A POROSIDADE POÉTICA DE RIOBALDO, O CERZIDORPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais...
Transcript of A POROSIDADE POÉTICA DE RIOBALDO, O CERZIDORPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais...
-
Bernardo Andrade Marçolla
A POROSIDADE POÉTICA DE RIOBALDO, O CERZIDOR:
RITMO, TRANSCENDÊNCIA E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa, elaborada sob a orientação da Profª. Drª. Márcia Marques de Morais.
Belo Horizonte
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
2006
-
FICHA CATALOGRÁFICA Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Marçolla, Bernardo Andrade M321p A porosidade poética de Riobaldo, o cerzidor: ritmo, transcendência e experiência estética em grande sertão, veredas/ Bernardo Andrade Marçolla. – Belo Horizonte, 2006. 328f., il. Orientadora: Profª. Drª Márcia Marques de Morais. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós Graduação em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa. Bibliografia 1. Literatura brasileira – Crítica e interpretação – Tese. 2. Poética.
3. Análise do discurso narrativo. I. Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas – Crítica e interpretação. II. Morais, Márcia Marques de. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós Graduação em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa. IV. Título.
CDD: B869.09 CDU: 869.0(81).09 Bibliotecária : Erica Fruk Guelfi – CRB 6/2068.
-
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Programa de Pós-graduação em Letras Tese intitulada “A porosidade poética de Riobaldo, o cerzidor: ritmo, transcendência e experiência estética em Grande sertão: veredas”, de autoria do doutorando Bernardo Andrade Marçolla, defendida publicamente e aprovada pela banca examinadora constituída pelos seguintes professores:
_________________________________________________________ Profª. Drª. Cleusa Rios Pinheiro Passos – USP
_________________________________________________________ Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques – UFMG
_________________________________________________________ Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart – PUC Minas
_________________________________________________________
Profª. Drª. Melânia Silva de Aguiar – PUC Minas
_________________________________________________________
Profª. Drª. Márcia Marques de Morais – Orientadora – PUC Minas
Belo Horizonte, 07 de dezembro de 2006.
_________________________________________________________ Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas
-
Às infinitas possibilidades de expressão,
alma de todos nós.
-
AGRADECIMENTOS
O ato de agradecer – e tudo mais na vida – pode se transformar em uma
formalidade ou pode significar a expressão verdadeira de uma intenção. Na esperança de
estar trilhando esse segundo caminho a maior parte do tempo, agradeço. Sou grato às forças
que nos inspiram e movimentam – e que não precisam ter nome. Agradeço às forças vivas da
natureza, sempre a me animar. Agradeço a João Guimarães Rosa, Riobaldo e Diadorim – nas
esferas extra-ordinárias nas quais se encontram neste momento. Agradeço a todas as pessoas
e eventos que, de forma direta ou indireta, contribuíram para a realização deste trabalho.
Aos meus familiares, amigos e colegas de trabalho, expresso minha gratidão por todo o
suporte e incentivo. Meu agradecimento mais especial à Dri, companheira de travessia,
interlocutora amorosa e paciente.
Academicamente também tenho bastante a agradecer. Sou muito grato à
orientação da professora Márcia Morais, em seu duplo movimento: o olhar próximo e
acurado que se junta ao acolhimento respeitoso da alteridade. Agradeço também à
professora Lúcia Helena Vilela, primeira a me acompanhar e incentivar, ainda quando este
trabalho buscava nascer como projeto. Agradeço aos professores que participaram de meu
exame de qualificação, Melânia Aguiar e Reinaldo Marques, que muito contribuíram para o
aperfeiçoamento desta pesquisa. Agradeço, ainda, aos professores Audemaro Goulart, Hugo
Mari, Lélia Duarte, Márcio Serelle, Maria Nazareth S. Fonseca e Suely de Paula e Silva Lobo –
pela rica oportunidade de convívio e aprendizado, em sua pluralidade de perspectivas. Meu
reconhecimento também aos funcionários da secretaria do Programa – em especial Berenice
e Vera –, por todo seu auxílio e disponibilidade. Finalmente, agradeço à PUC Minas, pelo
apoio institucional que tornou possível a construção desta tese.
-
“[...] Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o
senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá.
Ao que, por outra, ainda um exemplo lhe dou. [...]”
Riobaldo
(ROSA, 1978: 119)
-
RESUMO
A porosidade poética de Riobaldo, o cerzidor: ritmo, transcendência e experiência estética em Grande sertão: veredas
O presente estudo aborda Grande sertão: veredas a partir de uma perspectiva
multidimensional, compreendendo a obra através do entrelaçamento dinâmico de vários
níveis narrativos, tornado possível pela via da narração de um aprendizado poético. Tal
aprendizado, corporificado na trajetória de Riobaldo, implica a compreensão da arte como
um fluxo, movimento a ser apreendido através da vivência de três suportes fundamentais:
ritmo, transcendência e experiência estética. Tendo como base a interação que se dá entre
essas três dimensões da experiência, a operar na lógica da simultaneidade, temos as
expressões artísticas de Riobaldo, configuradas pela via de uma poética que se apresenta com
contornos bem específicos. Aqui nomeada como “porosidade poética”, essa pressuporia a
permeabilidade e o trânsito entre níveis ordinários e extra-ordinários de realidade, assim
como seria marcada por um afastamento do lugar tradicional atribuído ao artista. Assim
constituído, este conceito é então utilizado como chave de leitura para que se lance um novo
olhar sobre Grande sertão: veredas, em diálogo com dimensões presentes na própria poética
rosiana. Percebe-se, então, a pluralidade de níveis sob os quais a narrativa de Riobaldo pode
ser lida – de um modo simultâneo, dinâmico e poroso – o que, por sua vez, remete a uma
dimensão metapoética da obra literária.
PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa; Poética; Estética; Ritmo; Porosidade
-
ABSTRACT
The poetics porosity of Riobaldo, the “cerzidor”: rhythm, transcendence and aesthetic experience in “Grande sertão: veredas”
The present study analyses “Grande sertão: veredas” from a multidimensional perspective,
approaching the dynamic interweaving of the novel’s different narrative levels, allowing, by way of
the narrative, poetic learning to occur. Such learning, embodied in Riobaldo’s life path, demands
the understanding of art as a flow, as a movement to be apprehended through the experience with
three main pillars: rhythm, transcendence, and aesthetic experience. If we take as a basis the
interaction among these three dimensions operating the logic of simultaneity, we have Riobaldo’s
artistic expressions, shaped by a poetic path of well defined contours. Referred to in this paper as
“poetics porosity”, it presupposes the permeability and the transit across the ordinary and
extraordinary levels of reality, in the same way as if it were marked by the withdrawal from the
traditional place attributed to artist. Thus constructed, this concept is then used as the key for the
reader to launch a new glance, do a new reading of “Grande sertão: veredas”, by dialoguing with
the dimensions present in the very Rosean poetic composition. It is then that the reader realizes
that the multiplicity of levels in Riobaldo’s narrative can be read – in a simultaneous, dynamic and
porous way – which, in turn, lends the literary work a methapoetical dimension.
