Psicopatologia”. Por fim, ela menciona os outros profissionais de
nível superior que passaram no concurso afirmando que existem cuidadores “terapeutas
ocupacionais” e “assistentes sociais” ao lado dos “psicólogos”.
Os cuidadores também se posicionaram como pessoas que construíram um
“vínculo” com os moradores, que possuem uma relação afetuosa com os mesmos, além
de se posicionarem como “familiares” dos moradores.
Mas eu considero a relação de todos os cuidadores com os
moradores muito afetuosa, sabe? É... Como eu te falei, acho que
a gente tem a sorte de trabalhar com uma equipe que, de uma
maneira geral, trabalha muito bem, tem uma relação muito boa,
sabe? (Claudia, 22 anos, ensino superior completo (psicologia),
atua na residência feminina).
Cuidadores são pessoas que vivem no dia a dia dos moradores,
né? Que sempre está presente, mesmo estando fora a gente tá
sempre pensando neles, né? Mas, assim, a gente cuida deles.
Como se eles fossem, é... Assim... Pessoas da própria família. A
gente termina pegando até um vínculo familiar com eles. Por,
pelo cuidado que a gente tem com eles, né? E até o dia a dia
mesmo, convivência, a gente vive como se morasse aqui
também, entendesse? Então a gente cuida dele e ao mesmo
tempo a gente termina se apegando a elas e a eles, né? Porque
tem homens, também, né? Só (Bruna, 30 anos, ensino superior
completo (pedagogia), atua nas duas residências).
Assim, são todos muito engajados, assim, não tão aqui só por
dinheiro, não é só o trabalho por si não, realmente todos tem
uma filosofia de mudar mesmo o comportamento dessas
pessoas, de ajudarem, porque é como eu também já te disse,
tem esse vínculo afetivo. Então as pessoas fazem por amor
mesmo, assim, querem ver aniversário, todo mundo se mobiliza
para fazer o aniversário delas, Natal... Então assim, é uma coisa
muito, e como elas também participam do momento da gente,
que eu vou casar agora e tá todo mundo falando: “ah! Não vejo
a hora!”, lembram do dia, querem comprar presente pra mim.
Então assim, tem esse vínculo além do trabalho, né? Que é o
vínculo afetivo mesmo, que vai além do trabalho que a gente
deve exercer na residência (Paula, 29 anos, ensino superior
completo (psicologia), atua na residência feminina).
97
A gente se apega. Teve uma que faleceu, eu chorei, a gente
chorou, chora. Se apega demais. Até porque não tem família, a
família delas é a gente, né? A gente termina se apegando muito
a elas (Gisele, 28 anos, ensino superior completo (psicologia),
atua na residência feminina).
A gente pega um vínculo com elas, assim, é como se fosse uma
família, a segunda família (risos). Tem assim, a gente já teve
duas que faleceram e assim, as duas eram muito apegadas, (diz
o nome da moradora) era muito apegada com a gente tudinho.
Aí faleceram, pra gente foi como se fosse uma pessoa da família
(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de
enfermagem), atua na residência feminina).
E a gente termina sendo, a gente pode até comparar, assim,
como um parente mais próximo. Porque a convivência nos
ajuda a respeitar essas pessoas e eles respeitam a gente, né? Eles
tem muito apego a gente, muito respeito, pedem conselho,
questionam as coisas, mas sempre ali, dentro do tratamento
respeitoso (Tiago, 42 anos, ensino médio completo, atua na
residência mista).
Porque tem gente aqui que não tem família. Então, tem que, a
gente tem que fazer o papel de tudo: do cuidador, tem que fazer
o papel da família deles, porque eles necessitam de, de, de tudo,
de atenção, de amor, de cuidado (Silvana, 28 anos, ensino
médio completo (técnica de enfermagem), atua na residência
feminina).
No discurso construído por Claudia, ela afirma que, na sua opinião, todos os
cuidadores que trabalham com ela possuem uma relação bastante “afetuosa” com os
moradores. Ao utilizar o termo afetuosa, a cuidadora constrói a idéia de que os
cuidadores que atuam nas residências do Distrito Sanitário VI cuidam muito bem dos
moradores das residências, suprindo todas as necessidades dos mesmos.
Tal fato é reiterado pela entrevistada, de maneira mais explícita, com o que ela
afirma em seguida: ela tem a sorte de trabalhar com uma equipe “que, de uma maneira
geral, trabalha muito bem”. A utilização de tal expressão produz dois efeitos: I) por um
lado, o fato dela afirmar que possui a sorte de trabalhar com uma equipe que “trabalha
muito bem”, é uma maneira de afastar os maus cuidadores, localizando-os em equipes
de outros territórios; e II), por outro lado, permite apresentar a sua equipe de trabalho
98
como uma equipe normal: uma equipe que tem momentos de relação harmoniosa, assim
como também apresenta conflitos, o que permite tornar seu discurso mais factual.
Segundo Bruna, os cuidadores são pessoas que convivem com os moradores e
que estão sempre presentes, inclusive nos momentos de folga, posto que “a gente tá
sempre pensando neles”. Dessa maneira, encontramos mais uma vez uma cuidadora
afirmando ser uma boa trabalhadora ao afirmar que se preocupa com os moradores até
quando não está em seu horário de trabalho.
Ainda em seu discurso, ela afirma que os cuidadores cuidam dos moradores
como se eles fossem “pessoas da própria família” e que esse cuidado origina um
“vínculo familiar com eles”. Ao posicionar os moradores como se fossem pessoas de
sua família, os cuidadores também se posicionam como familiares dos moradores,
constituindo uma relação dialética na qual o posicionamento de um está em relação ao
posicionamento do outro.
É interessante observar que a cuidadora busca explicar esse “vínculo” a partir do
“dia a dia mesmo, convivência”, como se o SRT fosse sua segunda casa. Por fim, ela
afirma que o cuidado e o apego desenvolvidos na relação com o morador se constituem
mutuamente no cotidiano da casa: “a gente cuida dele e ao mesmo tempo a gente
termina se apegando a elas e a eles”.
Já Paula afirma que os cuidadores “são todos muito engajados”, que “não tão
aqui só por dinheiro, não é só o trabalho por si não”. Para ela, todos os cuidadores “tem
uma filosofia de mudar mesmo o comportamento dessas pessoas” que se origina desse
“vínculo afetivo”. Paula afirma que o verdadeiro motivo dos cuidadores exercerem sua
atividade é fazer “por amor mesmo”, posicionando os cuidadores como pessoas
extremamente boas, desapegadas de questões materiais e que estão dispostos a dar
carinho, atenção e cuidado, ou seja, tudo o que os moradores necessitariam a partir de
seu posicionamento como pessoas dependentes, tal como analisado no capítulo anterior.
Aqui podemos perceber mais claramente como a maneira pela qual o
posicionamento construído tanto sobre os moradores como sobre os cuidadores é
produzido numa relação dialética: os moradores são sujeitos “carentes” enquanto os
cuidadores são pessoas que oferecem “amor” e “carinho”, todos constituindo uma
“família”, no caso dos cuidadores uma “segunda família” e, no caso, dos moradores
seria “como se fosse uma família”.
99
Dessa forma, assim como em uma família, quando “querem ver aniversário, todo
mundo se mobiliza para fazer o aniversário deles”, assim como outras comemorações
festivas, como o Natal. Vale ressaltar que não é só os cuidadores que participam da vida
dos moradores, pois o contrário também é válido: “elas também participam do momento
da gente”, como no caso da entrevistada, que vai casar e as moradores querem
presenteá-la. Segundo Paula, então, “tem esse vínculo além do trabalho” que é um
“vínculo afetivo mesmo”.
Gisele inicia seu discurso afirmando que “a gente se apega”. Ela exemplifica
esse apego citando o exemplo de uma moradora que “faleceu”, afirmando que ela
chorou, “a gente chorou” e, ainda hoje, “chora”. Para ela, os cuidadores terminam “se
apegando muito a elas”, “até porque” os moradores “não tem família, a família delas”
são os cuidadores.
A cuidadora, assim como as outras entrevistadas, justifica através de seu
discurso tanto o posicionamento construído para os moradores assim como o dos
cuidadores através do discurso da família: como os moradores não possuem família, a
família deles termina sendo os cuidadores. Nesse sentido, ela busca explicar que “eu
chorei, a gente chorou” quando a morador faleceu, posicionando os cuidadores como
pessoas próximas e que desejam sempre o bem dos cuidadores.
No discurso construído por Roberta, ela afirma que “a gente pega um vínculo
com elas”, “como se fosse uma família, a segunda família”. E, assim como Gisele, ela
cita que “já teve duas que faleceram” e que as duas moradores “eram muito apegadas”
com todos os cuidadores. Ela afirma, ainda, que a morte das moradores foi vivenciada
como “se fosse uma pessoa da família”.
Encontramos no discurso de Roberta, então, mais uma vez o discurso do “como
se fosse uma família” e a citação do falecimento das moradores como uma forma de
expressar o vínculo construído com os moradores.
Tiago constrói também, em seu discurso, a imagem dos cuidadores como
“parente mais próximo”. No entanto, ao contrário dos outros entrevistados, ele justifica
esse posicionamento a partir de um discurso sobre o respeito. Para o entrevistado, é a
convivência que ajuda a respeitar os moradores, assim como os moradores também
respeitam os cuidadores. De acordo com seu discurso, os moradores “tem muito apego”,
“muito respeito”, “pedem conselho”, e até “questionam as coisas” aos cuidadores, mas
sempre no “tratamento respeitoso”.
100
Tiago produz, em seu discurso, a imagem de que os cuidadores são pessoas que
podem tratar bem os moradores, principalmente aqueles que são disciplinados e acatam
respeitosamente o que é proposto pelos cuidadores.
No que diz respeito ao posicionamento sobre os cuidadores produzidos por
Silvana, ela afirma que existem moradores que “não tem família”. Dessa maneira, cabe
aos cuidadores exercerem o papel de “tudo”: de cuidador e “tem que fazer o papel da
família deles”. Vale a pena observar como o posicionamento dos cuidadores como
familiares dos moradores resulta, mais uma vez, num movimento dialético: os
moradores necessitam de “atenção, de amor, de cuidado” e os cuidadores são aqueles
que podem suprir essas necessidades, originando uma relação de dependência.
Por fim, antes de passarmos ao próximo tópico, vale a pena analisarmos a
utilização de uma expressão bastante recorrente nas entrevistas, utilizada por dez dos
onze entrevistados. Essa estratégia foi utilizada em todas as entrevistas no momento em
que o entrevistador realizou a pergunta “Quem são os cuidadores das residências
terapêuticas pra você?”, e consistiu em o entrevistado realizar a pergunta retórica:
“quem são os cuidadores?”.
Entrevistador - Certo. É... Quem são os cuidadores das
residências terapêuticas para você?
Paula - Quem são o que: pra eu descrever cada um ou de uma
forma geral? (Paula, 29 anos, ensino superior completo
(psicologia), atua na residência feminina).
Entrevistador (E) - Certo. É... Quem são os cuidadores das
residências pra você?
Roberta (R) - Quem são? São... Tu quer saber em que sentido?
(E) - No sentido geral.
(R) - No sentido geral? (risos) Quem são os cuidadores...
(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de
enfermagem), atua na residência feminina).
Entrevistador - É... Quem são os cuidadores das residências
terapêuticas pra você?
Silvana - Rapaz... Cuidadores? (risos) (Silvana, 28 anos, ensino
médio completo (técnica de enfermagem), atua na residência
feminina).
Entrevistador - É... E quem são os cuidadores das residências
terapêuticas pra você?
101
Marcos - Quem são os cuidadores? (Marcos, 32 anos, ensino
superior incompleto (enfermagem), atua na residência mista)
Entrevistador - E quem são os cuidadores das residências
terapêuticas pra você?
Claudia- Quem são os cuida... (risos) Quem são os cuidadores?
(Claudia, 22 anos, ensino superior completo (psicologia), atua
na residência feminina).
Entrevistador (E) - É... É a última pergunta é quem são os
cuidadores das residências terapêuticas pra você?
Bruna (B) - Quem são os cuidadores?
(E) - É, quem são os cuidadores. (Bruna, 30 anos, ensino
superior completo (pedagogia), atua nas duas residências).
Entrevistador (E) - Certo. O que são os cuidadores das
residências terapêuticas pra você?
Joana (J(- O que são?
(E) - O que é que são? De maneira geral, se alguém
perguntasse: o que é ser cuidador pra você? As características
do cuidador da residência? O que é que você responderia.
(J) - O que é ser cuidador? (Joana, 36 anos, ensino médio
completo, atua na residência feminina)
Entrevistador (E)- É... Então, a próxima pergunta é: quem são
os cuidadores da residência terapêutica pra você? (duas
moradoras se aproximam e pedem cigarro, e Gisele pede para
elas esperarem, que tá quase acabando e que se elas ficarem lá
vai demorar mais ainda)
Gisele (G) - Sim, o que foi?
(E) - É...
(G) - O que era os cuidadores...
(E) - Quem são os cuidadores das residências terapêuticas pra
você?
(G) - Hmmm... Pra mim, né? Pro pessoal, não. (Gisele, 28 anos,
ensino superior completo (psicologia), atua na residência
feminina).
É interessante observar o efeito produzido pelos entrevistados a partir da
utilização da pergunta retórica “quem são os cuidadores?”. Essa pergunta foi utilizada
pelos entrevistados como uma forma de produzir dois efeitos.
Em primeiro lugar, essa pergunta serviu para os entrevistados categorizarem os
cuidadores de maneira mais ampliada ou de maneira mais focada: ou, como diz Paula, a
102
pergunta serviu para os entrevistados saberem se descreveriam “cada um ou de uma
forma geral”.
Em segundo lugar, a utilização da pergunta retórica permitiu aos entrevistados
saberem, de maneira mais específica, o que o entrevistador gostaria de saber, como se
eles dissessem: “me diga o que você quer saber mais especificamente para que eu saiba
como lhe responder”.
103
7. DESCREVENDO O SERVIÇO: AS DIFICULDADES DE TRABALHAR COMO
CUIDADOR
A maioria dos cuidadores mencionou dificuldades nos primeiros dias de trabalho
nos SRTs, à exceção de uma cuidadora, que afirmou não ter vivenciado nenhuma
dificuldade.
Foi muito complicado no início, porque assim, eu não era
acostumada, não sabia o que era, né? Logo nos primeiros dias
assim, quando eu cheguei, era chorando, o tempo todo, porque
eu me deparei com coisas assim, que eu nunca tinha visto em
canto nenhum (Gisele, 28 anos, ensino superior completo
(psicologia), atua na residência feminina).
Tiago (T) - Mas inicialmente foi muito difícil porque os salários
atrasavam. E atrasava dois, três meses. E a gente se incomodava
com isso, até pela própria necessidade de subsistência.
Entrevistador (E) - Humrum.
