A quebra

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A quebra Por Rodson Baldan Galeano estava tenso. O suor escorria por sua testa, lambia as maçãs do rosto e caía até o queixo, provocando lentas gotas que se estatelavam no chão e eram absorvidas pelas rachaduras do beco em que ele estava escondido. Ele não estava fazendo nada de errado, estava? Claro que não. Que mal poderia haver naquilo? Era um direito dele, não era? Havia trabalhado normalmente, corretamente, não havia se atrasado, havia cooperado com os colegas, como fazia todos os dias. De fato, seu trabalho como montador de carro na oficina era um dos mais elogiados. Não havia praticamente defeitos, os acidentes eram mínimos, se é que podiam ser chamados de acidentes. Aqueles modelos eram todos iguais, se um tivesse algum probleminha, todos também o teriam, mas seria muito fácil arrumar. Tanto ele como os outros companheiros faziam questão de checar tudo mais de três vezes nos modelos novos que saíam a cada ano. Afinal, uma daquelas belezas quadradas pretas e com quatro portas seria sua ao final de cada ano. Se ele não queria sofrer acidentes, tinha que ter certeza de que nada haveria de errado com os automóveis. Naturalmente, ele nunca saberia qual seria o dele, podia ser qualquer um, aquele da direita, ou o da esquerda, ou até mesmo aquele que o eixo havia quebrado e teve que ser consertado às pressas. A mão do Donizete teve que ser amputada, mas nada que a fábrica de próteses não substituísse em uma semana. O companheiro não seria o primeiro nem o último a carregar uma delas no lugar do tecido e ossos originais. Mal dava para notar a diferença, verdade seja dita. Olhou para o Rolex no pulso. Sob a luz do poste que iluminava precariamente o latão de lixo detrás do qual ele se escondia, Galeano viu que estava quase na hora. Valeria a pena. Não valeria? Já era a quarta vez que ele fazia aquilo. Não tinha problema realmente. Tinha? Um a mais ou a menos não faria a diferença. Lembrou-se mentalmente se havia feito tudo o que deveria no dia, em caso de algo dar errado. De manhã, pegou a gigantesca fila do pão e levou uma baguete para cada membro da família. Ok. Em seguida, deixou as crianças na escola. Certo. Antes de ir trabalhar, passou no mercado, teve uma leve discussão com um senhor que disse ter chegado primeiro para o recolhimento diário gratuito dos alimentos. Recolhimento gratuito. Essa era outra coisa que ele ainda achava difícil de acreditar. Naquele momento, ele havia se lembrado vagamente das histórias de seus pais de que, antigamente, as pessoas pagavam por seus

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Conto sobre uma sociedade utópica

Transcript of A quebra

  • A quebra

    Por Rodson Baldan

    Galeano estava tenso. O suor escorria por sua testa, lambia as mas

    do rosto e caa at o queixo, provocando lentas gotas que se estatelavam no

    cho e eram absorvidas pelas rachaduras do beco em que ele estava

    escondido.

    Ele no estava fazendo nada de errado, estava? Claro que no. Que

    mal poderia haver naquilo? Era um direito dele, no era?

    Havia trabalhado normalmente, corretamente, no havia se atrasado,

    havia cooperado com os colegas, como fazia todos os dias. De fato, seu

    trabalho como montador de carro na oficina era um dos mais elogiados. No

    havia praticamente defeitos, os acidentes eram mnimos, se que podiam

    ser chamados de acidentes. Aqueles modelos eram todos iguais, se um

    tivesse algum probleminha, todos tambm o teriam, mas seria muito fcil

    arrumar.

    Tanto ele como os outros companheiros faziam questo de checar tudo

    mais de trs vezes nos modelos novos que saam a cada ano. Afinal, uma

    daquelas belezas quadradas pretas e com quatro portas seria sua ao final de

    cada ano. Se ele no queria sofrer acidentes, tinha que ter certeza de que

    nada haveria de errado com os automveis. Naturalmente, ele nunca saberia

    qual seria o dele, podia ser qualquer um, aquele da direita, ou o da esquerda,

    ou at mesmo aquele que o eixo havia quebrado e teve que ser consertado

    s pressas. A mo do Donizete teve que ser amputada, mas nada que a

    fbrica de prteses no substitusse em uma semana. O companheiro no

    seria o primeiro nem o ltimo a carregar uma delas no lugar do tecido e ossos

    originais. Mal dava para notar a diferena, verdade seja dita.

