A POÉTICA DOS ORIXÁS NOS AFRO SAMBAS

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A POTICA DOS ORIXS NOS AFRO-SAMBAS DE BADEN E VINCIUS: POR UMA PEDAGOGIA DA CANO POPULAR

Andr Rocha L. Haudenschild (PG-UFSC)

Introduo A cano popular de um pas pode ser pensada como um idioma cultural nico e plural de um povo. Deste modo, podemos afirmar que a nossa Msica Popular Brasileira traz em si uma memria coletiva enraizada em anos da mistura de muitos povos que aqui se encontram desde o sculo XVI nossa atual Idade Mdia. Mais do que um mero reflexo da sociedade, a cano brasileira do sculo XX pode ser vista como um projeto inacabado de pas, uma nao espera de novas escutas que percebam os processos de educao sentimental, esttica e ideolgica contidos em nossa cultura (NAPOLITANO, 2007). Ao fomentarmos uma pedagogia potica e musical no contexto escolar, atravs da prtica da cano popular como um instrumento literrio para o aprendizado de temas transdisciplinares - histricos, sociolgicos e mitopoticos , estaremos construindo uma eficiente e prazerosa prtica ldica de ensino. 1. O samba uma forma de orao Ao entoarmos os versos iniciais de Samba da beno, uma das diversas canes compostas por Baden Powell e Vincius de Moraes, ouviremos: melhor ser alegre que ser

triste / Alegria a melhor coisa que existe / assim como a luz no corao... // Mas pra fazer um samba com beleza / preciso um bocado de tristeza / preciso um bocado de tristeza / Seno, no se faz um samba no... Deste modo, somos iniciados aos mistrios da criao daquele que um dos gneros musicais mais representativos de nossa cultura popular, o samba. Afinal, para se fazer um samba com beleza, preciso um bocado de tristeza, um sentimento dialtico que compactua com a dor de toda uma civilizao que apesar de ser escravizada por mais de trs sculos, foi capaz de resistir com suas fecundas razes culturais e ainda parir uma das mais frondosas ramagens de nossa cultura: as manifestaes culturais afro-brasileiras. E o Samba da beno ainda continua: Fazer samba no contar piada / E quem faz samba assim no de nada / O bom samba uma forma de orao... // Porque o samba a Universidade Estadual de Maring UEM Maring-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 ANAIS - ISSN 2177-6350 _____________________________________________________________________________ ____________________________ tristeza que balana / E a tristeza tem sempre uma esperana / A tristeza tem sempre uma esperana / De um dia no ser mais triste no... Se o samba , e sempre foi, uma forma de orao, porque a cano popular est vinculada ao canto ritualstico, como tambm j afirmava uma cano de Vadico e Noel Rosa, Feitio de orao (1932): (...) Com satisfao e com harmonia / A valorizao da cultura afro-brasileira, como uma potencialidade negra demais no

corao da intelectualidade nacional, foi bem notada por Joclio Santos ao afirmar que houve um intenso movimento cultural no Brasil, no incio da dcada de 60, que foi a busca por autnticos smbolos nacionais e o que se desejava eram os smbolos culturais afrobrasileiros (SANTOS, 2002). Vale notar que o prprio poeta Vincius de Moraes tinha criado na dcada anterior, o espetculo teatral Orfeu da Conceio (1956), realizando com grande sucesso uma releitura original do heri-msico grego Esta triste melodia / Que meu samba em feitio de orao... Como sabemos, a poesia e palavra cantada soaram juntas desde os Vedas hindus, o Taosmo chins, e as cosmogonias africanas e amerndias. Nas culturas ancestrais, a linguagem potica dos cantores era um valioso meio de expresso, desempenhando uma funo muito maior do que a mera aspirao artstica ou literria, cuja poesia punha os rituais em palavras. E a lrica do samba a prova concreta disso: Ponha um pouco de amor numa cadncia / E vai ver que ningum no mundo vence / A beleza que tem um samba, no... // Porque o samba nasceu l na Bahia / E se hoje ele branco na poesia / Se hoje ele branco na poesia / Ele negro demais no corao... 1