(T) - Isso aí mexia com a gente também. Dava raiva, dava
desânimo. A gente pensava em parar. Mas sempre havia alguém
incentivando para que a gente não desistisse diante do desafio
que é o serviço e da importância que é o cuidado. E a gente aí
foi prosseguindo, né? Até que as coisas mudaram e aí veio a
oportunidade de fazer o concurso. Nós participamos desse
concurso. E, tivemos a felicidade de passar nesse concurso. E
hoje somos funcionários públicos dentro desse serviço (Tiago,
42 anos, ensino médio completo, atua na residência mista).
Entrevistador (E) - Certo. É... Me fala um pouco, então, agora
sobre tua trajetória dentro das residências, como é que é, como
é que foi e tá sendo tua passagem dentro das residências?
Roberta (R) - No começo foi mais difícil.
(E) - Foi?
(R) - Foi. Foi bem mais difícil, eu quase não me adaptava, achei
assim... Pedia até em pedir... Pensei em pedir demissão. Aí
depois eu fui agüentando, fui agüentando, me acostumei, mas
no começo foi muito difícil. Primeiro que no hospital, assim,
você tá lá toda hora, você tem um médico de plantão, você tem
pra onde você correr, apesar de que o CAPS aqui é bem
pertinho.
(E) - Humrum.
(R) - Só que... É mais dificultoso, ai você tem que sair, tem que
ir pro médico, tem a dificuldade de você sair com elas de
ônibus, sair com elas na rua, de, de táxi. Ai é difícil, né?
(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de
enfermagem), atua na residência feminina).
104
Segundo Gisele, a falta de experiência na área de saúde mental tornou o início de
suas atividades no SRT “complicado” pois, como ela mesma afirma, “não era
acostumada, não sabia o que era”. Enfatizando seu relato, ela afirma que, ao começar a
trabalhar como cuidadora, vivia “chorando, o tempo todo”, devido a ter se deparado
“com coisas assim, que eu nunca tinha visto em canto nenhum”.
Assim como Gisele, Tiago também afirma que o início “foi muito difícil”.
Porém, ele utiliza um argumento diferente para justificar as dificuldades que ele
encontrou: ao contrário de Gisele, ele afirma que as dificuldades ocorreram “porque os
salários atrasavam”, durante um longo período de tempo, como “dois, três meses”.
Segundo o entrevistado, esse atraso no pagamento dos salários “incomodava”, causando
“raiva” e “desânimo”, levando-os a pensar em “parar”.
No entanto, “sempre havia alguém incentivando” os cuidadores para que eles
não desistissem “diante do desafio que é o serviço e da importância que é o cuidado”. E
foi pelo fato de persistirem que participaram do concurso, no qual tiveram a “felicidade
de passar” e se tornarem “funcionários públicos dentro desse serviço”.
Roberta também afirma que “no começo foi mais difícil”. A utilização da
expressão “mais” nessa sentença sugere, implicitamente, que o exercício do trabalho no
serviço continua difícil, embora não tão difícil quanto no começo.
Logo em seguida, a entrevistada enfatiza a sua dificuldade inicial ao reafirmar
que “foi bem mais difícil”, que “quase não me adaptava”, sendo que tal fato fez com
que ela pensasse “em pedir demissão”. As expressões supracitadas foram utilizadas pela
entrevistada com o objetivo de construir a imagem de que o trabalho dos cuidadores é
um trabalho difícil, que exige muito do profissional.
Posteriormente, a cuidadora compara o SRT ao hospital. Para ela, no hospital é
mais fácil porque, além de “você tá lá toda hora”, existe o auxílio de outros
profissionais no exercício do trabalho: “você tem um médico de plantão”. Isso não
aconteceria nos SRTs, apesar de existir médico no CAPS e ele ser “bem pertinho”.
No entanto, apesar do CAPS ser “pertinho”, ela afirma que “é mais dificultoso”
encontrar suporte nessa instituição, e “ai você tem que sair, tem que ir pro médico, tem
a dificuldade de você sair com elas de ônibus, sair com elas na rua”.
105
Como já afirmamos, uma única cuidadora apresenta um relato diferente dos
supracitados, afirmando que ela não enfrentou dificuldades no começo de suas
atividades no SRT.
Meus primeiros dias foram ótimos. Fui bem aceita por elas,
tanto na residência feminina quanto na residência mista. E eu
fui bem aceita. Não sei também se é porque eu sou uma pessoa
muito comunicativa. Eu falo demais (risos) Converso com elas,
bastante. E... A comunicação também ela requer muita coisa,
né? Porque através da comunicação você termina conhecendo
um pouco a vida deles, né? O que eles sentem, assim... O que
eles... Falam, né? Aí a gente vai pegando aquela afinidade
(Bruna, 30 anos, ensino superior completo (pedagogia), atua nas
duas residências).
A entrevistada afirma que seus “primeiros dias foram ótimos”, sendo “bem
aceita” tanto na “residência feminina quanto na residência mista”. Para explicar essa
ampla aceitação, utiliza o argumento de que ela é uma “pessoa muito comunicativa”,
que conversa “com elas, bastante”. Para ela, a comunicação seria importante porque
através dela você conhece “um pouco a vida deles” ou , então, você descobre “o que
eles sentem” e eles acabam falando. Teria sido através dessa comunicação que ela foi
construindo uma “afinidade” com os moradores.
Outro tópico de interesse em relação aos SRTs que são discutidos em estudos já
publicados é a questão da capacitação que os cuidadores receberam para iniciarem suas
atividades.
No que diz respeito a esse assunto, os cuidadores classificaram a capacitação
recebida, de maneira geral, como um treinamento que deixou a desejar, mas também
existiram cuidadores que afirmaram que a capacitação foi “válida”, bem como alguns
cuidadores afirmaram que não receberam orientação por terem sido contratados após a
realização do concurso.
Entrevistador (E) - É, eu queria, se tu pudesse falar agora um
pouquinho mais sobre o treinamento que vocês receberam.
Como é que foi esse treinamento?
Gisele (G) - Esse curso...
(E) - Esse...
(G) - Esse curso introdutório, né? Que eu tô falando...
(E) - Esse curso introdutório.
106
(G) - Bem, esse curso introdutório foi, na verdade, um... Deixa
eu dizer pra tu mais ou menos... Não sei o que as meninas
falaram, mas... Eu acho que, na verdade, esse curso introdutório
foi um, uma semana de massacre (ênfase) para ver quem
agüentava, assim... Uma semana pra ver quem agüentava ficar,
né? Porque não teve nada... (...) É, aí no curso introdutório
primeiro tem a prova, né? Depois teve esse curso que é tipo
um... Pra quem agüenta, realmente, porque na verdade ele não,
não era nada, não. Não fizeram nada.
(E) - O que foi que eles fizeram, então?
(G) - Não, eles mostraram, eles tinham um... Tinha um, teve
um, foi uma aula, assim, teve um psiquiatra, que na verdade não
falou muito nem sobre as medicações, assim... Se a gente pegar
uma bula de medicamento eu acho que sabe mais um
pouquinho. Passaram dois filmes, aquele Bicho de 7 Cabeças,
que passa constantemente na televisão, falou um pouquinho
sobre o filme... Assim, olhe, não... Aquilo ali foi cansativo, mas
não teve nada de bom ali, não. Não passou nada, tô dizendo pra
você, algumas pessoas que passaram no concurso foram
cuidadores, também, que passaram no, no, na prova, né?
Inicialmente, e foram pro curso introdutório. Porque depois do
curso introdutório tinha uma prova, porque o curso introdutório
era pra fazer uma prova, ainda. E tinha que somar com a nota
do concurso, a nota da primeira prova, né? E junto com essa
nota do curso introdutório, aí dividia por dois.
(E) - Aí essa era a nota final?
(G) - Porque... É, a nota final.
(E) - Humrum.
(G) - O curso introdutório era, na verdade, tipo um... Umas
aulas que a pessoa tinha que fazer uma prova depois pra somar
e dividir por dois, aí dava uma nota final. Era isso. Mas assim, a
prova... Olhe... Nem adianta falar, porque... Sinceramente, viu?
As pessoas que, que... Pronto, aí deixa eu dizer, os cuidadores
que conseguiram passar na prova e tavam lá no curso
introdutório foi quem ajudou mais a gente, foi o que eu tava
falando antes. Que falaram da experiência delas aqui, e, muitas
vezes, ficavam falando na sala de aula, né? Sobre a experiência
na residência terapêutica. Muitas vezes uma psicóloga, ou quem
tava dando aula na hora, é... Falava alguma coisa, ela dizia:
“Não é assim que tá acontecendo lá, não. Não é assim que
acontecem lá, não.” A gente tem que fazer junto mesmo. Muitas
vezes, tem que fazer com eles, porque na residência, é, muitas
vezes ele não quer fazer... E vai ficar a casa fedendo? Não sei o
que...” Tá entendendo? Aí... Não ajudou muito não, aquele
curso introdutório não ajudou muito, não. Se fosse uma
capacitação, onde o que eu tô dizendo, num caso desse, de, de
(moradora com epilepsia), que tem um problema epiléptico, aí a
gente vai pra uma casa que tem uma moradora que tem
epilepsia, eu vou pra uma casa, não sei nem o que é epilepsia
direito. Que tipo de procedimento eu vou fazer quando a
criatura tiver uma crise? Olhe, quando essa mulher teve uma
crise, eu não sabia nem como fazer. Aí quando ela teve uma
crise, eu, eu fiquei louca, menino. Eu cheguei em casa, no outro
dia eu tava com isso aqui todo dolorido, porque eu me joguei
107
em cima dela, botei meu corpo. Porque ela começa a se debater,
eu sabia que tinha que colocar ela de lado, eu já tinha visto, eu
vi... Acho que foi na televisão, tinha que colocar a pessoa de
lado e colocar a cabeça numa... Numa almofada, né? Coloquei
meu corpo todinho segurando ela. No outro dia eu tava
completamente quebrada. Assim, liguei pro SAMU, o SAMU
graças a Deus veio e, assim, desde que ela chegou a gente só
vive chamando o SAMU. É o tempo todinho tendo crise, aí se
tivesse uma capacitação mesmo, mesmo (ênfase), daquela
capacitação adequada, que a pessoa: “vai ao psiquiatra?”
Pronto. Vai chegar o psiquiatra, a pessoa vai, orienta a gente,
como é que a pessoa pega o prontuário... Homem, não tem isso
não. Não valeu de nada aquela, aquela capacitação, não, aquele
curso introdutório. Foi isso que teve. A gente, entre aspas, uma
“recepção”, porque a gente é lotado no CAPS, né? A gente é
lotado no CAPS, o CAPS teve uma, uma recepção, assim,
explicou, na verdade, mais ou menos o que era uma residência
terapêutica, mas a gente já sabia mais até do que eles mesmo,
porque o cuidador explicou pra gente o que era (Gisele, 28
anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência
feminina).
Ao ser solicitada a relatar como foi o “treinamento” que receberam, a
entrevistada modifica o termo utilizado pelo entrevistador, denominando agora de
“curso introdutório”. Ela afirma que “esse curso introdutório”, na realidade, foi “uma
semana de massacre” para “ver quem agüentava ficar”, até porque “não teve nada”.
Em seguida, ela reafirma a idéia de que o “curso é tipo um... Pra quem agüenta,
realmente, porque na verdade ele não, não era nada, não. Não fizeram nada”. Em seu
discurso, então, a entrevistada constrói a imagem de que o referido “curso” foi utilizado,
pela gestão, para massacrar os trabalhadores, numa verdadeira prova de resistência para
ver quem agüentava ficar até o final e receber o prêmio de se tornar servidor público.
Em seguida, o entrevistador questiona “o que foi que eles fizeram” no curso
introdutório? Ao que a entrevistada responde utilizando expressões que objetivam
continuar desqualificando esse “curso”.:ela relata que teve uma “aula” com um
psiquiatra, o qual nem “falou muito nem sobre as medicações” e que “se a gente pegar
uma bula de medicamento eu acho que sabe mais um pouquinho”.
Ela afirma que “passaram dois filmes”, sendo que um foi o “Bicho de 7
Cabeças”, do qual ela desdenha afirmando que “passa constantemente na televisão”. E,
ainda no sentido de pintar um quadro de “massacre”, ela afirma que “foi cansativo”, não
teve nada de bom”, “não passou nada” e que ainda foram submetidos à realização de
uma prova.
108
Vale a pena observar como a cuidadora também utiliza expressões que buscam
desqualificar a realização da referida “prova”. Para tanto, ela afirma, sobre a prova, que
“olhe... Nem adianta falar, porque... Sinceramente, viu?”. As expressões utilizadas, em
nossa cultura, consistem em uma maneira do falante não abordar as minúcias do assunto
desqualificado, como se o assunto se tornasse, a partir da utilização da expressão
“sinceramente, viu”, algo negativo.
Gisele continua, então, afirmando que o curso foi ineficaz, posto que foram “os
cuidadores que conseguiram passar na prova e tavam lá no curso introdutório” que
“ajudou mais a gente”, falando da “experiência delas”, compartilhando o saber-fazer
que haviam construído, assim como também questionavam os palestrantes, dizendo que
“não é assim que tá acontecendo lá, não”.
A seguir, ela exemplifica o despreparo causado pela falta de uma “capacitação”
através do caso da moradora que é portadora de epilepsia, afirmando que o que ela
aprendeu sobre epilepsia não foi repassado pelos profissionais da gestão, mas que, isto
sim, ela viu na “televisão”.
No próximo momento, ela exemplifica como seria uma verdadeira
“capacitação”. Para tanto, ela cita o caso de uma moradora que necessita ir ao
“psiquiatra”. Nesse caso, segundo a cuidadora, o psiquiatra deve orientar os cuidadores
na maneira “como é que a pessoa pega o prontuário”, mas que isso não existiu.
Por fim, ela relata que os cuidadores tiveram uma recepção no CAPS e que,
nesse momento, lhes foi explicado o que era uma residência, mas eles já sabiam até
mais do que a gestão sobre o funcionamento da residência, pois já haviam sido
informados pelos antigos cuidadores do trabalho desenvolvido no SRT.
Assim como Gisele, Tiago também descreve com termos negativos o
treinamento recebido pelos cuidadores.
Entrevistador (E) - É... Então, você recebeu algum treinamento?
Tiago (T) - Olha, treinamento foi muito pouco. Nós recebemos
uma capacitação no início da residência, que foi uma
capacitação aí de apenas algumas horas, eu não lembro nem
mais a duração de horas, só sei que foi uns dois ou três
encontros que passaram o modo que a gente ia trabalhar em
linhas gerais. Mesmo depois do concurso, aliás, no período do
concurso foi obrigatório uma capacitação de uma semana. Mas
também muito vaga. Pra gente que já tinha passado pelo início
do processo, a gente tava mais rico no aprendizado, mas pra
quem iria entrar a gente via que era uma coisa que... Não se
109
podia dizer que era uma capacitação, porque não tratava bem do
dia a dia (incompreensível) era uma coisa muito teórica
(E) - Humrum.