KEY-WORDS: Guimarães Rosa; Poetics; Aesthetics; Rhythm; Porosity
-
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
QUADROS
1 Perspectivas críticas diante da natureza multidimensional de GSV _______ 41
2 As subdivisões de GSV __________________________________________ 59
3 O fluxo rítmico da linguagem em GSV ______________________________ 72
4 O redemoinho de versos _________________________________________ 73
5 A relação entre a porosidade poética e seus três suportes _______________ 236
6 Um paralelo entre a Poética de Aristóteles e a porosidade poética ________ 261
FIGURAS
1 As curvas de ida e volta na dinâmica de GSV _________________________ 37
2 GSV e os níveis de realidade ______________________________________ 43
3 GSV e a periodicidade da onda sonora ______________________________ 76
4 A natureza multidimensional dos chakras ___________________________ 119
5 A imagem celta da alma transformada ______________________________ 120
6 Nehelania _____________________________________________________ 131
7 A representação do xamã nas cavernas Le Gabillou e Les Trois Frères ______ 149
8 Cernunnos ____________________________________________________ 150
9 O despertar da Kundalini ________________________________________ 155
10 Esferas e direções da porosidade poética ____________________________ 276
11 O movimento recursivo e a relativização de fronteiras _________________ 285
12 O duplo Uróboro ________________________________________________ 287
13 Os fluxos metapoéticos de GSV ___________________________________ 311
14 O vôo do beija-flor ______________________________________________ 315
-
SUMÁRIO
1 Presença de beija-flor? (uma breve introdução) ___________________ 11
2 O sertão multidimensional e o aprendizado poético ______________ 16
2.1 Do universo ordinário ao multiverso rosiano: pressupostos _____________ 17
2.2 Dimensões metafísicas em GSV ___________________________________ 21
2.3 Transitando pelo sertão multidimensional __________________________ 32
2.4 A arte como veículo _____________________________________________ 43
3 Ritmo _______________________________________________________ 51
3.1 O prelúdio ____________________________________________________ 56
3.2 Natureza e “sobrenatureza” do ritmo _______________________________ 67
3.2.1 Veredas de versos: o fluir da linguagem rítmica _______________________ 67
3.2.2 Nas bordas do som _____________________________________________ 75
3.2.3 O sertão mântrico ______________________________________________ 79
3.3 A interpretação do movimento ____________________________________ 86
3.3.1 Entre Deus e o demo ____________________________________________ 88
3.3.2 Riobaldo e os ritmos: entre o medo e a coragem ______________________ 96
3.3.2.1 A travessia do São Francisco ______________________________________ 96
3.3.2.2 O desespero quieto _____________________________________________ 103
3.3.2.3 A afinação do instrumento _______________________________________ 109
3.4 Possibilidades e impossibilidades de trânsito ________________________ 115
3.4.1 Hermógenes, a ausência de mobilidade _____________________________ 115
3.4.2 Os ritmos do pactário ___________________________________________ 122
4 Transcendência _______________________________________________ 132
4.1 A constituição do centauro _______________________________________ 133
4.2 As outras faces do demo _________________________________________ 147
4.2.1 Entre xamãs e celtas ____________________________________________ 149
-
4.2.2 Kundalini e daimon: o fogo e a inspiração ____________________________ 152
4.3 Diadorim, a vida da alma e aquela visão dos pássaros __________________ 161
5 Experiência estética __________________________________________ 176
5.1 Desconstruindo fronteiras _______________________________________ 177
5.2 Vivência estética e mudança do ser ________________________________ 184
5.2.1 Uma perspectiva iniciática _______________________________________ 188
5.2.2 O pacto ______________________________________________________ 193
5.3 Das plenipotências ao reconhecimento da alma _______________________ 199
5.3.1 Identidade, intersubjetividade e diferenciação _______________________ 200
5.3.2 O reconhecimento do humano: a abertura do coração __________________ 208
5.3.3 A visão de Diadorim como experiência estética _______________________ 224
6 A porosidade poética __________________________________________ 235
6.1 O desenvolvimento da arte do cerzidor ______________________________ 237
6.2 Os fluxos desviantes de uma “porosidade poética” _____________________ 255
6.2.1 Entre o autor e o narrador ________________________________________ 262
6.2.2 Realidade e ficção ______________________________________________ 267
6.2.3 A arte como redemoinho: movimento, permutação e porosidade _________ 275
6.2.4 Ecologia, identidade e literatura: transversalidades ____________________ 290
6.3 Desdobramentos: reflexões metapoéticas ___________________________ 298
6.3.1 Paradoxos da poética rosiana _____________________________________ 299
6.3.2 Entre Rosa e Riobaldo, e além _____________________________________ 307
7 Do infinito, movimento (uma brevíssima conclusão) _______________ 314
Referências __________________________________________________ 317
-
11
1 PRESENÇA DE BEIJA-FLOR?
(uma breve introdução)
Em 1947, Rosa responde a uma carta anteriormente enviada por seu tio Vicente
Guimarães e que trazia a sua crítica em relação a um “artigo” publicado pelo sobrinho –
Histórias de Fadas. Em sua resposta, espécie de depoimento, Rosa não apenas fala de si, fala
do artista. Para além dos elementos a que se refere nessa ocasião1 – ligados a uma
compreensão bem particular de humildade, independência, coragem, sinceridade e paciência
–, ressalto a associação por ele efetuada entre arte, natureza e religião, unidas por meio de
sua importância. Ainda que de forma enigmática, o autor também nos dá a indicação de que
essa perspectiva permearia o texto que era então objeto de sua correspondência com o tio.
[…] segundo concebo, arte é coisa seríssima, tão séria quanto a natureza e a religião. Aliás, filosoficamente, essa é uma das idéias contidas, de modo discreto e difuso, nas “Histórias de Fadas”. (ROSA apud GUIMARÃES, 1972: 137)
1 Em seu estudo, reconhecendo a importância de certos elementos ali presentes, Marcelo Marinho (2001) já faz referência a essa correspondência.
-
12
Diante da remissão a Histórias de Fadas, imagino ser pertinente voltar a esse
texto com o intuito de sondar o modo “discreto e difuso” pelo qual a referida associação
permeia suas páginas.
Publicado originalmente no Correio da Manhã em 20 de abril de 1947, o texto a
que Rosa se refere como uma “crônica-fantasia” foi reproduzido no livro de autoria de seu tio
Vicente Guimarães (1972: 140-151) e, em uma versão revisada e encurtada pelo autor, veio a
ser novamente publicado em Ave, palavra (ROSA, 2001a: 34-41).
A primeira versão, tal como publicada originalmente em 1947, discorre
longamente sobre várias possibilidades em que animais poderiam ser transportados pelos
aviões2. A princípio, nenhuma alusão explícita à arte. Entretanto, segundo o narrador dessa
crônica-fantasia, após este pot-pourri, vem um caso só, único no gênero, que realmente o
motivou a escrever. Trata-se do relato de como dois dinamarqueses, encantados com a beleza
dos beija-flores brasileiros, resolvem levar para o jardim zoológico de Copenhague quinze
desses pássaros.
Eram quinze, num só gaiolão misturados, como florida mensagem do sertão. Meu amigo Jensen só sabe informar que eram de qualidades diversas, alguns grandes, da variedade rabo de andorinha (sic), outros minúsculos, do tamanho de besouros, mais ou menos. – E as côres, Sr. Jensen? – “As côres variavam, verde e azul predominando. Também, umas mais alegres... Mas, principalmente, côres de metal...” Sabia que não era fácil. Êles têm de tudo: limão, romã e brinjela; bordeaux, absinto e groselha; malaquita, atacamita, azurita; e mais todo o colorido universo, e tal. Depois, mudam com a luz, bruxos prêtos, uns sacis de espertos, vertiginosos, elétricos, com valôres instantâneos. Chegam de repente, não se sabe de onde, se enflecham para uma flor, e pulam no ar, esfuziantes, que não há olhos que os firam. Riscam retas quebradas, bruscas, e são capazes mesmo de voar para trás. Na minha terra, vinham do mato, e eram realeza: môsca azul, arco-íris, papel de bombom, confetti, bôlha de sabão ao sol ou bola de árvore de Natal. Mas só entravam pelas janelas, em minha casa, de manhã cedo, uns pequeninos, verdes, que davam sorte. Em Itaguara, vi maiores,
2 O primeiro episódio narrado é sobre uma vaca, que já traz a alusão explícita às relações entre religião e filosofia. A esse episódio, seguem-se vários outros, envolvendo a alusão a sapos, periquitos, patos, gatos (e carrapatos), macaquinhos (e piolhos), peixes e cães – culminando com o episódio que narra o encontro de um “gâmbia” que acidentalmente havia entrado em um avião que rumava da África em direção ao Brasil e que, com ele, trazia a epidemia de malária.
-
13
inclusive uma flor-de-maracujá, roxo e verde, que se apagava em corropio, num frufru imenso de ventilador. Mas os da Colômbia são tão sortidos, e tão diversos, tantos, que acho que lá os inventaram e terão por lá a fábrica deles. [...] E – antes que me esqueça – que comiam? Nada. Bebiam. Bebiam água com açúcar, posta em tubo de vidro com a extremidade inferior dobrada e recurva: uma proveta fina, em forma de J, prêsa à gradilha ou pendurada do teto gaiola. Porque eles não pousam, para as refeições: ficam-se liberando, às ruflazinhas, no ar, e agulhando no tubo, com seus brinquedos compridões. Pousam, isto sim, para repousar, em pequenos poleiros macios. São divinos. (ROSA apud GUIMARÃES, 1972: 146-147 – grifos meus)3
Dois morrem brigando, um foge e os outros doze são embarcados em gaiolas
separadas. A narrativa aborda o modo como é violento tal deslocamento para os pássaros –
gerando a necessidade de que as pessoas se adaptem às condições propícias à vida dos beija-flores.
O avião e os homens, normalmente gelados, tiveram que ser aquecidos. Onze pássaros
chegam vivos ao seu destino e lá são festejados, encerrando o que o narrador nomeia como a
“Saga dos Beija-Flores” (ROSA apud GUIMARÃES, 1972: 151).
A segunda versão do texto (ROSA, 2001a), revista e encurtada por Rosa, é bem
diferente: além de descartar muitos elementos presentes na versão anterior, modifica
também a ordem de apresentação daquilo que permanece4. Não há todo o pot-pourri de
viagens de animais, há somente a presença dos beija-flores e do “gâmbia”. Minha impressão
é que as modificações efetuadas nessa segunda versão talvez tenham o mérito de colocar em
evidência as dimensões mais fundamentais de Histórias de fadas.
Nessa versão revisada, o que temos, a rigor, é a presença de um grande contraste.
Inicia-se já com o relato das delicadas estratégias para se preservar a vida do beija-flor em
trânsito e termina-se com o relato da descoberta acidental de um “gâmbia” e da malária daí
advinda. Ambas as situações narram não apenas a possibilidade de trânsito, mas a própria
3 Optei por reproduzir o texto tal como publicado originalmente no Correio da Manhã, em 1947 – o que explica a sua peculiar ortografia. 4 Há também outras minúcias, nas quais não pretendo adentrar.
-
14
natureza daquilo que é transportado e os efeitos resultantes dessa transposição. Há
possibilidades: entre o deslumbramento e a doença.
•
Acredito que a descrição que Rosa faz dos beija-flores em trânsito seja uma
imagem da própria inspiração artística. Bela, frágil – e que demanda trabalho. Sua vida e sua
cor só podem ser manuseadas se pudermos nos adaptar à sua leveza, calor e energia. Seu
alimento não é sólido; bebem do néctar que se aloja nos canais das flores – e dos homens.
Digo dos homens pelo fato de que Rosa descreve um tubo fino de vidro que se curva, em
forma de “J” – o que remete a “João”, João Rosa. Homem e flor.
Igualmente importante é o fato dessa possibilidade de trânsito, corporificada na
“saga dos beija-flores”, ser nomeada como uma história de fadas – o que alude a seu caráter
“mágico” ou extraordinário. Ao mesmo tempo, esse texto já antecipa a presença de um sertão
– do qual os pássaros surgem como “florida mensagem”. Representam, ainda, “todo o
colorido universo”; trazem consigo a capacidade de mudar com a luz – cujos “valores
instantâneos” parecem remeter à própria natureza da experiência estética. Fluxos rítmicos,
os beija-flores são capazes de riscar retas no ar; mas são igualmente capazes de voar “do meio
p’ra trás”. São divinos. Seriam também “diabólicos”?
