A PERCEPÇÃO DO SAGRADO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO MARIA DA PENHA KOPERNICK DEL MAESTRO A PERCEPÇÃO DO SAGRADO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA ABORDAGEM COMPLEXA E TRANSDISCIPLINAR VITÓRIA 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

MARIA DA PENHA KOPERNICK DEL MAESTRO

A PERCEPÇÃO DO SAGRADO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA ABORDAGEM COMPLEXA E TRANSDISCIPLINAR

VITÓRIA 2007

MARIA DA PENHA KOPERNICK DEL MAESTRO

A PERCEPÇÃO DO SAGRADO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL: UMA ABORDAGEM COMPLEXA E TRANSDISCIPLINAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação. Orientadora: Profª. Drª. Martha Tristão.

VITÓRIA 2007

Ficha Catalográfica

D359p Del Maestro, Maria da Penha Kopernick. A percepção do sagrado na educação ambiental entrelaçamentos de uma abordagem complexa e transdisciplinar /Del Maestro, Maria da Penha Kopernick. - Vitória, 2007. 185 folhas : il. Orientadora: Martha Tristão Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação 1. Educação Ambiental. 2. Transdisciplinaridade. I. Tristão, Martha. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título CDU 37:504(815.2)

MARIA DA PENHA KOPERNICK DEL MAESTRO

A PERCEPÇÃO DO SAGRADO NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:

ENTRELAÇAMENTOS DE UMA ABORDAGEM

COMPLEXA E TRANSDISCIPLINAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Mestre em Educação.

Vitória, 21 de dezembro de 2007.

COMISSÃO EXAMINADORA

____________________________________ Profª. Drª. Martha Tristão

Universidade Federal do Espírito Santo Orientadora

__________________________________________ Profª. Drª. Haydée Torres de Oliveira

Universidade Federal São Carlos

__________________________________________ Profª. Drª. Janete Magalhães Carvalho

Universidade Federal do Espírito Santo

__________________________________________ Prof. Dr. Hiran Pinel

Universidade Federal do Espírito Santo

Ao Mestre!

Com amor

AGRADECIMENTOS

Agradeço a DEUS pela criação. Sem Ele nenhuma invenção humana seria possível.

Agradeço aos amigos e companheiros de caminhada que direta/indiretamente contribuíram para a elaboração deste estudo, sem os quais esta pesquisa não teria alcançado sua (trans)intenção de abordagem do sagrado. A vocês dedico os resultados deste trabalho, uma possibilidade de aprendizagem do ser-comigo, com-o-outro e com-o-mundo pelos caminhos da Educação Ambiental. À Satya, Aryan e Raji – pela paciência de conviver com uma mestranda. À D. Anízia (in memoriam) pelas histórias noturnas que embalaram meu sono e meu futuro. À minha mãe, Lúcia, e a meu pai, Edu – pela oportunidade do estudo. Ao Maninho, a Olívia e a Lady – pela confiança fraternal que anima a vida. Ao Waltinho – pelas aventuras quixotescas de sempre. Ao Pejota – pelas experiências compartilhadas e pelo apoio constante. À Margarida Pinho Carpes, educadora de almas, cuja dedicação e amor, na seara cristã, marcou para sempre minha forma de ver o mundo e cujo exemplo de vida confere à minha práxis educativa novos significados a cada dia. Ao GESJ e GER – amigos e amigas com (a)os quais compartilho a esperança de uma Terra sem fronteiras geográficas, nem raciais, econômicas, sociais e religiosas, habitada por seres vivendo como irmãos. Aos estimados professores e trabalhadores do Programa de Pós-Graduação em Educação, em especial aos Srs. e Srªs. Prof. Dr. Hiran Pinel − por sua acolhida incondicional e generosa presença, ajudando-nos a compreender o universo fenomenológico ser-sendo ele mesmo um fenômeno de amabilidade. Prof. Drª. Janete Magalhães Carvalho − pela presença sempre descontraída e pela alegria contagiante. Profs. Drs. Edivanda e Faundes − pela abordagem educativa que foi fundamental nas descobertas investigativas. Prof. Drª. Denise Meirelles − pela atenção e colaboração preciosas. Aos colegas do Curso de Pós-Graduação. Em especial ao Grupo Pau de Chuva − pela alegria de caminharmos juntas. Andressa Lemos Fernandes − em grande parte responsável por eu ter chegado até aqui, minha irmã querida, de amizade incondicional, alegria constante, incentivo e apoio decisivos para a concretização deste sonho. Kátia Gonçalves − pela presença generosa e sempre atenta.

Às tradutoras Sumika e Aurora Cristina Ramis Fernandes − pela ajuda. Ao Sr. Júlio Martins e Mauro do Laboratório de áudio e vídeo da UFES − pelo trabalho realizado. Aos educadores ambientais − pela atuação anônima que fomenta nosso sentido de pertencimento, em especial, aos entrevistados – pela entrega e confiança que

tornou possível esse mergulho no universo tão pessoal do sagrado de cada um. À Coordenação de Educação ambiental do IEMA e da SEDU − pela autorização para a participação de suas educadoras, nesta pesquisa. Um agradecimento especial à Aparecida de Jesus Fernandes Oliveira (in memoriam) pelo incentivo de anos, que, sempre presente, potencializou este trabalho.

Em especial, à Prof.ª Drª. Martha Tristão, Nossa Martinha

Orientadora presente e comprometida, agradeço pela coragem de enfrentar junto comigo os desafios, pelas lições

compartilhadas, pelo apoio, pela confiança e pela experiência de ousarmos o entrelaçamento do sagrado e do profano numa pesquisa acadêmica, demonstração

viva da dimensão guerreira do seu ser-sendo educadora ambiental.

BOLA DE MEIA, BOLA DE GUDE Milton Nascimento

...E me fala de coisas bonitas Que eu acredito

Que não deixarão de existir Amizade, palavra, respeito

Caráter, bondade alegria e amor Pois não posso

Não devo Não quero

Viver como toda essa gente Insiste em viver

E não posso aceitar sossegado Qualquer sacanagem ser coisa normal

Bola de meia, bola de gude O solidário não quer solidão...

RESUMO

Esse estudo procurou tocar a dimensão do sagrado ao mesmo tempo em que foi

sendo tocado por ele, rompendo o silêncio do tabu místico. Deu voz às percepções

dos sujeitos formadores em Educação Ambiental, buscando, por meio de uma

pesquisa fenomenológica, conhecer a rede de sentidos atribuídos ao sagrado e às

experiências a ele associadas. O trabalho no campo da percepção baseou-se na

fenomenologia de Merleau-Ponty cujos elementos perceptivos trabalhados foram:

idéias, instintos, linguagens, afetividades, imaginação e intuições presentes em

nosso modo de ser-no-mundo, avançando até os estudos sobre percepção

ambiental num esforço de compreender a relação existente entre esses campos do

saber. A problematização da dimensão do sagrado nos processos de formação em

Educação Ambiental teve por finalidade questionar a disjunção promovida pelo

paradigma da modernidade, confrontando seus pressupostos com as teorias

emergentes, em especial a teoria da complexidade. No que se refere ao campo da

educação, referenciou o pensamento pela abordagem transdisciplinar, considerando

que as questões investigadas poderão fomentar debates nos espaços de formação

em Educação e Educação Ambiental, buscando superar dogmatismos e

preconceitos no que se refere à esfera do imaterial, do invisível e do intangível. O

estudo esteve contextualizado nas discussões contemporâneas acerca da ética e da

sustentabilidade. A metodologia utilizou a realização de entrevistas não estruturadas

e encontros em grupos focais. Sem levantar a bandeira das verdades conclusivas e

absolutas, procurou compartilhar conhecimentos e percepções inacabadas e

provisórias, mas vivas e atuantes, impregnadas e impregnando de significados e

sentidos nossa vida e nosso fazer pedagógico.

Palavras-chave: Percepção do Sagrado. Educação Ambiental.

Transdisciplinaridade.

ABSTRACT

This research intended to touch the dimesion of the Sacrate being, also touched by

it, breaking the silence of mistic tabu, giving voice to the perception of the educators

of Enviromental Education trying, by means of a phenomenological research, to meet

the net of meanings attributed to the sacrate and to the experiences associated to it.

The work in the field of perception was based on the phenomenology of Merleau-

Ponty, in which the perceptive elements approached were: ideas, instincts, language,

afectiveness, imagination and intuitions present in our way of living in this world,

advancing up to the studies of Enviromental perception in an effort to understand the

existent relation in these areas of knowledge. The investigation about the Sacrate`s

dimension in the processes of formation in Enviromental Education has the goal to

pose a problem regarding the disjunction promoted by the paradigm of the modern

world fighting its assumptions with emergent theories, specially the theory of

complexity. Concerning to the field of education we take as reference the

transdisciplinar approach considering that the investigated questions shall create

debates in spaces of formation in Enviromental Education and Education itself,

looking for the overcoming of dogmas and prejudices in which refer to the immaterial,

invisible and intangible sphere. The study was contextualized in contemporary

discussions about ethics and sustainability. The methodology used was non

structured interviews and meetings with focus groups. Not pulling the flag of

conclusive and absolut truths, we intend to share provisory and unfinished, but live

and active, knowledges and perceptions, impregnated of and impregnating meanings

and feelings of our personal life and pedagogical activities.

Keywords: Sacrate perception. Enviromental education. Transdisciplinarity.

SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO................................................................................................13

2 INTRODUÇÃO......................................................................................................16

3 TECENDO OS FIOS DO SAGRADO E DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL PELO

VIÉS DA PERCEPÇÃO E DO OLHAR FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL....23

3.1 DO SAGRADO AO HORIZONTE FENOMENOLÓGICO DA PERCEPÇÃO......28

3.2 BREVE INCURSÃO AO UNIVERSO TEÓRICO DA PERCEPÇÃO

AMBIENTAL........................................................................................................32

3.3 (TRANS)MODERNIDADE...................................................................................38

4 FIOS E REDES NA EDUCAÇÃO AMBIENTAL...................................................48

4.1 DIMENSÕES E CORRENTES DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUAS

ARTICULAÇÕES COM O SAGRADO................................................................50

4.2 DESAFIOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL:

SUSTENTABILIDADES E ÉTICA COMPLEXA.................................................. 72

5 CAMINHANTES E CAMINHOS............................................................................81

5.1 ENCONTROS E HOLOGRAMAS .....................................................................84

5.2 A DESCOBERTA DOS/NOS ENCONTROS: PRAZER E

APRENDIZAGEM................................................................................................89

5.3 ENTRE EMERGÊNCIAS E IMPOSIÇÕES....................................................... 100

6 (ENTRE)LAÇOS: NO DESVELAR DO SAGRADO A POÉTICA

DE SER COM O OUTRO...................................................................................104

6.1 DE PESQUISADORA A PESQUISADA E DE VOLTA À PESQUISADORA.....105

6.2 PRECONCEITO E MEDO, ZONAS DE RESISTÊNCIA AO SAGRADO...........108

6.3 NA RECURSIVIDADE DAS EMOÇÕES A DIMENSÃO ESTÉTICA DO

SAGRADO..........................................................................................................116

6.4 A DIMENSÃO POLÍTICA DO SAGRADO..........................................................119

6.5 NO ENTRELAÇAMENTO ECONÔMICO-POLÍTICO-SOCIAL-AMBIENTAL:

QUAL O LUGAR DO SAGRADO?.....................................................................127

6.6 DIMENSÃO ÉTICA E O SAGRADO: “A ÉTICA DEPENDE DE UMA

PERSPECTIVA DE HUMANIDADE”..................................................................131

7 (TRANS)CONCLUSÕES....................................................................................136

8 REFERÊNCIAS...................................................................................................142

ANEXOS.............................................................................................................. 149

ANEXO A − PROJETO CIRET- UNESCO............................................................. 150 ANEXO B − CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE........................................... 172 ANEXO C − TERMO DE CONSENTIMENTO............................................................... 176 ANEXO D − TRATADO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL PARA SOCIEDADES

SUSTENTÁVEIS E RESPONSABILIDADE GLOBAL .......................178

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1 APRESENTAÇÃO

A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos (NICOLESCU, 2005).

Muito tempo se passou desde que vivíamos agrupados em sociedades primitivas,

quando os níveis de organização permitiam uma vida simples e ligada à natureza.

Hoje vivemos, na nossa aldeia planetária, tempos complexos em todos os sentidos.

Enquanto alguns de nós desfrutamos do que há de mais avançado em

conhecimento e tecnologia, vivendo confortavelmente em cidades verticais; outros

ainda lutam... Seu objeto de disputa não é mais o fogo, como outrora, são objetos,

que se diversificaram porque os interesses se modificaram. Enquanto alguns lutam

para sobreviver; outros guerreiam para dominar e o que respinga por toda parte é

muita desigualdade. Fome e violência gritam a realidade de um modelo civilizatório

falido. Enquanto mudanças climáticas assombram o futuro da humanidade; a miséria

assombra o presente. As promessas da modernidade não foram cumpridas e as

novas tecnologias seguem alimentando a esperança de que, ao raiar de um belo dia,

suas soluções dêem conta dos problemas que criamos para nossa civilização.

Enquanto isso não acontece, vamos, forçosamente, nos auto-organizando em

grupos sociais cada vez mais complexos.

Essa auto-organização parece nos impelir a um movimento de demarcação de

novos nichos socioambientais fechados o que, subjetivamente, tende a incentivar a

formação de grupos sociais intolerantes entre si. Assim, vão se tornando mais e

mais complexos nossos modos de ser e ver o mundo, de ser e viver a natureza.

Como sociedade, vamos entrelaçando alegrias e dores, mentes e espíritos,

percepções e realidades, profanos e sagrados, trançando os fios do tecido social

numa intrincada rede de sentidos, valores e conhecimentos que se misturam todo o

tempo.

A pesquisa que agora apresentamos é uma parte inacabada dessa rede, cujas

pontas soltas abrem-na para a possibilidade de refazimento permanente, abrem-na

para novas tessituras e desmanches. Tentamos ao máximo permanecer fiel ao

desejo de conjunção dos fragmentos, procurando e propondo caminhos de

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reconciliação da ciência com a vida, que é o sentido mesmo que vejo em ser-no-

mundo; sentido do qual minha história se encontra impregnada desde que me

recordo.

Ao encarar o desafio de um mestrado, mesmo sendo este um caminho de

desenvolvimento intelectual, não poderia percorrê-lo deixando para trás um pedaço

significativo do que sou. Uma parte tão difusa e impregnada da dimensão espiritual,

que afastá-la significaria ficar pela metade. Mas, também, uma parte de difícil

materialização. Em uma palavra simples e controversa, a parte difusa a que me

refiro é a fé. Não se trata da concepção religiosa de uma fé cega, mas da

possibilidade de se construir uma espiritualidade que não subjugue a razão e nem

por ela seja subjugada, uma espiritualidade sensível, capaz de confrontar a razão e

caminhar a seu lado num espaço de não resistência, em que, juntas, vão

descobrindo seu lugar, abrindo-se ao surgimento de um novo modo de ser-pensar a

si, o outro e a vida.

Definir um objeto de pesquisa nesse contexto foi demorado ou, melhor dizendo, a

definição se fez no instante em que li “O manifesto da transdisciplinaridade”.

Contudo, apesar da euforia custou-me aceitar o desafio. Assumir, num meio

estranho, repleto de obstáculos o ser-sendo da minha vida particular,

prioritariamente dedicada ao trabalho espiritual, parecia um sonho irrealizável;

articular razão e fé no contexto acadêmico pareceu um atrevimento paradoxal, ao

mesmo tempo, prematuro e ultrapassado.