(T) - Longe daquilo que a gente ia viver no dia a dia.
(E) - Como foi então, assim... Como foi pra tu, no caso, ver...
Você já tava no serviço, como contratado, depois foi pro
concurso, né?
(T) - Isso. Exatamente.
(E) - Como é que foi pra tu, tá dentro do, do, dessa segunda
capacitação e ter vivenciado, já ter experiência do dia a dia?
Como é que tu percebeu? Assim, o que foi repassado nessa
capacitação, nesse treinamento?
(T) - Vê só: eu consegui, teoricamente, aprender mais algumas
coisas, viu? Que a gente sempre aprende quando está aberto pra
isso.
(E) - Humrum.
(T) - Mas a prática ela era muito mais valiosa porque eu estava
ali no dia a dia com os pacientes, sentindo a necessidade deles,
sentido que eu precisava, também, avançar. Então, o curso, ele
não fornecia aquilo que a gente precisava, o algo mais que a
gente precisava. Mas valeu a pena porque, repito, teoricamente
nos deu alguma coisa a mais. Agora poderia ser bem melhor,
né? Se eles olhassem aquelas pessoas que estavam se
candidatando ao serviço como, como realmente num
treinamento, né? Que não foi um treinamento. Foi mais um
período de informação (Tiago, 42 anos, ensino médio completo,
atua na residência mista).
Tiago inicia seu discurso afirmando que o “treinamento foi muito pouco”. Para
legitimar esta afirmação, ele relata que receberam uma “capacitação no início da
residência”19
, a qual durou “apenas algumas horas” e foi realizada em “dois ou três
encontros”, nos quais foi repassado a “o modo como a gente ia trabalhar em linhas
gerais”.
Em seguida ele afirma que, “no período do concurso foi obrigatório uma
capacitação de uma semana”, a qual foi “também muito vaga”. No entanto, para “quem
já tinha passado pelo início do processo”, ou seja, para os cuidadores contratados que
foram efetivados pelo concurso e que estavam “mais rico no aprendizado”, essa
capacitação não fez muita diferença. Para os novos cuidadores, que entraram a partir do
concurso, “não se podia dizer que era uma capacitação, porque não tratava bem do dia a
dia” pois “era uma coisa muito teórica”, “longe daquilo que a gente ia viver no dia a
dia”.
19
Vale a pena ressaltar que Tiago atuou nos SRTs tanto como contratado como concursado e que, nesse
momento, ele se refere à capacitação que recebeu enquanto atuava como contratado.
110
O entrevistador questiona, então, como foi para Tiago ter participado das duas
capacitações, ao que ele responde que ele conseguiu “teoricamente, aprender mais
algumas coisas” na segunda capacitação, pois “a gente sempre aprende quando está
aberto pra isso”. Mas, segundo o cuidador, a capacitação não valeu tanto quanto a
experiência prática que o mesmo já possuía, pois “a prática era muito mais valiosa
porque eu estava ali no dia a dia com os pacientes, sentindo a necessidade deles”.
Em seguida, ele modera seu discurso, afirmando que “teoricamente nos deu
alguma coisa a mais”, mas que “poderia ser bem melhor” se a gestão tivesse olhado
“aquelas pessoas que estavam se candidatando ao serviço” como “num treinamento” de
verdade. Pois, para ele, “não foi um treinamento”.
Assim como Tiago, Roberta também participou da capacitação nos dois
momentos: como contratada e como concursada.
Entrevistador (E) - Você recebeu algum treinamento, caso sim
fale sobre esse treinamento.
Roberta (R) - Recebi. Recebi. Depois de... Assim que eu entrei
a gente teve um treinamento, passamos uma semana tendo um
treinamento, na própria residência, na primeira vez que eu fui
contratada. E como contratada a gente teve uma reunião lá no
Lessa de Andrade, passamos uma semana também tendo um
curso, até certificado a gente tem.
(E) - Como foi esse curso assim?
(R) - Foi bem proveitoso.
(E) - Foi?
(R) - Foi.
(E) - Tu lembra mais ou menos o que foi debatido, assim? Ou
alguma coisa, qualquer coisa que tu lembre da época? Tu
lembra alguma coisa?
(R) - Lembro. Lembro, a gente teve psicopatologia, a gente
teve... Administração de medicação, foi muita coisa, foi muito
provei... Faz muito tempo, visse? Foi bem (ênfase) legal.
(E) - Foi uma semana, que tu falou?
(R) - Foi uma semana.
(E) - Foram todos os, os...
(R) - Todos os cuidadores.
(E) - E da segunda vez?
(R) - Da segunda vez a gente teve uma semana. Nós, foi assim,
continuação do concurso. Teve um curso introdutório, teve um
concurso introdutório, foi a continuação do concurso.
(E) - Como assim?
(R) - A gente passou, fez a prova, a primeira prova, aí
selecionaram três vezes o número de vagas, daí foi que ficou.
Aí a gente chegava nesse curso, chegava de sete da manhã, aí,
acho que era umas seis horas da noite a gente largava, tinha
horário de almoço. Aí se você chegasse atrasado, era bem rígido
111
mesmo, você já perdia o concurso, já tava eliminado (Roberta,
47 anos, ensino médio completo (auxiliar de enfermagem), atua
na residência feminina).
Roberta afirma que “como contratada” ela recebeu “um curso” no qual ela
ganhou “até certificado”. No entanto, ao ser questionada sobre como foi o curso, ela
tentou manejar o discurso numa tentativa de mudar o foco da entrevista. Para tanto, ela
respondeu à pergunta afirmando apenas que “foi bem proveitoso”. O entrevistador,
então, utilizou a pergunta reflexiva “foi?” na tentativa de produzir um maior
detalhamento sobre o curso, ao qual ela manteve a mesma postura de responder de
maneira direta: “foi”.
Em seguida, como o entrevistador persiste questionando se ela possui alguma
lembrança do que foi debatido na época, ela afirma que “teve psicopatologia”,
“administração de medicação”. Nesse momento, ela justifica suas respostas diretas,
afirmando que “foi muita coisa” e que “faz muito tempo”.
Já em relação ao período em que ela se tornou concursada, ela afirma que teve
um “treinamento”, um “curso introdutório” de “uma semana” que foi, na realidade, a
“continuação do concurso”, pois ele teve a função de eliminar candidatos, pois “se você
chegasse atrasado, era bem rígido mesmo, você já perdia o concurso, já tava eliminado”.
Nesse sentido, seu discurso está em consonância com o discurso de Gisele, bem
como com o discurso de Claudia e de Marcos (apresentados a seguir), ambos afirmando
que o “curso introdutório” oferecido foi uma forma encontrada, pela gestão, para
eliminar o excesso de candidatos que passaram no concurso.
E na verdade era uma capacitação que poucas pessoas estavam
interessadas no sentido de aprendizagem, tavam ali porque se
faltasse tava fora do concurso. Então é isso, né? O que me
chama atenção é que não tem uma manutenção (ênfase),
digamos assim, desses cuidados. Não se tem mesmo. Né? Em
dois anos eu nunca fui pra uma, uma capacitação, né? Não
reuniões pra discutir... Tô falando capacitações, que eu digo o
tempo inteiro: como é que a gente tá aqui e não sabe trabalhar
com primeiros socorros? É preciso, que acontece, né? Como é
que a gente tá aqui e não sabe efeito de medicações? Como é
que a gente tá aqui e isso acontece de bolo em outras
residências, eu vejo até coisa pior, né? Eu digo que eu tenho a
sorte de trabalhar com pessoas que gostam do que fazem de
alguma forma e que tem essa sensibilidade, mas podia ser
pessoas que não tão nem ai que também estariam aqui do
112
mesmo jeito (Claudia, 22 anos, ensino superior completo
(psicologia), atua na residência feminina).
Entrevistador (E) - Como foi pra você a entrada na instituição?
Como foi o começo de tudo?
Marcos (M) - No começo eu já tinha uma idéia mais ou menos,
porque o concurso foi duas etapas aí teve uma etapa que foi a
primeira prova aí depois teve a outra etapa, que foi um curso
introdutório. Aí nesse curso introdutório, aí abrangeu muito a
área de residência terapêutica.
(E) - Humrum.
(M) - Aí pronto, aí a gente teve uma formação teórica, não de
prática, teórica, não prática, né? (...)
Entrevistador (E) - Humrum. Certo. É, então, você já falou um
pouco que recebeu treinamento, não foi? Foi. Tu pode falar pra
mim como é que foi esse curso? O que é que eles falaram, essas
coisas?
Marcos (M) - Esse curso e treinamento, quando a gente fez o
concurso, foi um curso, um curso introdutório, que também era
eliminatório.
(E) - Humrum.
(M) - Depois desse curso tinha que fazer uma prova, aí essa
prova era eliminatória. Esse curso falou, abordou essa parte,
assim, de, de, é... Crises psiquiátricas, momentos de crise, como
lidar com a crise.
(E) - Humrum,
(M) - É... Algumas medicações que eram tomadas, tem que
conhecer, conheci também alguns transtornos: esquizofrenia,
transtorno bipolar.
(E) - Humrum.
(M) - Aí falou muito essas coisas, assim. Como era o
comportamento de um paciente de residência terapêutica.
Abordou muito essa parte... No curso, né?
(E) - E... No aspecto prático? Que tu falou assim: eles
abordaram também?
(M) - Não, no prático, não. Esse curso foi só teórico, como era
eliminatório, foi só teórico. Não teve curso prático.
(E) - Humrum.
(M) - Teve curso teórico (Marcos, 32 anos, ensino superior
incompleto (enfermagem), atua na residência mista).
Claudia afirma em seu discurso que existiu uma “capacitação”, mas “que poucas
pessoas estavam interessadas no sentido de aprendizagem” e que, na realidade, elas
estavam “ali porque se faltasse tava fora do concurso”.
A seguir, ela questiona a inexistência de “manutenção desses cuidados”. Ela
exemplifica, então, a falta de investimento da gestão em capacitação com a questão dos
primeiros socorros e questionando “como é que a gente tá aqui e não sabe efeito de
medicações”? Em seguida, ela busca afastar a idéia de que ela e seus companheiros de
113
trabalho são pessoas sem interesse pelo trabalho. Ela teria tido “a sorte de trabalhar com
pessoas que gostam do que fazem de alguma forma e que têm essa sensibilidade”.
Marcos também afirma que o concurso constou de duas etapas: “teve uma etapa
que foi a primeira prova aí depois teve a outra etapa, que foi um curso introdutório. Aí
nesse curso introdutório, aí abrangeu muito a área de residência terapêutica”. Em
consonância com o discurso construído por Tiago, Gisele e Claudia, ele também afirma
que “teve uma formação teórica, não de prática”.
E assim como Gisele, Roberta e Claudia, Marcos também afirma que o “curso
introdutório” “também era eliminatório”. Já em relação ao conteúdo ministrado no
“curso”, ele relata que os temas abordados foram “crises psiquiátricas”, “como lidar
com a crise”, “medicações” e “transtornos”.
Paula foi outra cuidadora que relatou predominantemente aspectos negativos
sobre o “curso preparatório”.
Entrevistador (E) - Você recebeu algum treinamento? Caso
tenha recebido, me fale um pouco sobre ele.
Paula (P) - Não. Na verdade, o concurso constou de duas
etapas: a primeira foi prova escrita, a segunda seria um curso
preparatório mas que não foi, foi só o mesmo assunto que era da
coisa, assim a gente não teve nenhuma preparação no sentido
assim, de dizer a gente, tanto é que teve muita confusão porque
assim muita gente achava, entrou achando que ia exercer a
função de psicólogo, de um acompanhante terapêutico, de
alguma coisa. Então houve muita confusão nesse sentido, que
até hoje a gente ainda sente por não ter tido essa preparação,
então, muita gente, eu já tinha esse conhecimento que a gente,
enquanto cuidador, a gente podia, é, limpar um chão, fazer uma
comida, então muita gente não tinha essa clareza e houve muita
confusão por a gente não ter sido preparado. Então a gente,
assim, assumiu já de cara. A preparação que a gente teve foi o
que? Da turma antiga passar pra gente, que na verdade, não
tinha muito o que passar. Eles tavam muito revoltados porque
tinham perdido o lugar e não houve, a gente foi aprendendo na
prática, como a gente aprende ainda até hoje.
(E) - Aprendendo na prática?
(P) - No dia-a-dia, não, a gente assim, não teve nenhuma
preparação. No dia-a-dia a gente ia aprendendo, tinha situações
que pegava a gente, a gente não sabia como fazer, ligava pra
técnica (técnica de referência do CAPS), a técnica dava esse
suporte. Mas assim, preparação assim, no sentido da gente ter
um período, um tempo, uma pessoa orientando, a gente não
teve. De acordo com o momento, quando ia surgindo a coisa era
que a gente ia sendo orientado, como é até hoje (Paula, 29 anos,
114
ensino superior completo (psicologia), atua na residência
feminina).
Em seu discurso, Paula afirma que ela não recebeu treinamento. Para tanto, ela
justifica seu posicionamento “a segunda” etapa do treinamento “seria um curso
preparatório, mas que não foi”. Segundo seu relato, a falta de uma orientação inicial no
curso preparatório provocou uma confusão entre os concursados, pois “muita gente”
“entrou achando que ia exercer a função de psicólogo, de um acompanhante
terapêutico”.
Ela também afirma que já tinha “conhecimento” de que “enquanto cuidador, “a
gente podia, é, limpar um chão, fazer uma comida” e que existia “muita gente que não
tinha essa clareza” devido à falta de capacitação.
Para ela, a preparação que os cuidadores tiveram foi o repasse informal,
realizado pelos cuidadores contratados, das atividades que vinham sendo desenvolvidas.
E que também “não tinha muito o que passar”, pois os antigos cuidadores estavam
“muito revoltados porque tinham perdido o lugar”. Por isso ela afirma que foi
“aprendendo na prática”, “no dia-a-dia”, na medida em que surgiam “situações que
pegava a gente”. Nesses casos, o suporte era realizado pela técnica de referência do
CAPS “de acordo com o momento, quando ia surgindo a coisa”.
Já Silvana afirma que o curso foi bom, mas que deixou a desejar em alguns
aspectos.
Silvana (S) - A gente entrou assim: quando eu entrei, a gente
não ficava só, a gente ficava com outro cuidador que já tava e a
gente ficava sempre com esse cuidador acompanhando pra ver
como era o sistema e tal, como funcionava. E depois, logo em
seguida, a gente teve esse curso de cuidador. A gente até
completar, um certificado, né? Aí ajudou muito, deu pra
esclarecer muitas coisas, mas muitas coisas ficaram ainda
obscuras, né? Assim...
(E) - Como assim?
