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A presença do invisível TT Catalão Real é tudo o que se toca ou também o que toca seu coração? Real é tudo o que se enxerga ou também o que se sente? Real é só o que acontece ou também o que se deseja, pensa e projeta para acontecer? A coisa tem em si o espírito da coisa. Objetos traduzem ideias. Representam intenções. Revelam processos que antecederam a materialidade. E se perpetuam quando transmitidos. E se reinventam quando criam fluxos. E se reconectam quando compartilhados. E se fortalecem quando são identificados, documentados e reconhecidos. E crescem quando viram política pública. (trechos do discurso A Presença do Invisível, de TT Catalão, proferido no encontro Iphan e avaliação Pontões de Cultura de Salvaguarda, na cidade de São Luís/MA, em maio de 2010). Os antecedentes do Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial no Brasil, revelam o quanto o processo de construção das políticas públicas de Estado sedimenta-se em pensamentos, atitudes, gestos e co-inspirações de inteligências até concretizarem-se. Com esse Decreto nascia o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e foi consolidada a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), criada em 1999. Foi um momento de culminância e celebração antecedido por inúmeros fatos e marcos institucionais provocados pela mobilização de grupos e indivíduos comprometidos com a extraordinária riqueza da diversidade cultural brasileira. Tal caminho percorrido, em ressonância com pensadores, artistas, políticos e gestores, foi mantido sob o foco do serviço público constituinte da cidadania e sempre inspirado pelo objeto central desse enredo: o pensar, o criar, o fazer e o viver do povo brasileiro. O Estado assumiu as tarefas do identificar, reconhecer, documentar e registrar saberes, celebrações, luga- res e formas de expressão vivenciadas pelos reais detentores desses modos de existir que precisam de meios para continuar. Os que nos sustentam quando perdemos o rumo, nos legitimam quando desviamos do prumo e a eles recorremos quando caímos na cilada de imitar o que não somos e precisamos lembrar

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A presença do invisível TT Catalão

Real é tudo o que se toca ou também o que toca seu coração? Real é tudo o que se enxerga ou também o que se sente? Real é só o que acontece ou também o que se deseja, pensa e projeta para acontecer? A coisa tem em si o espírito da coisa. Objetos traduzem ideias. Representam intenções. Revelam processos que antecederam a materialidade. E se perpetuam quando transmitidos. E se reinventam quando criam fluxos. E se reconectam quando compartilhados. E se fortalecem quando são identificados, documentados e reconhecidos. E crescem quando viram política pública. (trechos do discurso A Presença do Invisível, de TT Catalão, proferido no encontro Iphan e avaliação Pontões de Cultura de Salvaguarda, na cidade de São Luís/MA, em maio de 2010).

Os antecedentes do Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial no Brasil, revelam o quanto o processo de construção das políticas públicas de Estado sedimenta-se em pensamentos, atitudes, gestos e co-inspirações de inteligências até concretizarem-se.

Com esse Decreto nascia o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e foi consolidada a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), criada em 1999. Foi um momento de culminância e celebração antecedido por inúmeros fatos e marcos institucionais provocados pela mobilização de grupos e indivíduos comprometidos com a extraordinária riqueza da diversidade cultural brasileira.

Tal caminho percorrido, em ressonância com pensadores, artistas, políticos e gestores, foi mantido sob o foco do serviço público constituinte da cidadania e sempre inspirado pelo objeto central desse enredo: o pensar, o criar, o fazer e o viver do povo brasileiro.

O Estado assumiu as tarefas do identificar, reconhecer, documentar e registrar saberes, celebrações, luga-res e formas de expressão vivenciadas pelos reais detentores desses modos de existir que precisam de meios para continuar. Os que nos sustentam quando perdemos o rumo, nos legitimam quando desviamos do prumo e a eles recorremos quando caímos na cilada de imitar o que não somos e precisamos lembrar

do quanto ainda poderemos ser; os que nos provocam até assumirmos o que teimamos ocultar e nos rein-ventam como povo e nação pelo imaginário de suas narrativas simbólicas.