Antes e durante o desenvolvimento do trabalho, uma sombra me perseguiu: sentia a

ousadia da proposta e me envergonhava por havê-la feito, considerando-me incapaz

dessa realização. Mas, ainda assim, havia algo que não sabia descrever (e ainda

não sei), que incendeia minhas idéias, algo que me impulsionava, uma inquietude,

uma insatisfação com o que aí está que é mais forte do que a razão e que só me

deixaria em paz se eu seguisse adiante.

Nunca estamos sozinhos e, assim, incentivada aqui, apoiada ali, orientada acolá,

caminhei, compreendendo que o maior desafio da complexidade é enfrentar-se a si

mesmo e o mar de nossas incertezas. Dentre as inúmeras vozes dos companheiros

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de viagem, destaco as palavras de Maffesoli (1998), pois me ajudaram a despertar

do imobilismo ao reconhecer que “[...] é preciso saber desenvolver um pensamento

audacioso que seja capaz de ultrapassar os limites do racionalismo moderno e, ao

mesmo tempo, de compreender os processos de interação, de mestiçagem, de

interdependência que estão em ação nas sociedades complexas”.

O que está em ação nas sociedades complexas está também em ação frenética

dentro de nós, pois, como sistemas abertos, interagimos a todo momento com o

“mundo das idéias” e se esse, num minuto nos cerca, em seguida está em nós. E

por falar em interação, vou finalizando esta apresentação. Não sei se consegui

lançar meus pensamentos para além das fronteiras do invisível, mas sinto que valeu

a tentativa, por isso deixo aberto um convite para que você continue lendo este

trabalho e interagindo com seu tema. Ao chegar no tempo-espaço em que me

encontro agora, desejo compartilhar com todas e todos o sentimento de que

estamos vivendo no limiar de um novo tempo, com possibilidade de outros “níveis de

Realidade”.1 Nesse novo tempo nos encontramos em iguais condições àquelas das

sociedades primitivas do início da história de nossa civilização. De alguma forma, na

recursividade do movimento da vida, parece que estamos de volta ao começo.

Saudações fraternas

Penny

1A expressão “nível de Realidade”, escrita dessa maneira mesma, é abundantemente encontrada no texto de Nicolescu, de quem sigo o pensamento para a realização deste trabalho.

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2 INTRODUÇÃO

O reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a título de habitante da terra, ele é ao mesmo tempo um ser transnacional (NICOLESCU, 1999, p.161- 162).

Cada tempo traz consigo percepções, idéias e significações que lhe são peculiares.

A Modernidade, por exemplo, traz intrínseco um pensamento a partir do qual é

imprescindível separar, dissecar, reduzir e classificar objetos de estudo ou um

fenômeno, visando a conhecê-lo e compreendê-lo. De acordo com Santos, (2000, p.

62), no que se refere à natureza pensada na Modernidade, “[...] é total a separação

entre [esta] e o ser humano. A natureza é tão somente extensão e movimento; é

passiva, eterna, reversível, mecanismos cujos elementos se podem desmontar e

depois relacionar sob a forma de leis”.

Sabemos que esse modelo de racionalidade mecanicista teve origem com a

revolução científica do século XVI e que, ao longo de seu império, menosprezou e

alijou do universo das ciências a diversidade das dimensões humanas, com especial

negação das dimensões estética e espiritual. Para afirmar a superioridade da razão

instrumental, foi necessário subjugar toda expressão que se lhe opunha. Foi assim

que perderam lugar as formas de saber construídas fora da lógica clássica e dos

princípios racionais. Tudo que esteve ligado à ordem do subjetivo, da crença, do

imaterial foi/é desconsiderado como saber.

Estreitamente vinculado às esferas de poder, esse modelo agregou força e

hegemonia, mas nunca foi homogêneo. Mesmo em meio à sua presença asfixiante,

outros pensamentos não-lineares mantiveram-se vivos ao longo da história e/ou

emergiram no início do século XX, como resultado mesmo do próprio e insuficiente

saber-fazer científico moderno, que, não sendo capaz de atender às necessidades

humanas, deixou brechas, dando os primeiros sinais da iminente crise

epistemológica do paradigma dominante. Em nosso estudo, utilizamos o sentido de

paradigma proposto por Capra (1982) que deriva do grego paradeigma, “padrão”, e

o consideramos como o conjunto das percepções, pensamentos, sentimentos e

valores, que formam uma determinada visão da realidade.

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Não se pode, portanto, desconsiderar que: questionar a Modernidade ocidental é

questionar o poder engendrado nas suas formulações teóricas; romper com a razão

instrumental significa romper com as formas de poder dominantes; colocar em xeque

o paradigma da Modernidade é também colocar em xeque o poder hegemônico. Isso

não deve representar, necessariamente, um retorno ao domínio das ideologias

religiosas, mas, talvez, o momento psicológico de abdicar da rigidez e do rigor da

racionalidade instrumental em favor de uma flexibilidade capaz de derrubar os

fundamentalismos e acolher novas formas de racionalidade e/ou não racionalidade.

Concordamos com Bateson (1994, p. 63), ao dizer que “[...] com toda sencillez diré

que rechazo y temo estos dos extremos de opinión y que considero ambos extremos

epistemológicamente ingênuos, epistemológicamente errôneos y politicamente

peligrosos”.

Considerando as inúmeras lacunas deixadas pelas promessas de igualdade,

liberdade, justiça e domínio da natureza, não cumpridas pela Modernidade, num

movimento de ressurgência,2 o “paradigma emergente”,3 destemido, ousado e

inovador vem estimulando um outro modo de ser e pensar a vida. Também vem

contribuindo como adubo para emergência desse paradigma a diversidade de

saberes inconclusivos que não deram suporte para enfrentamento dos problemas

sociais contemporâneos, dentre os quais salientamos aqueles envolvendo

sociedade e natureza.

Todas as áreas do conhecimento humano encontram-se fortemente influenciadas

pelas diversas mudanças socioambientais que vêm ocorrendo em alta velocidade

nessa virada de século. Com a Educação Ambiental não foi diferente, especialmente

porque “[...] a Educação Ambiental tem sido vinculada em termos teórico-práticos à

reformulação de valores éticos, individuais e coletivos" (TRISTÃO, 2004, p. 39).

Falar de ética e refletir sobre valores implica abordar componentes da percepção

humana, determinantes das atitudes de comprometimento, engajamento,

conservação e degradação ambiental, que não são nem elementos de síntese do

intelecto, nem resposta neurológica a estímulos externos. Esses componentes estão

2 Ressurgência é um movimento vertical da água do mar, provocado pela divergência de correntes superficiais. Nesse movimento, a água carrega consigo nutrientes assentados no fundo dos oceanos, tornando as águas “mais nutritivas”. 3 Santos (2000 p. 74).

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em evidência neste momento crítico que vivemos.

Sendo assim, sintonizada com a abertura que proporciona o paradigma emergente,

desejamos materializar, na forma de produção acadêmica, elementos perceptivos

que se manifestam como idéias, sentidos, instintos, linguagens, afetividades,

imaginação e intuições que envolvem, alimentam e limitam nosso modo de ser-no-

mundo. Contudo, considerando o cuidado imprescindível com o lugar de onde

falamos, procuraremos não perder de vista o rigor próprio de um estudo intelectual

criterioso que aqui procurou constituir-se com auxílio de bases conceituais

reconhecidas e aceitas no movimento da transdisciplinaridade, acreditando ser

possível a articulação entre diferentes racionalidades4 no contexto da pesquisa

científica.

O debate atual da Educação Ambiental é bastante variado e abre possibilidade para

inúmeras incursões teórico-metodológicas, facilitando o desvendar de novos

caminhos que atendam à multiplicidade dos desafios socioambientais que estamos

enfrentando. Esse contexto diverso favorece a abordagem do sagrado entendido

tanto na sua percepção de dimensão concreta, quanto na sua versão de expressão

simbólica, decorrente das culturas humanas, mas, em qualquer dos casos, presente

na vida e, portanto, legitimamente integrada às abordagens educativas, de toda

natureza.

São estruturais as mudanças que surgem no pensamento científico contemporâneo

e estas apontam possibilidades de reintegração da complexidade do pensar-fazer-

ser humano. Esse clima de mudança paradigmática suscita diferentes inquietações

e interpretações. Abrem-se portas, que indicam novos caminhos. Em educação, os

discursos enfatizam a importância da formação de sujeitos politicamente atuantes,

sensíveis, que respeitem as diversidades e outras formas de ser, viver, fazer e

conhecer no mundo. Diante dessas portas abertas, colocamo-nos algumas

questões: será que, no movimento de sensibilização do sujeito, ou enfatizando os

discursos e práticas em torno de diferentes racionalidades, não estaríamos, ainda,

4 Baseamos a noção de racionalidade no pensamento de Edgar Morin (1998, p. 165), para quem a

racionalidade difere da racionalização por aquela “[...] estar aberta ao que resiste à lógica e mantém o diálogo com o real [enquanto essa] integra à força o real na lógica do sistema e crê, então, possuí-lo”.

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perpetuando um pensamento reducionista? Seria o sagrado uma forma de

racionalidade? Ou seria ele mesmo uma não racionalidade a ser ainda legitimada

pela razão? Em Educação Ambiental, quando privilegiamos e defendemos ora a

discussão em torno da dimensão estética, ora da dimensão ética ou política, não

estaríamos apenas reproduzindo o movimento clássico de disjunção do mundo?

É claro que compreendemos e consideramos legítimos e justos os motivos para

privilegiar tais dimensões. Compartilhamos mesmo, em alguns momentos, desse

movimento. Longe, portanto, de nosso pensamento pretender em alguma instância

negar sua relevância, mas também não podemos deixar de manifestar as

inquietações que estão presentes e que são fruto de vivência e reflexão nas e sobre

nossas práticas no âmbito da Educação e da Educação Ambiental. Com essas

indagações, pretendemos apenas agregar ao debate teórico mais alguns fragmentos

que percebemos flutuar no microuniverso do conhecimento humano, ainda

fortemente influenciado pelo sentido de dissociação das idéias. Nas palavras de

Maffesoli (1998, p. 146), as “[...] diversas formas de sincretismo, a empolgação pelas

filosofias espiritualistas, o recurso aos diversos ‘Orientes míticos’ [são] fenômenos

sociais que, pelo fato de existirem, merecem atenção”.

Nesse momento em que nos preocupamos com a composição de parâmetros de

dignidade humana e com a defesa da vida, é bastante significativo estender as

mãos, repletas de diferenças, na direção uns dos outros e caminhar pelos atalhos

labirínticos de um espaço cognitivo complexo, promovendo encontros; transpondo

os muros da razão e, da emoção e num movimento transgressor, alçar vôo em

direção ao espiritual, ao imaterial, adentrar nesse território controverso, buscando

recursos intelectivos e vivenciais para um intercâmbio de sentidos que nos aproxime

uns dos outros como num abraço, para além dos nossos dogmatismos tão

concretos.

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A mão estendida é o início do abraço, isto é, o ponto de partida para o pensamento complexo, o marco inaugural do longo processo de busca da espiritualidade [...]. Estou falando de algo que possa livrar-nos de um padrão de vida segundo o qual em muitos casos a palavra é separada do real, a justiça se preocupa menos com o sofrimento dos homens do que com a letra da lei, e esta, em muitos casos, busca verdades que pouco ou nada têm a ver com o cotidiano das pessoas. (MARIOTTI, apud D’AMBROSIO, 2001, p. 115).

Esta pesquisa procura tocar a dimensão do sagrado ao mesmo tempo em que vai

sendo tocada por ela, rompendo o silêncio do tabu místico, procurando dar voz aos

sujeitos formadores em Educação Ambiental, ampliando a rede de sentidos presente

nas diversas percepções do sagrado e as experiências a ele associadas.

Para percorrer esse caminho, referenciamo-nos pelo pensamento transdisciplinar do

sagrado, enunciado por Nicolescu como uma “zona de não resistência”. Sem a

rigidez da lógica moderna, lançamo-nos em busca das percepções do sagrado entre

aqueles que atuam na formação em Educação Ambiental. Consideramos que as

questões investigadas, pertencentes à esfera do imaterial, invisível e intangível,

poderão fomentar debates nos espaços de formação em Educação e Educação

Ambiental, contribuindo com esse universo dinâmico e em permanente

ressignificação, de maneira não apenas conceitual e muito menos dogmática.

Cores e fios: no Capítulo 1º, procuramos ampliar nossa compreensão acerca do

sagrado, buscando discuti-lo a partir de referenciais teóricos, estabelecendo, assim,

marcos conceituais para este estudo, investigando algumas das suas significações

no universo acadêmico. Entendemos que o sagrado pode ser percebido como

experiência simbólica e concreta por diferentes sujeitos, constituindo diferentes

percepções que Nicolescu cita como diferentes níveis de percepção e os associa a

diferentes níveis de Realidade. Essa ressignificação é fundamental, pois representa

a conexão entre um caminho linear e outro, complexo. Sendo assim e considerando

a profunda subjetividade do tema, procuramos também, nesse capítulo, analisar o

conceito de percepção na perspectiva da fenomenologia de Merleau-Ponty (1999).

Essa abordagem surpreendeu-nos por mostrar, tanto quanto a transdisciplinaridade,

que está, ao mesmo tempo, entre, através e além dos conhecimentos apresentados

pela ciência e pela realidade vivida e sentida do senso comum. Os conhecimentos

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aqui foram fios multicores que docilmente se lançaram na tessitura de uma

complexa rede de sentidos.

Partindo da percepção fenomenológica, tivemos um breve olhar na direção da

percepção ambiental cuja recorrência em pesquisas de Educação Ambiental

desperta atenção. Interessou-nos entender a existência de conexões entre esse

universo conceitual e o contexto da percepção fenomenológica de Merleau-Ponty na

tentativa de analisar suas articulações e implicações com o ser-sendo-no-mundo-

educador(a)-ambiental.

Um fio multicor: na seqüência desse percurso teórico, passamos ao Capítulo 2º,

quando procuramos mergulhar no universo da Educação Ambiental propriamente

dita, discutindo a dinâmica de evolução dos seus conceitos, dimensões e correntes,

escavando o terreno em busca das expressões teóricas do sagrado e

contextualizando nossa discussão na perspectiva de olhar o mundo pela ótica da

sustentabilidade planetária e na compreensão de uma ética complexa. Com o

objetivo de situar a pesquisa nessa ótica complexa e transdisciplinar, apresentamos,

ao final do capítulo, algumas considerações acerca dos referenciais teóricos e suas

possíveis relações com a idéia de ruptura epistemológica, que nos permitiram

discutir o paradigma emergente para além de uma concepção espaço-temporal pós-

moderna.

O tear: as escolhas metodológicas apresentadas no Capítulo 3º pretenderam

desvelar o caminho percorrido de maneira que pudéssemos, ao mesmo tempo,

viver, contar e compartilhar incertezas, medos, descobertas, desnudando, dentro do

que nos foi possível, o ser pesquisador que escolhe e é escolhido, que percorre um

caminho e entra por atalhos labirínticos ao longo da sua pesquisa, impregnando de

sentido sua caminhada, conectando saberes, influenciando e sendo influenciado

pelo mundo que o cerca. Além de entrevistas não estruturadas, realizamos

encontros em grupos focais. Nesses, o sagrado desvelou-se como a poética de ser

com o outro. Ali nos sentimos estrangeiros no território desconhecido da zona de

não resistência, cujas convergências e divergências encontraram um segundo plano

de existir, deixando emergir em primeiro plano um sentimento de conexão que

sugeriu profundo encantamento.

22

A rede: mesmo permitindo que aos resultados se misturassem às idéias na

construção do texto final, algumas percepções foram reunidas e entrelaçadas entre

si, procurando tecer uma rede de sentidos que dialogasse com as dimensões

consideradas pela Educação Ambiental resultando, assim,

no Capítulo 4º.

