A psicanálise na atual pós modernidade
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1
A Psicanálise na Atual Pós-modernidade Konrad Körner *
Sigmund Freud, o genial fundador da Psicanálise, é representante destacado
da modernidade. Famosa é a sua afirmação que a razão vai vencer, fazendo
esquecer a religião. Ele até fala da “primazia da razão”, do “deus logos” 1.
Esta certeza de S. Freud se revela hoje como ilusão, pois em vez de vencer a
razão, esta cedeu o seu lugar ao relativismo e ao subjetivismo. O “deus logos”
perdeu o seu poder antes de poder exercê-lo. Até a religião, declarada como
manifestação neurótica da humanidade, voltou a se fortalecer. Apesar disso, as
descobertas científicas de S. Freud conservam a sua importância até hoje,
inserindo a Psicanálise no conjunto das ciências e tornando-a, como método
terapêutico, indispensável. Como cada uma das ciências, também a psicanálise
como saber e método terapêutico, é relativa e aberta para sempre novas
descobertas.
A época de S.Freud era totalmente diferente da nossa, tanto no âmbito da
ciência, quanto da cultura, economia e da realidade social. De acordo com a
repressão sexual da sua época, S. Freud elucidou especialmente a histeria e,
aos poucos, as demais psicopatologias. Após mais de cem anos de Psicanálise,
hoje enfrentamos realidades sociais, culturas, econômicas e políticas
totalmente diferentes e conseqüentemente também manifestações diferentes
do inconsciente humano. Embora haja ainda casos de histeria, a maioria das
manifestações psicopatológicas vão além dela. De uma forma muito geral se
pode dizer que a centralidade do Complexo de Édipo continua, mas neste os
acentos se deslocam para a sua raiz narcisista e também para atuação maníaco-
depressiva. Isto se deve à influência da pós-modernidade na atualidade.
1) Algumas características gerais da pós-modernidade
A distinção entre modernidade e pós-modernidade é relativa. Embora
não haja consenso sobre a aceitação e definição de pós-modernidade, prefiro
usar esse termo para acentuar a diferença do tempo atual em relação à
modernidade. De forma geral, a pós-modernidade é uma reação à
modernidade. Esta última se distingue pelo predomínio absoluto da razão à
qual se atribui a condição de resolver todas as questões. Na modernidade,
1 Sigmund Freud, O futuro de uma ilusão, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Ed., 1974, Volume XXI, p.13-71, p.68.
*Psicanalista. Membro efetivo do CEDPSP
2
pensava-se que, especialmente as ciências naturais, tivessem o poder de
provar, com quase total certeza, que a verdade é uma questão empiricamente
comprovável por meio de experiências.
T.Eagleton apresenta a seguinte definição: “Pós-moderno quer
dizer, aproximadamente, o movimento de pensamento contemporâneo que
rejeita totalidades, valores universais, grandes narrativas históricas, sólidos
fundamentos para a existência humana e a possibilidade de conhecimento
objetivo. O pós-moderno é cético a respeito da verdade, unidade e progresso,
opõe-se ao que vê como elitismo da cultura, tende ao relativismo cultural e
celebra o pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade”2. Na medida em
que se desfazem as esperanças políticas, “os estudos culturais ganharam
proeminência” 3. Temos agora uma “política cultural” que visa criar o novo
homem, em que prevalece o “fetiche pós-moderno da diferença” 4. A cultura
se coloca no lugar de Deus 5. A civilização ocidental está “à beira de se tornar,
ela mesma, não realista” 6, ficando “mais dependente, em suas operações
cotidianas, de mito e fantasia, riqueza ficcional, exotismo e hipérbole, retórica,
realidade virtual e mera aparência”. Busca-se não mais a informação “sobre o
mundo, mas de ter o mundo como informação” 7.
A pós-modernidade é contra tudo o que é verdade absoluta e
qualquer “idéia de objetividade”8. Há profunda aversão ao moralismo9 e à
tentativa de “dissolver limites” 10. A maioria destaca o individualismo e o
relativismo da pós-modernidade11. A pós-modernidade não questiona as
conquistas da ciência, mas as entende como relativas. Considera-se todas as
verdades, também as religiosas, como relativas. Predomina o ceticismo, o
2 Terry Eagleton, Depois da teoria. Um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p.27, Nota n.3 3 Ibíd., p. 74
4 Ibid., p.75
5 Ibid. p.90
6 Ibid., p.100
7 Ibid., p.101
8 Ibid., p.147
9 Ibid., p.257
10 Ibid., p.294
11 Ver aqui, por exemplo: Pedro Carlos Cipolini, Povo de Deus e Corpo de Cristo: Imagens complementares
na abordagem do mistério da Igreja, em José Trasferetti e Paulo Sérgio Lopes Gonçalves (orgs.), Teologia e
pós-modernidade. Abordagens epistemológica, sistemática, e teórico-prática, São Paulo: Paulinas, 2003, p.
217-249; José Lisboa Moreira de Oliveira, Viver os votos em tempos de pós-modernidade. Desafios à vida
consagrada, São Paulo: Ed. Loyola, 2001; Maria Clara Lucchetti Bingemer, Horizontes da pertença
religiosa a partir do cristianismo, Revista de Cultura Teológica, Volume 16, nr. 63, abril / junho 2008, p. 97-
112; Frei Nilo Agostinho, Pós-modernidade e ser humano, Revista de Cultura Teológica, Volume 16, nr. 63,
abril / junho 2008, p. 113-126.
3
enfraquecimento de conceitos, o questionamento do modelo de poder (centro
/periferia), uma politização da sexualidade, da ecologia, dos direitos humanos,
da vida urbana diária. A defesa do individualismo destaca o direito da
diferença e de estilos alternativos. Discute-se o direito da mulher, dos
homossexuais, dos pacifistas e de outras minorias12.