1 Orfeu da Conceio, tragdia carioca de Vincius de Moraes, ambientada nos morros dos anos 50, estreiou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 25 de setembro de 1956, com cenografia de Oscar

Niemeyer e msica de Tom Jobim (a trilha sonora seria lanada no mesmo ano pela gravadora Odeon). Em 1959, a pea foi adaptada ao cinema por Marcel Camus sob o nome Orfeu Negro, recebendo diversos prmios internacionais e projetando as primeiras parcerias de Tom e Vincius em nvel mundial. . Assim como, uma cano sintomtica desta obsesso afro do poeta, vinculada Bahia como a terra-me de nossa fundao original, est presente na lrica da cano Maria Moita (1963), composta para o espetculo Pobre menina rica, em parceria com Carlos Lyra: Nasci l na Bahia / De Mucama com feitor / Meu pai dormia em cama / Minha me no pisador... No por acaso, em 1965, os compositores cariocas Tom Jobim e Vincius de Moraes gravariam dois lbuns com Dorival Caymmi em total sintonia com o lirismo de suas canes praieiras, respectivamente os LPs Caymmi visita Tom e Vincus e Caymmi no Zum-zum (ambos pelo selo Elenco, de Aloysio de Oliveira). Vale pena conhecermos como se deu esta certa fascinao mstica na obra musical do poeta Vincius de Moraes:Universidade Estadual de Maring UEM Maring-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 ANAIS - ISSN 2177-6350 _____________________________________________________________________________ ____________________________ Diz a lenda que tudo comeou na boate Arpge, no Leme, Zona Sul do Rio. O poeta Vincius de Moraes foi a esta conhecida casa noturna dos tempos da saudosa boemia bem vestida das noites cariocas do tempo da Bossa Nova prestigiar o velho amigo, Antnio Carlos Jobim, quando descobriu, plido de espanto, o talento jovem e ligeiramente desconhecido de um exmio violonista de Varre-e-Sai, que atendia

pelo curioso nome de Baden Powell de Aquino, e que fazia algum sucesso pela voz de Lcio Alves, com o seu Samba Triste, em parceria com Billy Blanco. (...) Mas e os Afro-sambas? Pouco antes de travar conhecimento do Baden, o poetinha ganhou um disco, intitulado Sambas de Roda e Candombls da Bahia Se a arte do encontro entre Baden e Vincius . Em pouco tempo, aquele despretensioso bolacho transformaria o criador da Balada das Arquivistas e do Orfeu da Conceio no branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xang. Aqueles temas baianos o impressionaram, ao mesmo tempo em que o prprio Baden rumava este mesmo caminho, quando fora apresentado ao capoeirista Canjiquinha que conduziria Badeco a terreiros, rodas de capoeira ao mesmo tempo em que lhe apresenta os sagrados cnticos do candombl. O poeta se assomara pelo mstico; Baden, pelas novas harmonias. (XAVIER, 2006, s.p.) 2

2 Em 1963, as primeiras parcerias musicais de Baden Powell e Vincius de Moraes, as canes: O astronauta, Berimbau, S por amor, Deixa, Seja feliz, Mulher carioca, Samba em preldio, Labareda, hoje s, Deve ser amor, Alm do amor e Samba da bno, foram registradas no LP Vincius & Odette Lara, pelo selo Elenco. Em 1964, Baden gravaria o LP vontade, e passaria seis meses na Bahia, pesquisando msica de candombl e os cantos dos terreiros. Em 1965, voltaria a compor com Vincius uma srie de msicas registradas novamente pelo selo Elenco, no LP De Vincius e Baden especialmente