Como não poderia deixar de ser, já que desde o início nossa proposta não foi

levantar a bandeira das verdades absolutas, procuramos, no quinto e último capítulo,

compartilhar conhecimentos e percepções que notamos estarem presentes em nós

e no espaço-tempo de encerramento desta etapa. Percepções e conhecimentos que

denunciamos inacabados e provisórios, mas vivos e atuantes, impregnados e

impregnando de significados e sentidos nossa vida.

23

3 TECENDO OS FIOS DO SAGRADO E DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL PELO VIÉS DA PERCEPÇÃO E DO OLHAR FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL

O surgimento de uma cultura transdisciplinar, que poderia contribuir para eliminar as tensões que ameaçam a vida em nosso planeta, é impossível sem um novo tipo de educação que leve em conta todas as dimensões do ser humano (NICOLESCU, 2005).

O que é “o sagrado”?

A intenção desta pesquisa foi problematizar a disjunção clássica das dimensões

humanas na formação em Educação Ambiental, especialmente no que se refere ao

sagrado. Mas o que seria “o sagrado”? No decorrer da pesquisa, encontramos

muitos ecos a essa pergunta, por isso escolhemos começar por um deles: “Eu queria

falar do seu título, em relação a isso. O quê que você tá definindo, pra eles? A primeira

pergunta talvez que eles façam na tua banca. Como é que você define o sagrado?”

(Maria).5

O título da pesquisa, até então provisório, apenas materializava um pensamento de

(re)ligação, um desejo de conjunção. A ousadia de investigar se e como as

percepções, muitas vezes de formulações dogmáticas, podem existir num outro

nível, sem obrigatoriamente se constituírem como categorias fechadas e, desse

modo, tornarem-se permeáveis às emergências. Não foram incomuns as perguntas

curiosas e os comentários sobre nossas próprias percepções. Para responder a

elas, recorremos aos versos de Guedes e Bastos (1978), “[...] tudo o que move é

sagrado e remove as montanhas com todo cuidado meu amor [...]”. Ainda na mesma

empolgação, Maria continua:

Vou fazer a última pergunta, depois vou ficar quietinha [risos]. Eu tô tão interessada... eu... vamos supor, eu sou atéia, não acredito em nada, não teria o sagrado em mim ou poderia ter dentro de uma interpretação, que eu sou assim, mas eu também quero a humanidade boa, eu quero transformar a natureza [...].

Se considerado como uma zona de não resistência, o sagrado desvincula-se de sua

tendência dogmática, passando a figurar como um espaço-tempo de encontro

5 Nome fictício adotado para preservar a identidade dos educadores entrevistados, conforme descrito no Capítulo 2º: Caminhantes e caminhos.

24

consigo, com o outro, com o mundo. Invertendo a lógica, não nos apoderamos

desses espaços-tempos, mas somos apoderados por eles na medida em que nos

permitimos viver esse lugar de não resistência.

Maria é doutora, pesquisadora, atuante na área de Educação Ambiental e, portanto,

uma legítima representante do saber científico. Por isso seu interesse foi inesperado

e surpreendente. Intrigou-nos saber por que perguntava aquilo, mas, com medo de

que um questionamento naquele instante quebrasse o encanto e a espontaneidade

das indagações, apenas nos deixamos conduzir pelo fluxo de seu interesse.

Tínhamos um referencial, mas não uma resposta. Estávamos, como ela, buscando

respostas e, embora nos sentindo, até aquele momento, atrevida por abordar tal

assunto, identificamo-nos com sua curiosidade e percebemos que, por baixo dos

ícones6 sociais, nos reconhecemos nus e iguais.

Re-conhecer implica conhecer o que há no outro de mim e o que há de mim no outro. E, portanto que para além da diferença, há entre nós também continuidades, campos de referência mútua, de alianças e de similitudes que nos circunscrevem como semelhantes. Conhecer e re-conhecer é campo da ética (SATO; PASSOS, 2006, p. 28).

Fundados na ética de ser com o outro, reconhecemos que, durante muitos séculos,

vivemos instalados em fragmentos flutuantes de um saber cartesiano e, agora,

desvanecidas as ilusões e certezas da Modernidade, diante da imensidão de um

universo desconhecido, nos prostramos confusos, assustados, mas não menos

instigados pela aventura de conhecer. Em minhas-nossas interrogações, eu e a

entrevistada nos encontramos solidárias nesse desejo de saber, um desejo

sagrado porque livre de resistências. Aquela doutora, profissionalmente experiente

e com uma estrada de vida percorrida, pareceu-me uma criança naquela intrigante

fase dos porquês. Estivemos ali, solidárias e, por um lapso de tempo, conectadas

pelo sagrado.

Nas abordagens do sagrado, encontradas ao longo deste estudo, identificamos uma

ampla variedade de significações e sentidos. No campo da filosofia, Chauì (2005, p.

6 Ìcone aqui se refere ao signo. Segundo Santaella (1996, p. 59), “[...] o ícone representa o objeto por meio de qualidades que ele próprio possui, exista ou não o objeto que ele representa”.

25

252-253) sustenta que “[...] o sagrado é a experiência da presença de uma potência

ou de uma força sobrenatural que habita algum ser [...] a sacralidade introduz uma

ruptura entre natural e sobrenatural”. Já para Grün (apud CRUZ; COELHO, 2003, p.

46), “[...] o Sagrado pode ser o que possibilita a aproximação com Deus”. Por outro

lado, para o biólogo Gregory Bateson, a concepção de sagrado segue uma gênese

mais complexa do pensamento. A co-autora e também sua filha afirma que “Gregory

quiere que creamos em lo sagrado, em la contextura integrada del proceso mental

que envuelve todas nuestras vidas [...]” (BATESON; BATESON, 1990, p. 198). Em

outras palavras, diria que Bateson considera como sagrado o padrão que liga todas

as criaturas vivas, o que ele chama de “o padrão que liga ou metapadrão” e que

constitui sua tese fundamental.

O historiador romeno Eliade (1956, p. 25), sobre o conceito do sagrado, afirma que

“[...] a primeira definição que pode dar-se do sagrado, é que ele se opõe ao profano”.

Sagrado e profano seriam, então, duas modalidades de ser no mundo. Ele descreve

as modalidades do sagrado e afirma que, “[...] o homo reoligiosus7 crê sempre que

existe uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, mas que se

manifesta neste mundo, e, por este facto, o santifica e o torna real” (p. 209). O autor

refere-se ao sagrado como: mysterium tremendum e cria o termo hierofania,

originado de hierofani que, segundo Hellern (2000, p. 18), é uma “[...] palavra grega

que significa, literalmente, ‘algo sagrado está se revelando para nós’”. Esse mesmo

autor, por sua vez, resgata da obra sobre Psicologia da religião: “A idéia do

sagrado”, de Rudolf Otto, outra abordagem do sagrado como sendo “Das ganz

Andere, ‘o inteiramente outro’, ou seja, aquilo que é totalmente diferente de tudo o

mais e que, portanto, não pode ser descrito em termos comuns” (HELLERN, 2000.

p. 18).

Quem fala, fala do que percebe e toda percepção encontra-se embebida de uma

visão de mundo. Sendo assim, olhando o sagrado pelas lentes dos filósofos,

biólogos e historiadores, os sentidos atribuídos variam, pois estão sujeitos a

interpretações vinculadas aos seus contextos teóricos específicos. Como esclarece

Tristão (2004, p. 174), “A definição de algo é uma decisão científica, o que um

7 O autor identifica o homo religiosus como o homem que aceita a sacralidade do mundo e assume

para si pressupostos e dimensões existenciais religiosas, como é o caso das sociedades tradicionais.

26

entende por uma coisa pode ser entendido com outro sentido por outra pessoa. É

uma questão de precisão teórica” e, sendo assim, buscamos, sempre que

necessário, o dicionário da língua portuguesa para referenciar o significado de

algumas palavras utilizadas neste estudo.

Buscar o significado das palavras no dicionário leva a compreender as relações

estabelecidas entre o grupo, suas redes e representações. Não interessa o

conteúdo, mas os sentidos produzidos (TRISTÃO, 2004). Mas, então, o que seriam

os sentidos? A produção de sentidos é social, ela se dá no encontro entre as

pessoas que, pelo uso da linguagem, estabelecem trocas e diálogos, quando vozes

são confrontadas, propiciando a compreensão de diferentes sentidos. No

entendimento de Spink e Medrado (1999, p. 41):

[...] o sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta.

Para nós o sentido em questão é sobre o sagrado. O vocábulo sagrado está

traduzido em Ferreira (1986, p. 1536) da seguinte forma:

{Do lat. Sacratu.} Adj. 1. que se sagrou ou que recebeu a consagração. 2. Concernente às coisas divinas, à religião, aos ritos ou ao culto; sacro, santo. 3. Inviolável, puríssimo, santo, sacrossanto: sagrado amor. 4. Profundamente respeitável; venerável, santo. 5. Que não deve ser tocado, infringido, violado: os sagrados direitos do homem. 6. A que não se pode faltar; que não se pode deixar de cumprir: dever sagrado [...].

Em outros autores estudados, não encontramos referência direta a uma discussão

conceitual sobre o sagrado, contudo, numa abordagem que consideramos indireta,

ou do sentido que percebemos, alguns pensamentos compõem ou são compostos

pela idéia do sagrado, como é o caso de Ubiratan D’ Ambrosio (2001, p.110), por

exemplo, referindo-se ao horizonte espiritual, quando afirma que, “[...] na resposta à

pulsão de transcendência [o homem] incursiona no passado e no futuro,

desenvolvendo mitos e artes, religiões e ciências”. Essa pulsão de transcendência

de que fala o autor parece uma percepção relevante e que não aliena seu

27

pensamento a uma lógica fragmentária. Já o sociólogo Maffesoli (1998 p. 145) indica

que “[...] o fenômeno místico [...] repousa, essencialmente, sobre uma percepção

direta e intuitiva do si-mesmo do mundo e do divino”. Dessa forma, o autor relaciona

o sagrado com o místico.

Podemos notar que, para Grun e Maffesoli, a definição do sagrado implica a

apresentação de uma noção de Deus, enquanto Chauí nomeia uma força que habita

algum ser, sem, contudo, nomeá-lo, mas estabelecendo, pela idéia de ruptura, um

par de contraditórios: natural e sobrenatural. A noção do sagrado encontra uma

similitude inicial entre os pensamentos de Bateson e Mafesolli que não explicitam a

existência de forças sobrenaturais externas, nem de Deus. Não se percebe, nesses

autores, oposição ao conceito de hierofania proposto por Eliade, pois essa idéia

parece ser mesmo anterior àquelas, uma espécie de substrato teórico em que as

noções do sagrado foram, ao longo do tempo, buscando inspiração para se

desenvolver. No contexto da transdisiciplinaridade, a concepção de Nicolescu e

também aquela que pretendemos fazer atravessar todo o ambiente desta pesquisa,

aproximam-se do princípio de metapadrão proposto por Bateson. Vejamos que, para

Nicolescu (2002, p. 59), o sagrado “[...] é aquilo que nos conecta. O sagrado liga,

como indica a raiz etimológica da palavra ‘religião’ (religare – ‘tornar a ligar’), porém

essa habilidade não é atributo de uma religião”.

O sagrado, portanto, pode fundar a religiosidade ou, ainda, a instituição religiosa,

mas, no caminho investigativo que percorremos, ele não a representa e nem pode

ser tomado a conta de seu sinônimo. Por esse breve olhar sobre os sentidos do

sagrado, notamos que a palavra é polissêmica e, subsidiada pela teoria da

complexidade e pela transdisciplinaridade, concluímos ser de relevante importância

ampliar a noção de realidade, compreendendo, como Nicolescu, a coexistência de

vários e diferentes níveis de Realidade, alguns dos quais constituídos por diferentes

graus de materialidade. “A matéria está associada a um complexo

substância/energia/informação/espaço-tempo. O grau de materialidade quântica é,

na verdade, diferente do grau de materialidade considerado pela física clássica”

(NICOLESCU, 1999, p.70).

28

Pela abordagem do sagrado, estamos falando em diferentes graus de materialidade,

estamos propondo a transposição dos muros e fronteiras dimensionais erigidos

pelas leis da Física moderna, visando a ampliar nossos espaços de circulação

cognitiva e abrindo caminhos para aumentar nossa percepção até outros níveis de

Realidade com os quais possamos dialogar sem a arrogância de um saber definitivo

ou a ingenuidade de uma fé irracional.

3.1 DO SAGRADO AO HORIZONTE FENOMENOLÓGICO DA PERCEPÇÂO

O estudo da percepção no contexto desta pesquisa está fundamentado a partir do

referencial teórico das vertentes do pensamento filosófico ocidental, encontrando-se

identificado com a fenomenologia de Merleau-Ponty, com raízes no realismo

aristotélico, no que se refere à visão de um real fora de nós e que parte do princípio

de que tudo que existe é matéria ou depende da matéria para existir. Um real fora

de nós, oposto daquele defendiam os idealistas para quem, no começo de tudo,

estão as idéias e tudo que há é derivação de um real verdadeiro. O mundo real é

produzido pelas idéias e, desse modo, a realidade começaria dentro da mente e não

fora dela. Vejamos como se coloca Maurice Merleau-Ponty (1990), ao apresentar à

sociedade suas teorias sobre a percepção e suas conseqüências filosóficas na

discussão que se segue:

Bréhier: [...] O senhor toma esse idealismo platônico e segue precisamente o caminho inverso: tenta reintegrá-lo na percepção e creio que é aí que se apresentam todas as dificuldades, propriamente falando (p. 68). Merleau-Ponty: O senhor diz que Platão procurou deixar as percepções pelas idéias. Poder-se-ia também dizer que ele colocou movimento e vida nas idéias, como estão no mundo – e o fez quebrando a lógica da identidade, mostrando que as idéias se transformam em seu contrário (p. 70-71).

Considerando a percepção do sagrado como sujeitobjeto desta pesquisa, não

poderíamos, em certa medida, deixar de confrontar ao pensamento merleau-

pontiano o idealismo platônico bergsoniano, cuja percepção parece ser construída

considerando a intuição. Para Bérgson, a percepção se dá pela consciência que se

constitui simultaneamente pela inteligência, pela intuição e pelo instinto.

29

Intuição e inteligência representam duas direções opostas ao trabalho consciente...Uma humanidade completa e perfeita seria aquela em que estas duas formas da atividade consciente alcançassem o seu pleno desenvolvimento (BERGSON, 1999)

Na concepção bergsoniana, a inteligência só capta o que é material, ficando, por

assim dizer, no plano da racionalização o que encontra correspondência no sentido

que damos à racionalidade instrumental.8 Quando Bergson agrega o élan vital, ao

que ele chama de intuição, como fundamento da percepção e componente do ato da

consciência, parece fazer uma clara opção pelo idealismo, promovendo uma

subjetivação do conhecimento, enfrentando o dualismo “sensibilidade e

entendimento” e reconhecendo que “[...] idealismo e materialismo são, portanto, os

dois pólos entre os quais esse tipo de dualismo irá oscilar sempre [...]” (BERGSON,

1999, p. 186).

Também no sentido de enfrentar e romper com o dualismo cartesiano, no que se

refere à consciência, Gregory Bateson traz, com seu pensamento sobre o sagrado,

uma contribuição que consideramos fundamental na articulação com a idéia da

“zona-de-não resistência”, por meio da qual seria possível repensar novos caminhos

para uma abordagem científica “pós-moderna”. Bateson, em sua obra “El temor de

los angeles”, critica o dualismo da lógica clássica e afirma a necessidade de

aceitação do sagrado pela via do equilíbrio que descarta o fundamentalismo

materialista e o sobrenatural.