Como T.Eagleton destaca, os meios de comunicação ocupam na
pós-modernidade uma enorme importância. Assim esse autor diz que o “anti-
realismo” é uma questão da informação e não da teoria13. R. Funk enfatiza na
pós-modernidade, neste contexto, o efeito poderoso da propaganda de
produtos. Não mais a necessidade determina a compra de um produto, mas a
propaganda. Contra tal dependência coloca-se a necessidade de formar a
consciência pessoal14. Interessante é nesse contexto a afirmação do
neurocientista americano David Eagleman que “o eu é um conto de fada”, pois
tudo é controlado pelo cérebro humano de forma automática15. Aqui se
derruba, de vez, o trono da razão!
As características principais da pós-modernidade coincidem com os
sintomas do narcisismo. A cultura narcisista, imposta com força sempre
maior pela globalização, propaga estas e outras formas do narcisismo com
extrema eficiência, especialmente através da TV e Internet. Desde a infância, a
TV introjeta em crianças pequenas as imagens idealizadas numa intensidade
muito maior do que a da autoridade dos pais. Esse novo ideal do ego fortalece
um ego ideal, padronizado de tal maneira que impossibilita em grande parte o
desenvolvimento de uma individualidade pessoal. A evolução mental corre o
risco de permanecer presa à imaginação, ao passo que a culpa impõe uma
violência sempre mais irracional. Junto com o narcisismo aumentam as mais
difusas manifestações da religiosidade como reações automáticas contra culpa
e violência.
A nível social, a pós-modernidade rejeita todos os sistemas totalitários.
A forte influência dos meios de comunicação de massa “não permite uma
visão totalizante” 16
. Hoje se formam “grupos de subcultura (grupos
semióticos) de várias origens sociais”. Há novos agentes políticos, morais e
históricos. No lugar da classe social há diferença entre “consumidores e não-
12
Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume XI, nr. 1,
87-96, 2004, p. 89. 13
T.Eagleton,Depois da teoria, op. cit., p. 101 14
Rainer Funk, Ich und Wir. Psychoanalyse des postmodernen Menschen, München: Deutscher Taschenbuch
Verlag, 2.Auflage 2005 15
Das Ich ist ein Märchen, Entrevista com Daniel Eagleman, em “Spiegel”, 7 / 2012, p.110-114 16
François Houtart, Mercado e religião, São Paulo: Cortez Editora, 2003, p.101
4
consumidores” 17
. No centro é o indivíduo e o seu consumo. O que conta é o
momento e importante é “a experiência estética” 18
, a imagem vista e exibida.
A pós-modernidade está ligada ao neoliberalismo, ostentando, por isso, pouco
ou nenhum interesse por mudanças estruturais em economia e política19
. Para
J.B.Libânio, “o surto do sagrado é uma outra face da secularização da
sociedade moderna e pós-moderna e não a sua negação”. Há na pós-
modernidade “uma perfeita adaptação à formação social capitalista na sua
atual expressão neoliberal” 20
. Diferente de J.B.Libânio, J.P.Giovanetti fala da
dissolução do sagrado na sociedade pós-moderna e do conseqüente “espírito
niilista”. O indivíduo é colocado “no centro da organização da sociedade” 21
.
Predomina a tendência de fazer somente o que garante prazer e de buscar uma
felicidade que dispensa a presença do outro 22
.
U. Galimberti acha que a sociedade não valoriza os seus jovens,
“jogando-os fora”. Nem a família nem a sociedade os acolhem, surgindo daí
em jovens a busca de satisfação de desejos, conformismo, tédio, excitação,
repetição e busca de novidades23
. A respeito dessa opinião precisa-se lembrar
que a pós-modernidade preconiza o ideal da eterna juventude de tal maneira
que ignora a característica própria de jovens. Estes são avaliados conforme a
sua identificação com o ideal da eterna juventude, interessando somente na
medida em que servem ao mercado consumidor. Por esta razão, os jovens têm
grandes dificuldades na busca da sua própria identidade pessoal.
A tendência da maioria é a de avaliar a pós-modernidade, quase que
exclusivamente, de forma negativa. Os autores do livro “A Bíblia pós-
moderna” afirmam contra essa tendência, referindo-se a Hutcheon: “Dentro da
cultura do pós-modernismo, estamos no ponto em que sua simples rejeição é
tão impossível quanto a sua – igualmente simples- celebração é complacente e
deturpada” 24. A avaliação negativa tem a ver com a visão igualmente negativa
da globalização. Entretanto, a globalização é hoje um fenômeno que precisa
ser tomado como é. Ela leva a formar “contornos completamente novos não
apenas ao palco da história, mas também às diversas formas de viver a
17
Ibid., p.103 18
Ibid., p.104 19
Ibid., p.112 20
João Batista Libânio, O sagrado na pós-modernidade, em Pe. Cleto Caliman SDB (org.), A sedução do
Sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 61-78, p.61 21
José Paulo Giovanetti, A representação da religião na pós-modernidade, em Geraldo José de Paiva /
Wellington Zangari (orgs.), A representação na religião: perspectivas psicológicas, São Paulo: Ed. Loyola,
2004, p. 129-146, p. 135 22
Ibid., p.136-137 23
Umberto Galimberti, Os vícios capitais e os novos vícios, São Paulo: Paulus, 2004, p.129.132 24
VV. AA., A Bíblia pós-moderna. Bíblia e cultura coletiva, São Paulo: Ed. Loyola, 2000, p.18
5
identidade e a alteridade, inclusive em âmbito religioso”. No contexto da
globalização “surge o debate sobre o pluralismo e a identidade-alteridade em
sua diversidade e complexidade atuais”. A busca da identidade pode ser fuga
da globalização, mas também pode “ser vivida em relação à alteridade e
diversidade das culturas e religiões”25. A dinâmica da globalização provoca
também “a diversificação e a fragmentação culturais das instituições e
movimentos sociais”26. O indivíduo elabora “seu próprio universo de normas e
valores a partir de sua experiência singular”, e não mais de acordo com a
instituição27.