•
Cinqüenta anos atrás, em 1956, Rosa publicou um outro texto no qual os beija-
flores também fazem suas aparições – efêmeras, como de hábito. Mas o sertão cresceu; agora
-
15
é Grande Sertão: Veredas5. E, do mesmo modo como surgem neste outro cenário, imagino que
lá também tenham lugar os processos envolvidos com um ritmo, o cultivo do
relacionamento com o transcendente e a vivência estética – instantânea e contundente – que
se aproxima do “zúo de um minuto mito: briga de beija-flor” (ROSA, 1978: 260).
Apresentando-se nos interstícios e pelos hibridismos, somos remetidos a um tipo de
movimento que transforma homem e mundo:
[...] Com o que peguei, aos poucos, o costume de pular, num átimo, da rede, feito fosse para evitar aquela inteligencinha benfazeja, que parecia se me dizer era mesmo do meio do meu coração. Num arranco, desfazia aquilo – faísca de folga, presença de beija-flor, que vai começa e já se apaga – e daí já estava inteirado no comum, nas meias-alegrias: a meia-bondade misturada com maldade a meio. [...] (ROSA, 1978: 371)
Se Rosa, desde cedo, se ocupa da compreensão da expressão poética, creio que o
mesmo seja realizado por Riobaldo: atravessar o sertão multidimensional implica produzir-
se como artista. E não creio que seu caminho conduza a qualquer arte; mas àquela permeável
à presença dos beija-flores, perpassante: porosidade poética.
5 Com o intuito de facilitar a leitura, no decorrer deste trabalho muitas vezes utilizarei a sigla “GSV” ao me referir a Grande Sertão: Veredas. Ainda no que tange à informação do leitor, outro dado importante é que a edição da obra tomada como referência no presente estudo vem a ser a 12ª, publicada em 1978 pela editora José Olympio. Devo também salientar que todas as citações de trechos da obra transcritos na presente tese seguem a grafia original daquela edição. Tal escolha, delicada, por vezes contraria a reforma ortográfica pelo que passou nossa língua, mas tem o mérito de preservar a riqueza e as minúcias de uma linguagem onde nada – nem mesmo uma vírgula ou acento – parece ser desprovido de importância.
-
16
2 O SERTÃO MULTIDIMENSIONAL E O APRENDIZADO POÉTICO
Grande Sertão: Veredas tem sido objeto de inúmeros estudos críticos, plurais em
termos de suas abordagens, referenciais dialógicos, focos de visão. Assim – pensando já no
foco delimitado pela presente pesquisa – temos estudos que se aprofundam nos mecanismos
e nos meandros que a linguagem de Rosa desenha em GSV, temos aqueles que colocam em
evidência as dimensões metafísicas que fazem sua aparição no sertão de Riobaldo, temos
também trabalhos importantes que apontam a coexistência de distintas dimensões do real
presentes na obra, assim como pesquisas que focalizam os aspectos metalingüísticos
envolvidos na narrativa. O que talvez não tenhamos é um estudo que, tendo como eixo a
compreensão da narrativa de Riobaldo como um aprendizado poético, busque caracterizar a
poética6 que daí resulta pela via da descrição sistematizada de seus elementos fundamentais.
E mais: que compreenda essa possibilidade poética como veículo de trânsito entre as
6 Já adianto que esse conceito, no decorrer deste estudo, será objeto do aprofundamento que merece.
-
17
incontáveis dimensões do real. Assim, ao invés de negar ou contrapor-se a estudos prévios,
esta pesquisa pretende percorrer uma linha de compreensão que facilite a articulação de
algumas perspectivas que antes foram desenvolvidas de forma isolada.
O objetivo deste capítulo, de natureza introdutória, vincula-se, portanto, à
fundação de bases que possibilitem e justifiquem essa trajetória.
2.1 DO UNIVERSO ORDINÁRIO AO MULTIVERSO ROSIANO: PRESSUPOSTOS
Antes de proceder a uma leitura dos estudos críticos acerca de GSV, creio ser
fundamental começar a explicitar os pressupostos que fundamentam este estudo. Não
considero esta uma tarefa fácil – nem para mim, nem para o leitor – já que adoto um
posicionamento que não costuma ser o mais aceito no contexto do ocidente moderno. Este,
marcado, via de regra, pelo positivismo e pelo cientificismo, faz que se adote uma tendência
a desqualificar ou a se tomar imediatamente como fantasiosas todas as outras interpretações
que se efetuam acerca da realidade e que não se pautem pelos seus critérios.
Por outro lado, em termos acadêmicos, muitos estudiosos (e aí me incluo) se têm
dedicado a essa discussão e, de uma maneira geral, apontam para uma grande mudança no
modo não apenas de se conceber a ciência, mas também no modo de construí-la e nas
concepções acerca de seus objetos.
Fundamentalmente, aponta-se uma grande crise do modelo mais tradicional da
ciência ocidental, detentora de uma racionalidade presente desde a Revolução Científica do
séc. XVI, fundada a partir de duas distinções básicas (SANTOS, 1996): (a) conhecimento
científico x conhecimento do senso comum e (b) natureza x pessoa humana. Vários autores
-
18
apontam evidências construídas pela própria ciência de que as concepções sob as quais essas
distinções se embasam estão equivocadas. Assim, as descobertas na física, na química, na
biologia e na matemática vêm-nos mostrar que o universo em que vivemos é bastante
distinto daquele suposto pelo modelo da ciência moderna7 – e que não mais faria sentido
excluir do rol das ciências os estudos humanísticos (dentre os quais se inclui a literatura) e a
própria experiência subjetiva do homem na sua relação com o mundo.
Assim, ao lado dessa crise, surgem também novas possibilidades quanto ao modo
de se conceber a ciência. Boaventura de Sousa Santos (1996) aponta as direções daquilo que
se poderia configurar como “paradigma emergente”, dentre as quais destaco como as mais
importantes no contexto do presente estudo: (a) todo conhecimento é local e total – o que
significa dizer que se, na ciência moderna, o rigor do conhecimento incide na restrição do
objeto, fragmentando o real, no “paradigma emergente”, o conhecimento é total, mas
também local; (b) todo conhecimento é autoconhecimento – o caráter autobiográfico e auto-
referenciável da ciência é plenamente assumido assim como nossas trajetórias pessoais,
juízos e crenças são a prova íntima do nosso conhecimento; (c) todo conhecimento científico
visa a constituir-se em senso comum – nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma,
racional, só a configuração de todas elas, quando então pode traduzir-se em sabedoria de
vida.
Hilton Japiassú (1996), por sua vez, aborda a especificidade da ciência moderna:
fundada na busca da racionalidade, consiste em uma técnica voltada para a dominação e
manipulação dos fenômenos. Essa busca, entretanto, transformou-se em uma ênfase no
7 Santos (1996) aponta algumas destas evidências: (a) Einstein nos mostrou que matéria e energia compartilham uma mesma natureza, ainda que vibrando em intensidades diferentes; (b) A mecânica quântica (no campo da microfísica) percebe que é impossível medir ou observar um objeto sem nele interferir, de forma que nada conhecemos do real senão a nossa intervenção nele; (c) O rigor da matemática é questionado - é possível formular proposições indecidíveis, que não se podem demonstrar ou refutar (Teorema da Incompletude); (d) A Teoria das Estruturas Dissipativas (Prigogine) traz uma noção de matéria incompatível com a física clássica, mudando nossa concepção acerca da matéria.
-
19
racionalismo, uma tentativa de associação entre “racional” e “realidade”, conduzindo-nos a
uma visão puramente mecanicista do homem e do mundo, menosprezando as intuições
espontâneas e substituindo o “mistério do mundo” por um sentimento determinista. O
homem contemporâneo fica privado do contato com o “Ser”, impedido de fundar as bases de
um sistema de valores. Triunfante e onipresente – segundo Japiassú – a ciência
contemporânea cada vez monopoliza tudo o que diz respeito ao verdadeiro sobre o real e
desqualifica (ou simplesmente ignora), como suspeitos de ilusão e de mistificação, todos os
saberes míticos, místicos, religiosos ou metafísicos. Tudo se passa como se só existisse
verdade “científica”. Em suma, há uma substituição dos antigos dogmas religiosos (pré-
modernos) pelos dogmas da ciência.
Entretanto, assim como Santos, Japiassú também nos fala da emergência de uma
“nova ciência”, que não defenderia uma razão fechada, nem uma racionalidade científica
auto-suficiente, mas a abertura para as demais formas de saber. Propõe-se uma nova aliança
entre ciência e consciência, onde se condena a separação radical entre espírito e matéria. Os
novos modelos científicos nos levam a repensar a unidade do mundo e do homem, onde “[...]
o que se busca é restaurar o diálogo entre as explicações racionais e os ensinamentos das
tradições sobre os aspectos ocultos da realidade do universo” (JAPIASSÚ, 1996: 12). Nessa
revolução intelectual, o centro do debate reside no sentido novo que se procura dar às velhas
dualidades corpo-espírito, alma-matéria – trata-se de definir um novo campo onde ciência e
imaginário não se excluam8. Algo que, diga-se de passagem, está no cerne de toda a obra
rosiana.
8 Uma ressalva importante em todo esse processo é que Japiassú enfatiza a importância de se adotar a lógica do diálogo, evitando-se qualquer tentação “dogmática”. O grande risco é o de se transformarem sabedorias tradicionais em dogmas, e talvez resida aí o grande mérito do método científico: precaver-nos contra todo o risco de dogmatismo.
-
20
Creio que o grande desafio diante da perspectiva aqui apresentada – trazida à
tona pelas contribuições de Santos e Japiassú – não é compreender, racionalmente, o
sentido desse posicionamento, tampouco os seus pressupostos, mas aceitá-lo,
subjetivamente, não como verdade, mas como possibilidade. Só assim este estudo poderá ser
lido.