Para mi, el dualismo cartesiano constituyó una enorme barrera; talvez interese al lector que le cuente cómo llegué a una especie de monismo – la convicción de que espiritu y naturaleza forman una necesaria unidad en la que no existe un espiritu separado del cuerpo ni un Dios separado de su creación – y cómo aprendi asi a mirar con nuevos ojos el mundo integrado (BATESON; BATESON, 1994, p. 25).

No sistema filosófico ocidental, o idealismo parece propor uma redução da

existência ao pensamento, enquanto para o realismo, ao contrário, os objetos

existem independentes do pensamento. O idealismo reflete o interior e não o

8 A racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e tecnologia é uma das três lógicas de racionalidade definidas por Max Weber (SANTOS, 2000) e diz respeito a uma visão de mundo objetivada por princípios de eficiência e eficácia que, com o movimento da revolução industrial, tornaram-se hegemônicos na sociedade ocidental.

30

mundo exterior enquanto o ponto de partida do realismo é a matéria, que forma

o mundo e nos é revelada pela percepção.

Segundo Marin (2003, p. 41), podemos notar certa semelhança entre o pensamento

de Merleau-Ponty e o de Bergson, no que se refere à “[...] percepção de um ser

inserido no mundo percebido [...] na aceitação de uma influência de relações centrais

na sensação periférica [...] e nos conceitos de saber latente e síntese reflexiva [de

um] e de instinto e inteligência [do outro]”.

Também podem ser notadas diferenças entre o pensamento de Merleau-Ponty e o

de Bérgson, quando este se fundamenta pelo espiritualismo e dinamicidade

enquanto para aquele o fundamento é racionalista e estático, caracterizando mesmo

uma oposição de pensamento. O racionalismo e o cientificismo do pensamento

moderno, em certa medida presente no pensamento merleau-pontiano, não

reconhece como legítimo o processo supra-intelectual (MARIN, 2003).

Para superar a visão dicotômica do que se circunscreve no âmbito da subjetividade

e da objetividade, optamos por considerar, como Ribeiro Jr. (1991, p. 83), que “[...] é

na subjetividade da consciência que se encontra a objetividade do fenômeno”,

havendo, entre elas, objetividade e subjetividade, um fluxo contínuo de ações que

não nos permitiria delimitar uma da outra, como se acredita estarem fechadas nos

territórios demarcados pela verdade cartesiana.

A fenomenologia de Merleau-Ponty é considerada por Martins e Farinha (1984, p.

56) “[...] uma filosofia que recoloca as essências na existência” o que, por si, já

revela uma diferença conceitual marcante nesse autor, que demonstra, ao longo de

sua obra, uma visão transgressora do pensamento de sua época.

Se, por um lado, Merleau-Ponty tem como ponto de partida, para o seu debate

teórico, o epoché de Husserl, a ele não permanece aprisionado. No sentido original

do grego, epoché significa “suspensão do julgamento”. Para a fenomenologia de

Husserl, epoché representa uma separação necessária do mundo, um estado de

“suspensão do mundo natural”, uma “redução fenomenológica” (também

31

denominada “abstenção”, “enquadramento” ou “desconexão”) que pode desconectar

a experiência vivida de sua objetividade dando acesso às suas essências imanentes

(MARTINS, 1984).

Como característica fundamental do método fenomenológico, o epoché representa a

necessidade de um envolvimento existencial com a coisa mesma. Contudo, apesar

da influência husserliana, Merleau-Ponty compreende que não existe percepção por

si mesma e afirma que é por meio do corpo que se dá a compreensão em relação ao

mundo percebido. Para ele, o “[...] corpo tem seu mundo ou compreende seu mundo

sem precisar passar por representações ou subordinar-se a uma função simbólica

ou objetivante” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 202-203).

Ao envolvimento existencial fenomenológico segue-se o distanciamento reflexivo,

cujo propósito é capturar, na subjetividade da vivência, o significado da experiência

vivida. Mesmo impregnado pela produção husserliana, para Merleau-Ponty, o

objetivo dessa reflexão:

[...] não é permanecer com a estrutura da filosofia da dúvida de Descartes [...] mas ir ao âmago da experiência incorporada, que é o que a percepção é. Colocando-se diretamente contra a abstração e o vazio do cogito cartesiano – ‘Penso, logo existo’ - , Merleau-Ponty mostra que ser um corpo é estar atado a um certo mundo (LECHE, 2002, p. 44).

Há, portanto, no pensamento merleau-pontyano um rompimento com a dicotomia

essência-existência, mente-corpo e ele propõe a explicação do sentido das

estruturas do real, entendidas como totalidades concretas, dinâmicas, porque

dialéticas e articuladas pelo sentido imanente dos fatos.

Essa visão é a que mais se aproxima da concepção de percepção que pretendemos

abordar como fenômeno complexo inerente a um sujeito encarnado, como propõe

Ponty, quando afirma: “[...] a mente que percebe é uma mente encarnada”

(MERLEAU-PONTY, apud LECHTE, 2003, p. 44). Por seu conceito de percepção,

entendendo a realidade como um sistema que relaciona as idéias figura-fundo,

admitindo relações de causa-efeito, poderíamos identificar esta pesquisa com a

corrente filosófica estruturalista. Entretanto, em seu posicionamento claramente

32

contrário ao engessamento cartesiano, notamos que as idéias merleau-pontyanas

vão ganhando novas possibilidades conceituais cujas relações vão além da relação

causal, identificando-se com uma fenomenologia existencialista. Por conseguinte

nos reconhecemos e situamos nossa pesquisa fenomenológica mais próxima dessa

vertente teórica.

No que diz respeito a pesquisas relacionando Percepção e Educação Ambiental, é

possível verificar que existe uma larga amplitude conceitual sobre a qual nos

interessa tecer algumas considerações devido à grande ocorrência de referências

em pesquisas acadêmicas. De acordo com Reigota (2007, p.50), sobre o Estado da

arte9 da Pesquisa em Educação Ambiental no Brasil, “[...] podemos identificar

predomínio de trabalhos que procuram analisar as percepções, signos, significados,

representações, representações sociais, concepções e conceitos prévios de grupos

específicos”.

Ocorre que, ao tomar conhecimento dessa realidade, surge uma dúvida: de que

percepção estariam falando os trabalhos em questão? Estariam essas noções de

percepção fundamentadas na Filosofia, na Psicologia ou delas seriam

desdobramentos conceituais ressignificados pela prática educativa?

3.2 BREVE INCURSÃO AO UNIVERSO TEÓRICO DA PERCEPÇÃO AMBIENTAL

Quando procuramos compreender, do ponto de vista da precisão científica,

objetivamente, o dicionário (FERREIRA, 1986) apresenta a etimologia da palavra

percepção, indicando sua origem do latim: (perceptione) que, por sua vez, deriva do

latim: percipere, cuja tradução literal é apoderar-se de, podendo seus significados

ser assim definidos: a) adquirir conhecimento por meio dos sentidos; b) formar idéia

de, abranger com a inteligência, entender, compreender; c) conhecer, distinguir,

notar; d) ouvir; e) ver bem, ver longe, divisar enxergar.

Dessa observação decorre a idéia de que cada sujeito percebe, conceitua, e

9 A expressão utilizada refere-se à teoria do Estado da Arte de Spink (1996) cuja definição diz tratar-se de “[...] uma exposiçâo sobre o nível de conhecimento e desenvolvimento de um campo ou questão” (REIGOTA, 2007, p. 50).

33

responde ao ambiente de uma maneira que lhe é própria e que difere de indivíduo

para indivíduo. Dentre as muitas concepções de percepção possíveis, há aquelas

que se relacionam, como vimos, com os verbos olhar, escutar, ver, entender e sentir.

Neste caso o significado da palavra percepção estaria, então, predominantemente

relacionado com a captação do mundo exterior pelos sentidos. Consideramos que

essa seria, numa perspectiva reducionista dos processos perceptivos, uma

abordagem da percepção, fundamentada no comportamento humano e em suas

respostas neurofisiológicas a estímulos ambientais. Essa é a concepção segundo a

qual os estímulos se transformam em impulso de energia eletroquímica e depois

seguem pelo sistema nervoso até o cérebro, onde se dá a consciência da percepção

e o início dos pensamentos, conforme Okamoto (1996).

De fato, a percepção encontra-se largamente estudada no âmbito da Neurofisiologia

e da Psicologia. Na área da Educação, a referência para os estudos da percepção

ambiental surgiu entre geógrafos e fundamentou-se incialmente nos trabalhos de

percepção e cognição de Piaget. Segundo Del Rio (1996), os profissionais ligados a

esse campo de estudos buscavam, com isso encontrar uma variante epistemológica

à racionalização e sistematização dos neopositivistas e ao materialismo e

economismo dos neomarxistas. Nessa perspectiva, o foco principal passou a ser a

percepção, representação, atividades e valores propagados por grupos humanos em

substituição ao conhecimento unicamente objetivo e/ou teórico.

De acordo com Oliveira (2004, p. 24):

[...] desde 1952, Dardel, em sua clássica obra já abordava o espaço

geográfico de uma maneira mais ‘humana’, mais ‘natural’, mais

holística. Esta Geografia não tem ‘grilos’, não é dicotômica, não há

oposição entre a Geografia Física e a Geografia Humana, não há

controvérsia entre um método geral ou um regional.

Para Amorin Filho (apud DEL RIO, 1996), além de Eric Dardel, outros precursores

dessa abordagem impulsionada pela Geografia se destacaram no início do século

XX, como: Carl O. Sauer; John K. Wright e Kirk, este último responsável por

introduzir, na década de 50, a idéia da “geografia comportamental”. Kirk foi pioneiro,

34

ao chamar a atenção para a relação entre as percepções ambientais e as tomadas-

de-decisões locacionais. Por fim, citamos Lowental (1961) cujo trabalho se refere à

valorização da experiência vivida.

Essa maneira de ver a Geografia introduziu no universo da ciência uma abordagem

mais qualitativa, permitindo uma articulação com a subjetividade das dimensões

éticas e estéticas, no que se refere ao conceito de meio ambiente. Os estudos da

paisagem passaram a ser permeados de novos sentidos. Para Schmit e Mateus

(2005, p. 58), “[...] a percepção ganhou novas perspectivas quando assumiu o

adjetivo ambiental”.

No Brasil, o princípio da experiência, no campo da percepção ambiental, ocorreu na

década de 70, com o pioneirismo da professora Lívia de Oliveira na apresentação

dos trabalhos: “O conceito geográfico de espaço” e “Contribuição dos estudos

cognitivos à percepção geográfica”. De 1970 a 1990, os trabalhos, na área da

percepção, ganharam volume e conquistaram espaço avançando ao encontro de um

paradigma emergente. Nesse caminho, citamos os autores: Anne Buttimer

(1971/1974) e Gold e White, em 1974.

De todas as contribuições, consideramos que a mais abrangente, profunda e bela

vem do geógrafo Chinês Yi-Fu TUAN que, com seu pensamento, introduziu a

subjetividade como elemento constitutivo de “[...] novos e fundamentais conceitos

para a compreensão do ambiente e para as aspirações do homem, em termos de

qualidade ambiental” (AMORIN FILHO, apud DEL RIO, 1996, p. 141). Suas obras

mais conhecidas, encontram-se entre aquelas indispensáveis ao pesquisador que

deseja compreender e aprofundar seus conhecimentos na área da percepção

ambiental. Essas obras apresentam os seguintes conceitos: “topofilia”, “topofobia”,

“geopiedade” e “lugares valorizados”.

A partir desses trabalhos, novas pesquisas surgiram em diferentes centros de

estudos brasileiros, dentre eles: o do Paraná representado pelo professor Lineu Bley

e Lucy M. C. P. Machado (Unesp). Seguiram-se: Oswaldo Bueno Amorim Filho,

Maria Elizabeth Taitson Bueno e Márcia Maria Duarte (IGC/UFMG); Maria Elaine

35

Kohlsdorf (UNB); Lineu Bley (UFPR); Carlos Augusto Figueiredo Monteiro (UFSC);

Vicente Del Rio (UFRJ). Essa diversificação ampliou a abrangência dos estudos de

percepção para além do campo da Geografia, alcançando estudiosos e

pesquisadores de diferentes áreas de formação.

Mesmo com a crescente articulação em torno dos estudos e pesquisas sobre

percepção ambiental, cujos saberes vêm ampliando e algumas vezes

ressignificando seu campo semântico, percepção ainda é a terminologia mais

empregada.

Enriquecendo o debate Del Rio (1996, p.4), esclarece que o significado dessa

palavra remete tanto a uma interação dos processos neurofisiológicos quanto aos

cognitivos, afirmando que “[...] a percepção é um processo mental de interação do

indivíduo com o meio ambiente que se dá através de mecanismos perceptivos

propriamente ditos e, principalmente cognitivos”.

Apesar dessa compreensão, parece-nos que, em alguns momentos, é comum o

entendimento da percepção e da representação social como sinônimos. Porém

concordamos com Oliveira (2004, p.23), quando afirma que,

[...] enquanto ver é uma sensação, perceber é atribuir um significado, conhecer já requer a participação da inteligência, é um pensar. Ao vermos um meio ambiente, ao percebermos, construímos uma imagem desse objeto, que ao mesmo tempo é sujeito. Ver, perceber, pensar são processos embricados, de difícil separação.

Sendo assim, com base nesse breve estudo, notamos que a gênese do conceito da

percepção ambiental brasileira parece encontrar raízes no pensamento

fenomenológico da percepção discutida por Merleau-Ponty, agregando alguns dos

elementos que propõe esse autor.

No debate contemporâneo da educação, não podemos deixar de acolher a

contribuição do biólogo chileno Humberto Maturana que discute a noção de uma

percepção transgressora da lógica clássica e binária. A percepção vista pelo ângulo

36

da lógica clássica, segundo o autor, encontra-se apoiada nos conceitos de

Realidade unidimensional e unirreferencial e no conhecimento disciplinar produzido

in vitro, resultado de uma cultura científica racionalista.

Notamos uma divergência conceitual explícita em Maturana (2002, p. 72), quanto à

noção simplista da percepção, quando ele afirma: “[...] o fenômeno que conotamos

com a palavra percepção não consiste na captação, pelo organismo, de objetos

externos a ele, como implica o discurso usual da neurofisiologia e da psicologia”.

Acreditamos que as idéias desse autor convergem com aquelas propostas por

Merleau-Ponty, permitindo-nos, no desvelamento dos caminhos fenomenológicos

desta pesquisa, estender a compreensão do corpo que percebe para além da

relação objetiva figura/fundo, ampliando tal relação numa multiplicidade aberta e

indefinida em que as interações são de implicações recíprocas, pois, como seres

vivos, sistemas dinâmicos e abertos, de acordo com Maturana operamos em

congruência com o meio. Assim sendo:

O fenômeno conotado pela palavra percepção consiste na configuração que o observador faz de objetos perceptivos, mediante a distinção de cortes operacionais na conduta do organismo, ao descrever as interações desse organismo no fluir de sua correspondência estrutural no meio (MATURANA, 2002, p. 72).

Considerando a grande influência da Psicologia na gênese do conceito de

percepção ambiental, é, por conseguinte, inegável a contribuição das principais

escolas nesse campo do conhecimento, tais como o Estruturalismo, o

Funcionalismo, a Gestalt, o Cognitivismo e o Behaviorismo, para os estudos de

percepção ambiental. Reconhecemos, nesse movimento de elaboração e

ressignificação permanente do conceito, a importância no que se refere à

popularização do termo e disseminação da idéia de subjetivação de nossa visão de

mundo. Em decorrência dessa perspectiva subjetivante introduzida pelo pensamento

perceptivo, visando aos mecanismos de gestão mais conscientes dos recursos

naturais, organismos internacionais passaram a recomendar estudos de percepção

em projetos envolvendo meio ambiente, como foi o caso do Programa Homem e

37

Biosfera10 da UNESCO.