O papel central da contribuição de Mário de Andrade – sob as ousadias da Semana de 22 e fundamentado pela vivência de campo que resultou no livro O Turista Aprendiz, entre 1927 e 1943 – criou os fundamen-tos entregues, em 1936, pautando a ampliação do conceito de patrimônio cultural brasileiro, envolvendo outros bens além de monumentos e obras de arte. Essa construção encontra pronto acolhimento no trabalho desenvolvido por Rodrigo de Melo Franco de Andrade para criar, em janeiro de 1937, o então Serviço, hoje Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan).

Nas décadas de 1970 e 1980, a proposta-raiz de Mário de Andrade foi aprofundada nos mecanismos de Estado e serviu de base para Aloísio Magalhães criar o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) e a Fundação Pró-Memória. Projetos de documentação e “devolução” dos resultados das pesquisas aos grupos sociais na ideia de que “a comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio”. Considerando tecnologias e práticas começa a primeira rede de relações em que ferramentas, normas, termos de refe-rências, programas e metodologias iniciassem um diálogo sob a complexa relação entre tradição e a dinâ-mica dos novos processos contemporâneos.

Em 1988, a Constituição Federal, proclamava em seu Artigo 216: “Constituem patrimônio cultural brasi-leiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira".

Progressivamente, o Estado brasileiro assume estruturas, normas, acordos, convênios e bases nessa cons-trução coletiva de uma política pública onde os bens culturais de natureza imaterial assumam a centrali-dade, onde a "preservação do patrimônio seja abordada de maneira global, buscando valorizar as formas de produção simbólica e cognitiva“ como recomendou a histórica Carta de Fortaleza de 14 de novembro 1997.

Ao respeitar os “modos de criar, fazer e viver e as formas de expressão”, o Estado revela-se menos exclu-dente e alienado da nossa formação mestiça, singular e plural nutrido pelas matrizes motrizes e originá-rias do Brasil que se fortalecem ao dialogar com lugares, saberes, ofícios, inteligências, práticas, atitu-des, trocas, ritos e eventos.

Quando o ministro Gilberto Gil assume o Ministério da Cultura, esse conceito abrangente de conciliação entre a tradição da cultura popular e os mecanismos institucionais recebe impulso histórico com a cria-ção, em 2004, pelo Decreto nº 5040, do Departamento do Patrimônio Imaterial dentro da estrutura do Iphan e a agregação mais próxima ao sistema da unidade especial do Centro Nacional de Folclore e Cultu-ra Popular (CNFCP), histórica instituição que desempenha papel estruturante nas políticas do setor.

Hoje são 37 Bens Registrados, inúmeras consultas técnicas e pareceres sobre ações que possam colocar em risco práticas ou ofícios ligados aos bens registrados; desenvolvimento e implantação do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (2010) e quando o Iphan, através do Departamento de Patrimônio Imaterial, assume com o Ministério da Cultura discussões para aprofundar questões do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético.

São 15 anos de uma trajetória onde o poder da criação (original) faz-se criação de poder (institucional), sob constante movimento, em permanente interação, onde o respeito ao que nos antecedeu possa revi-talizar o nosso hoje: é quando o antes muda o agora; se a gente não deixar pra depois. TT Catalão – Diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial/IPHAN

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A presença do invisível TT Catalão

Real é tudo o que se toca ou também o que toca seu coração? Real é tudo o que se enxerga ou também o que se sente? Real é só o que acontece ou também o que se deseja, pensa e projeta para acontecer? A coisa tem em si o espírito da coisa. Objetos traduzem ideias. Representam intenções. Revelam processos que antecederam a materialidade. E se perpetuam quando transmitidos. E se reinventam quando criam fluxos. E se reconectam quando compartilhados. E se fortalecem quando são identificados, documentados e reconhecidos. E crescem quando viram política pública. (trechos do discurso A Presença do Invisível, de TT Catalão, proferido no encontro Iphan e avaliação Pontões de Cultura de Salvaguarda, na cidade de São Luís/MA, em maio de 2010).

Os antecedentes do Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial no Brasil, revelam o quanto o processo de construção das políticas públicas de Estado sedimenta-se em pensamentos, atitudes, gestos e co-inspirações de inteligências até concretizarem-se.

Com esse Decreto nascia o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e foi consolidada a metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), criada em 1999. Foi um momento de culminância e celebração antecedido por inúmeros fatos e marcos institucionais provocados pela mobilização de grupos e indivíduos comprometidos com a extraordinária riqueza da diversidade cultural brasileira.