A globalização ajuda a “repensar o objeto das ciências humanas e
sociais, em conseqüência da multiplicação dos conhecimentos sobre a
diversidade da subjetividade e dos modos de relação social” 28. Ela permite
perceber melhor a relação entre cultura, religião e psicologia 29. Para A.
Brighenti o desafio é o de renovar a instituição30. Uma perspectiva nova e
construtiva da globalização é “a busca de uma globalização da solidariedade” 31. No lugar de uma “consciência antropológica” coloca-se uma “consciência
cosmocêntrica” 32. Aqui pode ser citado o livro com o título muito sugestivo:
“Você quer ser normal ou feliz?” 33. Apesar de todos os possíveis exageros na
busca de felicidade, traduz-se na pós-modernidade o desejo de se libertar das
normalidades impostas por sociedade e religião, que impedem a consciência,
isto é, o estar ciente de si mesmo estando com outros.
A globalização não só “mundializa” a cultura, mas também, junto com
esta, a economia, o “mercado total”, a “tecnociência”, a política, os ideais, a
espiritualidade e a ecologia 34. Na sua “vertente positiva”, a globalização tem
em si a possibilidade de buscar “uma globalização da solidariedade” 35. Ela
tanto pode impedir quanto inspirar o respeito pelo pluralismo e a relação entre
identidade e alteridade36. Ela obriga a repensar o objeto das ciências humanas
25
Olga Sodré, Globalização e pluralismo: guerra e violência ou paz e diálogo. A dinâmica da identidade –
alteridade e o diálogo inter-religioso monástico na pós-modernidade, em Mabel Salgado Pereira e Lyndon de
A. Santos (orgs.), Religião e violência em tempos de globalização, São Paulo: Paulinas, 2004, p.11-51, p.22 26
Ibid., p. 23. 27
Ibid, p. 26. 28
Ibid., p.16 29
Ibid., p.19 30
Agenor Brighenti, A Igreja perplexa. As novas perguntas, novas respostas, São Paulo: Paulinas / São
Paulo: Soter, 2004, p.132 31
Ibid., p. 78 32
Ibid., p.80 33
Robert Betz, Willst du normal sein oder glücklich? Aufbruch in ein neues Leben und Lieben, München:
Wilhelm Heyne Verlag, 3.Auflage 2011 34
Agenor Brighenti, A Igreja perplexa. As novas perguntas, novas repostas, op.cit., p.67-77 35
Ibid., p.78 36
Olga Sodré, Globalização e pluralismo: guerra e violência ou paz e diálogo, op.cit., p. 22
6
e sociais em conseqüência da “multiplicidade dos conhecimentos sobre a
diversidade da subjetividade e de modos de relação social”37. A globalização
permite perceber melhor a relação entre cultura, religião e psicologia. O
diálogo entre materialismo e fé é um diálogo com a cultura e a sua religião38.
“A globalização produz simultaneamente culturas e religiões”39.
É necessário repetir que pós-modernidade e globalização podem ser
nem diabolizadas nem endeusadas. O seu subjetivismo pode tanto levar a um
egoísmo exagerado quanto a uma maior consciência pessoal e individual. O
relativismo tanto pode negar qualquer verdade objetiva quanto tem condições
de impulsionar uma constante busca da verdade e a sua inserção em cada
época. No lugar de uma automática identificação com a instituição religiosa e
com a sociedade pode desenvolver-se uma consciência eclesial, social e
política de cada um. A globalização crescente põe a cada um a tarefa de
buscar a sua identidade pessoal. Apesar da mencionada ausência de critérios
morais na prática sexual, a pós-modernidade pode abrir a porta para uma nova
e mais humana vivência da sexualidade humana. Conceitos de masculinidade
e feminilidade podem deixar de serem imagens impostas por sociedade e
religião, tornando-se vivências existenciais de homem e mulher. Por fim, a
pós-modernidade questiona a relação entre dependência e liberdade pessoal.
Com razão, instituições rígidas e autoritárias encaram a pós-modernidade
como inimiga mortal. Todavia, permitindo que sejam questionadas pela pós-
modernidade e seu relativismo, elas têm a oportunidade privilegiada de
superarem o seu narcisismo rígido, tornando-se humanas.
37
Ibid;. p.17 38
Ibid., p. 19. 39
Ibid., p. 21.
7
2) A influência da cultura pós-moderna sobre a teoria da psicanálise
Para falar das influências da cultura pós-moderna sobre a teoria da
psicanálise citarei, a seguir, diversas opiniões de psicanalistas e profissionais
de outras áreas psíquicas. Entretanto não se trata de uma mera enumeração de
opiniões e idéias, pois desejo mostrar que não há um conjunto de novas teorias
psicanalíticas. Além do mais, as diversas opiniões citadas estão de acordo com
o individualismo da pós-modernidade que questiona a existência e validade de
uma só teoria psicanalítica. Os novos questionamentos se referem, de forma
geral, à importância do narcisismo e de uma nova acentuação da teoria sexual
da psicanálise. Nesses dois casos se discute, de uma forma nova, a influência
da cultura atual no psiquismo humano.
A cultura globalizada atual é influenciada de forma decisiva pela cultura
norte-americana. Já em 1983, Chr. Lasch descreve esta cultura como narcisista 40. R. Funk, porém, é da opinião que na pós-modernidade não se trata do
narcisismo. Embora predomine “a busca de reconhecimento e admiração”, na
maioria dos casos, porém, se trata de um “egoísmo como estratégia de venda” 41. R. Funk atribui na pós-modernidade grande importância “à estratégia da
produção da realidade” 42. A realidade “é produzida, criada e inventada, não
havendo nenhuma preocupação em comparar essa “realidade feita” com a
realidade objetiva”43. Todavia, essa “realidade produzida” pela propaganda, ao
meu ver, está relacionada ao narcisismo.