Os estudos de percepção ambiental no Brasil ganharam impulso e cresceram

promovidos pelo projeto OLAM – Educação Ambiental Para a Paz, cujo instrumento

de divulgação é a revista eletrônica de mesmo nome (OLAM, nome hebraico que

significa universo) além dos encontros periódicos organizados pelo grupo

coordenado pela professora Drª Solange Guimarães, da Universidade Estadual

Paulista de Rio Claro.

Pelo exposto, nota-se, e aqui reside uma das intencionalidades dessa exposição,

que não se pode aprisionar o movimento dinâmico de origem e evolução dos

conceitos, e seus desdobramentos em categorias estáticas do conhecimento.

Embora algumas vezes seja necessário recortar conceitos para com eles estabeler

um diálogo, é fundamental conservar, na lógica espaço-temporal desse diálogo, a

lembrança de estarmos, por um lado, mergulhados na complexidade do mundo e,

por outro, constituirmos um ambiente perceptivo em permanente auto-organização.

Como nossa referência inicial é a abordagem da percepção do ponto de vista da

fenomenologia merleaupontyana, situamo-nos no escopo da cognição, como

processo mental ocorrido no nível da consciência que organiza nossa interface com

a realidade e com o mundo. Sendo assim, inicialmente pensávamos concentrar

nosso olhar na emergência dos fenômenos perceptivos e nos sentidos provenientes

do trabalho da consciência.

Contudo, considerando a amplitude conceitual agregada por Humberto Maturana e

aquela revelada no decorrer dos encontros em busca dos sentidos do sagrado, os

resultados conduziram-nos por caminhos não programados e enveredamos também

pelos campos enigmáticos do inconsciente. Por tratar-se de uma pesquisa

10 O Programa Homem e Biosfera (MaB – Man and the Biosphere) da UNESCO foi criado após a "Conferência Sobre a Biosfera", realizada pela UNESCO em Paris, em setembro de 1968. Trata-se de um programa de cooperação científica internacional que visa a compreender as repercussões das ações humanas sobre os ecossistemas mais representativos do planeta para promover conhecimentos, práticas e valores humanos capazes de implementar relações que contribuam para a conservação desses ambientes.

38

essencialmente fenomenológica exisitencialista, entregamo-nos a esse ser-em-

construção da investigação, aceitando trilhar as veredas do inconsciente, por meio

da articulação teórica de alguns pressupostos do pensamento psicanalítico de Carl

Gustav Yung, quando estes se fizerem presença no(s) sentido(s) do sagrado,

expressos por algum dos participantes e sempre dentro dos limites das nossas

possibilidades e do nosso alcance.

Apoiada na flexibilidade do autofazer-se da pesquisa, citamos Marin e Oliveira (2006,

p. 182), quando observam que

[...] perceber é, antes de qualquer estruturação do pensamento e do arranjo das representações e significados do percebido, estar imerso no mundo. É permitir a dissolução das categorias sujeito e objeto no encontro, o que pressupõe a natureza intencional do ser enquanto presença. Caracteriza-se, assim, o caráter existencial das nossas reflexões [...].

Ainda sob um olhar transdisciplinar dos conceitos, a partir de um lugar de não

resistência, a Psicologia analítica yunguiana, no que se refere à teoria da segunda

metade de sua vida, admite a existência do sagrado e propõe que a Teologia e a

Psicologia têm em comum a alma, já que, para esse autor, o fenômeno religioso

nasce na psique humana e se manifesta na forma de símbolos. Segundo afirma

Jacobi (1986, p. 88), na concepção yunguiana, “[...] a psique, como nível de reflexo e

expressão do mundo exterior e interior [cria os símbolos] e os transmite de alma a

alma”.

3.3 (TRANS)MODERNIDADE

Para falar de complexidade, vamos nos reportar a um diálogo que tivemos a

oportunidade de estabelecer com um sobrinho de quatro anos, por ocasião de nossa

participação no Encontro Brasileiro para Estudos da Complexidade, que ocorreu no

Rio de Janeiro, em 2006. O cenário é a mesa do café, em Niterói, numa bela manhã

de sábado.

-- Tia Penny, aonde você vai?

Temendo que a palavra congresso não fosse compreendida, pensei em usar algo

39

mais simples e respondi:

-- Vou à aula.

-- Mas hoje é sábado.

Não adiantou...achei melhor não resistir e ver onde aquela conversa iria dar.

-- É, você tem razão, na verdade, estou indo a um congresso.

-- E o que é um congresso?

-- É um encontro de pessoas que se reúnem pra conversar algum assunto.

-- E que assunto vocês vão conversar hoje?

-- Hoje vamos conversar sobre complexidade.

-- E o que é complexidade?

-- Ah, Igor! Complexidade é uma maneira de ver o mundo que envolve muitas coisas

ao mesmo tempo.

Breve silêncio e ele conclui:

-- Ah! Entendi. Você também não sabe o que é e vai lá pra aprender, né?

E ele começou a rir de/pra mim. Um risinho maroto de quem acabava de descobrir

um segredo. Aquela pequenina mente pensante, ainda não enquadrada nos

modelos e padrões educativos, falou-me do paradoxo existente entre simplicidade e

complexidade. A fenomenologia, opção metodológica que definimos para este

estudo, oferece-nos infinitas possibilidades de autodescoberta e nos coloca sempre

“abertos”, para o novo. Concordamos com a afirmação de Marins e Oliveira (2006,

p.182): “[...] a fenomenologia é uma abordagem que permite a elucidação de inter-

relações não-evidentes e a suscitação de reflexões que enriquecem o sentido da

complexidade”.

O diálogo suscita reflexões sobre o desejo de aprender e como somos

impulsionados por ele durante nossos primeiros anos de vida. A curiosidade da

criança, sua espontaneidade, o destemor com que enfrenta grandes obstáculos e

pouco a pouco vai aprendendo a engatinhar, falar, andar e, nesse exercício de

exploração, começa a descobrir o mundo.

Com o tempo, vão surgindo formulações cognitivas mais elaboradas, e a curiosidade

espontânea na criança se manifesta por meio de perguntas, cuja intenção ainda é

compreender o mundo. É possível assistir a vídeos de comportamento animal que

40

demonstram a curiosidade instintiva presente também em outras espécies, mas a

formulação de questões complexas, segundo a ciência, só a espécie humana é

capaz de realizar. Por isso é a mais criativa do planeta. O problema é que também

tem se revelado a mais destrutiva.

O tempo passa, a idade escolar chega e aqueles que têm acesso vão à escola às

vezes para comer, às vezes para conhecer. Mas o desejo de aprender ainda está

presente nos primeiros anos da vida escolar. E a escola apresenta e representa um

mundo mais amplo, de convivência com os outros e de exploração de novos sons,

cores, sabores e imagens, apetitosos ou não. A escola alarga as fronteiras da casa,

do bairro, da cidade. Parece uma janela de onde se pode ver um outro mundo. Prato

cheio para neurônios inquietos, determinados a saciar o desejo de conhecer. E as

perguntas se alvoroçam na mente: o quê? Como? Por quê? E da janela da escola

continuamos a nos perguntar: como pode um avião voar? Quem criou o mundo?

Masturbar dá calo na mão? Por que existe a fome? Por que ninguém acaba com as

drogas? E “[...] à medida em que a escola vai ‘ensinando’, o gosto e a curiosidade

[de alguns] se vão extinguindo, chegando freqüentemente à aversão” (CANIATO,

1987, p. 77).

Na simplicidade de olhar o mundo pelas lentes de uma criança, nosso ponto de

partida para falar da complexidade é o que podemos concluir com Morin (2005, p.

43) ao nos dizer: “[...] o mundo está no interior de nossa mente, que está no interior

do mundo”. Nas artes plásticas a tela I and the Village do pintor Marc Chagall

expressa, em nossa percepção, esse pensamento, o que pode ser observado na

Figura 1.

41

Figura 1: Marc Chagall, I and the Village, 1911, oil on canvas

E é desse lugar que deveríamos também olhar a educação, cheios daquela coragem

inocente, fazendo-nos as mesmas e simples perguntas de outros tempos e, outras,

novinhas em folha, ou apenas recursivas. Por exemplo, será que duzentos dias

letivos garantem a construção da liberdade de pensar? Parece mais como uma

tentativa, essa sim, infantil, de delimitar o tempoespaço da vontade de aprender e

ensinar. Na concepção de Bauman (2001, p. 23):

[...] libertar-se de algum tipo de grilhão que obstrui ou impede os movimentos, começar a sentir-se livre para se mover ou agir. ‘Sentir-se livre’ significa não experimentar dificuldade, obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos pretendidos ou concebíveis.

Educação emancipatória, nesse sentido, significa retirar obstáculos, desobstruir

caminhos, desconstruir (pre)conceitos, permitir o movimento, deixar livre o desejo

humano de aprender. Sendo assim, consideramos pertinente articular livremente

teorias e conceitos emergentes, como a teoria da complexidade, as teorias dos

sistemas e do caos, as noções de auto-organização e seus desdobramentos

conceituais com outros que fazem parte da tradição acadêmica, pois entendemos

que essa dialogicidade sem fronteiras disciplinares se constitui em fundamento para

compreensão dos sentidos que vai adquirindo o sagrado, nos processos de

formação em Educação Ambiental.

42

Considerando a interação dos conceitos analisados, os fenômenos perceptivos

serão igualmente estudados como fenômenos complexos por constituírem uma

experiência para além das operações de captação da realidade externa e

estabelecimento das correlações sensório-motoras de observação do mundo

exterior. A teoria da complexidade passa a ser aqui fundamental para o

entendimento das questões, envolvendo o fenômeno da percepção, pois ela agrega

o uno e o múltiplo, o único e o diverso, estabelecendo interações e conexões,

tecendo, junto, fragmentos paradoxais. Ainda segundo Morin (2005.p.13), “[...] a

complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações,

retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico”.

A crise ambiental, que é também uma crise de degenerescência11 da ciência

moderna, e, por conseqüência, crise epistemológica, à qual estamos submetidos,

atravessa todas as áreas disciplinares e, portanto, atinge níveis profundos de

inteligibilidade do real, fazendo-nos refletir sobre a necessidade de constituição de

caminhos que sejam multirreferenciais e não-lineares.

Do ponto de vista da idéia de percepção que nos dá o suporte teórico para este

trabalho, vimos a necessidade de ampliar as fronteiras do conhecimento além dos

conceitos herméticos, exercitando uma atitude de tolerância quanto à incompletude

do saber, que é, em última análise, a própria incompletude humana. Como

conseqüência, vem a necessidade de articulação entre diferentes saberes, bem

como entre conceitos e afetos, numa tessitura muito mais ampla e profunda durante

a qual “[...] o sentir é esta comunicação vital com o mundo que o torna presente para

nós como lugar familiar de nossa vida” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 84).

De acordo com essa visão de mundo, procuramos valorizar, em certa medida, uma

coerência paradigmática, muito embora, conforme o apresentado até aqui, parece

evidente um sentimento de liberdade que nos permite transitar entre as inúmeras

possibilidades existentes na desigualdade de teorias e idéias que se cruzam no

momento da atual transição paradigmática.

11 Termo utilizado por Santos (1995).

43

O novo, ao contrário do que afirma Bachelard (2003), quando diz que a história das

idéias se faz através de rupturas, revoluções, “cortes epistemológicos”, não

necessariamente necessita romper com o velho, e esse, numa perspectiva

atemporal, transdisciplinar de coexistência, talvez nada mais seja do que um

novovelho. Enquanto Bachelard fala de rupturas epistemológicas, para Santos

(2000), não existe ruptura paradigmática e sim um processo transitório marcado pela

continuidade e também por descontinuidades, retorno aos vazios e incompletudes

do pensamento filosófico. Nesse sentido, somos, a todo instante, atravessados pelo

novo e pelo velho.

[...] a modernidade tem, intrínseca, a arrogância de um saber final. Esse saber é validado por critérios de ‘verdade’ embutidos nos sistemas filosóficos, religiosos e científicos. Essas ‘verdades’ constituem os sistemas de valores que convalidam o conhecimento, tornando-os saberes concluídos. Conseqüentemente, convalidam comportamentos humanos (D’AMBROSIO, 2001, p. 107).

A herança conceitual do pensamento cartesiano e linear legou-nos um modo de

conhecimento baseado na disciplinarização, com delimitação objetiva de métodos e

objetos de estudo. Porém, segundo D’Ambrosio (2001, p. 105):

Já no século XVII o método revelou-se insuficiente e surgiram tentativas de reunir conhecimentos e resultados de várias disciplinas para o ataque a um problema identificado como tal. O indivíduo devia procurar conhecer mais coisas para conhecer melhor. Os sistemas escolares, que se organizaram a partir de disciplinas, praticavam essa multidisciplinaridade que hoje está presente em praticamente todas as grades curriculares (grifo nosso)

Esse autor relaciona e estabelece, em seus estudos, uma gênese evolutiva dos

conceitos de disciplinaridade, multidisciplinaridade e interdisciplinaridade que os

articula com a própria gênese e evolução do paradigma tradicional. Para D’Ambrosio

(2001, p. 106) “[...] a interdisciplinaridade não só justapõe resultados, mas mescla

métodos e, conseqüentemente, identifica novos objetos de estudo”.

Na prática, o desenvolvimento de estratégias disciplinares, multi e interdisciplinares

revelou limitações de natureza intrínseca ao conceito do método moderno que é, em

essência, a idéia de disjunção a partir da qual se busca, na atualidade, uma

superação que talvez, pela gênese de sua axiomática, não seja possível realizar,

44

pois faltariam elementos de abertura ao sistema tradicional. “Para atingir esse ideal

é necessário ir além das limitações impostas pelos métodos e objetos de estudo das

disciplinas e mesmo das interdisciplinas” (D’AMBROSIO, 2001, p.107).

No sentido de superar difíceis desafios e romper as rígidas fronteiras entre as

disciplinas, surge, no cenário epistemológico da educação, a transdisciplinaridade

que, por sua vez, “[...] já tem um enfoque mais ousado do conhecimento. Aproxima-

se da idéia de transversalidade de conceitos, ou seja, os conceitos ficam mais soltos

para estabelecerem articulações, sem territórios, nem fronteiras” (TRISTÃO, 2004, p.

111).

Essa ousadia do pensamento transdisciplinar encontra-se presente no caráter

híbrido da Educação Ambiental, pois ela vai crescendo nas brechas dos muros

disciplinares e com isso vai flexibilizando estruturas rígidas, convergindo olhares,

unindo mãos e propósitos em favor não apenas de uma natureza equilibrada, mas

de um ambiente complexo, múltiplo e solidário. Convergindo suas idéias, alguns

autores corroboram esse pensamento e estabelecem algumas relações entre essas

abordagens. Nicolescu (1999, 49) sustenta que “[...] a linguagem disciplinar é uma

barreira aparentemente intransponível para um neófito. E todos somos neófitos uns

dos outros [...] no plano técnico, a intercessão entre os diferentes campos do saber é

um conjunto vazio”.

Já em relação à pluridisciplinaridade, o autor esclarece que esta se refere “[...] ao

estudo de um objeto de uma mesma e única disciplina por várias disciplinas ao

mesmo tempo [...] a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas sua

finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar” (p. 51). Dessa forma,

Nicolescu vai tecendo uma relação entre esses conceitos, revelando a linearidade

de suas abordagens que procuram inocuamente corrigir a disjunção cartesiana sem,

contudo, sequer abalar sua forte marca fragmentária do conhecimento.