Tal caminho percorrido, em ressonância com pensadores, artistas, políticos e gestores, foi mantido sob o foco do serviço público constituinte da cidadania e sempre inspirado pelo objeto central desse enredo: o pensar, o criar, o fazer e o viver do povo brasileiro.

O Estado assumiu as tarefas do identificar, reconhecer, documentar e registrar saberes, celebrações, luga-res e formas de expressão vivenciadas pelos reais detentores desses modos de existir que precisam de meios para continuar. Os que nos sustentam quando perdemos o rumo, nos legitimam quando desviamos do prumo e a eles recorremos quando caímos na cilada de imitar o que não somos e precisamos lembrar

do quanto ainda poderemos ser; os que nos provocam até assumirmos o que teimamos ocultar e nos rein-ventam como povo e nação pelo imaginário de suas narrativas simbólicas.

O papel central da contribuição de Mário de Andrade – sob as ousadias da Semana de 22 e fundamentado pela vivência de campo que resultou no livro O Turista Aprendiz, entre 1927 e 1943 – criou os fundamen-tos entregues, em 1936, pautando a ampliação do conceito de patrimônio cultural brasileiro, envolvendo outros bens além de monumentos e obras de arte. Essa construção encontra pronto acolhimento no trabalho desenvolvido por Rodrigo de Melo Franco de Andrade para criar, em janeiro de 1937, o então Serviço, hoje Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan).

Nas décadas de 1970 e 1980, a proposta-raiz de Mário de Andrade foi aprofundada nos mecanismos de Estado e serviu de base para Aloísio Magalhães criar o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) e a Fundação Pró-Memória. Projetos de documentação e “devolução” dos resultados das pesquisas aos grupos sociais na ideia de que “a comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio”. Considerando tecnologias e práticas começa a primeira rede de relações em que ferramentas, normas, termos de refe-rências, programas e metodologias iniciassem um diálogo sob a complexa relação entre tradição e a dinâ-mica dos novos processos contemporâneos.

Em 1988, a Constituição Federal, proclamava em seu Artigo 216: “Constituem patrimônio cultural brasi-leiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira".

Progressivamente, o Estado brasileiro assume estruturas, normas, acordos, convênios e bases nessa cons-trução coletiva de uma política pública onde os bens culturais de natureza imaterial assumam a centrali-dade, onde a "preservação do patrimônio seja abordada de maneira global, buscando valorizar as formas de produção simbólica e cognitiva“ como recomendou a histórica Carta de Fortaleza de 14 de novembro 1997.

Ao respeitar os “modos de criar, fazer e viver e as formas de expressão”, o Estado revela-se menos exclu-dente e alienado da nossa formação mestiça, singular e plural nutrido pelas matrizes motrizes e originá-rias do Brasil que se fortalecem ao dialogar com lugares, saberes, ofícios, inteligências, práticas, atitu-des, trocas, ritos e eventos.

Quando o ministro Gilberto Gil assume o Ministério da Cultura, esse conceito abrangente de conciliação entre a tradição da cultura popular e os mecanismos institucionais recebe impulso histórico com a cria-ção, em 2004, pelo Decreto nº 5040, do Departamento do Patrimônio Imaterial dentro da estrutura do Iphan e a agregação mais próxima ao sistema da unidade especial do Centro Nacional de Folclore e Cultu-ra Popular (CNFCP), histórica instituição que desempenha papel estruturante nas políticas do setor.

Hoje são 37 Bens Registrados, inúmeras consultas técnicas e pareceres sobre ações que possam colocar em risco práticas ou ofícios ligados aos bens registrados; desenvolvimento e implantação do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (2010) e quando o Iphan, através do Departamento de Patrimônio Imaterial, assume com o Ministério da Cultura discussões para aprofundar questões do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético.

São 15 anos de uma trajetória onde o poder da criação (original) faz-se criação de poder (institucional), sob constante movimento, em permanente interação, onde o respeito ao que nos antecedeu possa revi-talizar o nosso hoje: é quando o antes muda o agora; se a gente não deixar pra depois. TT Catalão – Diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial/IPHAN