para Cyro Monteiro, contendo as parcerias Samba do caf, Linda baiana, Formosa e Tempo feliz, entre outras. Em 1966, gravaram os afro-sambas Canto de Ossanha, Canto de Xang, Bococh, Canto de Iemanj, Tempo de amor, Canto de Pedra Preta, Tristeza e solido e Lamento de Exu; respectivamente registrados no LP Os afro-sambas (selo Forma), com arranjos de Guerra Peixe e participao do conjunto vocal feminino, Quarteto em Cy. foi pautada pelo samba de roda, pela capoeira e pelo candombl, porque ambos estavam em busca de um elogio da negritude atravs de autnticas fontes culturais baianas. Segundo Jos Castello, Baden no apenas africanizou Vincius, ele o transportou para um mundo mais quente, mais contaminado por tradies e sentimentos atvicos, mais bem mais incontrolvel (CASTELLO, 1991, p.58) . Ou seja, o Poetinha seria iniciado ao mundo mitopotico dos orixs atravs do contato com o candombl via Baden Powell, sendo capaz de entrelaar o cotidiano com o csmico, de lanar uma ponte inesperada entre a tradio negra e as interrogaes metafsicas da zona sul (CASTELLO, Op. cit., idem), conforme ainda veremos. 2. IemanjUniversidade Estadual de Maring UEM Maring-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 ANAIS - ISSN 2177-6350 _____________________________________________________________________________ ____________________________ Iemanj, Iemanj Iemanj dona Janana que vem Iemanj, Iemanj Iemanj muita tristeza que vem

Vem do luar no cu Vem do luar No mar coberto de flor, meu bem De Iemanj De Iemanj a cantar o amor E a se mirar Na lua triste no cu, meu bem Triste no mar Se voc quiser amar Se voc quiser amor Vem comigo a Salvador Para ouvir Iemanj A cantar, na mar que vai E na mar que vem Do fim, mais do fim, do mar Bem mais alm Bem mais alm do que o fim do mar Bem mais alm Cultuada como a senhora do mar, dona das guas, me dos orixs, Iemanj talvez o orix mais conhecido no Brasil, associada sincreticamente ao culto Nossa Senhora. Afinal, uma das mes primordiais e est presente em muitos dos mitos que falam da criao do mundo (PRANDI, 2001, p.22) ela a representao da ancestralidade feminina da humanidade, assim como as nereidas e as divindades grecolatinas Hera e Vnus. A ambigidade de seu valor que ela uma fora de seduo perigosa, pois transita

entre a vitalidade de sua beleza sedutora e a tristeza destrutiva daqueles que ela seduz, como afirmam os versos: (...) De Iemanj a cantar o amor / E a se mirar / Na lua triste no cu, meu bem / Triste no mar... Como se ela tambm sofresse com a sina de sua condio predadora, pois muito tristeza que vem na mar do mar. Esta cano exemplifica bem o apego do poeta pela paisagem baiana como um locus amoenus de encantamento mstico, como nos versos: (...) Se voc quiser amar / Se voc quiser amor / Vem comigo a Salvador / Pra ouvir Iemanj... Ao levarmos o Canto de Iemanj para a sala de aula, devemos contextualiz-lo em sua criao potica e musical Universidade Estadual de Maring UEM Maring-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 ANAIS - ISSN 2177-6350 _____________________________________________________________________________ ____________________________ (como j o tentamos) e, principalmente, em sua cosmogonia iorub. Sua lenda de origem bastante oportuna para entendermos melhor a cano: Filha de Olokum, deusa do mar, Iemanj era casada com Olofim Odudu com quem tinha dez filhos orixs. Por amament-los, ficou com seios enormes. Impaciente e cansada de morar na cidade de If, ela saiu em rumo oeste, e conheceu o rei Oker; logo se apaixonaram e casaram-se. Envergonhada de seus seios, Iemanj pediu ao esposo que nunca a ridiculariza-se por isso. Ele concordou; porem, um dia, embriagou-se e comeou a gracejar sobre os enormes seios da esposa. Entristecida, Iemanj fugiu. Desde menina, trazia num pote uma poo, que o pai lhe dera para casos de perigo. Durante a fuga, Iemanj caiu quebrando o pote, a poo transformou-a num rio cujo leito seguia em direo ao mar. Ante o ocorrido, Oker, que no