A transdisciplinaridade, no dizer de Nicolescu, surge transgredindo essa lógica e, ao

mesmo tempo, rompendo com os conceitos anteriores e sendo, de certa forma, um

prolongamento na medida em que reconhece na disciplina o cerne da questão

objetivante do conhecimento e a ressignifica sustentando referir-se “[...] àquilo que

45

está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além

de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o

qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento [...]” (NICOLESCU, 1999, p.

51).

Na convergência do olhar transdisciplinar e em oposição ao paradigma simplificador,

a complexidade, um dos pilares de apoio dessa teoria, propõe (re)ligar o que esteve

disjunto e para isso é imprescindível romper fronteiras que separam. Não é tão

simples quanto parece. É preciso uma dose de coragem e ousadia para desconstruir

a lógica tradicional. É preciso humildade para reorganizar-se a cada novo instante. É

preciso compreender a lógica de uma unidade aberta do conhecimento, que se

reconhece incompleta. Concordamos com o pensamento de Tristão e Pinel (2005, p.

4-5) ao afirmarem que

[...] o paradigma da simplificação, que tudo fragmenta, não dá mais conta de explicar a mistura orgânica entre sujeito, sociedade e natureza nem os híbridos que representam situações concretas como as conseqüências da cultura humana sobre o meio ambiente e, muito menos, a diversidade da realidade contemporânea, embora estejamos todos impregnados pelo pensamento positivista reducionista.

Para criar e estabelecer novas relações com a verdade, ou talvez devêssemos nos

referir no plural, a verdades, em que a tolerância recíproca e a inquietude

investigativa sejam o ponto mais importante do processo de descoberta, mais do

que as descobertas em si, é necessário ampliar nossos campos perceptivos.

Tendo cada um de nós suas próprias percepções, estaremos, todo o tempo,

atravessando e sendo atravessados por diferentes realidades, orientados pela visão

transdisciplinar, passaremos a denominá-las níveis de Realidade. Estaremos, nós

mesmos, na condição de pesquisadores, percebendo a poética da vida tecida pelos

fios do tempo, dos saberes e dos sonhos: incompleta, impermanente, incerta e,

portanto, incapaz de afirmar verdades absolutas.

46

AS UVAS E O VENTO

Pablo Neruda

[...] Tu perguntas o que a lagosta tece lá embaixo...

Com seus pés dourados. Respondo que o oceano sabe. E por quem a medusa espera, em sua veste transparente?

Está esperando pelo tempo, como tu.

Quem as algas apertam em seu abraço... perguntas... Mais firme que uma hora e

um mar certos? Eu sei. Perguntas sobre a mesa

Branca do narval... E eu respondo cantando como

unicórnio do mar, arpoado, morre. Perguntas sobre as plumas do rei

pescador... Que vibrou nas puras

Primaveras dos mares do sul. Quero te contar que o oceano

sabe isto: que a vida... Em seus estojos de jóias,

é infinita como areia, Incontável, pura; e o tempo,

Entre as uvas cor-de-sangue... Tornou a pedra dura e lisa,

Encheu a água-viva de luz... Desfez o seu nó, soltou

Seus fios musicais... De uma cornucópia feia De infinita madrepérola.

Sou só a rede vazia diante dos Olhos humanos na escuridão...

E de dedos habituados à longitude Do tímido globo de uma laranja. Caminho, como tu, investigando

A estrela sem fim... E em minha rede, durante

A noite, acordo nu. A única coisa capturada

É um peixe... Preso dentro do vento

Investigando a estrela sem fim

Quanto à manifestação do sujejtobjeto desta pesquisa, é no ambiente relacional dos

múltiplos níveis de Realidade e de Percepção que esperamos encontrá-la, pois

partimos do princípio de que “[...] a percepção não é uma ciência do mundo, não é

47

nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual

todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles” (MERLEAU-PONTY, 1999,

p. 6).

Na axiomática transdisciplinar, a premissa básica não é a de fazer dos sujeitos da

pesquisa ou, como no caso deste trabalho, de suas percepções, objeto de estudo.

Buscando superar a relação binária sujeito/objeto, traçaremos um caminho por meio

do qual nos seja possível tornar presente a lógica do terceiro incluído. Nessa lógica,

o delineamento de um sujeitobjeto apresenta um elemento comum denominado

zona complementar de não resistência, cuja presença está associada ao conjunto

dos níveis de Percepção e de Realidade. Da definição transdisciplinar da “zona de

não resistência”, irradia-se o sentido de sagrado com o qual nos referenciamos para

avançar nesta investigação.

A filosofia clássica pressupõe um princípio de causalidade na organização da

matéria e da vida que, na idade Média, levou à elaboração das “provas lógicas da

existência de Deus” como um ordenador do cosmo.12 A idéia de auto-organização,

presente nas discussões contemporâneas, propõe uma ruptura nessa lógica,

demonstrando sua inconsistência. Interessa saber se essa ruptura vem se

expressando nos processos de formação em Educação Ambiental e de que forma

isso vem ocorrendo.

“Para compreender o problema da complexidade é preciso saber primeiro que há um

paradigma simplificador” (MORIN, 2005, p.50). O cenário epistemológico da

complexidade e da transdisciplinaridade parece-nos, portanto, ideal como mais um

componente do pano de fundo deste estudo que estamos realizando, por não estar

voltado para a resolução de problemas isolados, individualizados por um mecanismo

histórico e cultural de fragmentação do saber.

12 Expressão utilizada por São Tomás de Aquino, pensador cristão da Idade Média.

48

4 FIOS E REDES NA EDUCAÇÂO AMBIENTAL

Até este ponto pode parecer que a proposta de tecer os fios aparentemente distintos

da percepção, do sagrado e da educação, numa rede de saberes, seja uma

aventura sem nexo, provocando um estranhamento inicial. Mas “[...] a complexidade

se apresenta [mesmo] com os traços inquietantes do emaranhado, do inextrincável,

da desordem, da ambigüidade, da incerteza” (MORIN, 2005. p. 13). Apesar de

termos nós mesmos sentido esse impacto, percebemos que, ao falar de um

paradigma emergente, precisamos encontrar e aceitar novas formas de elaboração

para o pensamento complexo. Ou, como diria Bateson (1990), estabelecermos um

metapadrão capaz de, ao menos em parte, superar a disjunção de nosso

pensamento insistentemente reducionista.

Falar de educação é falar de complexidade e o que pretendemos aqui é fazer, criar

um metapadrão que ligue, de maneira complexa e temporária, os fios dos saberes

que elegemos como pressupostos de uma abordagem do sagrado na Educação

Ambiental. E porque desconcertados, perplexos e emaranhados no caos

socioambiental em que nos encontramos hoje, necessitamos de novos caminhos em

frente aos desafios da educação. O que devemos/queremos/ podemos ensinar?

Podemos ensinar? Como queremos/podemos ensinar? Ensinar a verdade do que

vivemos ou a verdade das intenções que constituem o currículo escolar? Nas

múltiplas e complexas coerções resultantes das verdades, encontramos efeitos

regulamentados de um poder real que nasce em toda parte, inclusive e,

principalmente, nas políticas de educação. Mas destas, que verdades estão se

tornando referência para os processos educativos formais e não formais que se

efetivam no cotidiano?

A construção teórica recente da educação indica, nas palavras de Foucault (1998,

p.142), “[...] não [ser] possível que o poder se exerça sem saber, não [ser] possível

que o saber não engendre poder”. Também Maffesoli (1998, p. 14) assinala que “O

saber ligado à ‘razão instrumental’ é um saber ligado ao poder”, o que para nós pode

significar que há, nos processos formativos, uma capilaridade que conecta as muitas

dimensões do educador, podendo imbuí-lo ou não do poder de religar suas práticas

49

ao paradigma da razão sensível13 e repensar na escola e fora dela o ambiente das

próprias emoções e o sentido de educar na e para a conturbada sociedade

planetária em que vivemos.

Para Foulcault, a relação saber e poder se exprime em seu sentido político de

regulação e de controle, que são as melhores formas de conhecimento sobre a

população a ser governada. A sedução do poder engendra atos educativos que

manipulam e conduzem os sujeitos com a previsibilidade das intenções de quem

educa, ideologicamente orientado. Onde fica a autonomia? Na tensão existente

entre saberes intencionais e poderes manipuladores? O saber transformado em

poder, qualquer que seja sua intenção, amputa as asas da autonomia, impedindo o

vôo livre do sujeito em direção ao reencontro consigo e com o mundo. Como diz

Rubem Alves (2005, faixa 2):

Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.

O desafio que se apresenta ao educador no cenário dos conflitos sociais é o de

educar para a vida, para o amor, ainda que muitas vezes o sentimento seja de

estarmos mergulhados em trincheiras de medo e dor. Na “grade curricular” de

nossas emoções, desejosos de reencantar a educação, é possível desenvolver um

novo e complexo estilo de educar que se efetive por meio de nossos espaços

pedagógicos e estimule um aprender a conhecer, a ser e, principalmente, a viver

juntos, na diferença?

Na Educação Ambiental, a efervescência do pensamento contra-hegemônico vem

provocando profundas transformações. Há, nas tendências atuais da Educação

Ambiental, o esforço em tornar os educadores sensíveis e comprometidos com

temáticas que vão desde a conservação até aquelas de cunho social, econômico e

político. O pensamento contemporâneo de olhar o mundo pelas lentes de um sujeito

13 Expressão adotada por Maffezoli (1998, p. 153) para expressar a sinergia da razão e do sensível; da matéria e do espírito e “[...] compreender que a racionalidade aberta integra como parte o seu contrário, e que é dessa conjunção que nasce toda percepção global”.

50

encarnado14 traz em si novas e amplas noções, que estimulam avanços a partir da

superação das dicotomias clássicas. Deixar nossos afetos conduzirem o processo

educativo pode significar uma abertura importante nessa lógica e a opção por uma

visão de mundo que evidencie a relação de interdependência humana com o outro,

com o planeta, uma visão que produza e promova o sentimento de compaixão.

Para Bachelard, citado por Sato e Passos (2006, p.20), “[...] educar é uma atitude

filosófica para alimentar sonhos”. Segundo os autores, para a formação do sujeito,

Bachelard orientava que era preciso mergulhar no turbilhão de dúvidas, inquietações

e incertezas, sendo necessário revolucionar o modo de organização dos grupos,

num enfoque de uma geometria diligente não euclidiana; na dinâmica dos

movimentos contra a inércia newtoniana; na construção de saberes sem fragmentos,

aquilo que hoje Edgar Morin intitula de complexidade.

Assim, a Educação Ambiental vai agregando aos seus múltiplos conceitos aqueles

que considerem as utopias e os sonhos como fragmentos indispensáveis à formação

do mosaico de um outro modelo civilizatório, compreendido a partir de bases

epistemológicas complexas e, por conseguinte, capazes de privilegiar na sua

construção, também e, principalmente, as dimensões ética, estética e espiritual.

4.1 DIMENSÕES E CORRENTES DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUAS

ARTICULAÇOES COM O SAGRADO

Dentre os componentes que alimentam os discursos e práticas em Educação

Ambiental, apontamos a questão do sagrado que, historicamente, foi relacionado

com a natureza, mas até agora é pouco investigado e debatido nas vertentes da

Educação Ambiental brasileira, embora, nós, brasileiros, estejamos impregnados e

intensamente atravessados pelas expressões do sagrado. Essa alienação decorre,

talvez, por um lado, da forte influência cartesiana que nos impôs uma desagregação

profunda de reconhecimento da nossa identidade espiritual e, por outro, do caráter

dogmático, polêmico e controverso com o qual o tema se revestiu ao longo da

história. Nas palavras de Sato e Passos (2006, p. 20):

14 A expressão utilizada por Najmanovick ( 2001) refere-se à afirmação da corporalidade do sujeito, provocando mudanças profundas na forma de apreciarmos nossa paisagem cognitiva.

51

[...] é necessário romper com a dicotomia do espírito e da matéria, permitindo que os sujeitos da EA pensem com os corações, ou seja, permitam unificar a racionalidade na sensação, oferecendo simultaneamente, o estranhamento ao lado do maravilhamento. Arroubo místico personificado na experiência humana do sagrado, no qual o tremor e a fascinação, Eros e Thanatos aliam-se no fluxo incontinente da vida [...].

Como prática educativa, a Educação Ambiental vem se tornando, na última década,

um espaço de diálogo sempre comprometido com a pluralidade de ser e pensar, e

por isso mesmo inclusiva, multi e transdisciplinar, participativa, integrativa e

transgressora, podendo, portanto, articular as variadas dimensões implícitas na

relação humano-natureza e humano-humano, no desenvolvimento de uma práxis15

em permanente transformação.

Envolvendo não apenas a confluência das áreas do saber das ciências sociais e

humanas, mas também das diversas formações discursivas oriundas de diferentes

campos do saber, assim como de múltiplas percepções e significações de mundo, a

formação do campo da Educação Ambiental resultou numa episteme difusa, não-

linear e auto-organizativa, que, de certa forma, “[...] reconhece a complexidade do

mundo na constante tentativa de religar, de associar o que esteve disjunto”

(TRISTÃO, 2004, p. 96).

Nesse sentido é que o poema abaixo tornou-se um ícone da Educação Ambiental,

na medida em que revelou e revela a disponibilidade de organização e

reorganização do conceito, mediante os ambientes internos e externos vividos pelo

educador.

Caminante son tus huellas El camino, y nada más;

Caminante, no hay camino, Se hace caminho al andar.16

Entre nós, grupo de seis mulheres integrantes da Rede Capixaba de Educação

Ambiental,17 esses versos do pensamento educativo complexo tornaram-se um

15 Por práxis estamos considerando a articulação teoria-prática como idéia indissociável, de uma prática fundamentada numa determinada corrente teórica. O termo é empregado com base filosófica em Gramsci e encontra-se fortemente presente na obra do educador brasileiro Paulo Freire. 16

Trecho do poema de Antônio Machado retirado de Gutierrez e Prado (2000, p. 61-62). 17 A Rede Capixaba de Educação Ambiental (Recea) foi rearticulada em 2003, após um período de

52

detonador psíquico de tal modo significativo que, quando eventualmente queremos

nos referir a uma qualidade ou um determinado aspecto da Educação Ambiental,

recitamos as primeiras frases e o riso é geral, um riso espontâneo e sincero que

representa um entendimento tácito de múltiplos sentidos e, ao mesmo tempo, de

algo comum que todas nós captamos e que nos constitui como coletivo, havendo

nisso uma clara demonstração do poder de sedução da idéia apresentada por

Antônio Machado.

Mas, embora aceitemos o sentido geral do ser-sendo-fazendo que se imprime nas

curtas estrofes que nos inspiram, após trilharmos pelos caminhos desvelados da

Educação Ambiental, sentimo-nos convidadas/(os) a reconhecer os percursos

daqueles/(as) que nos antecederam, pois deixaram pegadas não menos sedutoras,

que nos convidam a percorrer atalhos para uma compreensão de sua epistemologia

que vai aos poucos se constituindo num mosaico multicor, que representa a

diversidade de identidades da Educação Ambiental brasileira.

Segundo Sato (2006), ao longo de uma curta existência, a Educação Ambiental já

teve suas iniciativas tomadas à conta de prática ambientalista, de ecologismo

ortodoxo, de socioambientalismo e de ecologismo político.

Trajber e Marizochi (1996) citam a pesquisa de Sorrentino em que são classificadas

as diversas concepções de Educação Ambiental em quatro correntes: a

conservacionista, quando associada à Biologia; a educação ao ar livre, quando

fortemente marcada por aspectos culturais; a gestão ambiental, quando se aproxima

de uma tendência também política; e, por fim, a economia ecológica, derivada do

conceito de ecodesenvolvimento de Sachs.