    Olhou para o Rolex no pulso. Sob a luz do poste que iluminava

    precariamente o lato de lixo detrs do qual ele se escondia, Galeano viu que

    estava quase na hora. Valeria a pena. No valeria? J era a quarta vez que

    ele fazia aquilo. No tinha problema realmente. Tinha? Um a mais ou a menos

    no faria a diferena. Lembrou-se mentalmente se havia feito tudo o que

    deveria no dia, em caso de algo dar errado.

    De manh, pegou a gigantesca fila do po e levou uma baguete para

    cada membro da famlia. Ok. Em seguida, deixou as crianas na escola. Certo.

    Antes de ir trabalhar, passou no mercado, teve uma leve discusso com um

    senhor que disse ter chegado primeiro para o recolhimento dirio gratuito dos

    alimentos.

    Recolhimento gratuito. Essa era outra coisa que ele ainda achava difcil

    de acreditar. Naquele momento, ele havia se lembrado vagamente das

    histrias de seus pais de que, antigamente, as pessoas pagavam por seus

  • alimentos, lutavam uma contra as outras para ter coisas melhores, mais

    caras, enquanto outras mal conseguiam entrar na luta, eram vistas jogadas

    na sarjeta, dependendo de favores. Um cenrio totalmente de fico

    cientfica, ele havia pensado na primeira vez que escutara isso. A realidade

    dele era totalmente diferente daquela pintura do apocalipse.

    No se tratava apenas alimentao gratuita. Porque no era realmente

    gratuita. Era uma troca. Se o verdureiro te dava o direito de levar alfaces e

    couves-flores sem troca monetria, voc, por sua vez, forneceria alguma

    coisa a ele tambm e a todos os outros cidados. A vida era assim. Todo

    mundo tinha direito a tudo, contanto que colaborassem com o resto da

    sociedade. No mesmo dia, qualquer um tinha direito a sua dose de legumes,

    frutas, verduras, pes. Mas tambm a cada tanto nmero de meses voc

    poderia retirar sua televiso nova na loja, seu carro novo, celular ltimo tipo.

    Era to simples que aquilo chegava a soar engraado.

    Utopia? Muitos diriam que sim. De fato, chegar quele ponto no havia

    sido fcil. Mas o tempo em que o dinheiro falava mais alto no existia mais.

    Pilhas de corpos e naes, entretanto, haviam enfeitado o caminho para

    aquela to sonhada realidade. Mudar a mentalidade das pessoas, diziam os

    livros de histria que estavam espalhados por todo os lados -, havia sido a

    maior provao. Como fazer as pessoas entenderem que no era necessria

    aquela competio desenfreada pelo sucesso sobre outras pessoas? Como se

    fazer entender que tanto o faxineiro como o mdico eram igualmente

    importantes em um mesmo cenrio? Ah! Muita gente no ficou feliz. Quando

    os salrios comearam a ser cortados, durante a transio, uma revolta

    generalizada tomou conta das cidades. Foi quase por pouco, quase por

    milagre, que a mar de fria baixou. Ningum soube dizer com preciso

    quando as pessoas comearam a entender que, a partir do momento que

    voc tinha acesso a tudo o que voc queria, no havia necessidade de querer

    ter mais que o outro.

    Imerso no negrume da noite, Galeano se perguntava se aquela

    mentalidade realmente havia deixado de existir. O fato dele estar ali

    mostrava que no. Rompendo a escurido, ele viu duas luzes fortes invadirem

    o espao em que ele se encontrava. O ronco do motor do bloco negro e

    metlico denunciou que eram as pessoas por quem ele aguardava. Saiu

    detrs da lata de lixo, sentindo o peito bater com fora, no ritmo de um trem.

    As batidas viraram um trem-bala quando ele percebeu que as armas

    apontadas para ele s queriam dizer uma coisa: ele havia sido denunciado.

    ***

    Cassiana havia sido acordada no meio da noite. S podia significar uma

    coisa: um infrator. J era o segundo em menos de um ms. Soltando um

    longo suspiro, ela se levantou, trocou de roupa e saiu de sua casa

    construda nos mesmos moldes das outras. Andou poucos quarteires,

  • acompanhada do homem vestido de jeans e camiseta preta que a havia

    acordado, e bateu na porta da cadeia. Nomeada como a lder do ano da

    cidade, ela era quem cuidava das decises judiciais e punies a serem

    tomadas contra os infratores.