•
Inspirado por tais reflexões e, envolvido ainda com a constituição de uma base
que possibilite a compreensão desta pesquisa, gostaria de apontar dois diálogos importantes
a serem efetuados com a crítica rosiana.
A primeira interlocução se volta para aqueles estudos que, de modos distintos,
consideram, em GSV, a existência de mais de uma dimensão. Busco focalizar,
principalmente, a natureza de tais dimensões e, ainda, a forma de abordagem dos
relacionamentos entre os diferentes níveis apontados. Já adianto que alguns estudos
“clássicos” consideram a natureza multidimensional de GSV, o que os aproxima do objeto
desta tese. Ao mesmo tempo, como se verá, podem-se perceber também alguns
distanciamentos, já que, na maior parte das vezes, esses estudos não avançam nas formas de
relacionamento entre as dimensões apontadas – o que para mim é central no contexto deste
estudo, constituindo o núcleo de seu enfoque.
Outro elemento fundamental a ser considerado em uma leitura
multidimensional de GSV – o que constitui outro foco de interlocução – é o modo como as
dimensões metafísicas são consideradas nesse contexto. O extra-ordinário é considerado em
relacionamento com as dimensões ordinárias do real ou se procede a uma ruptura entre essas
esferas? Iniciemos por essa via.
-
21
2.2 DIMENSÕES METAFÍSICAS EM GSV
Penso que seria oportuno iniciar uma reflexão acerca das dimensões metafísicas
em GSV a partir do posicionamento do próprio Rosa. Para tanto, busco valer-me da
entrevista concedida a Günter Lorenz9 e publicada na coletânea de Eduardo Coutinho (1983)
com o intuito de buscar a compreensão de Rosa acerca da metafísica10. Naquela ocasião,
Rosa, além de ser questionado especificamente a esse respeito, também faz referências à
metafísica em vários momentos, principalmente ao discorrer acerca da linguagem.
Um primeiro ponto que poderia ser ressaltado é a forma como, para Rosa, a
metafísica se relaciona a algumas dimensões centrais: (a) o acesso a uma outra dimensão de
realidade, ligada à sabedoria, à eternidade, à profundidade; (b) a linguagem como via de
acesso a essa dimensão. Tomemos a imagem, por ele construída, do crocodilo:
O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade. A estas alturas, você já deve estar me considerando um charlatão ou um louco. (ROSA apud LORENZ, 1983: 72)
9 Entrevista concedida por Guimarães Rosa a Günter Lorenz, durante a realização do Congresso de Escritores Latino-americanos, em Gênova, no ano de 1965. 10 Kathrin Rosenfield, ao comentar o cunho universal e metafísico da obra rosiana, chama a atenção para o fato de que “a veneração aparentemente convencional dos clássicos não exclui uma concepção moderna e complexa da metafísica” (2001: 87). Tal complexidade se faria revestir por uma “fingida” simplicidade. Benedito Nunes (1998: 259) mostra a forma como, em Rosa, o discurso poético está ligado à elevação metafísica, sendo impregnado de tradições heterodoxas como o hermetismo, concepções gnóstico-cabalísticas e alquímicas (que podem ser englobadas no ocultismo) que, por sua vez, estariam misturadas em GSV com referências a livros taoístas, bramânicos, induístas e budistas (que estariam relacionadas à teosofia, espectro simbólico inclusivo de todas as religiões).
-
22
Partindo, então, dessa compreensão rosiana da metafísica como o acesso à esfera
da eternidade e da sabedoria, propiciado pela via da linguagem, podemos delinear mais
algumas características que parecem emergir como correlatas a essa concepção. Destaco,
assim, o modo como Rosa concebe como estreito o relacionamento entre religião11,
metafísica, poética e linguagem:
[…] Eu não sei bem o que sou. Posso bem ser cristão de confissão sertanista, mas também pode ser que eu seja taoísta à maneira de Cordisburgo, ou um pagão crente à la Tolstoi. No fundo, tudo isto não é importante. Como homem inteligente, às vezes pode-se sentir necessidade de se tornar um beato ou um fundador de religiões. A religião é um assunto poético e a poesia se origina da modificação de realidades lingüísticas. Desta forma, pode acontecer que uma pessoa forme palavras e na realidade esteja criando religiões. Cristo é um bom exemplo disso. [...] é importante antes de tudo reconhecer que a sabedoria é algo distinto da lógica. A sabedoria é saber e prudência que nascem do coração. Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais pois isso diminuiria sua humanidade. (ROSA apud LORENZ, 1983: 92 – grifos meus)
Ressalto, também, a associação que o autor faz entre todo esse processo e o
irracional. Sua metafísica, portanto, não parece ligar-se ao pensamento lógico12, mas a um
saber apenas alcançável por outra via:
Inteligência, prudência, tal como eu as interpreto, cultura elevada, tudo isso está bem, pois o escritor atual deve possuir todas estas qualidades. Mas não deve se transformar em um computador. Não deve abandonar as zonas do irracional, ou então deixa de produzir literatura e só produz papel. (ROSA apud LORENZ, 1983: 93)
Longe de esgotar o que significaria para Rosa o “metafísico” – até porque isso
seria impossível a partir das suas armadilhas de linguagem – creio podermos considerar
11 A rigor, acredito que seria mais adequado fazer referência à “religiosidade” (que remete a uma dimensão da experiência humana do transcendente) ao invés da referência à “religião” (que pode remeter a um aspecto já institucionalizado, e eventualmente reducionista, da dimensão anterior) –, mas optei pela segunda via por ser este o caminho utilizado por Rosa na entrevista citada. 12 Consuelo Albergaria (1977: 17) refere-se ao “enfoque orientalizante” que Rosa dá ao termo metafísica, diferenciando-o dos postulados de natureza aristotélico-tomista.
-
23
algumas dimensões como centrais. Resumidamente, teríamos: a valorização de uma
dimensão metafísica, ligada à esfera da eternidade e da sabedoria, que teria a linguagem
como veículo de aproximação e que se relacionaria ao religioso e ao irracional. Longe de
considerá-lo um “charlatão” ou “louco”, tomarei essas referências na construção deste
estudo.
•
Visando a começar a estabelecer uma revisão bibliográfica da fortuna crítica
rosiana, busquei identificar estudos dedicados à compreensão de dimensões metafísicas13 de
GSV, entrando em contato, assim, com autores que trabalham sob as mais diversas
perspectivas e no diálogo com distintas tradições. Dada a sua diversidade, eu os dividiria em
dois grandes grupos14, tomando como critério a forma como abordam a própria noção de
metafísica15: (a) um primeiro grupo que focaliza a metafísica do ponto de vista da filosofia
ocidental, compreendendo-a como possibilidade de acesso a um saber, que inclui e privilegia
a lógica e racionalidade – ligada, sobretudo, ao pensamento organizado, especulação mental
13 De um ponto de vista filosófico, tomando as contribuições de José Ferrater Mora (1994b), pode-se ver que a noção de “metafísica” se revela bastante ampla quando se busca compreendê-la de um ponto de vista filosófico. O termo "metafísica" foi cunhado por Andrónico de Rodas, ainda no século I a.C., em referência à série de livros de Aristóteles, ordenados pelas letras do alfabeto grego, que concerniam ao que o próprio Aristóteles chamou de “filosofia primeira”, “teologia” ou “sabedoria”. Uma vez que esses livros, a partir de uma questão de ordem de classificação e publicação, situavam-se depois dos livros da “Física”, foram chamados “os que estão detrás da física” – ou, mais exatamente, “as coisas que estão detrás das coisas físicas” (MORA, 1994b: 2378). Há, entretanto, controvérsias em relação a essa origem. Trata-se, de todo modo, de um saber que, em linhas gerais, transcende o saber físico-natural, ligado àquilo que escapa à apreensão dos sentidos. É também importante ressaltar que o conceito de metafísica pode dar origem a perspectivas plurais, muitas vezes contraditórias e polêmicas. 14 Creio que ambas as perspectivas trazem questões que devem ser discutidas, o que procurarei fazer – ainda que de forma breve – a seguir. Mas já posso apontar que a presente pesquisa se localiza mais no segundo grupo, motivo pelo qual esse tipo de estudos foi priorizado quando do levantamento de uma literatura crítica acerca da obra rosiana. 15 Willi Bolle (1973), em sua leitura acerca das tendências que regem a crítica rosiana, refere-se de modo bastante desfavorável à abordagem dessa “temática metafísica”. Em primeiro lugar, o estudioso critica a falta de clareza diante dessa temática, afeita às caracterizações mais heterogêneas. Em segundo lugar – e essa crítica se estende ao próprio Rosa – questiona o fato de que tal temática é concebida como um valor em si – já que há uma tendência a se tratar da universalidade às custas de uma ligação com o regionalismo concreto.
-
24
e reflexão; (b) um segundo grupo que associa a metafísica a sistemas religiosos, esotéricos ou
tradições místicas, mais ligados a uma perspectiva oriental, onde o “irracional”16 pode ser
considerado como uma de suas dimensões centrais.
Creio ser importante, antes de mais nada, discorrer acerca dos questionamentos
que, para mim, emergem diante do contato com as “abordagens metafísicas” da obra rosiana.
Em primeiro lugar, coloco em questão a abordagem dos trabalhos que tomam a questão
metafísica segundo um ponto de vista que privilegia demasiadamente os aspectos
orientalizantes do universo rosiano, dificultando o acesso do leitor a obra que corre o risco
de se tornar extremamente “hermética”. Tal procedimento seguiria de forma contrária ao
posicionamento rosiano em relação à crítica, que seria o de promover o acesso desse leitor à
obra:
A crítica literária, que deveria ser uma parte da literatura, só tem razão de ser quando aspira a complementar, a preencher, em suma a permitir o acesso à obra. (ROSA apud LORENZ, 1983: 75)
Meu questionamento não se refere ao fato de que, nesses casos, sejam
enfatizadas as dimensões mais “orientais” da metafísica rosiana, mas que as construções em
torno da obra – e, conseqüentemente, o acesso à mesma – fiquem restritas a um pequeno
grupo que esteja imerso nesses sistemas de referência.