queria perder a esposa, transformou-se numa montanha para barrar o curso das guas. Iemanj pediu ajuda ao filho Xang, e este, com um raio, partiu a montanha no meio; o rio seguiu para o oceano e, dessa forma, a orix tornou-se a rainha do mar. (TEEG, 2010, s.p.) Como notamos, o poder feminino que Iemanj representa est associada ao mar como uma fora maternal, a fonte ancestral de alimento e de vida. Ao ouvirmos o Canto de Iemanj notvel como essa fora est impregnada na melodia e no ritmo da cano. O vocal feminino tece a melodia em um acentuado movimento ondulatrio: Iemanj, Iemanj, gerando uma explcita isomorfia entre significantes e significados. Afinal, a cano inteira nos embala no balano das ondas do mar, nos seduzindo de incio ao fim, e nos conduzindo bem mais alm do que o fim do mar. Canto de Xang Eu vim de bem longe Eu vim, nem sei mais de onde que eu vim Sou filho de Rei Muito lutei pra ser o que eu sou Eu sou negro de cor Mas tudo s o amor em mim Tudo s o amor para mim Xang Agod Hoje tempo de amor Hoje tempo de dor, em mim Xang AgodUniversidade Estadual de Maring UEM Maring-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 ANAIS - ISSN 2177-6350

_____________________________________________________________________________ ____________________________ Salve, Xang, meu Rei Senhor Salve, meu Orix Tem sete cores sua cor Sete dias para gente amar Mas amar sofrer Mas amar morrer de dor Xang meu Senhor, sarav! Me faa sofrer Ah, me faa morrer Ah, me faa morrer de amar Xang, meu Senhor, sarav Xang Agod J o Canto de Xang, cantado com um sujeito em primeira pessoa, tem um ritmo sincopado marcadamente africano com sua instrumentao repleta de percusses, como o agog (de metal) e os atabaques (com suas peles percutidas com hastes de bambu), que criam uma sonoridade tpica de um terreiro de candombl bem apropriada para a lrica desta cano. Vale atentarmos tambm para o seu arranjo, pois entram na introduo apenas o agog, os atabaques e o violo, seguidos da voz de Baden Powell, que contrastam com a entrada apotetica do coro feminino no refro: Salve, Xang, meu Rei Senhor / Salve, meu Orix / Tem sete cores sua cor / Sete dias para gente amar. Xang o deus do raio e do fogo, um orix temido e respeitado, pois alm de viril e

violento, tambm justiceiro. Seu smbolo principal o machado de dois gumes e a balana, smbolo da justia. Assim como Iemanj, tem um aspecto ambguo, pois conforme a situao pode reinar com autoritarismo e tirania, conforme entendemos em sua origem iorub: Xang era rei de Oy, terra de seu pai; j sua me era da cidade de Emp, no territrio de Tapa. Por isso, ele no era considerado filho legtimo da cidade. A cada comentrio maldoso Xang cuspia fogo e soltava fascas pelo nariz. Andava pelas ruas da cidade com seu Ox, um machado de duas pontas, que o tornava cada vez mais forte e astuto onde havia um roubo, o rei era chamado e, com seu olhar certeiro, encontrava o ladro onde quer que estivesse. Para continuar reinando, Xang defendia com bravura sua cidade; chegou at a destronar o prprio irmo, Dad, de uma cidade vizinha para ampliar seu reino. Com o prestigio conquistado, Xang ergueu um palcio com cem colunas de bronze, no alto da cidade de Koss, para viver com suas trs esposas: Ians amiga e guerreira; Oxum, coquete e faceira e Ob, amorosa e prestativa. Para prosseguir com suas conquistas, Xang pediu ao babala de Oy uma frmula para aumentar seus poderes; este entregou-lhe uma caixinha de bronze, Universidade Estadual de Maring UEM Maring-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 ANAIS - ISSN 2177-6350 _____________________________________________________________________________ ____________________________ recomendando que s fosse aberta em caso de extrema necessidade de defesa. Curioso, Xang contou a Ians o ocorrido e ambos, no se contendo, abriram caixa antes do tempo. Imediatamente comeou a relampejar e trovejar; os raios destruram o palcio e a cidade,