(S) - Assim, o modo como tratar, por que eles, a gente tinha
muita dúvida com respeito a medicamento, como a gente tem
até hoje. Pra que serve cada medicação? Eles tomam inúmeras
medicações. E assim, as mais importantes eram faladas pra que
servia, como agia no organismo, se tinha, é, se causava algum
problema, né? E tal... Que tem também aquela questão do, do
paciente e medicações que impregnam, então a gente tem que
saber o que era impregnação... E aí foi relatado algumas coisas,
questão de medicação pra gente, outras a gente pesquisou, tem
115
umas que até hoje a gente ainda pesquisa pra saber o que tem, o
médico mudando de medicação, né? Agora em relação como
lidar com o paciente, a gente aprende no dia a dia, porque o que
se fala, o que se falou lá, a teoria é uma coisa, na prática a
situação é outra. Então na prática, a gente aprendeu no dia a dia,
mesmo porquê o, a, essa palestra que a gente teve, esse curso,
não ajudou essas coisas todas, não. Foi no dia a dia que a gente
foi aprendendo, é por isso que eu falo que ficou algumas coisas
em aberto assim, pra gente, porque não, não fechou, a gente até
falava que precisava de ter outros cursos, outras palestras, que é
pra gente conseguir entender melhor o paciente, né? Aí por isso
que eu falo que precisaria ter, que... Teve o que? Dois anos, um
ano e pouco, faz quatro anos, vai fazer cinco anos que eu tô
aqui, com tudo, contando com contrato, com tudo, então faz
muito tempo que não se tem. O pessoal do concurso que entrou,
né? Nunca teve assim, uma palestra para tirar alguma dúvida.
(E) – No caso, tu tá falando, é, foi no primeiro momento ou
nesse segundo momento esse treinamento que vocês tiveram?
(S) - Não. Foi no primeiro momento. Foi no início, quando só
tinha era contrato.
(E) - Certo.
(S) - Que teve. Aí depois desse tempo pra cá não se teve mais.
(E) - Certo.
(S) - Que era pra ter, né? Porque a gente tem que ter um apoio,
né? Pra tirar nossas dúvidas e a gente tem uma reunião aqui na
residência, que as vezes é uma vez no mês, as vezes fica um,
dois meses sem ter reunião, pra gente esclarecer os problemas
da residência, o que tá acontecendo, morador que não tá bem,
entendeu?
(E) - Humrum.
(S) - Mas aí eu acho que precisava de uma palestra com
psiquiatras, pessoas que, né? Pudessem falar pra gente o que a
gente faz pra entender o paciente, que tem paciente que é difícil
a gente entender o que ele quer, o que a gente pode fazer pra
mudar. Por exemplo, quando chegou, (diz o nome de uma
moradora), que é uma moradora novata, ela é muito na dela,
muito fechada, e a gente, ela só fala o que a gente pergunta. A
gente pergunta: “você jantou?”, ela diz “jantei”. Ela não
consegue manter um diálogo com a gente. Então a gente quer
mudar esse comportamento dela mas não sabe como (Silvana,
28 anos, ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua
na residência feminina).
Assim como em discursos supracitados, Silvana também afirma que os
cuidadores contratados foram responsáveis por repassarem as atividades realizadas aos
cuidadores concursados. Segundo ela, os cuidadores concursados não ficavam sozinhos
nos SRTs: “a gente ficava sempre com esse cuidador acompanhando pra ver como era o
sistema e tal, como funcionava”. Em seguida, ela diz que “a gente teve esse curso de
cuidador” “até completar, um certificado”.
116
Para Silvana, esse processo “ajudou muito”, mas ficou aquém do desejado, posto
que “muitas coisas ficaram ainda obscuras” como, por exemplo, como “tratar” os
moradores e de dúvidas relacionadas a questão de “medicamento”.
Em relação ao medicamento, a cuidadora afirma que “as mais importantes”
foram “faladas pra que servia, como agia no organismo”, mas que sobre outras drogas
foram os próprios cuidadores que pesquisaram, sendo esse processo ainda bastante
comum pois o médico as vezes muda o medicamento prescrito e não repassa as
informações necessárias aos cuidadores.
No tocante a “como lidar com o paciente”, ela afirma que é um aprendizado
cotidiano, que “a gente aprende no dia a dia”, pois existiria, segundo a cuidadora e em
consonância com o discurso produzido por Tiago, uma dissonância entre a teoria e a
prática. Para ela, a “teoria é uma coisa” e “na prática”, no lidar com o paciente, “a
situação é outra”. Nesse sentido, é que ela enfatiza que “essa palestra que a gente teve,
esse curso, não ajudou essas coisas todas, não” e que “foi no dia a dia que a gente foi
aprendendo”. Em seguida, ela utiliza o momento de entrevista para cobrar da gestão
mais investimento em capacitação ao contabilizar, por exemplo, que “vai fazer cinco
anos que eu tô aqui” e que o “pessoal do concurso que entrou” nunca teve nenhuma
“palestra para tirar alguma dúvida”.
Posteriormente, ela adota um tom mais moderado em seu discurso ao afirmar
que no SRT existem reuniões “pra gente esclarecer os problemas da residência”, mas
que, ainda assim, tais reuniões são insuficientes. A cuidadora exemplifica, então, a
necessidade de uma melhor capacitação citando o caso da moradora que “só fala o que a
gente pergunta”, pois os cuidadores tentam modificar o “comportamento dela, mas não
sabe como”.
Já para Verônica, a capacitação, apesar de cansativa, foi bastante positiva.
Entrevistador (E) - Então, assim, você falou que você teve um
curso, né?
Verônica (V) - Foi durante uma semana.
(E)- Tu pode me falar assim, como foi esse curso, como foi essa
semana desse curso?
(V) - Essa semana foi assim: muito (ênfase) corrida, a gente
passava o dia lá. Cansativo demais. A gente almoçava por lá
mesmo, questão, na hora de almoço. E a gente tinha aula
durante o dia todo. E lá, lá você teve contato realmente com,
com pessoas que, como é que se diz, vive com a mão na massa,
né? Psiquiatra, psicólogo, né? Tem também as pessoas que já
117
trabalhavam na residência que tinham passado, que também
ajudava ali também, numa conversa, numa dúvida, que pudesse
tirar. Eu gostei, foi muito válido o curso (Verônica, 40 anos,
ensino superior incompleto (biologia), atua na residência mista).
Segundo a entrevistada, o “curso” foi “cansativo demais” pois “a gente passava
o dia lá”, “tinha aula o dia todo”. No entanto, apesar de “cansativo”, foi no “curso” que
os cuidadores tiveram contato com quem “vive com a mão na massa”: “psiquiatra,
psicólogo”, além de ter o apoio das “pessoas que já trabalhavam na residência que
tinham passado”, o que tornou “muito válido o curso”.
Já Bruna, Fernanda e Joana afirmam que não receberam capacitação.
Eu não recebi nenhum treinamento, mas recebi orientações, né?
De como funcionava a residência. Se eram pacientes com
problemas neurológicos, tudinho. Então assim, eu sempre sabia,
mais ou menos, como era mais ou menos assim a residência,
antes de chegar, assim, pá, né? Aí a gente teve essa orientação,
pelo menos eu tive (Bruna, 30 anos, ensino superior completo
(pedagogia), atua nas duas residências).
Entrevistador (E) - É, então, você recebeu algum treinamento
pra trabalhar aqui?
Fernanda (F) - Não.
(E) - Não?
(F) - Porque já tinha experiência de psiquiatria, né? Que eu já
vinha de lá, aí pronto (Fernanda, 40 anos, ensino médio
completo (técnica de enfermagem), atua nas duas residências).
Entrevistador (E) - Você recebeu algum treinamento?
Joana (J) - Não.
(E) - Não?
(J) - Não. Tipo, eu tô como se fosse um, um... Tão me
ensinando ainda, eu não peguei assim, ainda não fiz nada
sozinha, né?
(E) - Certo.
(J) - As meninas que tão me passando todo o trabalho (Joana,
36 anos, ensino médio completo, atua na residência feminina).
Bruna relata que não recebeu “nenhum treinamento” mas que recebeu
“orientações” do modo de funcionamento da residência, “se eram pacientes com
problemas neurológicos”. Dessa maneira, ela afirma que já sabia “como era mais ou
menos assim a residência, antes de chegar”.
118
Fernanda afirma que também não recebeu nenhum treinamento para atuar como
cuidadora mas, para ela, a falta de treinamento não fez tanta diferença pois ela “já tinha
experiência de psiquiatria”.
Joana, assim como Bruna e Fernanda, afirma que não recebeu treinamento ao se
tornar cuidadora. Segundo seu discurso, ela ainda estaria aprendendo o seu trabalho na
residência: “as meninas que tão me passando todo o trabalho”.
Consideramos, então, que tais discursos foram produzidos pelas cuidadoras pelo
fato de ambas estarem há pouco tempo no SRT, pois Bruna está há aproximadamente
três meses e Joana há uma semana. É interessante observar também a maneira pela qual
os discursos supracitados buscam minimizar a falta de capacitação das referidas
cuidadoras: todas afirmam que tiveram alguma forma de informação sobre o trabalho de
cuidador para atuarem nos SRTs, seja através “orientações”, de uma experiência prévia
em “psiquiatria” ou o “repasse” realizado por outros cuidadores.
Em relação à questão “o que é a residência terapêutica?”, a maioria dos
cuidadores mobilizou a imagem do hospital psiquiátrico em suas respostas, seja a partir
da contraposição entre o SRT e o hospital psiquiátrico ou afirmando que são
reproduzidas, na residência, algumas práticas tradicionais utilizadas nos hospitais.
Entrevistador (E) - É... Pra você, o que é a Residência
Terapêutica?
Roberta (R) - A Residência Terapêutica? Residência. Pra mim
ou pra elas?
(E) - Pra você.
(R) - Pra mim a residência terapêutica é o meu trabalho e que
assim, eu me identifico bastante, até porque eu já tenho uma
experiência, treze anos de psiquiatria, mas assim, o vínculo que
a gente pega é diferente do vínculo de hospital. A gente pega
um vínculo com elas, assim, é como se fosse uma família, a
segunda família (risos). Tem assim, a gente já teve duas que
faleceram e assim, as duas eram muito apegadas, (diz o nome
da moradora) era muito apegada com a gente tudinho. Aí
faleceram, pra gente foi como se fosse uma pessoa da família
(Roberta, 47 anos, ensino médio completo (auxiliar de
enfermagem), atua na residência feminina)
É, que aqui eles são, aqui é uma vida, né? Aqui é a casa deles,
aqui eles fazem serviço, lá [no hospital psiquiátrico] eles não
fazem, lá eles ficam mais assim, aprendendo. Lá eles ficam
mais aprendendo, assim, terapia, né? [uma moradora chama a
cuidadora mas ela não dá atenção] E aqui não, aqui eles fazem
comida, eles cuidam da casa, eles ajeitam roupa, estende, dobra.
119
Essas coisas (Fernanda, 40 anos, ensino médio completo
(técnica de enfermagem), atua nas duas residências).
Pra mim, no início era... Como se fosse um mini-hospital, na
verdade. Um mini-hospital (...) Se eu for definir a residência
terapêutica eu defino como... Um...Um... Um espaço que o... De
convívio mais sociável do que um hospital psiquiátrico.
Entrevistador (E) - Humrum.
(G) - Tá entendendo? Que, se eu for preferir um hospital
psiquiátrico, que no início eu disse: é um mini-hospital, mas eu
prefiro uma residência terapêutica, entendeu? Porque aqui tem a
gente. Tem os cuidadores, sabe? Aqui elas podem receber uma
visita, uma visita de uma família, tem o vizinho... Aqui elas
conhecem todo mundo daqui, menino.
(E) - É?
(G) - Conhece até mais gente que eu. Passa aqui: “ô [diz o
nome de uma moradora], ô [diz o nome de outra moradora], não
sei o que...”, sabe? Conversam e riem e choram e a gente tá aqui
perto, se quiserem alguma coisa, tem aqui o telefone, ela entra
aqui, liga, sabe? Tem uma geladeira... Liga... Não sei se, não sei
se tu percebeu, mas a geladeira é aqui dentro porque elas, como
elas tomam muita medicação, elas acordam de madrugada e se a
gente, era ali a geladeira [apontando para dentro da casa], mas
elas comiam muito (ênfase) assim, o tempo todo,
compulsivamente, (incompreensível). Outra coisa que, tu já
percebeu, mas o cigarro é controlado, porque se a gente der
uma... Elas têm dinheiro, né? O dinheiro, tu sabe que eles
recebem uma verba mas, se a gente der... Acho que pode! Na
outra residência, lá é, a gente dá, tem gente que fica com a
carteira, tudinho. Mas se a gente der uma carteira, acaba em um
minuto. Um minuto, não. Em dez. Em dez minutos. Aí haja
dinheiro, né? (Gisele, 28 anos, ensino superior completo
(psicologia), atua na residência feminina).
Não, assim, eu acho lindo o projeto, eu acho muito bonito.
Sempre, assim, quando eu fiz o concurso, pensei mesmo, eu
digo assim, realmente... E eu entrei nesse sentido, de conhecer
mesmo, de ver como era que funcionava e tal, e acho muito
bonito. Agora assim... Lógico que por ser um projeto “novo”,
assim novo entre aspas, mas que ainda precisa muito melhorar,
assim. Mas que o projeto em si ele é muito bonito, assim... Tava
realmente precisando de um projeto desse, quer dizer, das
pessoas saírem dos hospitais, por que hospital não é lugar de
ninguém residir. Então, foi uma coisa que, eu acho...
Acrescentar, e isso veio a mudar a cabeça da gente, que até hoje
a gente ainda acha que... A gente ainda meio que ainda tá
engessado, que a gente ainda age como se tivesse num hospital,
como se... Essa relação de poder que a gente tem com os
moradores mas que isso, vez ou outra a gente ainda se pega
pensando, não, o tempo inteiro a gente ainda tá se
questionando: não, residência terapêutica não é isso, assim. A
gente tá o tempo inteiro fazendo com que eles façam sozinhos,
é... Vá para um banco sozinhos, vá fazer compras sozinhos, que
a residência, o papel é justamente esse, né? A gente dar sentido
120
à vida deles, tornar eles singular mesmo, de cada um poder
decidir sobre a sua comida, sobre a sua roupa, onde quer
dormir, quer dizer... Não sei se você reparou, mas a casa é toda
enfeitada, porque é como eles querem: a cor do quarto, eles
escolheram, “eu quero colocar foto no quarto”. Então assim,
tudo foi pensado com eles. Então, assim, é legal a gente ver isso
assim, que no hospital todos... A gente até costuma dizer assim:
eles trouxeram fotos, dos hospitais, quando moravam lá. A
gente via foto de festa mesmo, todas tinham a mesma roupa, a
mesma estampa, quer dizer, como se fosse só mais um ali. E
hoje não. Assim, a gente faz aniversário de uma, uma diz onde
quer comemorar, a roupa que quer vestir, então assim cada
detalhe desse assim, que pra gente é insignificante, assim, pra
eles a gente vê uma coisa bonita, como eles se tornando seres
humanos e desejantes mesmo (Paula, 29 anos, ensino superior
completo (psicologia), atua na residência feminina).