Importante é entender bem a relação entre o narcisismo e a
agressividade humana. A fusão com imagens idealizadas, característica para o
narcisismo, nega a realidade. A última raiz da agressividade humana é essa
negação inerente ao narcisismo. A defesa da imagem idealizada sempre está
acompanhada pela agressividade, que, porém, é negada. Segundo O. Sodré,
S.Freud relaciona a agressividade humana à luta do eu pela sua conservação e
afirmação, ao passo que J.Lacan prefere situá-la “ao nível das relações
imaginárias entre o eu e o outro” 44. J. Lacan deduz a agressividade do
narcisismo que “determina a estrutura formal do ego do homem” 45. O
Marketing e a violência da sua propaganda se dirigem ao narcisismo humano e
é deste que aprende as suas técnicas.
40
Christopher Lasch, A cultura do narcisismo, op.cit., 41
Rainer Funk, Ich und Wir. Psychoanalyse der postmodernen Menschen,op.cit., p.29 42
Ibid., p. 31 43
Ibid., p.32 44
Olga Sodré, Globalização e pluralismo: guerra e violência ou paz e diálogo, op. cit., p.17 45
Ibid., p. 18
8
De uma forma geral, a pós-modernidade obriga a psicanálise a dar mais
importância às influências culturais, sociais e econômicas. Segundo J.
Kristeva, a psicanálise de hoje “deve incluir a história social como um dos
elementos constitutivos do psíquico”46 e para O.Sodré, é necessário que ela
inclua também a espiritualidade47. Entretanto, não pode-se tratar de recorrer à
religião de forma a-crítica. Esta, a meu ver, agora deve ser analisada na sua
ligação íntima ao narcisismo. Éem virtude desta ligação que a religião voltou a
ganhar destaque na pós-modernidade.
Nas terapias psicanalíticas busca-se, hoje, soluções rápidas. Observa-se
a ausência de um sentido na vida, o vazio da palavra, uma acentuada solidão.
Há por baixo “a ameaça de aniquilamento e de perda de identidade”48. Além
do narcisismo, predominam o quadro da depressão, a falta de identidade, as
somatizações graves, o abuso de drogas e “modalidades perversas” 49.
Enfraqueceu-se a noção do conflito“ em favor do ideal de uma imagem
narcísica una e idealizada do ser”50. Nas neuroses atuais há falta de elaboração
psíquica, motivo pelo qual emerge o narcisismo primário. Há um mal-estar
gerado pela cultura atual e não há representação para a excitação51.
O paciente pós-moderno não gosta do “espaço para a intimidade, o
silêncio, os encontros a dois”. Ele é “um narcisista, talvez cruel, mas sem
remorso, sem alma... sofre de uma dificuldade de representar”. Diante desse
quadro clínico, a tarefa do analista será “a de restaurar a vida psíquica para
permitir ao corpo falante uma vida melhor”. Se em tempos anteriores
predominava a repressão, hoje, a pós-modernidade impõe mecanismos mais
primitivos, bem como “a dificuldade de simbolização e de representação
psíquica”52. N. C. Marucco também observa que o analisando de hoje “muitas
vezes coloca o analista no campo de um “além do representável”, terreno das
expressões vinculadas ao corpo, ao narcisismo e a um tipo de compulsão à
repetição que é a manifestação da pulsão da morte”53. Além disso, a pós-
modernidade anula o “tempo histórico”, a história pessoal, o que faz aflorar
46
Apud Áurea Maria Lowenkron, Sobre a clínica psicanalítica da atualidade: novos sintomas ou novas
patologias?, Revista de Psicanálise da SPP, Volume.37, nr.4, 2003, p.993-1008, p. 1001. 47
O. Sodré, Globalização e pluralismo, op. cit., p.33 48
Ibid., p. 996. 49
Ibid. p. 995-997. 50
Ibid., p. 996. 51
Ibid., p. 1003-1006. 52
Claudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op. cit., especialmente. p. 91-92. 53
Norberto C. Marucco, O analisando de hoje e o inconsciente (sobre o conceito de zonas psíquicas), Revista
de Psicanálise da SPPA, Volume X , nr.3, 2003, p. 453-473, p. 454.
9
“conteúdos psíquicos primitivos não elaborados” para a superfície, por
exemplo, para o campo social54.
J.Moreno menciona como característica da pós-modernidade a ausência
de um ideal de perfeição e de uma sociedade ideal. “Agora não existe senão o
indivíduo..., o indivíduo é o encarregado e o responsável de ser o que é...”.
Antes, a sociedade definiu o indivíduo, hoje cada um define a si mesmo 55. O.
Sodré fala de um “núcleo infantil” do homem pós-moderno, no qual a sua
fragilidade, carência e incompletude, dependência e insegurança aparecem
encobertas por relações de arrogância, poder e dominação do outro 56.
Encontram-se hoje egos fracos, invadidos pela cultura e aos quais falta a
maturidade. Predominam “impressões, aparências e disfarces”, há “fugacidade
dos relacionamentos e hipersexualização que busca apenas o prazer” 57.
Além de um enfoque novo e mais central do narcisismo, a pós-
modernidade impõe questionamentos novos a respeito da sexualidade. As
descobertas de S. Freud sobre a sexualidade, apresentadas em “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade”, continuam válidas. Entretanto, elas devem ser
completadas pelas influências culturais atuais. Outras influências vêm de
questões, tais como “identidade de gênero e as especificidades de
masculinidade e feminilidade, as neo-sexualidades, as diferentes formas de
entender as perversões, os estados sexuais da mente, as peculiaridades sexuais
de cada etapa do ciclo vital”. Especialmente complexa é hoje a questão da
homossexualidade, de casamentos homossexuais, de mulheres que têm filhos
de “produções independentes”58.
A partir dos anos de 1970, “é proibido proibir. Nesta época, a detecção
e a denúncia das formas insidiosas de controle social remanescentes sobre a
vida e sobre a sexualidade das pessoas passaram a ser tarefa de todos os dias”.