O debate contemporâneo aponta tipologias da Educação Ambiental influenciadas

pela luta ambientalista, como o movimento de “ecologizar” as coisas que marcou o

retração de dez anos. Sua proposta é conectar entre si educadores/as ambientais e estes ao movimento da Educação Ambiental no Estado do Espírito Santo, propiciando o apoio mútuo entre os profissionais e instituições governamentais e não-governamentais ou outras organizações comprometidas com a Educação Ambiental.

53

pensamento crítico orientado para o paradigma da planetariedade, desenvolvido

pela ecopedagogia (GADOTTI, 2000; GUTIÉRREZ; ROJAS, 2000) e em vertentes

que variam da prática tradicional/conservadora e pragmática (LOUREIRO, 2004);

uma tendência crítica, claramente influenciada pelo pensamento revolucionário de

Paulo Freire e impregnada da (pre)ocupação socioambiental (GUIMARÂES, 2000,

2004; CARVALHO, 2004; LOUREIRO, 2006). Como demonstra Tristão (2007, p. 5):

Essa tendência, denominada de Educação Ambiental crítica ou transformadora, transforma a pedagogia em uma prática política, como sugere Giroux (2003), com uma cooperação entre educadores/as e outros sujeitos culturais engajados na lutas sociais e ambientais, criando espaços críticos de aprendizagem dentro e fora da escola, buscando a união com movimentos sociais organizados.

Notamos também, dentre as identidades da Educação Ambiental brasileira uma

tendência cuja marca é a emancipação do sujeito (LOUREIRO, 2004; LIMA, 2004).

Nesse caso, a relação conteúdo-prática se propõe crítica, porém vai além de um

olhar reduzido à politização do sujeito. A educação emancipatória, segundo nos

apresenta Lima (2004), propõe uma complexificação dos ingredientes que a

compõem.

Mesmo com a dinâmica de formulação e reformulação dos conceitos de Educação

Ambiental, ainda perpetuamos a lógica binária que dicotomiza o pensamento e opõe

as forças de ação. Em contrapartida, o pensamento pós-crítico, complexo e

transdisciplinar funda uma outra possibilidade que é a de convergência de saberes

fazeres nem concorrentes, nem unificadores, mas múltiplos, porque diversos, e

unos, porque conectados. Nesse sentido, fundada na perspectiva das correntes

sociofilosóficas, pós-estruturalistas e pós-modernas, emerge a tendência de uma

educação pós-crítica, cuja orientação abrange as demais e na qual, como afirma

Tristão (2007, p. 6):

[...] tanto a vida como o conhecimento são relacionados com a metáfora da rede. Essa abordagem considera a subjetividade, as relações intersubjetivas e a fundamentação como um conhecimento não-linear, fazendo analogia com a metáfora da rede para compreender a vida e o conhecimento, expressando o sentido de entrelaçamento e de interdependência.

54

Diante desse cenário diverso e extremamente rico, não pretendemos, no que se

refere as muitas tendências da Educação Ambiental, reificar agrupamentos e

classificações. Concordamos com Tristão (2007, p. 3), quando nos diz que “[...] a

intenção não é delimitar fronteiras, classificar ou rotular as diversas práticas e

tendências, mesmo porque não vamos encontrar nenhuma em seu estado puro, haja

vista que ora uma tendência se apresenta na outra, ora todas se apresentam em

uma única”.

Esse hábito de classificar, de erigir fronteiras se instala sub-repticiamente em nossa

mente como tentáculo do pensamento moderno, teimando em projetar os

pressupostos cartesianos em nossa visão de mundo. Seguindo a linha do

movimento subversivo presente na gênese da própria Educação Ambiental, não

pretendemos inventar o novo; queremos apenas percorrer as trilhas existentes,

seguindo os rastros, acolhendo as presenças conceituais, impregnando de sentido

suas pistas e com esses sentidos interagir, criando e recriando uma rede cognitiva

complexa. Como sugere Merleau-Ponty (2002, p. 42), “[...] falar e compreender não

supõe somente o pensamento, mas, de maneira mais essencial e como fundamento

do próprio pensamento, o poder de deixar-se desfazer e refazer por um outro atual,

por vários outros possíveis, e presumivelmente por todos”.

Por meio dessa interação, notamos que, dentre as diversas concepções teórico-

metodológicas de Educação Ambiental, vem havendo um aprofundamento e

valorização de aspectos da psique humana, nos processos educativos. Nesse

sentido, citamos algumas das correntes agrupadas por Sauvé (2005) que mais nos

chamaram a atenção: naturalista, sistêmica, humanista, moral/ética, holística,

feminista, etnográfica e ecoeducação, cujos enfoques dominantes recebem aportes

das dimensões criativa, estética, afetiva, sensorial, moral, intuitiva, simbólica e

espiritual.

Esta pesquisa trata de percepções e, portanto, traz intrinsecamente um olhar

fenomenológico da realidade, enquanto procura tecer, na perspectiva de uma

temporalidade não-linear e de uma razão sensível, os fios de diversos saberes. Com

a finalidade de compreender e conferir um novo sentido à práxis educativa.

55

Para Maffesoli (1998, p. 53),

O afeto, o emocional, o afetual, coisas que são da ordem da paixão, não estão mais separados em um domínio à parte, bem confinados na esfera da vida privada; não são mais unicamente explicáveis a partir de categorias psicológicas, mas vão tornar-se alavancas metodológicas, que podem servir à reflexão epistemológica, e são plenamente operatórias para explicar os múltiplos fenômenos sociais, que, sem isso, permaneceriam totalmente incompreensíveis.

Na concepção de Franz Brentano, filósofo alemão do final do séc. XIX e precursor

da fenomenologia, o campo de saber da Psicologia foi definido como ciência da

alma. O objeto da Psicologia é a subjetividade que por si só já incorpora a noção de

alma. Encontramos, portanto, em sua definição, um ponto de convergência, um

entrelugar, confortável para ocuparmos e que representa uma conjunção, verdadeira

ponte de ligação entre percepção e Educação Ambiental que, a nosso ver,

transversaliza a relação ser humano x natureza e a abordagem da espiritulidade

como dimensão humana, sendo cada uma dessas componente dinâmico na

constituição do devir humano.

Na redescoberta da natureza e no movimento de (re)integração do ser humano a

ela, a partir de novas construções teóricas, parece que estamos, como educadores

ambientais, nos conduzindo a uma revisão de nossa própria condição humana, com

formação de uma nova identidade, não mais predominantemente individualista, mas

uma condição de ser-em-grupo que se pretende solidária numa perspectiva

planetária. No pensamento de Tristão (2005), essa tendência pode ser reconhecida

numa dimensão ética da Educação Ambiental que envolve um princípio de

responsabilidade e respeito, no conceito polissêmico de participação associado pela

autora à dimensão política e à dimensão estética, identificada por um

reencantamento da vida, pelas utopias, sensibilidades e novas metáforas.

Já a reflexão hermenêutica de Grün (2004, p.27), ao referir-se à natureza, afirma

que “[...] a Natureza é o outro que se dirige a nós” e prossegue sustentando que “[...]

a aceitação da Outridade da Natureza passa necessariamente por um desejo

sincero de compreender e isso nos leva à hermenêutica da escuta” (p. 27). Por fim,

o autor diz “[...] que encontrando a Outridade da Natureza poderíamos retornar para

56

nós mesmos modificados, repensando aqueles preconceitos orientadores do agir

objetivador e antropocêntrico” (p. 29).

Tornamo-nos aprendizes de uma nova condição humana na qual a orientação

contínua dos fluxos de informação e consciência que atravessam e ampliam os

níveis de Percepção e Realidade, expandem o universo educador para além do

tempo-espaço linear, conectando simultaneamente sujeitobjeto, tornando-o, como

no entendimento de Nicolescu (1999), o sujeito transdisciplinar.

Nesse sentido, não consideramos relevante definir as vertentes de Educação

Ambiental a que este trabalho se vincula. Antes disso, queremos deixar clara a

liberdade que sentimos em transitar, como sujeito transdisciplinar, pelas diversas

concepções teórico-metodológicas, cujas contribuições, em momentos distintos, nos

fundamentam nesse exercício de dar sentido e conviver com os variados níveis de

Percepção e de Realidade, respectivamente, apresentados pelos formadores em

Educação Ambiental, entrevistados.

Assim como Sato e Passos (2006, p. 24), consideramos ser “[...] preciso evocar a

educadora ou o educador ambiental em sua nudez, no ímpeto do silêncio ou do

vanguardismo, sem se deixar dividir pela grosseira dualidade filosófica do sujeito e

objeto”. E ainda que:

Na dimensão político-poética da EA, não há orientações pedagógicas magistrais de receitas prontas, cartilhas que promovam o ABC de estratégias, ou bússolas que mostrem apenas um eixo ‘norteador’ do Universo, senão um conjunto de tentativas e erros, com acúmulo de dissabores [...]. A educadora ou o educador ambiental situam-se, assim, num enigmático mundo de descobertas, com dúvidas por onde caminhar ou qual itinerário seguir. O que move a EA não é suas temáticas abrangentes, mas localiza-se no enredo que se trama para que o mundo se mostre extraordinário, revelando que ‘o mundo não cabe no mundo e o real não cabe no concebível’ (p. 25).

Usando de linguagem metafórica, poderíamos relacionar a Educação Ambiental com

o barro que é maleável e, quando associado a outros elementos, ganha

consistências, resistências e durabilidades distintas. No entanto ele conserva

propriedades que lhe permitem tornar-se peça belíssima e necessária na expressão

57

cultural brasileira. Assim sendo, distinguiríamos, por questões óbvias, o tradicional

artesanato popular de confecção das panelas de barro capixabas.

A argila para nossas panelas vem de uma região conhecida como Vale do Mulembá,

situado no bairro Joana D’Arc, na Ilha de Vitória/ES. As artesãs extraem o barro, em

seguida, realizam o pisoteio para limpeza, retirando a matéria orgânica visível e os

grãos de areia maiores, elementos indesejáveis para o desenvolvimento de sua

técnica. Começa, então, a partir de uma bola de barro, a modelagem manual. Com o

movimento ritmado das mãos, as panelas são confeccionadas, alisadas e o

acabamento realizado com seixos de rio, cascas de coco, facas e estiletes. Quando

estão prontas, as panelas são colocadas para secar ao ar livre. Em seguida nova

limpeza é realizada nas panelas secas que seguem para a queima nas fogueiras e,

por último, passam por um processo de pintura, que é realizada com uma substância

especial, o tanino, extraído da casca de troncos de mangue vermelho (Rizophora

mangle), responsável pela coloração negra e pela resistência das panelas. Antes de

serem usadas, as panelas de barro devem ser “queimadas” com azeite e então

ficam prontas para alimentar nossas fomes. Resultam desse processo a beleza da

arte paneleira e o suporte para se cozinhar a famosa e cheirosa moqueca capixaba.

Assim como no trabalho artesão, o educador ambiental também realiza as etapas da

produção de sua arte, desde o preparo da matéria-prima, até o acabamento final,

passando ora pela queima de conceitos e práticas inoportunos, ora pela

incorporação de novos elementos, num enfrentamento permanente das incertezas e

numa tentativa constante de superação de seus desafios e limites, na

universalização de valores humanos. Nesse sentido, podemos dizer que o educador

ambiental, assim como o artesão, é aquele que junta e a Educação Ambiental, como

“[...] as panelas de barro não são [só] para serem contempladas, mas para dar de

comer [...]” (WALDECK, apud PEROTA et al., 1997).

Como sujeito transdisciplinar, o educador ambiental pode expandir seus horizontes

perceptivos alcançando uma visão progressivamente mais ampla e unificante da

realidade. O que costumamos chamar de: pensar globalmente, aqui se amplia para

um pensar-sentir-fazer englobante da realidade sem, contudo, pretender esgotá-la.

Para a transdisciplinaridade, “[...] a unidade que liga todos os níveis de Realidade,

58

se existir, deve necessariamente ser uma unidade aberta” (NICOLESCU, 1999, p.

59).

A idéia de unidade aberta da transdisciplinaridade encontra similitude com a unitas

multiplex de Morin. Ambas procuram se introduzir, na transdisciplinaridade e na

teoria da complexidade, respectivamente, a noção de simultaneidade no axioma da

não contradição entre os pares de opostos e a convivência do diverso. Nesse caso,

abertura e fechamento ao mesmo tempo.

Por meio dos estudos da Física, concluiu-se que os sistemas fechados estão

condenados à autodestruição. A própria natureza nos demonstra, pelos processos

de decomposição, uma abertura dos sistemas vivos e sua tendência de interação

com outros sistemas, em permanente abertura. A aceitação do paradoxo entre

abertura e fechamento, como princípio científico, só foi possível a partir das

descobertas teóricas (Max Planc, Einstein, Podolsky, Rosemberg) e comprovações

(Alain Aspect) da Física quântica. Alerta-nos Random (apud SOMMERMAN, 2002, p.

27):

Nosso olhar sobre a realidade determina a própria realidade. Mas a evolução do olhar, dos conceitos, das crenças é extremamente lenta, ao passo que a situação planetária experimenta, em todos os setores da tecnologia e da ciência, mas também na deterioração da vida planetária, uma aceleração exponencial.

Somente reconhecendo a existência de múltiplos níveis de Percepção e Realidade

podemos admitir a existência do terceiro incluído e do sagrado, sobre o qual nos

aventuramos a falar neste trabalho. Essa é uma abordagem que nos parece

efêmera, intermitente, praticamente inexistente na visão de mundo da lógica

clássica, mas uma presença real que se manifesta, numa outra lógica

(extra)ordinária, deixando dúvidas e incertezas que afastam muitos peregrinos, mas

que em outros despertam o grande encantamento da esperança expressa pela

poesia de Mello (2006).

AS ENSINANÇAS DA DÚVIDA

Tive um chão (mas já faz tempo)

todo feito de certezas Tão duras como lajedos.

Agora (o tempo é que o fez)

59

tenho um caminho de barro umedecido de dúvidas Mas nele (devagar vou)

me cresce funda a certeza de que vale a pena o amor.

Os ecos de nossos pensamentos, quando ressoam repetindo: ...aquilo que se

manifesta... encantamento e esperança... sagrado... submete a razão à sua

contraparte, ao seu inverso e sua materialidade esvai-se deixando entrever o

intangível. Por entre as cortinas da razão, a questão espiritual impõe-se à nossa

condição humana pela ação interminável de interrogações que nascem na mente,

crescem alimentadas pela dinâmica da vida, materializam-se nas expressões

culturais disseminadas como sementes aladas, transpassando o tempo e fertilizando

as sociedades planetárias. Para Eliade (1956, p. 84), “[...] o tempo constitui a mais

profunda dimensão existencial do homem, está ligado à sua própria existência,

portanto tem um começo e um fim, que é a morte, o aniquilamento da existência”.

Mas será mesmo a morte o fim da existência? “E a vida? E a vida o que é, diga lá

meu irmão....” As respostas se sucedem em cadência melodiosa e cativante

enquanto afirmam: “[...] Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo ...

Há quem fale que é um divino Mistério profundo... É o sopro do Criador ... Numa

atitude repleta de amor” (GONZAGUINHA, 1991). Que outros sentidos adquire a

questão existencial nas intermediações que emergem do hibridismo indivíduo -

natureza - sociedade? Que sentidos adquire o sagrado, nesse espaço-tempo do ser-

coletivo? Por mais avanços que a sociedade moderna tenha alcançado, ainda

permanecem alheias ao debate científico perguntas simples, como diria Rousseau,

e, para alguns inquietantes, que encontram, especialmente na cultura, oportunidade

de expressão. “Seja mítico ou inteligível, há um lugar em que tudo o que é ou que

será prepara-se ao mesmo tempo para ser dito” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 25).