Pra mim, eu vejo a residência terapêutica como um espaço
aonde as pessoas que são parte das residências, no caso os
usuários, os moradores, né? Eles podem continuar suas vidas,
principalmente naquilo que foi interrompido, né? A sua
liberdade, o seu direito de escolha, eles podem ter opções,
enquanto que, no lugar que eles vieram, provavelmente não
havia, essa liberdade de escolha, essa, esse leque de opções,
essa, podia acordar hoje e dizer: “eu vou fazer tal coisa sem
ninguém mandar que eu faça”, ou então pedir para ser realizado
um desejo seu. Uma residência terapêutica eu vejo isso, assim,
como um lugar de oportunidades. Oportunidades que antes
foram negadas (Tiago, 42 anos, ensino médio completo, atua na
residência mista).
Ao produzir seu discurso Roberta busca, inicialmente, localizar o ponto de vista
a partir do qual irá falar: “pra mim ou pra elas?”. Ao se certificar que seria o seu ponto
de vista que importava, ela afirma que a residência terapêutica é o seu “trabalho” e que
ela se identifica bastante, justificando tal identificação por já possuir uma “experiência”
de treze anos de psiquiatria”.
Nesse momento de seu discurso, ela diferencia o vínculo que é construído no
SRT com o vínculo construído no hospital psiquiátrico: ela relata que na residência os
vínculos são mais fortes do que os vínculos construídos no hospital psiquiátrico,
reforçando sua visão com a idéia de que os moradores do SRT são sua “segunda
família”.
Fernanda também compara, em seu discurso, o SRT a um hospital psiquiátrico.
Segundo ela, o SRT “é a casa deles”, “é uma vida” pois “aqui eles fazem serviço”:
“fazem comida, eles cuidam da casa, eles ajeitam roupa, estende, dobra”. Enquanto que
121
no hospital psiquiátrico “eles não fazem”, “lá eles ficam mais aprendendo, assim,
terapia”.
Gisele, no início de sua entrevista, define o SRT como “um mini-hospital, na
verdade”, buscando confirmar sua opinião ao reutilizar a expressão, logo em seguida,
“um mini-hospital”.
Mais adiante, em sua entrevista, ela procura diferenciar as duas instituições ao
justificar a comparação do SRT a um hospital psiquiátrico. Para tanto, ela afirma que o
SRT é “de convívio mais sociável do que um hospital psiquiátrico” e que ela, na
verdade, prefere “uma residência terapêutica”, apesar de ter afirmando, “no início”, que
a residência “é um mini-hospital”.
A entrevistada afirma que uma das vantagens do SRT é “por que aqui tem a
gente. Tem os cuidadores”, bem como lá “elas podem receber uma visita”, “tem o
vizinho”. Ao relatar que “tem os cuidadores”, Gisele enfatiza que tais profissionais são
necessários para o bom desempenho do SRT. Já ao afirmar que “podem receber uma
visita” e que “tem o vizinho”, a cuidadora constrói a imagem do SRT como o de uma
residência normal, onde as pessoas podem receber suas visitas e manter contato com
seus vizinhos.
Ela reproduz diálogos de vizinhos com as moradoras: “ô [diz o nome de uma
moradora], ô, [diz o nome de outra moradora], não sei o que”, se referindo ao fato dos
vizinhos conversarem com os moradores como sujeitos normais, que “conversam e riem
e choram”; e os cuidadores, como bons prestadores de serviço, sempre estão “por
perto”, caso os moradores queiram “alguma coisa”, bem como permitem que os
moradores utilizem o telefone da residência.
No entanto, nesse momento de sua entrevista, ela busca justificar algumas
medidas restritivas nos SRTs. Segundo seu discurso, a “geladeira” fica dentro do quarto
do cuidador porque “elas acordam de madrugada” e “elas comiam muito”,
“compulsivamente”. Dessa maneira, a geladeira foi retirada da cozinha e colocada no
quarto do cuidador, onde permanece sob sua vigilância.
Ela afirma que “outra coisa” é que “o cigarro é controlado na residência
feminina porque “se a gente der...”. Buscando se posicionar como uma pessoa que
defende a liberdade dos moradores, ela afirma ser favorável à idéia dos moradores
gastarem a “verba” que recebem com cigarros, assim como exemplifica tal situação
122
apresentando o caso da residência mista, onde os moradores podem ficar “com a
carteira, tudinho”.
Paula inicia seu discurso justificando as falhas que existem na política de saúde
mental em relação aos SRTs. A entrevistada acha “lindo o projeto”, mas entende que ,
por ser um “projeto novo” “ainda precisa muito melhorar”. Apesar das falhas, ela afirma
que “tava realmente precisando de um projeto desse”, um projeto que fizesse as
“pessoas saírem dos hospitais”, posto que “hospital não é lugar de ninguém residir”.
Ela também afirma que os cuidadores ainda agem como se estivessem “num
hospital”, fazendo referência a “relação de poder que a gente tem com os moradores”, o
que produz constantes questionamentos nos profissionais: “não, residência terapêutica
não é isso”.
Para ela, a função dos cuidadores é fazer “com que eles façam sozinhos”, é “dar
sentido à vida deles, tornar eles singular mesmo”. É nesse sentido que ela afirma que “a
casa é toda enfeitada, porque é como eles querem”, o que torna os moradores sujeitos
ativos no processo de gestão da casa: “tudo foi pensado com eles”.
Neste momento da entrevista, ela compara a qualidade de vida dos moradores no
SRT e nos hospitais, afirmando que nas “fotos” que os moradores trouxeram dos
hospitais podia se perceber que “todos tinham a mesma roupa, a mesma estampa”,
“como se fosse só mais um”, enquanto que “hoje não”: “a gente faz aniversário de
uma”, a aniversariante “diz onde quer comemorar, a roupa que quer vestir”.
Em seu discurso, Tiago afirma que “a residência terapêutica” é um “espaço” no
qual os moradores “podem continuar suas vidas, principalmente naquilo que foi
interrompido”: “o seu direito de escolha”. No SRT eles “podem ter opções”, enquanto
que no hospital psiquiátrico não haveria “essa possibilidade de escolha”, “esse leque de
opções”.
Para tornar mais factual a sua versão do SRT, o cuidador usa o discurso direto:
segundo ele os moradores, ao iniciarem o dia na residência, falariam “eu vou fazer tal
coisa sem ninguém mandar que eu faça”, ou eles poderiam até mesmo “pedir para ser
realizado um desejo seu”. Para ele, a residência seria um “lugar de oportunidades.
Oportunidades que antes foram negadas”.
Já outros cuidadores afirmam que a residência é um espaço de “possibilidades”,
no qual o morador poderá desenvolver sua autonomia.
123
Claudia (C) - Pra mim a residência terapêutica é... É uma saída
muito interessante, muito importante pra esse movimento da
Reforma, que acho que é um espaço interessante, muito
importante, mas pouco investido, né? Eu acho que depois que
se tira do hospital, tirou do hospital. Já tá muito bom.
Entende? Então bota lá e... Deixa, né? E aí eu acho que perde
por isso, por essa falta de investimento depois que já é retirado.
Entende? Mas a residência terapêutica pra mim é um espaço
extremamente rico, extremamente rico mesmo. É um espaço de
n possibilidades, é um espaço muito interessante, pra vida de
cada morador e até dos cuidadores também, porque a gente
aprende mais do que, do que acha que vai aprender, né? Acha
que chega lá e vai ensinar, e vai, não, a gente aprende muito
todos os dias. Eu acho que é um espaço muito rico mas
infelizmente pouco investido, ao meu ver, muito (ênfase) pouco
investido mesmo.
Entrevistador (E) - Falta investimento em que sentido?
(C) - Falta de investimento que eu acho é no sentido de cuidado.
Cuidado com quem tá lá dentro em todas as partes, o cuidador e
o morador, entende? Agora assim, eu tô falando muito dessa
realidade... (Claudia, 22 anos, ensino superior completo
(psicologia), atua na residência feminina)
Entrevistador (E) - É... Pra você, o que é a residência
terapêutica?
Verônica (V) - O que é a residência terapêutica? Eu acho que é
um... Uma grande chance de você dar dignidade pras pessoas
que já levaram tantas... Nas costas, da sociedade. É... Como é
que eu posso dizer, assim? Preconceito, entendeu? Eu acho que
isso aqui é... É uma oportunidade. Você realmente... Dá, dá
condições pra pessoa pra uma pessoa pra ela se sentir bem, se
sentir amada, se sentir acolhida, né? Ter uma pessoa que possa
conversar, que possa contar, eu acho que residência é isso aqui,
é... Ter carinho com essas pessoas. E elas merecem, são gente,
merecem. Merecem respeito, merecem carinho, são pessoas que
já são assim, muito... Já nasceram com esse, né? Algumas
adquiriram, outras já nasceram assim, então já é difícil, né? Eu
acho que, você podendo amenizar, eu acho que é interessante,
muito válido (Verônica, 40 anos, ensino superior incompleto
(biologia), atua na residência mista).
Para Claudia, a residência “é uma saída muito interessante, muito importante pra
esse movimento da Reforma”, sendo que esse é um movimento “pouco investido”.
Segundo a cuidadora, “depois que se tira do hospital, tirou do hospital”, ou seja, “já tá
muito bom”, no entanto, tirar do hospital por si só não resolve a questão da
desospitalização e a Reforma perderia “por essa falta de investimento” depois que o
morador “é retirado” do hospital.
124
Ela busca, também, se mostrar favorável à Reforma afirmando que “a residência
terapêutica pra mim é um espaço extremamente rico, extremamente rico mesmo”, “um
espaço de n possibilidades, é um espaço muito interessante, pra vida de cada morador e
até dos cuidadores”, pois “a gente aprende mais do que, do que acha que vai aprender”.
No entanto, após apontar os pontos positivos da Reforma, ela retoma a idéia de
que “é um espaço muito rico mas infelizmente pouco investido, muito pouco investido
mesmo”. Nesse sentido, ela busca enfatizar seu discurso, utilizando mais uma vez a
estratégia de repetir a expressão “pouco investido” acompanhada dos termos “muito” e
“mesmo”.
Ao ser questionada sobre o que seria essa falta de investimento, Claudia
responde que “é no sentido de cuidado”, “cuidado com quem tá lá dentro em todas as
partes, o cuidador e o morador”. Ao final do seu discurso, ela também explicita que ela
está falando da realidade do SRT no qual ela trabalha, ou seja, ela afirma que essa é
uma “realidade” específica daquela residência e que não pode ser transposta para todos
os SRTs.
Compreendemos, então, que a entrevistada utilizou esse momento de entrevista
para reivindicar que a gestão olhe os SRTs com um olhar mais cuidadoso: tanto para
com os moradores quanto para com os cuidadores.
Verônica também compartilha com a idéia de que o SRT é “uma grande chance
de você dar dignidade pras pessoas que já levaram tantas... Nas costas, da sociedade”,
que sofrem “preconceito”. O SRT seria uma “oportunidade” de oferecer condições “pra
uma pessoa pra ela se sentir bem, se sentir amada, se sentir acolhida”, de minimizar o
sofrimento dessas pessoas.
Já ao final desse trecho de seu discurso, Verônica se mostra receosa de utilizar
expressões que denotem preconceito com os moradores. Nesse sentido, ela utiliza
algumas sentenças inacabadas: “pessoas que já são assim, muito...”, “já nasceram com
esse, né?”, “algumas adquiriram, outras já nasceram assim, então já é difícil, né?”.
Para outros cuidadores, o SRT seria uma “residência normal”, “um lar pra
algumas moradoras”.
Entrevistador (E) - Pra você o que é a residência terapêutica?
Joana (J) - O que é que eu acho da residência terapêutica? É
uma residência normal, como uma qualquer, né? A diferença é
que tem pacientes. E... Tem que ter cuidado com eles e tentar
125
incentivá-los. Acho que é isso (Joana, 36 anos, ensino médio
completo, atua na residência feminina).
A residência terapêutica? É um, é um lar pra algumas
moradoras, né? Que viviam em hospitais e tão acabando com os
hospitais, né? Pra eles conviver como se fosse uma família. E
reintegrar ele à sociedade, né? Aos poucos, né? Porque você
sabe que é lentamente o processo, né? Mas alguns já tão bem
adiantados, né? (Bruna, 30 anos, ensino superior completo
(pedagogia), atua nas duas residências)
Para Joana, a diferença entre o SRT e uma residência qualquer é que o SRT “tem
pacientes”, os quais merecem receber cuidado dos cuidadores, sempre na tentativa de
“incentivá-los” a fazerem as coisas sozinhos.
Bruna, assim como Joana, afirma que o SRT “é um lar pra algumas moradoras”
poderem “conviver como se fosse uma família” e serem reintegradas à sociedade, num
processo lento, pois “tão acabando os hospitais”. Ao final de seu discurso, ela afirma
que o SRT vem desempenhando suas funções, pois existem “alguns” moradores que “já
tão bem adiantados” no processo de reintegração à sociedade.
Já outros cuidadores apontam que o SRT é um espaço para a promoção da
“reabilitação social” e de “ressocialização”.
Silvana (S) - Rapaz... Pra mim... Eu acho que é um... É um
trabalho de reabilitação social, né? Porque eu acho que
(incompreensível) não trata ninguém. Então, pra mim, eu acho
que aqui é uma coisa muito boa que criaram, por quê a pessoa, é
um, é um trabalho que a gente faz que as pessoas voltam a viver
como se tivesse em casa com a família, né? Então pra mim é
um trabalho, uma coisa ótima (ênfase) que fizeram. Porque o
pessoal fica em hospital, as vezes a gente chega num hospital,
não tem nenhum problema mental, assim, mas quando começa a
tomar medicações fortes demais... Teve aquela época do choque
elétrico que hoje em dia é proibido mas muita gente levou
choque elétrico e piorou muito a situação das pessoas, né?
Então eu acho que é devido muito... Tem hospital, por exemplo,
tem o Ulisses Pernambucano, que na minha opinião é o único
dos hospitais que tem que eu acho que tem o tratamento bom.
Mas a gente sabe que tem muitos hospitais, tem aquele HPP em
Boa Viagem, não sei se tu conhece o HPP em Boa Viagem.
Entrevistador (E) - Já ouvi falar.
(S) - Que até eu vou ter um estágio lá, sábado, no outro sábado,
mas assim, tem um colega meu que trabalha ali, que é... É
péssimo, assim, o tratamento não é legal, a pessoa é tratada
como bicho, né? Então eu acho que aqui, na minha opinião é
um trabalho de reabilitação que traz a pessoa pra vida, né? A
126
pessoa tá no hospital, ela não tá vivendo ali, ela tá vegetando.