Esse tipo de estudo, traz, ainda, um outro grande risco: o de fomentar
posicionamentos preconceituosos contra aproximações entre a obra e dimensões metafísicas
(compreendidas do ponto de vista “místico”) – justamente por causa das conexões mais
16 O “irracional” aqui é colocado entre aspas já que, a rigor, vincula-se não à irracionalidade propriamente dita, mas a outras formas de racionalidade, distintas daquela postulada pelos discursos de referência do ocidente moderno. No contexto de tais discursos de referência, tudo aquilo que não se encaixe no seu modelo de racionalidade é considerado como “irracional” – o que remete às discussões efetuadas por Japiassú e Santos, às quais me referi no começo deste capítulo.
-
25
frágeis que se estabelecem entre essas dimensões e outras tantas dimensões do real e da
própria obra. É como se se reforçasse a idéia de que os elementos de natureza metafísica
fossem algo de “outro mundo”, desconectados da realidade cotidiana com a qual nos
relacionamos ordinariamente e tornando ainda mais cristalizadas as barreiras que
construímos para separar as esferas do real – e as formas de entrar em contato com o
mesmo.
O estudo de Francis Utéza (1994) seria um exemplo de estudo crítico que, a meu
ver, incorre nesses dois questionamentos sobre os quais busquei refletir. Ao relacionar a
obra a uma dimensão metafísica, tomando tradições esotéricas orientais e ocidentais tais
como o hermetismo, o taoísmo e o zen, o autor concentra sua análise em elementos
lingüísticos como vias de acesso aos elementos “metafísico-religiosos” ocultos no texto17.
Apesar de seu trabalho de interpretação – com o qual estabeleço inúmeros
diálogos no decorrer desta pesquisa –, apontar a pertinência de uma leitura das dimensões
metafísicas de GSV, tenho também a impressão de que esse tipo de abordagem possa
incorrer em uma outra distorção: o risco de desconsiderarmos a natureza da própria
literatura e a complexidade inerente a uma obra de arte e abordar o texto como mero veículo
de expressão de outros sistemas semióticos – dando origem a interpretações “forçadas”
acerca de elementos pinçados no texto, desconsiderando a sua natureza multidimensional18.
17 Para além dos questionamentos que formulo a partir do diálogo com o trabalho de Utéza, gostaria também de ilustrar um ponto de sintonia. Refiro-me a uma parte específica de seu trabalho – “Hierogamias do céu e da terra” (UTÉZA, 1994: 227-254) –, quando o autor aborda aspectos de sacralização da natureza, presentes no casamento sagrado entre céu e terra, discorrendo, portanto, acerca da articulação entre dimensões. 18 No que se refere a tais ressalvas, creio ser importante apontar outros exemplos que ilustram os riscos que pretendo evitar e que, a meu ver, fomentam grande parte das reservas que, frequentemente, se percebe em relação às abordagens metafísicas da obra rosiana. Um dos trabalhos por mim consultado – já que inicialmente buscava apoio em um referencial que articulasse psicologia e literatura e, ao mesmo tempo, considerasse as dimensões “metafísicas” – foi o de José Maria Martins (1995). O que esse autor faz é justamente estabelecer o diálogo entre a perspectiva da psicologia transpessoal e diversas apresentações na obra rosiana. Apesar de considerar a sua pertinência, o estudo parece apenas apontar algumas relações, carecendo de maior profundidade e sistematização metodológica. De qualquer forma, creio ser interessante o fato de a obra rosiana remeter à abordagem transpessoal em psicologia, justamente por aquilo que caracteriza o seu objeto: os estados alterados da consciência e o acesso
-
26
Não creio que esta seja a intenção de Utéza; mas acredito que esse tipo de abordagem pode
conduzir às distorções que busquei ilustrar.
Mas voltemos aos dois grandes grupos de possibilidades de “abordagens
metafísicas” que vislumbrei no contato com a crítica rosiana. Meu posicionamento em
relação ao primeiro grupo apontado – ligado ao pensamento organizado, à reflexão e à
racionalidade, sob a óptica da filosofia ocidental – é o de considerá-lo mais distanciado do
enfoque que este estudo está construindo. Apesar de considerar a sua riqueza, apresentaria
uma perspectiva bem distinta daquela aqui retratada. Relaciono o presente estudo ao
segundo grupo, ainda que com certas ressalvas – sendo que a principal delas se refere à
aos seus diversos níveis. Além dos questionamentos aos quais já aludi, outra restrição que tenho a esse tipo de abordagem é que ela se limita a listar e apresentar os fenômenos “paranormais” em suas apresentações na obra rosiana, mas sem abordar as relações entre tais apresentações e o próprio texto literário. Outra impressão, igualmente desfavorável, é que a apresentação dos fenômenos dessa maneira favorece a construção de uma concepção que lida com as dimensões metafísicas de forma não conectada aos processos vividos ordinariamente – tal como foi questionado no caso do estudo de Utéza – ainda que possivelmente essa não seja a concepção de Martins. Já Sebastião Rafael Gontijo (1998) desenvolve uma dissertação de mestrado onde busca relacionar aspectos da narrativa com certos elementos xamânicos. O trabalho subdivide-se em dois grandes momentos. Inicialmente, é feita uma aproximação dos conceitos de mito e de xamã, para que então se possa avançar apresentando algumas personagens – Joca Ramiro e Hermógenes – como xamãs. A segunda parte do trabalho também avança nesse tipo de associação, com Diadorim sendo apresentado como iniciador de Riobaldo que, por sua vez, faz sua travessia xamânica. Chamo a atenção para o fato de que o trabalho estabelece uma aproximação da noção de mito, ao mesmo tempo em que parece também se guiar por um viés etnográfico. Tomando este último aspecto, parece haver uma contradição em uma suposta abordagem mítica e a consideração de aspectos culturais bem específicos, obtidos a partir de entrevistas com pajés brasileiros (em anexo na dissertação), para conceituar o xamanismo. Outro ponto que me causou estranheza foi o objetivo do trabalho, segundo palavras do autor: “[...] procuramos uma leitura diferente do Grande sertão: veredas, abordando a mitologia, a religiosidade e a crença do sertanejo” (GONTIJO, 1998: 09). Da forma como é colocado, parece que o xamanismo – e também as diversas questões existenciais e metafísicas que se apresentam em GSV – são tomados pelo viés da crença e do misticismo do sertanejo. Mas não acredito que GSV seja só sobre o homem do sertão; é sobre o homem. Assim como também não acredito que o xamanismo diga respeito apenas aos homens primitivos, “simples” ou iletrados, mas, igualmente, ao homem. Tristão de Ataíde (1983), ao apontar o caráter transrealista da obra rosiana – “que refoge a qualquer limitação dos sentidos” (ATAÍDE, 1983: 143) – relaciona-a com seu universalismo, que alcança não apenas o estrangeiro. Como diz Riobaldo: “Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente.” (ROSA, 1978: 79). Meus comentários acerca do estudo de Gontijo devem-se ao fato de que, inicialmente, vi no xamanismo uma possibilidade de encontrar um referencial específico capaz de se ocupar, de forma sistematizada, dos movimentos que se dão entre as esferas da realidade. Por outro lado, vi que talvez eu corresse o risco de incorrer nas mesmas falhas que têm sido objeto de minhas críticas. Entretanto, apesar de eu optar por não pautar meu estudo pela via do xamanismo, em alguns momentos não vou me furtar a trazer à tona alguns de seus elementos, visando a estabelecer relações com conteúdos que emergem da minha leitura do texto rosiano e que, a meu ver, podem ser enriquecidos por esse diálogo.
-
27
premissa de que não se pode abordar o metafísico como algo desconectado dos níveis
ordinários do real e da própria complexidade inerente à obra de arte.
Vários estudos podem ser relacionados a esse tipo de perspectiva metafísica.
Entretanto, mais que proceder a uma leitura exaustiva de todos, busquei estabelecer
conexões entre essas produções e uma referência à obra com base na abordagem que aqui
venho delineando. Ressalto então o grande “recorte” efetuado neste meu movimento:
fortuna crítica da obra rosiana críticas metafísicas críticas metafísicas “místicas”
identificação de ressonâncias com a abordagem proposta por esse estudo19.
O estudo de Consuelo Albergaria (1977) – precursor do estudo de Utéza no que
se refere à abordagem da obra rosiana em diálogo com pressupostos “metafísicos” –, por sua
vez, evita cair em algumas das armadilhas que aqui tenho descrito. Apesar de seu foco básico
ser a utilização de tradições ocultistas20 como chave hermenêutica de GSV e da obra rosiana,
a pesquisadora considera tal linha como uma dentre outras tantas possíveis ao abordar a
obra literária. Do seu ponto de vista, o metafísico não se apresenta desconectado de outras
dimensões, configurando-se, de forma inversa, como um eixo capaz de organizar essas
outras esferas. Em suas palavras:
Esse sentido metafísico aparece ao lado de sentidos emergentes que se organizam em torno de eixos interpretativos de caráter filosófico-teológico, político-social ou mesmo puramente literal, como coordenador e unificador e, sem destruir ou se opor aos outros, funciona como harmonizador do todo, completando-o e nivelando as multiplicidades ópticas apresentadas pelos demais eixos. [...] (ALBERGARIA, 1977: 17)
19 Gostaria que ficasse muito claro que meu objetivo, neste momento, não é “dissecar” cada um desses estudos, mas buscar identificar, em cada um, pontos de sintonia com o recorte descrito. Acredito que, pela complexidade inerente a muitos desses trabalhos, seria leviano considerar que os comentários que teço acerca de cada um referem-se a um olhar que os toma em toda a sua complexidade e detalhes. 20 Estas seriam: corpus hermeticum e mistérios da antiguidade, concepções gnóstico-cabalísticas, astrologia, alquimia, taoísmo, bramanismo, budismo e hinduísmo.