matando toda a populao. No suportando tanta tristeza, Xang afundou terra adentro, retornando ao Orun. (TEEG, 2010, s.p.) Outra fonte literria informa que a causa do incndio da cidade de Xang foi mais complexa: Xang convocou os maiores feiticeiros de Oy e lhes pediu que inventassem frmulas para aumentar seu poder, mas no satisfeito com o trabalho dos feiticeiros, pediu ajuda a Exu. Exu aceitou a tarefa, pediu uma cabra como sacrifcio e ordenou que dentro de sete dias Ians fosse buscar o preparado. Quando chegou o dia combinado, l foi ela casa de Exu. L chegando, saudou Exu e disse que o sacrifcio estava a caminho. O preparado estava embrulhado numa folha. Ela pegou o pacote e partiu. No caminho, Ians parou para descansar. No contendo a crescente curiosidade, desembrulhou o pacote para ver o que tinha dentro. No havia nada alm de um p vermelho e ela ps um pouquinho na boca para experimentar. (...) Quando ela comeou a falar, saiu fogo de sua boca. Xang entendeu que ela tinha provado o remdio. Ficou irado e tentou bater em Ians, mas ela fugiu de casa... (...) Mas ele ainda no sabia usar o preparado. Quando anoiteceu, ele pegou o pacote de Exu e foi a um lugar bem alto, de onde podia ver toda a cidade. Colocou um pouco do p vermelho na lngua e, quando expirou o ar dos pulmes, uma enorme labareda jorrou de sua boca, depois outra e mais outra, sem parar. As chamas se estenderam por sobre toda a cidade... (PRANDI, Op. cit. p.265-266) Essa ltima verso talvez possa nos ajudar a entender o verso: Sete dias para gente amar, pois esse foi o tempo necessrio para que Exu preparasse a poo para Xang, antes

de acontecer a tragdia do fogo. Uma alegoria da efemeridade do amor que foi tambm representado liricamente por Cames como uma chama que arde sem se ver. Como um ser vaidoso, sedutor e casado com trs divindades femininas (Ob, Ians e Oxum), Xang estaria situado no panteo dos orixs em plena simetria ao erotismo de Iemanj. S que diferentemente da deusa marinha, que aparenta sofrer da sina de seu prprio fado, Xang aparenta gostar de morrer de amar, como anuncia eroticamente o final de seu canto: Mas amar sofrer / Mas amar morrer de dor / Xang meu Senhor, sarav! / Me faa sofrer / Ah, me faa morrer / Ah, me faa morrer de amar... 3

3 H um outro afro-samba de Baden e Vincius neste disco, Labareda, cuja letra bem pertinente neste sentido: Oh, labareda te encostou / L vai, l vai, labareda // Oh, labareda te queimou / L vai, l vai, Universidade Estadual de Maring UEM Maring-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 ANAIS - ISSN 2177-6350 _____________________________________________________________________________ ____________________________ Canto de Ossanha O homem que diz dou, no d Porque quem d mesmo no diz O homem que diz vou, no vai Porque quando foi, j no quis O homem que diz sou, no Porque quem mesmo no sou

O homem que diz t, no t Porque ningum t quando quer Coitado do homem que cai No canto de Ossanha traidor Coitado do homem que vai Atrs de mandinga de amor Vai, vai, vai, no vou / Vai, vai, vai, no vou Vai, vai, vai, no vou / Vai, vai, vai, no vou Eu no sou ningum de ir Em conversa de esquecer A tristeza de um amor que passou No, eu s vou se for pra ver Uma estrela aparecer Na manh de um novo amor Amigo senhor Sarav Xang me mandou lhe dizer Se canto de Ossanha, no v Que muito vai se arrepender Pergunte pro seu orix Amor s bom se doer Vai, vai, vai, vai, amar / Vai, vai, vai, vai, sofrer Vai, vai, vai, vai, chorar / Vai, vai, vai, vai, dizer Que eu no sou ningum de ir Em conversa de esquecer A tristeza de um amor que passou No, eu s vou se for pra ver Uma estrela aparecer Na manh de um novo amor