    Cansada, acenou para os dois guardas armados um dos poucos que

    tinham o direito de portar qualquer tipo de arma de fogo na cidade - em

    frente cela em que estava o prisioneiro. Ela o conhecia de vista, assim como

    conhecia boa parte das pessoas que moravam naquele ovo. Que saco, ela

    pensou. Puxou um banquinho e sentou-se de frente para o homem.

    - Seu Galeano, no ?

    O montador de carros apenas abanou a cabea, lentamente. Seu corpo

    todo tremia, os lbios estavam to plidos que Cassiana achou que ele

    poderia facilmente passar por um cadver, se fosse encontrado desmaiado

    no cho. Aquilo, entretanto, no era uma opo para ela. Ela o encarou por

    alguns instantes, no havia muita coisa a fazer, a no ser o seu trabalho.

    Pensou qual seria a melhor maneira de resolver aquilo. Decidiu-se por ser

    direta.

    - Senhor Galeano, fui informada que o senhor pretendia cometer um

    crime de quebra. Estou correta.

    Silncio.

    - Por favor, seu Galeano. Eu preciso que voc me ajude, seno no

    posso ajud-lo.

    A tremedeira parou um pouco. Galeano olhou para a moa, temendo o

    olhar severo que ela dava a ele. Engoliu seco. Talvez fosse o medo. Talvez

    fosse pelo o que ele j havia ouvido falar sobre o que acontecia com quem

    cometia uma quebra. Ainda assim, olhar para aquela menina devia ter

    metade da idade dele o fazia se sentir estranho. Sabia que Cassiana, a

    maior liderana da cidade, era justa. Era sim. No era? No havia sido ela

    quem havia impedido um total desmantelamento da sociedade em que viviam

    alguns anos atrs, atraindo a ateno de todos e ento conseguindo ser eleita

    lder da cidade pelos ltimos trs anos? Sua gesto havia sido to boa que

    mesmo com uma lei que proibia uma renomeao de lderes em anos

    consecutivos conseguiu ser burlada para que o bem maior continuasse a

    reinar. Sim, de fato, aquela mulher era boa no que fazia. Era justa. Ele temia,

    entretanto, que a justia dela casse sobre ele. Naquela situao, no entanto,

    ele no tinha muito o que fazer. Lentamente, ele balanou a cabea em um

    sinal afirmativo.

    Cassiana baixou a cabea, bufando em voz baixa. J estava se odiando

    a partir do momento em que havia se levantado da cama. Odiou-se mais um

    pouco quando os guardas mostraram o artigo da quebra: um celular e dois

    sacos de po direto da padaria 2.

    - Diga-me, seu Galeano, isso tudo valeu a pena? Por causa disso, voc

    sabe quantas pessoas vo acabar se encrencando?

  • O homem tremeu. Tentou falar, mas se engasgou com os prprios

    sentimentos que o invadiam. Muito cedo, as lgrimas verteram do seu rosto.

    Caiu de joelhos no cho, mas os guardas o impediram de chegar perto de

    Cassiana para implorar.

    - Sua famlia est a salvo, no se preocupe garantiu a mulher,

    preparando-se para sair da cela. Eu realmente sinto muito, seu Galeano.

    Cassiana deixou a sala, o corao pesando cada vez mais. O choro do

    homem a acompanhava a cada passo, mas ela nada podia fazer. O que havia

    sido decidido antes no poderia ser mudado agora. No dia seguinte, os donos

    da padaria que haviam fornecido aqueles pes j seriam outros. J o dono do

    celular poderia ser facilmente rastreado. Cinco, no, seis pessoas seriam

    punidas. Tudo porque uma pessoa havia desejado ter um pouco mais do que

    j lhe era fornecido.

    Havia sido pouca coisa? Talvez. Mas ela sabia que no poderia fazer

    concesses. Caso contrrio, a sociedade iria ruir. Aqueles dois sacos de po

    eram posse de outras famlias. Se uma pessoa fizesse o que o homem havia

    feito, outros tambm se sentiriam no direito e, no final, o mundo seria um

    caos novamente, com cada um querendo mais do que o outro. No. Ela no

    poderia permitir isso. Precisava se manter firme como um diamante.

    Infelizmente, ela sabia que um diamante, se atingido em seu ponto frgil, se

    despedaava em milhares de pedaos. Era melhor no correr riscos.

    Na manh seguinte, os corpos de Galeano e de outras cinco pessoas

    foram desovados nas margens de um rio j desconhecido todos eles

    fazendo companhia aos milhares de cadveres engravatados e pilhas de

    dinheiro que flutuavam em um mar de fezes, lodo e putrefao.