Há reivindicações de grupos antes difamados, por exemplo, de prostitutas e
homossexuais59. Entretanto, ao mesmo tempo há tendências de eliminar ou
corrigir o diferente, o estranho. Para S. Freud, “o homem é todo anomalia e,
estranhamente, é todo anomalia por ser um ser sexual”60. Todavia, a liberdade
sexual, na opinião de L.C. Menezes, pode chegar a ter, paradoxalmente, a
54
Jorge Ahumada, O inconsciente na pós-modernidade; as tensões epistêmicas, Revista de Psicanálise da
SPPA, Volume X, nr.3, 2003,p. 495-507, p. 504. 55
Ibid., p.75 56
Olga Sodré, Globalização e pluralismo, op. cit., p.16 57
Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op. cit., p. 90 58
Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op.cit., p. 89. 59
Luiz Carlos Menezes, Sexualidade e pós-modernidade, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume. XI, nr 1,
79-86, 2004, p. 80. 60
Ibid., p. 81.
10
mesma prática dos sistemas totalitários: “Temos de novo a raça pura de corpos
bem tratados, bem saudáveis e felizes”. A sexualidade e o desejo são
“perfeitamente adaptados para o funcionamento de uma economia de frenética
circulação de mercadorias. De novo, o sexual foi exorcizado, transmutado
num simulacro bem comportado, para que possa bem funcionar o projeto
social total”61.
A sexualidade “emerge da interação do corpo com a representação
vigente”62. De acordo com esta constatação, tanto o modelo da normalidade
sexual quanto o do ideal da família variam de acordo com a realidade social e
cultural. Na pós-modernidade, a união dos cônjuges não mais é permanente,
os papéis tradicionais entre homem e mulher mudaram. No lugar da família
colocaram-se os meios de comunicação, “desvinculam-se as regulamentações
de aliança e de sexualidade, cuja intromissão na família fora característica
central da modernidade”. Os padrões de se viver a sexualidade mudaram. Os
seus modelos vêm de fora, não mais da família63. Não é o público que coloniza
o privado, mas “o privado coloniza o espaço público (a rigor o substitui)” 64.
De acordo com T.Ayouch, a diferença anatômica dos sexos não
determina a masculinidade e feminilidade, pois há influências sociais,
culturais e políticas que devem ser consideradas65. Não se trata de negar a
diferença anatômica, mas esta não é “a primeira nem a principal ou a única
diferença que estrutura a psique”66. Em nossos dias “é muito diferente falar de
gênero e sexo. O sexo, homem ou mulher, como o já dado, não abarca o que a
rigor alguém poderia ser”. Não há mais divisão entre normal e anormal na
sexualidade. Há inúmeros anormais heterossexuais e normais homossexuais.
Hoje em dia, principalmente os adolescentes estão “atrás do encontro com
uma identidade sexual”, isto é, “a busca de uma identidade, de uma
identificação com algo, ser algo”67. A sexualidade está sem controle, o prazer
se desvinculou da sexualidade68. Da mesma forma, há “divórcio entre sexo e
família, entre sexo e amor”69. Na opinião de U. Galimberti, na pós-
modernidade ninguém ama o outro, “mas cada um ama aquilo que criou com a
61
Ibid., p. 85. 62
Júlio Moreno, Sexualidade e pós-modernidade, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume XI, n.1, 2004, 69-
78, p. 71. 63
Ibid., p 75. 64
Ibid., p. 74 65
Thamy Ayouch, A diferença entre sexos na teorização psicanalítica :aporias e desconstruções, Revista
Brasileira de Psicanálise, Volume 48,n.4, 58-70, 2014, p. 59 66
Ibid., p.70 67
Júlio Moreno,Sexualidade e pós-modernidade, op.cit., 75. 68
Ibid., p. 77. 69
Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op.cit., p. 91-92.
11
matéria do outro”, não havendo distinção entre o corpo do outro e o “meu”
desejo70. Segundo a opinião desse autor, nos pacientes pós-modernos
predomina o que S. Freud chama em alemão de Verleugnung e o que é
traduzido como denegação em que “não se deseja saber aquilo que se sabe”. 71.
Segundo L. Clocer Fiorini, é preciso que se pense em várias
homossexualidades, sendo atribuída cada uma delas “a um mecanismo em
ação”. Uma forma pode ser perversão, outra não, da mesma forma como na
heterossexualidade. Para a autora “pode haver registro da diferença em sentido
simbólico novo quando a escolha de objeto é homoerótica 72. O que se
considera normal, depende de“um âmbito cultural e discursivo
determinado”73.
A título de resumo pode ser citada a opinião de J. Moreno para quem a
psicanálise precisa considerar que na pós-modernidade, “a trama social, as
relações intersubjetivas, a estrutura de poder, as práticas de educação, a
família, isto é, todas as instituições variaram”. Por esta razão, “deveriam
reformular-se as teorias e práticas que, como a psicanálise, afetam o humano”.
As instituições, “aferradas ao estilo moderno”, na pós-modernidade são
“insuficientes para sustentar, dar conta de acontecimentos, que se
precipitam”74.
Grupos comprometidos com concepções morais ligadas à tradição, bem
como a Igreja Católica e outras igrejas cristãs, certamente terão dificuldades
numa consideração mais objetiva das influências culturais, sociais e políticas
sobre o psiquismo humano na atualidade. A esse respeito cabe considerar que
a psicanálise, como o diz o seu nome, analisa. Ela não julga as influências da
pós-modernidade como certas ou erradas, boas ou más, mas parte dos
fenômenos que observa e que influem no inconsciente – e consciente – dos
homens no tempo de hoje. A sua análise visa conquistar ou restabelecer a
autonomia pessoal das pessoas que a procuram. Em decisão livre, cada um usa
o seu modo de pensar para viver a sua consciência, isto é, buscando a sua
identidade convivendo com outros e com o mundo.
70
Umberto Galimberti, os vícios capitais e os novos vícios, op. cit., p. 66. 71
Ibid., p. 122. 72
Letícia Clocer Fiorini, Repensando o complexo de Édipo, Revista Brasileira de Psicanálise,Volume 48, n.4,
47-55, 2014, p.52 73
Ibid., p.53 74
Júlio Moreno, Sexualidade e pós-modernidade, op. cit. , 2004, p. 70.