-
28
Se, por um lado, Albergaria apresenta o metafísico sem desconsiderar outros
níveis ou dimensões, por outro, o apresenta como a possibilidade de articulação entre tais
níveis. Entretanto, minha leitura reconhece em seu trabalho mais a abordagem metafísica da
obra rosiana à luz das tradições ocultistas do que exatamente uma tentativa de articulação
entre vários os níveis presentes na narrativa.
A diferença do seu posicionamento em relação àquele que vem sendo construído
nesta tese pode ser percebida, assim, como uma diferença de foco e perspectiva. A posição
aqui defendida é a de que, mesmo reconhecendo o metafísico como um dos eixos presentes
na obra, a este não caberia o papel de articulação atribuído por Albergaria, uma vez que tal
função estaria relacionada a um outro eixo – o fazer poético. Este, por sua vez, aqui não é
compreendido senão por sua capacidade de articular outros níveis ou dimensões da obra e do
real.
Outro trabalho digno de nota vem a ser a tese de Lúcia Helena de Azevedo Vilela
(1996). Ao abordar Rosa – principalmente GSV –, numa perspectiva comparada com o poeta
irlandês Yeats, Vilela estabelece conexões entre aspectos das obras desses autores e os
processos alquímicos de transmutação, em metodologia inspirada por elementos textuais.
Há também um outro tipo de aproximação que considero muito pertinente no contexto do
presente estudo: ao aproximar Rosa do poeta irlandês, a autora estabelece conexões entre o
mesmo e a mitologia celta. Como será abordado oportunamente neste trabalho, há uma
conexão estreita entre os elementos da cultura celta e a possibilidade de permutação entre
dimensões.
Marcelo Marinho (2001) aborda GSV como um “enigma”, construído sob a forma
de um meta-romance. Tomando-o de um ponto de vista lingüístico, o autor aponta diversas
conexões que teriam como objetivo uma espécie de decifração da obra. Uma associação que
considero sintonizada com a perspectiva que defendo é a aproximação de Riobaldo à figura
-
29
de bardo21. O grande mérito que vejo no estudo de Marinho é proceder a uma leitura de GSV
que, além de não desconsiderar seus aspectos “metafísicos”, busca relacioná-los à arte –
tomando a última como o grande mote da narrativa.
Por outro lado, uma diferença fundamental que vejo entre a sua perspectiva e a
aqui adotada – além do enfoque eminentemente lingüístico que caracteriza o seu estudo – é
o fato de que, a todo o momento, Marinho enfatiza a relação entre o caráter metanarrativo
de GSV e a própria experiência de Rosa, buscando demonstrar o caráter uno das duas
manifestações. Sem desprezar essa relação possível – na qual eu pessoalmente acredito – o
foco do presente estudo incide não sobre a figura de Rosa, mas de Riobaldo, como um ente
relativamente autônomo – algo que o próprio autor de GSV parece dar a entender: “Riobaldo
é o sertão feito homem e é meu irmão.” (ROSA apud LORENZ, 1983: 95). Se, no estudo de
Marinho, há o reconhecimento de um fazer poético que se enlaça com as dimensões
metafísicas – e que por sua vez, entrelaça GSV e o fazer poético de Rosa –, na presente tese o
que mais interessa é o desvelamento de tais mecanismos poéticos e sua caracterização a
partir da trajetória de Riobaldo. Além disso, um limite por mim identificado no estudo de
Marinho é que, ao enfatizar a dimensão metanarrativa presente em GSV, faltaria uma maior
sistematização da poética descrita na obra.
Voltando o olhar para os estudos críticos como um todo, é importante também
explicitar que a crítica rosiana que aborda a obra a partir de um viés metafísico não
concentra seus esforços apenas em GSV. Heloisa Vilhena de Araújo (1992) estabelece a
relação entre os sentidos apreendidos das personagens das novelas de Corpo de Baile e a
dimensão mítica associada ao movimento dos planetas. Já em uma publicação de 1996,
Araújo apresenta dois estudos, sendo um dedicado a GSV – O roteiro de Deus – e outro
voltado para o mesmo tipo de enfoque já construído em Corpo de Baile – A pedra brilhante.
21 E aí, novamente, uma conexão com a cultura celta, além de sua aproximação com a figura do poeta.
-
30
Com relação ao estudo voltado para GSV, este se vale de referências a elementos míticos e à
Divina comédia de Dante, compreendendo Riobaldo como um viajante em direção a Deus.
José Miguel Wisnik (1998), em seu estudo acerca de “O recado do morro”,
aborda a forma como, através do conto, desenvolvem-se duas viagens entrelaçadas. Ao lado
da narrativa do caso sertanejo, há também a viagem metafórica relacionada ao recado que
vem dos subterrâneos do morro. O primeiro aspecto que gostaria de ressaltar, neste
trabalho, é a forma como Wisnik faz sua leitura numa perspectiva multidimensional,
considerando a coexistência de mais de um nível narrativo, ao mesmo tempo em que se
baseia em elementos textuais e, hermeneuticamente, introduz elementos relacionados a
tradições místicas (ligados principalmente à simbologia cosmológica). Outro aspecto
importante que acredito dever ser colocado em evidência é a própria discussão efetuada pelo
crítico em torno da noção de “recado” – ligado à “viagem do sentido”. Muitas considerações
são feitas a partir dessa idéia, relacionada pelo pesquisador a processos mais amplos
presentes na produção rosiana, como em GSV, por exemplo.
Melânia Aguiar (2001) apresenta um estudo acerca da constituição da visão em
dois contos de Tutaméia, buscando analisar a forma como, através desse sentido, há a
abertura para novas formas de percepção e ampliação da consciência individual. Tendo como
ponto de partida os elementos textuais e estabelecendo diálogos com alguns sistemas de
referência (sem se prender a uma tradição específica), Aguiar aborda a visão como
possibilidade de acesso a outras realidades. Apesar de não se tratar de um estudo ambicioso
em termos de sua extensão, gostaria de assinalar que este é um estudo que se aproxima da
perspectiva aqui adotada já que, mesmo não tratando de GSV, ilustra bem a perspectiva
metodológica que valorizo no contexto dos estudos “metafísicos”.
Em A matéria vertente, Benedito Nunes (1983a) parte de uma abordagem
filosófica e utiliza GSV como terreno para suas férteis articulações entre literatura e filosofia.
-
31
Apesar de o eixo central de sua articulação se dar por meio das relações entre a
temporalidade com a temática do romance – “figurações da temporalidade” (p. 18) na obra –,
Nunes também chega a discutir a questão metafísica na produção rosiana. Assim, lembrando
o valor atribuído a essa dimensão pelo autor e o modo como este a estendia ao elemento
religioso do pensamento, Nunes se refere ao amálgama produzido por Rosa, a englobar: “[...]
as correntes místicas ocidentais e orientais que se interligam no conjunto heterogêneo e
fluido do Ocultismo, amálgama das idéias neoplatônicas e das doutrinas heterodoxas do
cristianismo – o hermetismo e a alquimia – da Cabala e dos ensinamentos maçônicos”
(NUNES, 1983a: 12).
O estudioso também cita a forma como Rosa “verteu” tantas perspectivas na
“matéria” de suas narrativas, citando como exemplos “São Marcos”, de Sagarana, “Recado do
Morro” e “Cara-de-Bronze”, de Corpo de Baile. Grande ênfase é dada à apresentação de tais
conteúdos em GSV, quando, para além de uma significação literal, Nunes ressalta a
coexistência de uma significação mística (ligada tanto a uma dimensão moral, quanto a uma
dimensão propriamente mística, chamada “anagógica”). Apesar de este não ser o foco central
do estudo de Nunes – e sim a “figuração da temporalidade” na obra – fica clara a sua posição
no que tange à pertinência de abordagens “metafísicas” de GSV22.
Nunes aponta que a narrativa é sustentada por um tipo específico de figuração
da temporalização, por ele chamada de “temporalização extática” – ao que acrescenta o
comentário tecido em nota: “A temporalidade é, pois, um ek-statikon: movimento fora de si, de
que cada componente constitui um ek-stase, em recíproca ligação com os demais.” (NUNES,
1983a: 29). Faço alusão a esse comentário já que uma das idéias fundamentais defendidas
22 Em um trabalho mais recente, Crivo de papel (1998), Nunes reafirma este último posicionamento. Ao incluir os estudos metafísicos dentro de uma recepção hermenêutica da obra rosiana, com sua ocorrência a partir do início da década de 1970, Nunes faz referência aos estudos de Consuelo Albergaria e Francis Utéza, validando a possibilidade de se associar a obra aos elementos ligados ao Ocultismo – o que aproximaria a narrativa e o mito.
-
32
nesta tese relaciona-se justamente às relações entre a constituição de uma poética e a
experiência extática. Tem-se, portanto, a associação entre as dimensões transcendentes e o
fazer poético. Ou, em outras palavras, a impossibilidade de sua dissociação – como parece
afirmar Nunes, no que se aplica a Rosa. Como veremos, tal perspectiva pressupõe a “saída de
si mesmo” em direção ao outro e ao mundo, para que a arte tenha lugar.
Vistos como um conjunto diante da perspectiva proposta pelo presente estudo,
ouso afirmar que os estudos críticos “metafísicos” aos quais me referi até o momento não
coincidem com o foco aqui desenvolvido. Se, por um lado, apresentam, pontualmente,
elementos interpretativos que podem constituir contribuições a partir do estabelecimento
de diálogos futuros – por outro lado, mesmo com seu enfoque “metafísico”, não focalizam
ainda o trânsito e as permutações entre as dimensões em GSV pela via de uma poética, cujo
aprendizado constituiria a travessia de Riobaldo – tal como aqui se busca focalizar.