Ela só faz aquilo que as pessoas querem. Elas não têm vontade
própria dentro do hospital. E aqui elas fazem o que querem. O
que elas quiserem, o que elas querem comer, elas comem, pra
onde quiser passear elas passeiam. Então elas voltam à vida, de
novo, a viver de novo. Então pra mim é isso, uma reabilitação,
assim, de vida mesmo: social, tudo (Silvana, 28 anos, ensino
médio completo (técnica de enfermagem), atua na residência
feminina).
Entrevistador (E) - É, então, pra você o que é a residência
terapêutica?
Marcos (M) - Pra mim a residência terapêutica é um
acolhimento de pessoas com transtorno men, é... Com menor
intensidade do que outras, né? Porque para (incompreensível)
você tem que tá com a mesma intensidade de agravamento do
que outras, né?
(E) - Humrum.
(M) - Um acompanhamento assim, mais humanizado, bem
dizer. Um acompanhamento mais humanizado. Você tá em
contato com aquela pessoa e faz ela se ressocializar.
(E) - Humrum.
(M) - Entrar numa ressocialização com mais facilidade do que
num hospital, né? Tem mais disponibilidade de tempo para
acompanhar esse desenvolvimento do morador, né? (Marcos, 32
anos, ensino superior incompleto (enfermagem), atua na
residência mista)
Segundo Silvana, o SRT “é um trabalho de reabilitação social”, é um “trabalho”
que os cuidadores fazem para as “pessoas” voltarem “a viver como se tivesse em casa
com a família”.
A cuidadora relata, ainda, que ao contrário do SRT, o hospital psiquiátrico
produziria um processo de adoecimento pela utilização de “medicações fortes demais”
e, antigamente, “choque elétrico”.
Nesse momento da entrevista, ela afirma que o Ulisses Pernambucano “é o único
dos hospitais que eu acho que tem o tratamento bom”. No entanto, como se sentisse a
possibilidade de ser posicionada como uma pessoa favorável aos hospitais psiquiátricos,
ela logo afirma que “tem muitos hospitais” nos quais “o tratamento não é legal, a pessoa
é tratada como bicho”, pois a pessoa no hospital “ela não tá vivendo ali, ela tá
vegetando”.
Ela justifica então a utilização do termo “vegetando”, afirmando que as pessoas
no hospital são como zumbis: “ela só faz aquilo que as pessoas querem”, “elas não tem
vontade própria dentro do hospital”, enquanto que no SRT “elas fazem o que querem”,
127
“o que elas quiserem, o que elas querem comer, elas comem, pra onde quiser passear
elas passeiam”. Dessa forma, Silvana relata que “elas voltam à vida, de novo, a viver de
novo”. E “voltar a vida” seria para ela o processo de reabilitação.
Para Marcos, “a residência terapêutica é um acolhimento de pessoas com
transtorno”. Vale a pena observar que o entrevistado não completa a expressão
“transtorno mental”. Entendemos que ele não utiliza essa expressão na tentativa de
evitar a possibilidade de ser posicionado como preconceituoso, posto que os usuários da
residência, de acordo com o discurso reformista, devem ser tratados pelo termo
moradores.
Ele continua afirmando que na residência é possível desenvolver “um
acompanhamento mais humanizado”, no sentido de “você tá em contato com aquela
pessoa e faz ela se ressocializar”, inclusive com “mais facilidade do que num hospital”,
pois os cuidadores “tem mais disponibilidade de tempo para acompanhar esse
desenvolvimento do morador”.
Nos foi relatado também como seria esse processo de “reabilitação”, quando
solicitamos que os cuidadores falassem sobre como é o seu dia típico de trabalho. Dessa
maneira, alguns cuidadores relataram que no decorrer de um dia no SRT, eles devem
“estimular” os moradores a realizar as atividades cotidianas sozinhos, além de
apresentarem um discurso marcado pela questão da medicação e de idas ao médico.
Entrevistador (E) - Humrum. Certo. É, você poderia falar um
pouco sobre o cotidiano nas casas, como é o cotidiano na casa e
da relação entre vocês e os moradores?
Roberta (R) - O cotidiano da casa é como uma casa normal, é
como a minha, como a sua. Elas acordam, aí tomam, fazem
café, (diz o nome da moradora) faz o café, divide pra todo
mundo. Aí depois elas cuidam da casa, faz a limpeza da casa, o
cuidador sempre tá lá (ênfase) pra estimular e pra orientar.
(E) - Humrum.
(R) - A gente fica sempre, aí depois elas, as vezes, dão uma
voltinha, vão na outra residência, vão no mercado com a gente.
Pra todo canto elas vão com a gente. Aí quando tem consulta,
vão pra consulta. Elas ficam, as vezes elas ficam enquanto a
gente vai no mercado, as outras ficam só (Roberta, 47 anos,
ensino médio completo (auxiliar de enfermagem), atua na
residência feminina).
Segundo Roberta, “o cotidiano da casa é como uma casa normal”, ou seja, é uma
residência “como a minha, como a sua”. Segundo a cuidadora “elas acordam”, e
128
realizam as atividades domésticas:“fazem café”, “divide pra todo mundo”, “faz a
limpeza da casa”, sempre acompanhadas pelo cuidador, o qual está lá “pra estimular e
pra orientar”.
No segundo trecho de seu relato, ela utiliza a expressão “às vezes” para afirmar
que os moradores também participam de algumas atividades atípicas: “dão uma
voltinha, vão na outra residência, vão no mercado com a gente”, “vão pra consulta”. No
entanto, o cuidador está sempre junto com o morador: “pra todo canto elas vão com a
gente”.
Em consonância com o resto de seu discurso, Roberta afirma que “as vezes elas
ficam enquanto a gente vai no mercado, as outras ficam só”. Ou, em outras palavras,
Roberta afirma que o trabalho dos cuidadores apresenta resultados concretos: as
moradoras conseguem ficar sozinhas.
Entrevistador (E) - Certo. É... Você poderia falar um pouco
sobre o cotidiano na casa? Como é que é o cotidiano?
Silvana (S) - O que acontece de manhã? De manhã...
(E) - De maneira geral.
(S) - É, amanhece o dia, de maneira geral, de manhã elas se
levantam, tomam um “banhinho”, né? Aí elas tomam café, elas
mesmo preparam o café da manhã. Tomam o café, aí já
começam cada uma a fazer alguma coisa na casa, uma varre a
casa, outra lava o banheiro. Tem aquelas que não tem muita
coragem, não, mas (risos) a gente estimula, né? Aí sempre, uma
diz: “ai, dona Silvana, hoje eu lavei os pratos” ai eu digo:
“nossa! Que bom, né? É bom, de vez em quando, quando você
tem vontade, você fazer aquilo que, né? Pra você se sentir útil”,
eu digo pra elas, fico sempre estimulando. (incompreensível) dá
um apoio, dá uma ajuda, mas tipo: sempre deixa o livre-arbítrio
para elas fazerem, né? Se tiver médico, que elas vão muito pra
médico, a gente leva pra consulta. Quem tá organizando a noite,
já deixa organizado, e tal, já deixa: “vamo tomar banho”, acorda
mais cedo, se organiza todo mundo pra ir pro médico, então...
Aí, depois almoça, tem lanche, tem os horários das medicações,
então é tudo cronometrado: a medicação, tem aquela horinha
certa, almoço, né? Almoço nem tanto, porque quando dá fome
elas já querem comer. (risos) Aí a noite elas jantam. Quando dá
assim, na faixa de umas dez, dez e meia, já estão tudo
sonolenta, mas vêem novela, tem duas ou três que gostam de
assistir novela, né? As vezes, senta no sofazinho, vê a novela
até o final.
(E) - Vai até...
(S) - Ôxi, então! Ai quando acaba a novela, aí é hora de dormir.
Já vai dormir, porque o sono já tá... O olho já pesando de sono,
tem a medicação também...
(E) - Humrum.
129
(S) - Aí vão dormir. Então, assim, é aquele, é um cotidiano,
assim, né? Mas final de semana, elas passeiam, agora sábado
passado foram pra praia. Nem todas vão, porque nem todas
gostam, mas ai, as que gostam, se uma tá (incompreensível) a
gente leva.
(E) - Humrum.
(S) - Né? E aí elas: “ah, foi bom a praia, foi ótimo a praia! Se
pudesse amanhã eu ia de novo!” (risos do entrevistador) Então
eu digo: eu acho ótimo, assim, porque acho que passeio
estimula muito, elas irem para um lugar, saírem desse cotidiano,
do dia a dia, né?
(E) - Humrum.
(S) - Porque durante a semana é aquilo ali: faz feira quando tem
que ir, elas gostam de ir, acompanham a gente, né? Vai ao
banco resolver alguma coisa, a gente sempre tá acompanhando,
né? Que elas nunca saem sozinhas, só pra próximo aqui, vão
comprar pão na padaria, aí tem uma ou duas que sabem onde é a
padaria e a gente confia.
(E) - Humrum.
(S) - Né? Aí elas vão, mas tem outras que se for a gente sabe
que vai se perder. Então aí tem que ir junto com o cuidador,
mas aquela a gente sempre tenta dar autonomia, né? Pra elas
irem. Mas aí o que eu tô, é mais passeio, entendeu? É assim, o
cotidiano é, é assim. Agora final de semana a gente tenta. Tem
umas que gostam de teatro, aí já tá se planejando para ir ver
teatro, né? E assim vai, como uma família normal, você no seu
dia a dia, você trabalha, faz sua faculdade, né? Aquele dia a dia.
Então final de semana tem que mudar um pouquinho pra... Né?
Tirar o stress, né? (Silvana, 28 anos, ensino médio completo
(técnica de enfermagem), atua na residência feminina)
Segundo o relato de Silvana, o dia começa quando “elas se levantam, tomam um
banhinho”. Em seguida, elas tomam “café”, o qual é preparado pelas próprias
moradoras. Após o café, elas “começam cada uma a fazer alguma coisa na casa, uma
varre a casa, outra lava o banheiro”. No entanto, “tem aquelas que não tem muita
coragem, não”. Nesses casos, o cuidador “estimula”.
Logo em seguida, em seu discurso, ela utiliza uma série de citações
supostamente literais, objetivando uma descrição mais real dos fatos. Além disso, essas
citações são utilizadas para afirmar, mais uma vez, que o “estímulo” dos cuidadores
também funciona: segundo seu relato, a moradora teria dito “hoje eu lavei os pratos”
enquanto ela responde “nossa! Que bom”, na tentativa de ficar “sempre estimulando”,
dar “um apoio”, “uma ajuda”, mas sempre deixando espaço para o “livre-arbítrio” das
moradoras.
130
Ao construir a imagem de que os moradores possuem o livre-arbítrio, a
cuidadora posiciona implicitamente o SRT enquanto um espaço diferente do hospital
psiquiátrico, que seria um espaço marcado pela falta de espaço para a escolha do
paciente.
Ela continua seu relato afirmando que “se tiver médico” pela manhã, o cuidador
da noite já organiza tudo e ai o cuidador da manhã leva “pra consulta”, tem o horário
“cronometrado” da “medicação”. Ela afirma também que os moradores tem liberdade de
comer “quando dá fome”, que alguns “gostam de assistir e novela” e, após a novela,
devido à “medicação” e ao avançar da hora, elas vão dormir.
O final de semana aparece, em seu relato, como um espaço para atividades que
não são comuns, para “tirar o stress”, atividades que saem “desse cotidiano”: os que
gostam “foram pra praia” e, ao voltarem ao SRT, teriam afirmado que “foi ótimo a
praia”; outros gostam de “teatro”.
Entrevistador (E) - Certo. É, você poderia falar sobre o
cotidiano na casa de das relações entre vocês e os moradores?
Fernanda (F) - Como é o cotidiano aqui?
(E) - Humrum.
(F) - Tenta ajeitar, é, incentivar eles a organizarem a casa, né?
Pra ficar uma casa que as pessoas venham (incompreensível) e
o cotidiano é melhorar, né? (o telefone toca e a moradora
atende).
(E) - Então a gente tava na questão assim, descreve pra mim
como é que é um dia típico aqui na residência terapêutica? O
que é que vocês fazem? Como é o trabalho, essas coisas assim.
(F) - Um dia da gente aqui é, tipo: começa pela comida, né? A
gente chega, a medicação, depois aí vem incentivar eles a
tomarem o lanche, tomar o banho pra quem se disponibiliza, aí
tomam banho, depois, é, a gente vai ver o que dá pra fazer pra
comida, vai ver o que tem na geladeira feito, o que não tiver
feito a gente vai procurar incentivar eles a ajeitarem, depois
vem a arrumação da casa, com essa reforma aí, fica sempre
cheio de poeira aqui, tem que tá ajeitando. Eles estão um pouco
difícil assim, manter o banheiro, assim, tem que sempre tá
mandando eles ajeitar o banheiro, por aí (Fernanda, 40 anos,
ensino médio completo (técnica de enfermagem), atua nas duas
residências)
Segundo Fernanda, o cotidiano no SRT é tentar “ajeitar”, incentivando “eles a
organizarem a casa”. Segundo a cuidadora, em um dia típico, o dia na residência
131
“começa pela comida”. Logo após a “medicação”, os cuidadores incentivam eles a
“tomarem o lanche, tomar banho”.
Em seguida, os cuidadores vêem “o que dá pra fazer pra comida, vai ver o que
tem na geladeira feito”, sendo que o que “não tiver feito a gente vai procurar incentivar
eles a ajeitarem”. A próxima etapa seria “a arrumação da casa”, pois com a “reforma”
que estavam fazendo no SRT, a casa sempre fica cheia de poeira e “tem que tá
ajeitando. Por fim, ela afirma que o banheiro é a parte da casa mais difícil de
permanecer arrumada, “tem que sempre tá mandando eles ajeitar o banheiro”.
Entrevistador (E) - Então, me fala um pouco como é o cotidiano
da casa e da relação entre os cuidadores moradores?
Marcos (M) - O cotidiano da casa é assim: de manhã chega, dá
a medicação, que é prescrita pelo médico, aí, quem é da noite,
separa essa medicação porque a noite, como é a noite, tem
menos atividade durante o dia.
(E) - Humrum.
(M) - Durante o dia, que é meu plantão, o tempo que eu fico é
durante o dia. Durante o dia, a gente administra a medicação, se
faltar alguma coisa para precisar comprar a gente vai comprar
esse produto que tiver faltando, e a gente acompanha, chama ele
pra ir com a gente. Se algum quiser ir, pode ir, também se não
quiser ir, não obriga, não é obrigado a ir com a gente. A gente
chama assim: “quer ir na feira, comprar alguma coisa?”... Se
algum quiser ir, quiser dar uma passeada, eles vão. Assim, final
de semana, se quiserem um passeio, a gente convida pra um
passeio, aí chama. Não pode ir só com um, né? Porque assim, o
pessoal quer ir, só tem um, aí não adianta, né? Porque tem que
pelo menos ir com um grupo, três, quatro, pra poder formar
aquela coisa, pra não ir só um, ficar aquele negócio... Mas o
cotidiano é isso aí, é, é chegar de manhã, dar medicação, depois
durante o dia, se quiser resolver alguma coisa, a gente também
resolve problemas de... Consultas médicas, a gente faz a
marcação da consulta, a gente vai levar no dia da consulta, a
gente que acompanha diretamente, porque assim... Como a
gente tem o convívio maior com eles, a gente sabe falar pro
médico qual que tá havendo o problema.