12
3) A influência da pós-modernidade sobre a prática
psicanalítica
S. Freud enfrentou o inconsciente como algo capaz de ser revelado. De
acordo com a modernidade, ele acreditava no poder da ciência e da razão
humana. A psicanálise atual “tende a enfatizar cada vez mais a indeterminação
e a imprevisibilidade dos processos psíquicos”75. Hoje não mais se enfatiza o
acesso aos conteúdos do inconsciente, mas “cada vez mais se procuram
formas de tornar acessível ao paciente o conhecimento do modo como
organiza suas experiências emocionais, como percebe, sente, pensa, age”76. Na
atualidade, pensa-se o inconsciente “menos como algo a ser revelado e mais
como algo a ser utilizado”77.
Hoje, a prática psicanalítica não se desenvolve como investigação do
passado no intuito de definir as causas do distúrbio psíquico, como o tem feito
S. Freud no início. Antigamente se considerava uma análise bem sucedida
quando o analisando sabia todas as causas dos seus problemas. Tal saber, no
entanto, corria o risco de permanecer a vida toda na projeção da culpa em
cima de pais e outros responsáveis pela educação na infância. Além disso, o
mero saber das causas fomenta o narcisismo, podendo levar a um conceito de
cura que seria a adaptação àquilo que a sociedade considera normal. Pelo que
vimos, a pós-modernidade questiona esse tipo de cura. Hoje, aquilo que se
chama de cura surge na relação entre analisando e analista.
Tudo o que é preciso saber do passado está presente na relação entre
analisando e analista. A importância decisiva da transferência no processo
terapêutico se evidencia no fato que outras terapias que se baseiam na
elucidação do inconsciente, tais como a psicologia profunda de C.G.Jung, a
análise individual de A.Adler e outras, também podem alcançar sucesso. Isto
significa que não é, em primeiro lugar, o respectivo referencial teórico que
traz a cura, mas a relação do analisando com o seu analista. A grande questão
é se a transferência pára numa dependência ou se ela é usada para
conscientizar o analisando. O específico da pratica psicanalítica é “o
conhecimento inconsciente da mente num encontro intimo, que propicie o
desenvolvimento mental de paciente e analista”78, .
75
Viviane Mondrzak e outros, O inconsciente na perspectiva da complexidade e do caos: uma abordagem
inicial, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume.. X, nr.3, 559-570, 2003, p. 568. 76
Ibid., p. 567. 77
Ibid., p. 568. 78
Ibid., p. 138
13
Acima de tudo, a análise é uma relação intersubjetiva, em que duas
pessoas, duas subjetividades, criam uma realidade comum79.Apesar de
transferência por parte do analisando e contratransferência por parte do
analista, a psicanálise é um encontro de duas pessoas, com a finalidade de
conseguir a convivência do analisando com a realidade de outros, do mundo e
de si próprio. Deste modo, o objetivo é o de alcançar a identidade e autonomia
pessoal do analisando. Enquanto o analisando usa o analista para projetar em
cima dele os seus conteúdos inconscientes, o analista, por sua vez, usa, na
contratransferência, as reações despertadas nele pelas comunicações do
analisando. O analista “precisa registrar a contratransferência e transformar o
ruído, a dor psíquica, a irritação, a dificuldade de concentração em informação
para o seu pensamento clínico- informação que faça parte do background de
suas interpretações”80.
C. Rosas de Salas adverte que o analista precisa “reconhecer a sua
vulnerabilidade quando o aprendido é posto em questão”.A autora se refere à
experiência do limite do analista que a faz “postular que, além de uma ética do
desejo, seria necessário pensar em uma ética da criação de representações na
análise”81.O analista precisa “considerar e analisar suas próprias fronteiras de
analisabilidade, que localizado naquilo que está mais além do seu capital
representacional e que, ao ser tocado pela palavra ou pelos atos do analisando,
pode gerar nele reações nem sempre fáceis de prever”82. Aqui deve ser
lembrado o que C.L. Eizirik e N.C. Marucco mencionaram a respeito da
dificuldade de “simbolização e representação” por parte do paciente83 e da
dificuldade do analista diante do que é “além do representável84.
De acordo com a transferência e a contratransferência o analista
interpreta os conteúdos inconscientes. Em fobias e obsessões não basta a
interpretação, sendo necessário o enfrentamento do objeto fóbico e a
superação do horror ao objeto obsessivo85.Além da interpretação, S. Ferenczi
estimulou no analisando uma imaginação ativa de fantasias agressivas, para
79
Osvaldo Marba Ribeiro, Intersubjetividade ou inter-relação, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 49,
n.1. 207-220, p.208 80
Fernando Urribarri, Como ser um psicanalista contemporâneo? Da extensão do campo clínico à
interiorização do enguadre, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 49, n.1, 229-245, 2015, p.240 81
Cristina Rosas de Salas, A vulnerabilidade de no / do analista, Revista de Psicanálise da SPPA, volume
21,n.2, 401-412, agosto 2014, p. 402 82
Ibid., p. 407 83
Cláudio Laks Eizirik, Sexualidade e pós-modernidade, op. cit., p. 91-92 84
Norberto Marucco, O analisando de hoje e o inconsciente (sobe o conceito de zonas psíquicas), op. cit.,
p.454 85
Daniel Kupermann, A maldição egípcia e as modalidades de intervenção clínica em Freud, Ferenczi e
Winnicott, Revista Brasileira de Psicanálise,Volume 48, n.2, 47-58, 2014, p.48
14
ter acesso a estas86. A interpretação precisa suceder-se numa linguagem que o
analisando entende para que ela possa ser útil na busca da consciência. Esta, a
consciência, não é um saber teórico, mas o estado de estar ciente de si mesmo
estando com outros diferentes. É nessa consciência se realiza a conquista da
própria identidade. Pode-se entender como objetivo do processo psicanalítico
a conquista de identidade pessoal e a condição de se relacionar com a
diferença do outro.