labareda (...) Labareda / Fogo que parece amor / Tua dana / a chama de uma flor / Labareda / Quem te v assim danar / Em teus braos / Logo quer queimar.Universidade Estadual de Maring UEM Maring-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 ANAIS - ISSN 2177-6350 _____________________________________________________________________________ ____________________________ Esta cano inaugura o lbum Os afro-sambas como que abrindo os caminhos das demais faixas do disco. Afinal, Ossanha, tambm chamado Ossaim, o orix conhecedor das ervas e o curandeiro do candombl, onde sua presena fundamental na celebrao de todas as cerimnias. Para entendermos o Canto de Ossanha, precisamos recorrer novamente aos mitos de origem iorub: Um rei decidiu casar a sua filha mais velha. D-la-ia em casamento ao pretendente que adivinhasse o nome de suas trs filhas. Ossaim aceitou o desafio. tarde, Ossaim saiu sorrateiro por trs do palcio. Subiu no p de obi [nogueira] e se escondeu entre seus galhos. Quando as trs princesinhas saram para brincar, foram surpreendidas por um canto que vinha daquela rvore. Era o canto de pssaro irresistvel, de um passarinho das matas de Ossaim. Mas o canto era de Ossaim, imitando o pssaro. O passarinho brincou com as trs princesas e conseguiu saber o nome delas: Aio Del, Omi Del e On In, eram estes os nomes das filhas do rei. Sua esperteza havia dado certo. No dia seguinte Ossaim foi ao rei e declamou a ele o nome das princesas. Ossaim, ento, casou-se com a mais velha. Sua esperteza havia dado certo. Ossaim desde ento identificado com o pssaro.

(PRANDI, Op. cit., p.156). Como notamos, Ossanha est associado ao artifcio, ao engano de uma artimanha musical usada para seduzir o ouvido (e o corao) de suas possveis amantes, como avisam os versos: Se canto de Ossanha no v / Que muito vai se arrepender... Mas talvez possamos visualizar nesta cano, alm da conotao da traio eminente (Coitado do homem que cai / No canto de Ossanha traidor / Coitado do homem que vai / Atrs de mandinga de amor) e indecisa (Vai, vai, vai, no vou / Vai, vai, vai, no vou), uma crtica implcita aos homens de poder em plena instaurao da ditadura psgolpe de 1964: a iluso das promessas demaggicas (O homem que diz dou, no d / Porque quem d mesmo no diz). Notvel o teor dialtico dos primeiros versos desta cano, um movimento pendular entre o dizer e o fazer que redimensionado pelo jogo musical entre o canto do solista (o prprio Baden) e o coro (o vocal do Quarteto em Cy), gerando um dilogo entre os gneros masculino e feminino muito apropriado ao sentido da cano. Estes versos iniciais dialogam diretamente com os versos de outro afro-samba, a cano Berimbau: Quem homem de bem, no trai /O amor que lhe quer seu bem // Quem diz muito que vai, no vai / E assim como no vai, no vem...Universidade Estadual de Maring UEM Maring-PR, 9, 10 e 11 de junho de 2010 ANAIS - ISSN 2177-6350 _____________________________________________________________________________ ____________________________

J quase no final da cano, a estrofe nos avisa: Vai, vai, vai, amar / Vai, vai, vai, sofrer / Vai, vai, vai, chorar / Vai, vai, vai, dizer, como se para viver a vida por inteiro preciso amar, sofre, chorar e dizer, completando um ciclo sem fim: o ciclo inesgotvel do amor. Pois mesmo sem mandinga ou feitio, a dor deliciosa da paixo ser sempre inevitvel. Pergunte pro seu orix... Capa: Goebel Weyne / Foto: Pedro de Moraes Selo Forma, 1966 Referncias CASTELLO, Jos. Livro de letras. So Paulo: Cia. das Letras, 1991. NAPOLITANO, Marcos. A sncope das ideias: a questo da tradio na msica popular brasileira. So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 2007. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixs. So Paulo: Cia. das Letras, 2001. SANTOS, Joclio Teles. Menininha do Gantois: a sacralizao do poder. In: SILVA, Vagner Gonalves da. Caminhos da Alma: memria afro-brasileira, So Paulo: Summus, 2002. TEEG. Conhecendo os orixs. So Paulo: Templo Esprita Estrela Guia, 2010. XAVIER, Marcelo. Os afro-sambas. In: Revista Rabisco. n.84. 2006. Disponvel em: < http://www.rabisco.com.br/84/afro_sambas.htm> acesso em 20, abr., 2010.