(E) - Humrum.
(M) - Aqui tem alguns que são hipertensos, tem alguns que são
diabéticos, né? A gente tenta acompanhar a taxa de
hiperglicemia, glicemia, de... Da pressão arterial.
(E) - Humrum.
(M) - Aí, pronto. Aí o convívio da gente diretamente com eles é
isso aí. Tem também algumas queixas que eles tem, tão
arengando um com o outro, aí a gente tem que olhar, quem tá
errado e quem tá certo, né? Pra poder, né? Interferir algum
problema que tiver que possibilite até levar mais...
(E) - Humrum.
132
(M) - A gente tem que interferir em problemas que se agravem.
Pra poder depois não gerar uma coisa muito grande. O cotidiano
da gente é baseado nisso aí, mesmo (Marcos, 32 anos, ensino
superior incompleto (enfermagem), atua na residência mista)
Marcos inicia seu discurso relatando que o cotidiano da casa, pela manhã, é dar
“a medicação prescrita pelo médico”, o qual é separado pelo plantonista noturno, pois
“como é a noite, tem menos atividade”.
Em seguida, ele reduz seu relato ao que ocorre durante “o dia, que é meu
plantão”. Nesse sentido, “durante o dia” é administrada “a medicação”, bem como “se
faltar alguma coisa” os cuidadores vão comprar, convidando os moradores a irem junto.
No entanto, “se algum quiser ir, pode ir, também se não quiser ir, não obriga”. Nesse
momento da entrevista, ele utiliza a citação direta para tornar seu discurso mais factual,
bem como se apresenta como uma pessoa educada ao afirmar que “a gente chama
assim: quer ir na feira, comprar alguma coisa?”. No final de semana, se um grupo de
moradores quiser ir passear, “a gente convida”.
Marcos também afirma que eles também realizam “marcação da consulta”,
levam os moradores “no dia da consulta” e que “acompanha diretamente”, pois,
segundo ele, os cuidadores que tem “o convívio maior com eles” é que “sabe falar pro
médico qual que tá havendo o problema”. Nesse sentido, Marcos posiciona os
moradores como seres incapazes de falar sobre si mesmos, contribuindo para a
construção de uma imagem de dependência em relação aos cuidadores.
Ainda no tocante à saúde dos moradores, ele afirma que alguns “são
hipertensos” outros são “diabéticos” e que, por isso, eles precisam “acompanhar a taxa
de hiperglicemia, glicemia”, da “pressão arterial”.
Por fim, ele relata algumas questões relacionadas ao convívio dos moradores:
“tem tão arengando um com o outro, aí a gente tem que olhar, quem tá errado e quem tá
certo” pra poder “interferir em problemas que se agravem”. Nesse sentido, os
cuidadores atuariam como agentes que regulariam a dinâmica social da casa,
principalmente nos momentos de conflito entre os moradores.
Entrevistador (E) - Você pode me falar um pouco sobre como é
o cotidiano na casa? E na relação entre os cuidadores e os
moradores?
Verônica (V) - Assim, tu fala os cuidadores gerais ou tu fala...
Porque eu trabalho só a noite.
133
(E) - Se você achar melhor falar sobre o período que você passa
aqui, pode ser também.
(V) - Você fala em relação, assim, a que?
(E) - Assim, como é um dia, no teu caso, uma noite de trabalho
pra tu, na residência?
(V) - Como é uma noite de trabalho?
(E) - Isso.
(V) - Bem, a noite é mais tranqüilo, né? Até por que... Devido
ao horário mesmo, né? Então a noite, tem a hora da medicação,
tem a hora do lanche, tem a hora que a gente fica conversando
um pouquinho com um, conversa um pouquinho com outro.
Daqui a pouco um chama, vai pro quarto, a gente tem que ir lá,
tudinho... Mas, quando dá assim, umas dez horas, dez e meia...
Né? Tem uns que assistem televisão até mais tarde. Mas depois
vão dormir. É tranqüilo. A noite é... Mais tranqüila.
(E) - A noite é mais tranqüila?
(V) - É.
(E) - E de manhã, como é que é, assim?
(V) - De manhã? De manhã aqui já tem aquele que vai varrer a
casa, já tem aquele que faz o café, tem aquele que é sempre
orientado, é... Pelo cuidador, o cuidador sempre tá observando.
Aí vai, bota a chaleira no fogo, né? Um ovo pra fritar, uma
mortadela pra fritar, vai preparar o café. A gente tá sempre aqui,
pra tá orientando, né? E quando a gente... Assim, de manhã, já é
automático, já tem um que vai limpar a casa sem você falar
nada, ele já levanta, pega lá a vassoura, começa a limpar
tudinho, né? Ai você vai, orienta. Questão do lixo, né? Como
lidar, como condicionar o lixo, botar lá fora, quando o
caminhão vai passar... A limpeza da casa, e outros ficam
responsável aqui, pela cozinha. Mas a gente sempre fica com
um e com outro, né?
(E) - Humrum.
(V) - Sempre é: olha um, olha outro, olha um, orienta um,
orienta outro. E assim as coisas vão fluindo, assim é muito
natural (incompreensível).(Verônica, 40 anos, ensino superior
incompleto (biologia), atua na residência mista).
Verônica inicia seu discurso orientando seu relato para as questões que ocorrem
a noite, posto que ela trabalha “só a noite”, que é um turno “mais tranqüilo”. No
entanto, o relato sobre o que ocorre a noite é muito semelhante ao relato do que ocorre
de dia: “tem a hora da medicação, tem a hora do lanche, tem a hora que a gente fica
conversando um pouquinho”, “tem uns que assistem televisão até mais tarde” mas que
“depois vão dormir”.
Ao responder sobre o que ocorre de manhã, ela utiliza o termo “já” para
expressar que o turno matutino é diferente: já tem aquele que vai varrer a casa, já tem
aquele que faz o café”, alguns com mais autonomia, mas “tem aquele é sempre
orientado”, pois o “cuidador sempre tá observando”. Em suas palavras, o cuidador está
134
na residência para “sempre estar observando”, idéia que ela reafirma ao dizer que “a
gente tá sempre aqui, pra tá orientando” e que “sempre é: olha um, olha outro, olha um,
orienta um, orienta outro”.
Entrevistador (E) - Você poderia falar sobre o cotidiano na
casa? Das relações entre vocês e os moradores. Se alguém
perguntasse pra você: como é que é um dia típico, o que você
faz num dia típico de trabalho?
Bruna (B) - No caso eu ou eles?
(E) - É, você com eles.
(B) - Ah! Eu com eles. Certo. Tem o café da manhã quando eu
chego, né? Eles já tem preparado o próprio café da manhã. As
oito horas tem a medicação deles, que é remédio controlado.
Então a medicação tem que ser sempre no horário, né? Depois é
servido um lanche. Elas mesmas participam da organização da
casa e, sempre vem uma moça também, né? Que toda semana
vem fazer a faxina geral, mas sempre são elas que fazer a
organização.
(E) - Humrum.
(B) - Também elas fazem trabalho de grupo no CAPS, o médico
vem também aqui na residência, então é isso, a gente cuida
delas pra que elas tomem o remédio sempre na hora, porque se
deixar pra elas tomarem, elas não sabem. Então por isso que
também precisa de cuidador, não é? Pra dar sempre a
medicação na hora, conversar com elas, passear, como eu já
tinha falado, levar ao médico, e é isso. O dia a dia delas é esse e
o nosso também, o cotidiano (Bruna, 30 anos, ensino superior
completo (pedagogia), atua nas duas residências).
Bruna inicia seu discurso perguntando se a descrição do SRT que ela construirá
será baseado na sua visão enquanto cuidadora ou não visão que ela possui dos
moradores: “no caso eu ou eles?”.
Após o entrevistador afirmar que seria sua visão enquanto cuidadora, ela afirma
que quando ela chega “tem o café da manhã”, que “eles já tem preparado”. Após o café
“tem a medicação deles, que é remédio controlado” e que, por isso, “tem que ser sempre
no horário”. “Elas mesmas participam da organização da casa”, apesar de existir uma
moça que “vem fazer a faxina geral”. A cuidadora continua seu discurso afirmando que
elas “fazem trabalho de grupo no CAPS” e que “o médico vem também aqui na
residência”.
Ela também justifica a permanência de cuidadores no SRT utilizando como
argumentos o fato de que elas precisam tomar “o remédio sempre na hora” e é “por isso
que também precisa de cuidador”: “pra dar a medicação na hora”.
135
Entrevistador (E) - Você poderia falar sobre o cotidiano da casa
e da relação entre o cuidador e os moradores? Se alguém
perguntasse pra tu, como é um dia típico de trabalho? No caso,
teu primeiro dia, como é que foi?
Joana (J) - Ah! Meu primeiro dia foi sair com eles... Os mais...
Conscientes, né? Pra ir ao supermercado, comprar algumas
coisas, teve Nancy também, que é bem orientada, também foi
comprar roupa pra ela, nesse dia, ai foi esse que a gente teve.
(E) - Humrum.
(J) - Levei um também ao médico. No primeiro dia.
(E) - De maneira geral foram essas tuas...
(J) - Atividades, foi no primeiro dia (Joana, 36 anos, ensino
médio completo, atua na residência feminina).
Segundo Joana, em seu “primeiro dia” de trabalho ela saiu com os moradores
mais “conscientes” para ir ao supermercado, fato que ela reafirma ao relatar que foi com
uma moradora que “é bem orientada” para “comprar roupa”. Ela termina seu relato
afirmando, tal como outros cuidadores, que levou os moradores “também ao médico”.
Já Tiago constrói seu discurso sobre o cotidiano no SRT aproximando-o de outra
residência qualquer.
Tiago (T) - Então discutem, as vezes brigam. A gente tenta,
assim, pra que não se agridam, né? Acontece casos, as vezes, de
ter agressão, mas o nosso serviço é pra isso também, pra evitar
essa possibilidade, evitar ao máximo isso aí. E eles se percebem
como pessoas boas, ou, as vezes, como uma, uma, uma
companhia indesejada, né? Alguns que querem uma certa
distância de outros, não é? Por entenderem assim, pela sua
individualidade, né? Tem, as vezes um mexe no objeto do
outro, o outro não gosta.
Entrevistador (E) - Humrum.
(T) - E por causa disso xinga e pede pra que não se aproxime.
Então é assim, é as coisas que realmente acontecem em nossa
vida, né? A aproximação por afeição ou as vezes a distância por
realmente não gostar de certas atitudes.
(E) - Humrum.
(T) - Mas, no geral, a relação é boa. A relação é saudável. É
aquela coisa da convivência torna a amizade mais forte.
(E) - Humrum.
(T) - E alguns convivem só por conviver, realmente. Se
suportam e nada mais além do que isso (Tiago, 42 anos, ensino
médio completo, atua na residência mista).
136
Para ele, os moradores “discutem, as vezes brigam” e os moradores, nesses
momentos, “tenta, assim, pra que não se agridam”. Em consonância com o discurso
produzido por outros cuidadores, Tiago também legitima a permanência de cuidadores
no SRT: o “serviço” dos cuidadores é pra “evitar essa possibilidade, evitar ao máximo”
que eles possam se agredir.
Ele continua seu discurso afirmando que os moradores “se percebem como
pessoas boas” ou “como uma companhia indesejada”, sendo nesse sentido que “alguns”
“querem uma certa distância de outros”. Ele exemplifica a “companhia indesejada”
afirmando que “as vezes um mexe no objeto do outro, o outro não gosta” e que “por
causa disso xinga e pede pra que não se aproxime”.
Tiago, ao afirmar que existem moradores que possuem uma convivência
afetuosa, bem como existem moradores que não possuem afinidade, retrata o SRT como
uma casa próxima das casas ditas “normais”, com sujeitos que ora estão em conflito e
que ora convivem harmoniosamente, tal como “as coisas que realmente acontecem em
nossa vida”, ou seja, “a aproximação por afeição ou as vezes a distância por realmente
não gostar de certas atitudes”.
Esse mesmo discurso é reiterado em outro momento de seu relato, quando ele
afirma que “a relação é boa”, pois a “convivência torna a amizade mais forte”, enquanto
“alguns convivem só por conviver”, “se suportam e nada mais além do que isso”.
Já Paula constrói seu relato apontando para as diferenças entre o SRT feminino e
o masculino.
Entrevistador (E) - Humrum. Certo. É... Você poderia falar
sobre o cotidiano na casa, da relação entre vocês e os
moradores?
Paula (P) - Posso. É... Assim... Primeiro a gente trabalha em
duas residências, né? Então se fala primeiro de uma depois da
outra. A residência mista é muito tranqüila, o pessoal, os
moradores são muito tranqüilos, eles são mais independentes e
os cuidadores tem uma relação muito boa com eles. Essa daqui,
que é a feminina, tem um pouquinho mais de dificuldade pelas
pessoas precisarem de mais atenção. São pessoas mais
debilitadas, que requerem mais atenção. Mas que também é
muito tranqüilo, eles já criaram um vínculo com a gente, já
sente falta, quando a gente entra de férias, já fica perguntando,
então assim, é um convívio muito tranqüilo. Cobram passeios, a
gente faz passeio. É um vínculo assim, mais que de trabalhador,
é aquele vínculo afetivo mesmo (Paula, 29 anos, ensino superior
completo (psicologia), atua na residência feminina).
137
Segundo a entrevistada, “a residência mista é muito tranqüila”, “eles são mais
independentes e os cuidadores tem uma relação muito boa com eles”. Já na feminina, os
cuidadores “tem um pouquinho mais de dificuldades pelas pessoas precisarem de mais
atenção” por serem “pessoas mais debilitadas”.
No entanto, ela afirma, logo em seguida, que “é muito tranqüilo” pois as
moradoras “já criaram um vínculo” com os cuidadores, “já sente falta” quando algum
“entra de férias”.
O relato de Paula reproduz, por um lado, uma idéia bastante presente em nossa
sociedade: o fato das moradoras do SRT feminino serem descritas como mais
“debilitadas” se deve mais ao fato de associar a idéia do feminino à fragilidade, ainda
mais se estiver associada à loucura.
No momento tá, essa confusão, assim. É... É... Tá gravando?