No que tem a ver com o Complexo de Édipo, hoje a atuação dele deve
ser pressuposta. A pergunta, portanto, não é se ele existe, mas como e em que
objeto ele se manifesta. Hoje, a estrutura edípica se confunde com o
narcisismo. Este é anterior ao Complexo de Édipo, de modo que uma cultura
narcisista impulsiona a regressão a ele. S. Freud considerou o Complexo de
Édipo superado na medida em que se tem conseguido a integração na
sociedade e sua cultura87. Todavia, sendo a atual cultura da sociedade
determinada pelo narcisismo, a identificação com ele é uma regressão. E, se o
Complexo de Édipo se dissolve na identificação com a sociedade, ele adquire
características do narcisismo. O Complexo de Édipo ‘dissolvido”, portanto, é
regressão tanto no conceito de S.Freud, para quem o narcisismo é uma fase do
desenvolvimento quanto no conceito de H.Kohut para quem o narcisismo é a
estrutura do inconsciente. L.Glocer se expressa no sentido de dizer que a
solução do Complexo de Édipo depende da cultura88. Esta e a sociedade são as
“criptas psíquicas”89 onde se esconde, mesmo após a conclusão da psicanálise,
o Complexo de Édipo.
Segundo J. Lacan, O narcisismo representa o mundo e atua no lugar do
sujeito90.Para A. Green, em todos os níveis nele se fundem sujeito e mundo91,
não havendo, por isso, pessoas e indivíduos. Sempre o narcisismo abole a
diferença entre “um e outro”92. Mais uma vez se deve apontar que as
características da pós-modernidade, como foram descritas antes, coincidem
com o fenômeno do narcisismo. D. Levisky lembra que na pós-modernidade
há resistência conta a perda do passado, dizendo: “O homem contemporâneo
contém memórias, sistemas simbólicos e lingüísticos conflitando entre
86
Ibid., p.51 87
S. Freud, A dissolução do Complexo de Édipo, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976, Volume XIX, 213-224 88
Letícia Clocer Fiori, Repensando o Complexo de Édipo, op. cit., p. 55 89
A expressão consta em Jean-Claude Rolland, Permanência do objeto edipiano, Revista Brasileira de
Psicanálise, Volume 48, n.2, 161-179, 2014, p.170 90
Jacques Lacan, O mito individual do neurótico, Lisboa: Ed. Assírio e Alves, 2ª Edição, 1987, p. 63 91
André Green, Narcisismo de vida e narcisismo de morte, São Paulo: Escuta, 1988, p.201 92
André Green, Sobre a loucura pessoal, Rio de Janeiro: Imago Editora, 1988, p.137
15
passado e presente que se chocam entre si ou que não se comunicam93. Tal
dificuldade, na verdade, é óbvia em virtude da regressão edípica ao narcisismo
cultural da sociedade. A superação de perda e sentimentos de abandono
implicaria no distanciamento interno em relação à sociedade atual. Neste
sentido se entende o aumento de casos de depressão como defesa de uma
dependência narcisista em relação a outros e a sociedade que abandona os seus
cidadãos. Dito de outro modo, o aumento da depressão no tempo atual tem a
ver com a defesa da identificação narcisista com a sociedade. Negando a
realidade da vida e dos outros, salva-se o narcisismo da sociedade que, de
certo modo, funciona como ideal do útero materno.
Hoje, psicanalistas se preocupam com a influência das redes sociais na
técnica psicanalítica. Segundo Chr. Bollas, hoje o psicanalista precisa se
concentrar “mais nas percepções indiretas geradas pela revolução da
informação”94. O analisando quer soluções rápidas, do tipo de um produto que
elimine os problemas psíquicos95. O facebook favorece identificação e fusão
com outros. Não há insight, mas visão que leva o autor a falar de “visiofilia” e
“visiofílico”96. Enfrentamos o “sujeiticídio” que é a transformação do sujeito
em objeto. Neste contexto, o autor fala de uma ‘normopatia”97.
A Lemma pergunta como as redes sociais influem na técnica
psicanalítica. Como usar as novas formas de comunicação social nas nossas
interpretações? Uma das questões é como é a relação com o corpo na
realidade das redes digitais98. Para a autora, “o virtual é para o real o eu a
cópia é para o original”:uma reprodução que permite que os desejos
colonizem a realidade”. De certo modo, o próprio setting psicanalítico como a
transferência são realidades virtuais99.
P. Montagna lembra que a formação de psicanalistas na China se deu
por skype100. Além disso, pode haver análise por telefone e por Skype, desde
que os elementos da terapia psicanalítica estejam presentes101.Na mesma
93
David Leo Levisky, Reflexões acerca da violência, pós-modernidade e transformação nos processos de
subjetivação, Revista de Psicanálise da SPPA, Volume 21,n.2, 413-428, agosto 2014, p.419 94
Christopher Bollas, Psicanálise na dera da desorientação: do retorno do oprimido, Revista Brasileira de
Psicanálise, Volume 49, n.1, 47-66, 2015, p.53 95
Ibid., p.55. Ver também Plínio Montagna, Skypeanálise, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 49, n.1,
121-135,2015, p.137 96
Christopher Bollas, Psicanálise na era de desorientação: do retorno do oprimido, op. cit., p.57.58 97
Ibid., p. 59 98
Alessandra Lemma, A psicanálise em tempos de tecnocultura. Algumas reflexões sobre o destino do corpo
no espaço virtual, Revista Brasileira de Psicanálise,Vvolume 49, n.1, 67-84, 2015, p.69 99
Ibid., p.70 100
Plínio Montagna, Skypeanálise, op. cit., p. 125; ver também Clarice Kowacs, Prática Psicanalítica,
tecnologia e hipermodernidade, Revista de Psicanálise da SPPA,Volume 21, n.3, 629-643 101
Plínio Montagna, Skypeanálise, op. cit., p.126.133
16
direção vai A. B. Dorado de Lisondo que diz: Hoje há “o imediatismo na
busca de resultados, o desterro das utopias, as saídas anti-insight, com a
fascinação das soluções mágicas e dos atalhos lights, a preponderância
massiva e permanente da imagem, o desejo de nada desejar, a perda dos
ideais, a rejeição ao simbólico, a transgressão à lei”102. Todavia, mudanças no
setting psicanalítico não podem diluir o específico da pratica psicanalítica que
é “o conhecimento inconsciente da mente num encontro intimo, que propicie o
desenvolvimento mental de paciente e analista”103. A autora alerta que tais
terapias à distância podem ser feitas somente em circunstâncias especiais, pois
‘podem ser um obstáculo, pelas limitações que impõem, ao empobrecer e
desvirtuar a essência da psicanálise”104. A. Blaya Luz aponta nestes casos
como negativo”o prejuízo para as relações humanas”105.