2.3 TRANSITANDO PELO SERTÃO MULTIDIMENSIONAL
Neste momento, a partir do diálogo com outros estudos que buscaram abordar a
natureza multidimensional de GSV, pretendo verificar quanto do caminho que conduz ao
objeto de estudo, por mim delimitado, já foi percorrido por outros autores – e quanto ainda
há de se percorrer. Para tanto, faço referência a um aspecto fundamental apontado por
muitos estudos críticos: a coexistência de pelo menos duas linhas narrativas que se articulam
em Grande Sertão: Veredas.
-
33
Tomando inicialmente o estudo de Cavalcanti Proença (1958)23, vemos que o
autor chega a propor a existência de três planos sobrepostos em GSV: (a) um plano objetivo,
dos combates e andanças, ligado a uma dimensão coletiva; (b) um plano subjetivo, das “[...]
marchas e contramarchas de um espírito estranhamente místico, oscilando entre Deus e o
Diabo” (PROENÇA, 1958: 06), a refletir o antagonismo entre os elementos da alma humana,
ligado a uma dimensão individual; (c) um plano “telúrico-mítico”24, composto por elementos
naturais que se tornam personagens vivas.
Antonio Candido (1983), em trabalho publicado originalmente em 195725,
também aborda o caráter multidimensional constitutivo de GSV. O autor aponta três
elementos estruturais que comporiam a obra: a terra (ligada ao espaço, ao meio físico, à
natureza – e também cenário das apresentações do “fantástico”), o homem (agente que atua
na natureza) e a luta (resultado do conflito entre os homens que se situam no espaço
físico)26.
Para além da caracterização das dimensões por ele consideradas principais,
Candido também tem o mérito de ressaltar o caráter dinâmico das relações que se
estabelecem na obra. Ao considerá-las organizadas não de forma lógica e sucessiva, mas por
uma “trança constante dos três elementos” (1983: 296), o caráter complexo de sua dinâmica
é reconhecido. O autor vai ainda mais longe em termos de sua compreensão – e explanação
clara – acerca dessa complexidade:
23 Aspectos presentes em Trilhas no Grande Sertão já haviam sido abordados por Cavalcanti Proença em uma publicação anterior: “Alguns aspectos formais de Grande sertão: veredas”. Revista do Livro, n° 5, março de 1957, p. 37-54. 24 No meu entender, esse terceiro plano estaria relacionado a uma espécie de interseção entre os dois anteriores. 25 Diálogo. São Paulo (8), nov. 1957, sob o título “O sertão e o mundo”. 26 Morais (1998: 14) aponta, na leitura de Candido, a paráfrase à estrutura de Os sertões, de Euclides da Cunha – no que se refere ao poder recíproco da terra e do homem. Entretanto, se há uma tese que aproxima as duas obras, uma antítese as separa: enquanto homem, terra e luta (problema) são tratados de modo lógico e sucessivo em Os sertões, em GSV estes se apresentam entrelaçados.
-
34
Estas considerações sobre o poder recíproco da terra e do homem nos levam à idéia de que há em Grande sertão: veredas uma espécie de grande princípio geral de reversibilidade, dando-lhe um caráter fluido e uma misteriosa eficácia. A ela se prendem as diversas ambigüidades que revistamos, e as que revistaremos, daqui por diante. Ambigüidade da geografia, que desliza para o espaço lendário; ambigüidade dos tipos sociais, que participam da Cavalaria e do banditismo, ambigüidade afetiva, que faz o narrador oscilar, não apenas entre o amor sagrado de Otacília e o amor profano da encantadora “militriz” Nhorinhá, mas entre a face permitida e a face interdita do amor, simbolizada na suprema ambigüidade da mulher-homem que é Diadorim; ambigüidade metafísica, que balança Riobaldo entre Deus e o Diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem. Estes diversos planos da ambigüidade compõem um deslizamento entre pólos, uma fusão de contrários, uma dialética extremamente viva, – que nos suspende entre o ser e o não ser para sugerir formas mais ricas de integração do ser. E todos se exprimem na ambigüidade inicial e final do estilo, a grande matriz, que é popular e erudito, arcaico e moderno, claro e escuro, artificial e espontâneo. Assim vemos misturarem-se em todos os níveis o real e o irreal, o aparente e o oculto, o dado e o suposto. A soberania do romancista, colocado na sua posição-chave, a partir da qual são possíveis todos os desenvolvimentos virtuais, nos faz passar livremente duma esfera à outra. A coerência do livro vem da reunião de ambas, fundindo o homem e a terra e manifestando o caráter uno, total, do Sertão-enquanto-Mundo. (CANDIDO, 1983: 305-306)
Tomei a liberdade de citar de forma tão extensa o trabalho de Candido para
colocar em evidência aquilo que ele, magistralmente, conseguiu expressar: o caráter dual,
ambíguo e complexo de GSV, que se traduz em um movimento dinâmico entre as suas
múltiplas esferas, tornado uno e coerente pela habilidade poética de Rosa. Chamo a atenção
para o papel desempenhado pela arte nesse tipo de articulação multidimensional – ainda que
neste momento a referência seja Rosa, e não Riobaldo.
Walnice Galvão (1983; 1986) é também uma autora que, além de reconhecer a
dualidade constitutiva da obra, ao mesmo tempo chama a atenção para um aspecto dinâmico
que articula suas partes. Ao trabalhar as ambigüidades em GSV, Galvão aponta para a
importância do caso de Maria Mutema como revelador do caráter dual presente em toda a
narrativa. A autora desenvolve argumentos em torno de um mecanismo presente em toda a
obra onde uma “imagem concreta” e uma “imagem abstrata” convivem, sendo que há a
presença de uma dentro da outra – somos assim remetidos à lógica de dimensões que se
interpenetram. Como uma das estratégias utilizadas para dar forma a essa dinâmica, ela
-
35
aponta os efeitos de superposição: “A coisa contida é sugerida como estando embaixo,
denunciando-se aos sentidos por algo que de lá se escapa, em movimento para cima.”
(GALVÃO, 1983: 414) – onde chamo a atenção para a dinâmica de movimento que se
estabelece entre essas dimensões do concreto e do abstrato. A autora ressalta, inclusive, a
importância do movimento, representado pela mudança e pela linguagem, como uma forma
de se viver, de entrar em contato com a essência da vida. Se, tanto para Candido quanto para
Galvão, o caráter multidimensional presente na narrativa é articulado por meio de um
movimento, para ambos este movimento tem como veículo a própria linguagem.
José Carlos Garbuglio (1972; 1983) se inspira no trabalho de Proença para
desenvolver idéias relacionadas aos dois planos narrativos que coexistem em GSV. Um
primeiro nível, objetivo, estaria mais diretamente relacionado à narrativa propriamente dita.
Ali estariam situados os fatos narrados, que serviriam de modelo às especulações do leitor (e
do suposto interlocutor de Riobaldo). Este primeiro nível27 atuaria também como uma
espécie de “canal de sustentação” de uma segunda linha narrativa. Esta segunda linha, a
configurar um outro nível narrativo – subjetivo – relacionar-se-ia ao modo como os
acontecimentos narrados vão sendo submetidos ao processo de análise do narrador, na sua
busca de compreensão acerca da realidade do mundo e de seu próprio ser. Estaria ligada a um
processo prospectivo, com o fim de “romper o exterior para conferir o interior”; estaria
ligada também à metalinguagem e à especulação acerca da própria arte literária.
Para Garbuglio, esses dois níveis, ao entrecruzarem-se durante toda a obra,
sustentam vivência e experiência, dúvida e especulação. Funcionariam em uma dinâmica em
que, à intensificação da ação em um nível, corresponderia o rebaixamento da mesma no
27 Uma peculiaridade desse primeiro nível, é que ele mesmo seria bipartido. Para Garbuglio (1983), o julgamento de Zé Bebelo marcaria uma divisão entre duas partes desse nível objetivo da narrativa: na primeira haveria a aparição de todos os chefes que vão se revezando; na segunda Riobaldo (virtual e, depois, efetivamente) passa a liderar não apenas o bando, mas a própria narrativa.
-
36
outro. Ao desdobramento dessas duas linhas narrativas também corresponderiam outros
desdobramentos, explorados pelo autor em um de seus estudos (1972), relacionados ao
próprio aspecto dual da realidade e dos seres.
Suzi Frankl Sperber (1982), ao desenvolver suas reflexões acerca da importância
atribuída ao “tema do meio”28 na obra rosiana, traz também uma perspectiva que considera
o relacionamento dinâmico que se dá entre distintas dimensões de GSV. No caso desta obra,
teríamos um romance inteiro e terminado até o “meio” do livro (com todos os dados da ação,
símbolos e temas centrais) – de modo que até este o momento o relato “vai”; a partir daí,
“voltará”. Marcando as idas e voltas que constituem o romance, a estudiosa observa que este
seria um dos principais temas da obra: a “ida” estaria relacionada ao numinoso e a “volta” à
interpretação do numinoso (pela via da palavra). Visto de outro ângulo, este movimento de
“ida e volta” representaria uma parada no tempo, em que o “fio do passado é compreendido
nas suas ligações com o futuro” (SPERBER, 1982: 125). Haveria uma parada no tempo,
depois da iniciação, para que esta pudesse ser apreendida. Entretanto, para que essa pudesse
se realizar seria necessária a travessia – da ida e da volta, que se constituiriam através de
curvas sinuosas, misturadas e não-lineares. Graficamente, esta dinâmica é representada por
Sperber da seguinte maneira (FIG. 1):
28 A pesquisadora observa que, no tocante à importância atribuída por Rosa ao “meio”, vale ressaltar o lugar “central” que GSV ocupa no rol das obras publicadas em vida pelo autor, tendo vindo depois de Sagarana e Corpo de baile e antes de Primeiras estórias e Tutaméia. Vale também assinalar que o “tema do meio”, no contexto de GSV, será retomado no próximo capítulo desta tese.