[diz o nome da Moradora 1]. Não sei se você viu, ela tá faz
pouco tempo, é uma moradora que a gente tá tendo muita
dificuldade com ela, assim. Ela consegue fazer, ela ajuda muito
na dinâmica da casa, da limpeza, tudinho... Mas ela tem
dificuldade de... Ela é muito introspectiva. Ela não conversa
com a gente, ela não conversa com as outras moradoras. E
depois dessa situação com [diz o nome da Moradora 2], ela
começou a querer dormir fora da casa. Ela, com medo, na
verdade de dormir. Aí já aconteceu duas vezes , né? Uma na
outra casa, e aqui duas, né? Aí a segunda só fez reforçar, aí ela
tá com medo de dormir, não dorme mais no quarto. Tá com
medo de dormir dentro da casa, agora tá dormindo fora, naquela
partezinha, ela pegou, ela tava dormindo no chão. Aí ela não
queria comprar nada, não sei o que, aí consegui, consegui,
comprou o colchão. Outro colchão, né? Que ela... Ela [diz o
nome da Moradora 2] não tocou fogo no dela, tocou fogo na do
outro, as duas vezes. Ela não tocou fogo no dela, tocou na do
outro, fogo. É assim: tá vendo como tem aquele pinguinho de
consciência? Nâo é uma loucura total? É uma confusão danada.
Bem, a dinâmica da casa é essa. A gente chega, um plantão de
doze por sessenta, mas na verdade a gente tem plantão fixo. A
gente só fica trocando assim,o... O sábado e o domingo a gente
fica rodando, é... Aqui são seis cuidadores, lá também são seis.
É como aqui, são seis cuidadores. As meninas, elas, elas, a
convivência com elas é assim, a maioria das vezes, são boas,
assim. A maioria das vezes, elas vivem bem, assim. [moradora
1] é que não consegue, ainda... Não consegue conviver bem,
com elas, ainda. [moradora 2] não faz nada, assim, não ajuda
em nada na residência. Nem [moradora 2] nem [moradora 3],
que [moradora 3] diz que é intelectual demais para ajudar em
alguma coisa. Que ela diz que é chique demais. (Gisele, 28
138
anos, ensino superior completo (psicologia), atua na residência
feminina)
Enfim, mas a dinâmica assim é.. Levar pro médico, faz um
passeio... É, a gente assim, quando a gente faz um passeio a
gente pergunta o que elas querem fazer. Geralmente passeio, dia
de final de semana, ou então dia de sábado, ou então alguma
data comemorativa, assim, dia das mães... “Que é que vocês
querem fazer?”, quero almoçar não sei aonde... Um churrasco...
Aí a gente vê quanto de dinheiro tem na casa... “Dá pra
churrasco, não. Dá pra comer um... Sei lá, uma pizza, então
bora comer pizza de noite”. A gente vai comer pizza. Se não
quiser ir comer pizza, a gente chama a pizza aí eles vem pra cá
(Gisele, 28 anos, ensino superior completo (psicologia), atua na
residência feminina).
Entrevistador - Você poderia falar sobre o cotidiano da casa e
sobre as relações entre vocês e os moradores?
Claudia - Ó, no dia a dia da casa, eu posso falar pelo dia que eu
troco com as cuidadoras, né? É o seguinte: os cuidadores
chegam, né? E aí o dia começa com as tarefas da casa, de
limpeza e não sei o que... Tanto que ela chega “vamo fazer
isso”... Tem a pessoa que cozinha que já vai fazer o almoço, a
moradora. Aí a limpeza da casa as vezes uma não quer fazer, as
vezes outra não quer fazer, ai o cuidador fica no pé, e
“nãnãnã”... Tem essa relação de obrigatoriedade pela, pela
manhã isso acontece com mais freqüência, né? E ai acontece,
tem uma moradora que geralmente tá mais (incomprensível) ai
vezes ela fica mais agressiva, aí o cuidador se encerra lá atrás,
ela fica aqui querendo bater nele, no cuidador, então fica essa
coisa meio você lá e eu aqui, né? Mas, aí começa, por exemplo,
tem muito médico o cuidador vai, leva pra médico, e traz.
Então, pelo dia é muito essa relação mesmo de... De obrigação
no sentido de tarefas a fazer, que tem que fazer mesmo, né?
(Claudia, 22 anos, ensino superior completo (psicologia), atua
na residência feminina)
Já Gisele e Claudia constroem seu discurso afirmando que o cotidiano na casa é
marcado pela agressividade dos moradores.
Gisele inicia seu discurso afirmando que “no momento” a residência “tá, essa
confusão”. Segundo ela, existe uma moradora (moradora 1) com a qual os cuidadores
possuem “muita dificuldade com ela”: “ela consegue fazer, ela ajuda muito na dinâmica
da casa, da limpeza, tudinho” mas “ela é muito introspectiva”.
Nesse sentido, “ela não conversa com a gente, ela não conversa com as outras
moradoras” e, após a situação que a moradora 2 ateou fogo no colchão por duas vezes, a
moradora 1 “começou a querer dormir fora da casa”. Esse fez com que a moradora 1
não “quisesse comprar nada”, mas a cuidadora conseguiu fazer com que ela comprasse
139
“outro colchão”. Segundo a cuidadora, a moradora 2, que ateou fogo no colchão, possui
“um pinguinho de consciência”, pois ela “não tocou fogo no dela, tocou fogo na do
outro, as duas vezes”.
Após esse relato, Gisele afirma que os cuidadores se revezam em “um plantão de
doze por sessenta ,mas na verdade” os cuidadores possuem “plantão fixo”, apesar de no
“sábado e domingo” eles ficarem “rodando”.
Em seguida, ela afirma que a convivência com “as meninas”, na “maioria das
vezes, são boas, assim”. No entanto, algumas moradoras não “vivem bem” por não
fazerem “nada”, não ajudarem “em nada na residência”.
No segundo trecho de seu discurso, ela afirma que a dinâmica da casa é “levar
pro médico, faz um passeio” e, na verdade, as moradoras é quem decidem o local onde
elas querem visitar. Geralmente esses passeios ocorrem no “final de semana” ou então
quando tem “alguma data comemorativa, assim, dia das mães...”.
Ela termina seu relato afirmando que o SRT é um serviço com poucos recursos,
posto que quando é necessário ver “quanto de dinheiro tem na casa” para decidir para
onde as moradoras podem ir.
Claudia inicia seu discurso afirmando que irá falar “pelo dia que eu troco com as
cuidadoras”, posto que seu plantão é noturno. Segundo a cuidadora, “o dia começa com
as tarefas de casa, de limpeza”, além de ter a moradora que cozinha que já vai fazer o
almoço”. Ela relata também que alguns moradores são indisciplinados, que “as vezes
não quer fazer” e o cuidador tem que ficar “no pé” e que pode ocorrer de alguma estar
“mais agressiva”, “o cuidador se encerra lá atrás”, enquanto “ela fica aqui querendo
bater nele”. Outra atividade relatada é a ida ao médico”, onde “o cuidador vai, leva pra
médico, e traz”. Ao final desse trecho de seu discurso, ela afirma que “pelo dia é muito
essa relação mesmo” de “obrigação no sentido de tarefas a fazer, que tem que fazer
mesmo”.
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos discursos produzidos pelos cuidadores predomina uma imagem dos
moradores, de maneira geral, associada a uma série de atributos que se apóiam
mutuamente: seres marcados pela falta, pela carência e pela docilidade; agressivos ou
insubordinados; pessoas sofredoras e instáveis em decorrência de constantes crises e da
falta de vínculo familiar.
Esse tipo de discurso, o qual podemos denominar de discurso do déficit, tende a
posicionar os moradores ora como “coitadinhos”, “sofredores” que merecem toda
atenção e o carinho do zeloso cuidador, ora como sujeitos “agressivos”, “instáveis”,
reproduzindo o ideal da loucura associada à periculosidade.
Já em relação aos posicionamentos produzidos sobre os cuidadores, a maioria
dos entrevistados afirmaram desconhecer os serviços substitutivos de atenção em saúde
mental e/ou a função de cuidador antes de trabalharem nas residências.
Outro ponto a se destacar é a contraposição produzida discursivamente entre os
cuidadores concursados e os antigos cuidadores não concursados, onde estes atuariam
de maneira errada no SRT, levando-os a serem denominados de “empregadas” e
“lixeiros”.
Esse discurso é reforçado também por alguns entrevistados que relacionaram, de
maneira geral, os cuidadores à profissionais de nível superior, principalmente pelo fato
de existirem muitos psicólogos atuando nos SRTs.
Ao relatarem o que é ser cuidador, a maioria dos entrevistados afirmaram que
ser cuidador exige “ter paciência”; que são anjos dispostos melhorar a vida dos
moradores, possuindo como ferramentas três pontos básicos: “ajudar”, “ter muita
tolerância” e “ter amor”.
Os cuidadores também se posicionaram como pessoas que construíram um
“vínculo” com os moradores, que possuem uma relação afetuosa com os mesmos, além
de se posicionarem como “familiares” dos moradores.
Esse tipo de discurso surge, então, como mais uma forma de infantilizar aos
moradores, promovendo, quiçá-, um excesso de proteção que subestima suas
capacidades e dificultando o processo de habilitação psicossocial.
141
Em relação à descrição dos serviços, a maioria dos cuidadores mencionou que
sentiram dificuldades nos primeiros dias de trabalho nos SRTs, à exceção de uma
cuidadora, que afirmou não ter vivenciado nenhuma dificuldade.
No tocante à capacitação, os cuidadores afirmaram que: I) foi um treinamento
que deixou a desejar; II) outros afirmaram que a capacitação foi “válida”; III) bem como
existiram cuidadores que não receberam orientação, por terem sido contratados após a
realização do concurso.
Ao responderem a pergunta “o que é a residência terapêutica?”, a maioria dos
cuidadores comparou os SRTs ao hospital psiquiátrico, ora a partir da contraposição
entre o SRT e o hospital psiquiátrico, ora afirmando que são reproduzidas, na
residência, algumas práticas tradicionais utilizadas nos hospitais.
Já outros cuidadores afirmam que a residência seria uma “residência normal”,
“um lar pra algumas moradoras”, um espaço de “possibilidades”, no qual pode ser
viabilizado a promoção da “reabilitação social” e da “ressocialização” dos moradores.
Os cuidadores também narram como seria o seu dia típico de trabalho: eles
devem “estimular” os moradores a realizar as atividades cotidianas sozinhos, além de
apresentarem um discurso marcado pela questão da medicação e de idas ao médico.
Também encontramos discursos que apontam para as diferenças entre o SRT
feminino e o masculino, além de discursos que narram o cotidiano na casa caracterizado
a partir da agressividade dos moradores.
Consideramos, então, que a produção desses discursos está associada à
reprodução de maneiras tradicionais de lidar com a loucura. Em outras palavras,
encontramos no discurso dos cuidadores a reprodução de velhas práticas lingüísticas
que posicionam o sujeito portador de transtorno mental como sujeitos dependentes e/ou
perigosos, mesmo estando em um espaço externo ao hospital psiquiátrico.
Faz-se necessário pensar em estratégias de capacitação para os trabalhadores de
saúde mental e, em especial, para os cuidadores de SRTs, para que possamos romper
com a reprodução do modelo hospitalocêntrico nos denominados serviços substitutivos.
142
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149
APÊNDICES
150
Apêndice A
Roteiro da entrevista
Dados sócio-econômicos: idade, religião e escolaridade
1) Me fale um pouco sobre sua trajetória profissional?
2) Me fale um pouco sobre sua trajetória na instituição.
3) Como foi para você a entrada na instituição?
4)Você recebeu algum treinamento? Caso sim, me fale sobre o treinamento.
5) Para você, o que é a Residência Terapêutica?
6) Como você definiria os moradores desta casa?
7) Você poderia falar sobre o cotidiano na casa e das relações entre vocês e os
moradores?
8) Antes de trabalhar na Residência Terapêutica, você já tinha alguma aproximação
com pessoas como as que moram aqui?
9) Quem são os cuidadores das Residências Terapêuticas para você?
151
Apêndice B
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Duas vias: uma sob posse do pesquisador e outra do entrevistado
Eu, _______________________________________________________, fui
convidado(a) e aceitei participar, como voluntário(a), da pesquisa “A Reforma Psiquiátrica em
Discursos de Vigias e Cuidadores de Serviços Residenciais Terapêuticos da cidade de Recife –
PE”, realizada pelo mestrando Isaac Alencar Pinto sob orientação do Prof. Dr. Pedro de Oliveira
Filho, e que possui como objetivo analisar as suas construções discursivas sobre a Reforma
Psiquiátrica. Recebi informações que me fizeram entender sem dificuldades e sem dúvidas que:
1. Participarei deste estudo por minha própria vontade, sem receber qualquer incentivo
financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o sucesso da pesquisa;
2. Minha participação neste estudo não trará nenhum dado à minha integridade física,
social e emocional;
3. Se por ventura, como possível risco, ocorrer algum desconforto moral/emocional ou for
por mim revelado, receberei orientação para buscar serviço adequado à minha
necessidade;
4. Sempre que desejar, serão fornecidos esclarecimentos sobre cada etapa da pesquisa;
5. Minha colaboração se fará de forma anônima, por meio de entrevista, a qual será
transcrita e ficará sob guarda pessoal do pesquisador;
6. O sigilo será garantido e não será revelado, em nenhuma circunstância, o nome de
qualquer participante;
7. A divulgação das informações obtidas nesta pesquisa só será feita entre os profissionais
estudiosos do assunto;
8. A qualquer momento, poderei recusar a continuar participando do estudo e, também,
poderei retirar este meu consentimento, sem que isso me traga qualquer penalidade ou
prejuízo;
9. As informações por mim fornecidas serão úteis para a produção de conhecimento na
área da saúde, gerando debates e publicações que podem contribuir para a melhoria da
qualidade dos serviços públicos;
10. Ao final do projeto, como benefício da pesquisa, será entregue uma cópia impressa e em
CD para a Gerência de Saúde Mental, onde ficará disponível para consulta, assim como
será entregue um documento com orientações para os entrevistados construído a partir
dos resultados da pesquisa.
Em caso de dúvida ou de algum problema relacionado à pesquisa, entrar em contato
com o pesquisador Isaac Alencar Pinto, cujo endereço residencial é Rua Professor Chaves
Batista, nº 350, Ap. 205, Cidade Universitária, Recife – PE, CEP: 50740-030, email:
[email protected], telefone: (81) 8512 5428. Ou, também, entrar em contato com o
Comitê de Ética em Pesquisa, cujo endereço é: Av. Prof. Moraes Rego s/n, Cidade
Universitária, Recife – PE, CEP 50670-901, telefone: 81 2126 8588.
Após ter lido e conversado com o entrevistador, os termos contidos neste
consentimento, concordo em participar como informante, colaborando, desta forma, com a
pesquisa.
Recife, _____/______/_______
Assinatura:________________________________________________________________
Nome completo:___________________________________________________________
Entrevistador- assinatura: ____________________________________________________
Nome completo:____________________________________________________________
152
ANEXO
153
154