As opiniões ouvidas a respeito de “psicanálises a distância” parecem
estranhas, suscitando dúvidas a respeito da autenticidade de tal psicanálise. Ao
meu ver, pode-se recorrer a tais práticas somente em casos de absoluta
exceção e emergência em que mais ajuda a experiência do analista do que uma
interpretação de conteúdos inconscientes.
Duas questões em discussão são o número de sessões semanais e o uso
do divã na sessão psicanalítica. M. E. Cimenti pergunta: “Será somente no
divã que se faz psicanálise?”106. Não há a menor dúvida que o divã tem a sua
importância na análise. A posição deitada do analisando, tendo o analista fora
do seu campo de visão, favorece a introspecção dele, a livre associação de
idéias e os insights. Todavia convém lembrar que S. Freud preferiu essa
posição porque tentou evitar ataques de transferência. Sendo assim, a
capacidade de lidar com tais atuações deve dar legitimidade à posição de um
estar sentado à frente do outro. Penso que essa posição de frente a frente exige
do analista a capacidade de ser visto pelo analisando. Isto tem a ver com o
narcisismo. Sendo este o inconsciente da cultura atual e pós-moderna, a
posição frente à frente parece até mais adequada. As transferências e
contratransferências narcisistas colocam no centro terapêutico a angústia da
perda e do abandono. É esta angústia que gera a fusão com o narcisismo
cultural da pós-modernidade.
102
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo, Psicanálise a distância, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 49,
n.1, 136-150, p.137 103
Ibid., p. 138 104
Ibid., p. 141 105
Anette Blaya Luz, Oi. Q horas mesmo ficou nossa sessão? TKS, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume
49, n.1, 165-175, p.174 106
Maria Elisabeth Cimenti, Intervenção e perplexidade, Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 48, n.2,
83-88, p. 87
17
A respeito do número das sessões semanais, B. Miodownik faz uma
diferença entre psicanálise e psicoterapia psicanalítica, tendo a última somente
uma sessão semanal. Observando a técnica psicanalítica bem como a
associação livre de idéias do analisando e a escuta do analista, uma sessão
semanal pode ser suficiente107. O argumento que a questão financeira também
influa no número de sessões semanais, parece-me relativo. Da mesma forma
não convence a alegação que haja dificuldades reais de horários e,
“principalmente, porque não tem uma representação psíquica que valorize o
número maior de sessões”108. Em minha opinião, uma sessão semanal
consegue estabelecer uma relação intersubjetiva da mesma forma como um
número maior de sessões. Transferência e contratransferência se manifestam
da mesma maneira como num número maior de sessões. Conservando a
essência da técnica psicanalítica, portanto, não se pode eliminar a
possibilidade de uma sessão semanal.
Outra questão é a importância do dinheiro no processo psicanalítico.
Será que é o valor do honorário que garante um sucesso mais seguro da
psicanálise? Esta pergunta se coloca dentro do contexto do narcisismo da
sociedade e do sistema capitalista e neoliberal da sua economia. De acordo
com esse sistema econômico, de fato, a quantia do honorário reflete a pertença
a determinada classe social. A pergunta surge se a técnica psicanalítica
somente funciona quando o preço a ser pagão é alto. A resposta é claramente
que não! O único efeito que vejo é uma defesa do narcisismo social.
Penso que cada analista tem o direito de estipular o honorário que lhe
convém. O preço reflete então a escolha do analista e as suas necessidades
pessoais. A honestidade exige que a quantia do honorário seja desvinculada do
correto processo analítico. Este funciona independentemente do preço
cobrado. De qualquer forma, as questões do honorário, do uso ou não uso do
divã e do número das sessões semanais têm a ver com a análise do narcisismo
cultural e social.
Como conclusão provisória desta reflexão sobre “A Psicanálise na atual
pós-modernidade” poder-se-ia afirmar que esta insiste na inclusão do
narcisismo cultural e social no processo psicanalítico. Sendo o narcisismo o
inconsciente da cultura e da sociedade atual, novos enfoques se impõem. A
análise da “sociedade em nós”, como J. Lacan chama o narcisismo, visa um
novo posicionamento diante da sociedade e sua cultura. Além disso, a pós-
modernidade traz de volta uma religiosidade que a psicanálise julgava
107
Bernard Miodownik, Em defesa de uma certa heterodoxia: sobre a freqüência de sessões em psicanálise,
Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 48, n.2, 19-32, 2014, p.24 108
Ibid., p.29
18
superada. Há necessidade de um novo esforço de entender a religião sob o
aspecto da sua realidade inconsciente. Em vez de ser “neurose obsessiva da
humanidade”, ela revela a sua inserção no narcisismo. Enfim, a pós-
modernidade põe a psicanálise, como teoria e prática, diante do desafio, de um
lado, de formar uma identidade e liberdade pessoal e, do outro lado, de
favorece uma relação interpessoal com outros diferentes, relação essa que
possa criar uma verdadeira consciência comunitária.