-
37
FIGURA 1 – As curvas de ida e volta na dinâmica de GSV
Fonte: SPERBER, 1982: 125.
Para Sperber, essa dinâmica29 estaria também relacionada à presença de duas
dimensões na obra: (a) o cosmo – ligado ao microcosmo humano, mundo fechado; (b) o caos
– que se estende a partir das fronteiras da dimensão anterior, ligado ao domínio do
desconhecido, não-formado e perigoso. A oposição entre esses dois espaços existiria
conotada em GSV, de forma que o “centro”, espaço que se apresenta entre dualidades, estaria
relacionado a uma hierofania, a um ponto de interseção entre três regiões cósmicas: céu,
terra, inferno. Quando essa comunicação se dá, há uma ruptura de nível, o que justificaria,
segundo Sperber, a ruptura do relato. Dessa forma, o meio, definindo-se como elemento
estruturalmente importante, não teria apenas valor simbólico-mítico, mas também um valor
metalingüístico.
Outros autores também têm o mérito de apontar – ainda que sob perspectivas
distintas – a presença de, pelo menos, dois níveis narrativos em GSV. A produção de Eduardo
Coutinho (1991; 1994) volta-se para a compreensão das dimensões do real em GSV, ocasião
em que contrapõe a realidade “objetiva” aos outros níveis de realidade às quais a obra
remete, numa dualidade composta por Logos e Mythos – relacionada, por sua vez, à dualidade
29 Note-se que, à junção das curvas de ida e volta, temos a lemniscata, símbolo intimamente ligado à dinâmica de GSV. Adianto que no último capítulo desta tese farei referência novamente a essa figura.
-
38
que se opera entre perspectivas racionais e míticas de apreensão da natureza do real. A
ambigüidade do sertão multifacetado mostraria a tensão que se dá entre essas duas
dimensões, assim como é a partir desses dois níveis que opera a consciência de Riobaldo.
No que tange aos aspectos relacionados ao Mythos, Coutinho faz alusão à forma
de apresentação do elemento sobrenatural em Rosa, numa perspectiva que valorizo e busco
fortalecer no presente estudo. Vale então ressaltar:
[...] À diferença que ocorre no fantástico ou no realismo maravilhoso, categorias, aliás, pouco presentes na obra de Guimarães Rosa, fato que o distingue muitas vezes de outros grandes autores latino-americanos do mesmo período, sobretudo os de língua espanhola, o elemento da sobrenaturalidade não contém a dimensão de ruptura que se verifica naqueles casos. O sobrenatural em Rosa é tratado como parte do complexo mental do homem do sertão, do aspecto mítico-sacral de sua Weltanschauung, e, como tal, passível também de questionamento. O mito é, do mesmo modo que a lógica racionalista, uma entre outras possibilidades de apreensão do real, e o que o autor assinala a toda hora é o caráter não-excludente dessas categorias. (COUTINHO, 1994: 22)
Davi Arrigucci, em seu ensaio intitulado O mundo misturado (1994), refere-se
também à natureza multidimensional – constituída pelas mais diversas misturas – presente
em GSV. Destaco o caráter metapoético de sua leitura, ao abordar a obra como a mescla não
apenas de diferentes níveis narrativos, mas de distintas modalidades narrativas. O épico30 –
a que o autor relaciona as aventuras dos grandes chefes jagunços, em uma história que tem,
como uma de suas marcas, a busca da vingança que é incitada pela paixão amorosa – e o
romance de formação31 – que se constrói sobre a narrativa épica, em que um Riobaldo-
narrador se dedica à construção de um significado acerca do sentido da vida – seriam, dessa
30 Roberto Schwarz (1983), em ensaio originalmente publicado em 1965, já faz alusão à presença do gênero épico em GSV que, do seu ponto de vista, estaria articulado na obra com o gênero dramático – de modo a configurar dois níveis narrativos, aos quais acrescenta o tom lírico. 31 Partindo do estudo de Marcus Mazzari (1999), pode-se compreender o romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, publicado na Alemanha entre os anos de 1793-95, como um protótipo do gênero que viria a ser denominado “romance de formação” – tido como subgênero do “romance social burguês”. Sua estrutura comportaria dois pontos fundamentais: (a) o conceito teleológico do desdobramento gradativo das potencialidades do indivíduo, no sentido de uma enteléquia (o que priorizaria o resultado ou uma forma final, em oposição ao processo); (b) a teoria da socialização e seu lugar na busca da interação necessária entre indivíduo e sociedade.
-
39
forma, as principais32 modalidades narrativas que, entrelaçando-se, constituiriam o todo da
narrativa de Riobaldo. Tal dualidade colocaria em tensão também uma forma narrativa oral
ligada ao épico e a narrativa escrita, corporificada no romance. A esses dois planos básicos,
viriam somar-se as misturas e reversibilidades ligadas a várias outras dimensões, indo “do
sexual ao metafísico, do moral ao político” (ARRIGUCCI, 1994: 08). O crítico tem o mérito, a
meu ver, de colocar em evidência a relação orgânica que se estabelece entre a forma de
contar e a matéria da qual trata a obra.
Para além da possibilidade de uma leitura metapoética a partir de GSV, Arrigucci
vê a trajetória de Riobaldo culminando com seu desgarramento definitivo da transcendência,
num “mundo já desencantado”. Creio podermos refletir a partir de tais colocações e buscar
compreendê-las de uma forma bem ampla. Visando, portanto, a avançar nessa direção, às
contribuições de Arrigucci somo as de Charles Taylor, estudioso do terreno da história das
idéias, quando esse discorre acerca do processo de “desencantamento do mundo” no
contexto do ocidente moderno:
A liberdade moderna se inicia quando conseguimos escapar de horizontes morais do passado. Em alguns casos, tratava-se de uma ordem cósmica, uma “grande cadeia do ser”, na qual os seres humanos ocupavam o lugar que lhes correspondia junto aos anjos, aos corpos celestes e às criaturas que são nossos congêneres na Terra. Esta ordem hierárquica se refletia nas hierarquias da sociedade humana. As pessoas se encontravam confinadas em um lugar, um papel e uma posição determinados que eram estritamente os seus e dos quais era impossível desvincular-se. A liberdade moderna sobreveio graças ao descrédito destas ordens. Mas ao mesmo tempo em que nos limitavam, essas ordens davam sentido ao mundo e às atividades da vida social. As coisas que nos rodeiam não eram apenas matérias-primas ou instrumentos potenciais para nossos projetos, mas possuíam um significado que lhes conferia seu lugar na cadeia do ser. A águia não era somente uma ave como outra qualquer, mas era o rei de um domínio da vida animal. Do mesmo modo, os rituais e normas da sociedade tinham um significado que não era meramente instrumental. Ao
32 Segundo Arrigucci (1994: 18), outros tipos de narrativa também estariam entrelaçadas às duas formas anteriormente citadas. Teríamos assim os provérbios, como “forma simples” e as frases aforismáticas de Riobaldo, como “formas similares” – que em comum têm o fato de serem elementares e de certa forma arcaizantes. Há também os “causos”, ligados às narrativas exemplares próprias dos narradores anônimos – o que remete a uma tradição oral.
-
40
descrédito dessas ordens é o que se tem denominado “desencantamento” do mundo. Com ele, as coisas perderam parte de sua magia. (TAYLOR, 1994: 38-39 – tradução minha)33
Poderíamos então, diante da realidade do homem se percebe em um mundo já
“desencantado”, ampliar o alcance daquilo que é reconhecido por Arrigucci. O
“desgarramento definitivo da transcendência” talvez não signifique, a rigor, a
impossibilidade de acesso à mesma, mas o estabelecimento de uma relação mediada com essa
esfera, onde sua presença é reconhecida através de uma falta que marca a sua ausência. Os
lugares passam a ser fluidos; o mundo, desconhecido; o movimento, necessário. Indo além,
poderíamos nos perguntar se é justamente essa ausência o que dá origem ao protagonista do
romance, dotado agora de uma interioridade e voltado para a busca de respostas acerca do
mundo que o cerca. Tudo isso configuraria, para mim, não apenas um ponto nevrálgico
dentro de uma abordagem multidimensional (e metapoética) de GSV, mas também uma das
marcas fundamentais da poética de Riobaldo.
Enfim, os posicionamentos variam (QUADRO 1), mas suas construções se
referem a algo semelhante – a presença de, pelo menos, duas dimensões em Grande Sertão:
Veredas e de mecanismos dinâmicos que as conectam:
33 "La libertad moderna se logró cuando conseguimos escapar de horizontes morales del pasado. En algunos casos, se trataba de un orden cósmico, una gran cadena del Ser, en la que los seres humanos ocupaban el lugar que les correspondía junto a los ángeles, los cuerpos celestes y las criaturas que son nuestros congéneres en la Tierra. Este orden jerárquico se reflejaba en las jerarquías de la sociedad humana. La gente se encontraba a menudo confinada en un lugar, un papel y un puesto determinados que eran estrictamente los suyos y los que era casi impensable apartarse. La libertad moderna sobrevino gracias al descrédito de dichos órdenes. Pero al mismo tiempo que nos limitaban, esos órdenes daban sentido al mundo y a las actividades de la vida social. Las cosas que nos rodean no eran tan sólo materias primas o instrumentos potenciales para nuestros proyectos, sino que tenían el significado que les otorgaba su lugar en la cadena del ser. El águila no era solamente un ave como otra cualquiera, sino el rey de un dominio de la vida animal. Del mismo modo, los rituales y normas de la sociedad tenían una significación que no era meramente instrumental. Al descrédito de esos órdenes se le ha denominado 'desencantamiento' del mundo. Con ello, las cosas perdieron p