Em busca de compreender o sagrado, os diversos caminhos percorridos pelas

civilizações geraram uma multiplicidade de símbolos, significados e valores que

muitas vezes traduziram relações de poder e potencialmente tornaram-se

causadoras de profundas divergências no pensamento humano, indicando assim o

terreno movediço sobre o qual caminhamos ao abordar esse assunto. Entretanto

não estamos mais sós e nem falamos de um senso comum, como sugerem as

60

palavras de Eisntein, citadas por Randon (2002, p. 39): “Se minhas teorias sobre o

universo estiverem certas, dizia Einstein, as pessoas precisarão de faculdades com

quatro dimensões para viver neste universo.” Ele estava certo.

Consideramos ser inócuo, no âmbito da Educação Ambiental, pretender

universalizar um conceito de sagrado a partir das características que constituem os

aspectos religiosos dessa humanidade. Contudo cabe considerar que as

abordagens científicas ocidentais que tratam desse tema têm como principal

fundamento o pensamento materialista de uma lógica binária, sempre partida do

pressuposto da existência daquilo que se pode comprovar concretamente. Não há

lugar, no contexto científico da Modernidade, para ampliação das noções de

espaço-tempo-matéria.

[...] ao expulsar o qualitativo e privilegiar exclusivamente o quantificável; ao mecanizar o cosmo e separar o corpo e a alma do homem; ficaram de fora do mundo da ciência a emoção e a beleza, a ética e a estética, a cor e a dor, o espírito e a fé, a arte e a filosofia, o corpo emocional e o mundo subjetivo (NAJMANOVICK, 2001, p. 84).

Como já mencionamos, em meados do século XX, emergem, na Física quântica,

descobertas importantes, cujos princípios tornaram possível a compreensão de uma

mesma realidade em diferentes níveis, e sua inclusão, nas discussões teóricas da

produção de conhecimento, ampliou o campo de visão, introduzindo uma nova

percepção da vida baseada na relatividade do conhecimento científico moderno. No

âmbito dessa nova perspectiva teórica, os dogmatismos de todo tipo tornaram-se

amarras indesejáveis e extemporâneas. Partindo desse lugar, a práxis da Educação

Ambiental emancipatória só pode se apresentar como problematizadora do

pensamento clássico da ciência moderna e proponente de um devir

progressivamente mais complexo.

Enquanto a ciência clássica, na medida em que avança, assiste ao

desmoronamento de seus alicerces teóricos, o meio ambiente também dá mostras

da falência desses pressupostos por meio de uma total incapacidade de reverter os

altos níveis de degradação impostos pela lógica exploratória dos recursos naturais,

como bem expressa a poesia concreta sobre espécies arbóreas da flora brasileira,

escrita por Gilberto Mendonça Teles e que apresentamos a seguir:

61

O MATO GROSSO DE GOIÁS18

1. Século XVIII

AROEIRA aroeira-branca/vermelha atambu ANGICO angico-branco/roxo/vermelho/

preto ANGELIM angelim-amargoso/araroba/coco/doce/pedra/rajado/rosa

almecegueiro ARAPUTANGA açoita-cavalos imburana CUMBARU breu-do-campo

BÁLSAMO canela BARAÚNA COPAÍBA copaíba-branca/vermelha cabrito

CABRIÚVA cega-machado canjerana CEDRO canjica carijó CAPITÃO-DO-MATO

coração de negro canjelim JENIPAPO/EIRO INGAZEIRO ingá-açu ingá-cipó

GARAPÁ calumbi chapada casco-danta IBIRAPITANGA cambiú CARAÍBA faveira

GAMELEIRA goiabeira-do-mato GONÇALO-ALVES embiú embira invira IPÊ ipê-

branco/amarelo/roxo/negro IPEÚVA imbiruçu JATOBÁ leite-vermelho JACARANDÁ

louro JACARÉ matuqueira Moreira macaqueiro MARIA-PRETA LANDI limoeiro

marinheiro mutambo mandobeira mandiocão nó-de-porco olho-de-cabra PAU-DE-

GOIÁS pau-candeia pau-cetim PAU D`ALHO pau-de-curtição PAU D`ARCO pau-

doce PAU D`ÓLEO pau-de-areia pau-roxo/ferro/rosa/santo pau-de-colher pau-

sassafrás pombeiro pimenta PAINEIRA PITANGUEIRA PIÚNA piúva PEROBA

peroba-rosa MOGNO quina SOBRO saputá SUCUPIRA SAPUCAIA tapororoca

TAMBORIL timbiúva VINHÁTICO vaqueta BARRIGUDA guatambu mangabeira

PITANGA pina catitanga canel-de-velho caiapó fruta-de-macaco osso-de-anta

catinga-de-cutia canela-gomosa farinha-seca pindaíba GUAPEVA almecegueira

INGÁ-MANSO roncador sangra d`água pé-de-branco caixeta pinheiro orelha-de-

burro joão-mole MARFIM papiro CABRIÚNA carvoeiro JATOBÁ freixo

MAÇAARANDUBA árvore-da-preguiça CATANHEIRO CEREJEIRA CARANDAÍ

carnaúba guariroba palmito FIGUEIRA piteira JEQUITIBÁ MULUNGU tamarindo

TARUMÃ CAJEIRA canil

18 Poema concreto apresentado na íntegra

62

2. Século XIX

AROEIRA aroeira-de-bugre/do campo ANGICO

imburana angelim-de-espinho/de folha larga

almecegueiro CUMBARU barbatimão BÁLSAMO

açoita-cavalos

canjica CABRIÚVA carijó CEDRO coração-de-negro

caparrosa-do-campo INGAZEIRO JENIPAPEIRO

GARAPÁ calumbi faveira CAPITÃO-DO-MATO

cangelim

CARAÍBA goiabeira-do-mato GAMELEIRA GONÇALO-ALVES

embiú embira IPÊ ipê-branco/amarelo/roxo/negro

peúva imburuçu JATOBÁ MUTUQUEIRA louro

moreira JACARANDÁ macaqueiro MARIA-PRETA LANDI

marinheiro PAU D`ARCO mandobeira PAU D`ALHO

mandiocão nó-de-porco olho-de-cabra

PAU-DE-GOIÁS pau-candeia pau-de-areia pau-de-colher

pau-roxo/ferro/rosa/santo pombeiro PAINEIRA

piúna pitangueira piúba PEROBA sobro saputá

SUCUPIRA tapororoca sapucaia timbiúva

VINHÁTICO BARRIGUDA mangabeira

timbiúva capitanga canela-de-velho caiapófrtua-

de-macaco

osso-de-anta catinga-de-cutia pindaíba

farinha-seca JEQUITIBÁ pé-de-pato-branco orelha-de-burro

sangra-d`água MARGIM CABRIÚNA joão-mole

treixo papiro pinheiro carvoeiro

árvore-da-preguiça carandaí CEREJEIRA guariroba

63

3. Século XX

aroeira-de-bugre aroeira-de-capoeira ANGICO

aroeira-de-campo angelim-de-espinho atambu

almecegueiro CUMBARU breu-do-campo

barbatimão canjica

GARAPÁ IMBURANA cedro caparrosa-

do-campo JENIPAPEIRO ingá-cipó

faveira casco-danta

cambiú goiabeira-do-mato

CARAÍBA GAMELEIRA cabriúva-do-

campo folha-de-bolo

PAU-D`ARCO MARIA-PRETA mandobeira

lixeira JATOBÁ landi marinheiro

mandiocão nó-de-porco pau-candeia

pombeiro JACARANDÁ piúva saputá

sapucaia canela-de-velho fruta-de-macaco

SUCUPIRA carandaí sangra-d`água

osso-de-anta catinga-de-cutia

caiapó canela-gomosa orelha-de-burro

freixo JEQUITIBÁ pinheiro papiro

árvore-da-preguiça SEBASTIÃO-ARRUDA

pau-terra lobeira araticum cortiça

canela-de-ema pequizeiro TAMBORIL

faveira aroeirinha banana-de-

macaco

64

4. Atualidade

babaçu bacaba bacuri capim-branco

capim-sempre-verde capim-bananeirinha capim-

meloso AROEIRA

capim-jaraguá catigueiro-roxo pau-terra

capim-gordura TAMBORIL capim-

membeca

capim-colonião capim-brachiaria PAU-D`ARCO

lobeira pequizeiro araticum cortiça

capoeirão capim-bengo capim-puba SUCUPIRA

faveira capim-navalha lixeira fedegoso

mangabeira aroeirinha guariroba JATOBÁ

derru derru derru derru

bada bada bada bada

iv iv iv iv

co ara co ara co ara co ara

le- le- le- le-

nha nha nha nhá

queimada qu`im`da q`eima`s qu`i`a`a qu``i``a`a

aceiro aceiro aceiro aceiro aceiro A ZERO

Se a dogmatização da ciência legou destruição, a dogmatização dos sentimentos e

de práticas religiosas resultou, de um lado, em negligência e repúdio gradativo de

seu conteúdo, identificado muitas vezes como alegórico-fantasioso ou romântico e,

por outro, em algumas partes do planeta forçou uma tendência oposta, a de tornar

suas verdades fundamentalistas. Em ambos os casos, as discussões teóricas e a

profanação da natureza, expressas pelo poema, avançaram em paralelo alcançando

o apogeu da dogmatização da ciência na expressão teórica do positivismo lógico e

gerando, no presente, uma realidade insustentável.

65

Em vão, a oposição sistemática à dogmatização dos valores espirituais, provocada

pelo paradigma moderno, tentou transformar a racionalidade instrumental no

ambiente aparentemente asséptico onde deveria florescer a verdade. Contudo a

influência desse pensamento nos ambientes naturais e humanos vem deixando

marcas profundas, a ponto de percebermos que é hora de rever(ter) nossas(novas)

posturas. Essa percepção foi também registrada na fala de uma das entrevistadas:

Tenho vinte anos fazendo EA, há vinte anos era mais importante que se tomasse isso como algo científico. No presente, como está a situação, urge a questão espiritual, agora urge. Já temos a base do científico, mas agora falta a teologia, faltam os valores, porque não resolvemos nada (ANALU).

No entrelaçamento do pensamento complexo e da transdisciplinaridade, podemos

destacar a presença de uma axiomática inovadora e compatível com algumas das

correntes mais atuais do pensamento pedagógico, especialmente da Educação

Ambiental. Citamos, por exemplo, a leitura de mundo propiciada pela teoria da

complexidade que, como vimos, torna possível uma imersão para além da dialética,

por inscrever-se num domínio teórico que não se encontra restrito ao tempo-espaço

histórico por ela definido, muito embora também se encontre inscrita nessa lógica.

O movimento de emergência de um novo paradigma favorece a problematização em

torno da contribuição que as dimensões, historicamente alijadas do processo

científico, poderão oferecer à qualidade de vida da biosfera terrestre. Os debates em

torno da ética, nessa sociedade de valores fluidos, também se tornaram foco de

análises e polêmicas. Para Albuquerque (2005, p.4), “[...] a procura por uma ética

que substitua os imperativos da neutralidade, da objetividade e da universalidade do

conhecimento científico, na gestão da natureza, abriu espaço para outras formas de

conhecimento”.

O mundo deixa de ser objeto de estudo do ser humano e este perde o status de

sujeito desse mundo. Homem e mundo manifestam faces de uma mesma realidade

multidimensional. No reencontro entre ciência e espiritualidade, vão se

desvanecendo, no horizonte dos tempos atuais, as figuras do “homem interior e

exterior”,19 derretendo-se as fronteiras do mundo macro e microfísico, tornando-se o

ser humano novamente (com)sagrado. 19

Merleau-Ponty, 1999.

66

Nada mais natural, no movimento inverso à disjunção, que se reintegre na

complexidade do ser o sagrado. A subjetividade do ser-sentir-fazer-sonhar e as

interrogações, enfim, encontram espaço para existir. Em tempos de preocupação

com o acondicionamento e destinação dos resíduos gerados pelas sociedades

modernas, pós-industriais, denominadas sociedades de risco20 (BECK, 1997),

podemos pensar na reciclagem de conceitos e na ressignificação do sentido da

verdade. No pensamento de Merleau-Ponty (1999).

A verdade não ‘habita’ apenas o ‘homem interior’, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo.

Nessa consagração ao mundo, destituídos do poder da verdade absoluta,

encontramos o sentido de reciclagem da lógica cartesiana e os pares de

contraditórios: sujeito-objeto, subjetividade-objetividade, razão-emoção, corpo-

espírito, coração-mente, dentre outros, são rompidos e descontextualizam a

segregação. A teoria da complexidade e a abordagem transdisciplinar incentivam a

horizontalidade das relações e a verticalidade do pensamento por meio de diferentes

níveis de uma Realidade considerada multidimensional e multirreferencial

(NICOLESCU, 1999). Esse movimento que vivemos de desconstrução e

reconstrução permite pensar que “[...] a possibilidade de desdobramento dos

conceitos nos levam à indagação se o mundo da matemática, tratando de

quantificações e de medidas exatas, não está falando, também, de um mundo de

encantamento e magia” (AERTHE, 1996, p. 71).

Ressignificando o conceito do sagrado, a transdisciplinaridade, em sua lógica

ternária, considera-o como aquilo que não se submete a nenhuma racionalização.

Corresponde ao que se denomina zona de não resistência no modelo de realidade,

composto por diferentes níveis que se apresentam em uma estrutura descontínua.

Somam-se a esses a complexidade e a lógica do terceiro incluído que, reunidos,

constituem os pilares dessa abordagem.

20 “O conceito de sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial (BECK, 1997a, p. 15, 16 e 17).

67

Chegando até aqui, notamos que é possível avançar interligando os fios dessa rede

de conhecimentos e afirmar que, numa perspectiva reducionista, a idéia de

reversibilidade parece inconcebível, mas, como nos coloca Eliade (1956, p. 81), “[...]

o tempo sagrado e forte é o tempo da origem, o instante prodigioso em que uma

realidade foi criada, em que ela se manifestou, pela primeira vez, plenamente [...]”. E

prossegue: “[...] é pela sua natureza própria reversível, no sentido em que é,

propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. Para um

homem não religioso esta qualidade trans-humana do tempo litúrgico é inacessível”

(p. 83).

Ainda que divergentes, as expressões, favoráveis ou contrárias à dimensão do

sagrado avolumam-se na linha do tempo da história humana na Terra. “Tempo rei,

oh! Tempo rei, oh! Tempo rei. Ensinai as coisas que eu ainda não sei [...]”

(MOREIRA, 1984). Soberano implacável das civilizações, o tempo age sempre,

destronando verdades absolutas, transformando as percepções e desvendando

mistérios. Outros povos, outras crenças e novas culturas foram postas em

movimento por sua ação permanente. As civilizações surgem ciclicamente

redirecionando caminhos, influenciando a trajetória humana, contribuindo, na

dinâmica de ordenação-reordenação do caos civilizatório, como se fossem

diferentes estágios do seu reverso, um princípio de ordenação, um ‘metapadrão’.

Em oposição ao caos, o pensamento científico postulou a idéia de ordem como

axioma das premissas que legitimam o paradigma moderno. Nas palavras de

Baumam (2001. p. 66), “[...] ordem [...] significa monotonia, regularidade, repetição e

previsibilidade [...]”. A ordem, na concepção do autor, regula a maior ou menor

probabilidade na ocorrência de determinados eventos. A desordem contemporânea,

vista e vivida pela ótica da crise ambiental ou social do mundo, soma-se ao

desencantamento da modernidade e contribui com o rompimento da sua expectativa

de previsibilidade.

Para Layrargues (apud TREVISOL, 2004, p. 33), “[...] a atual desordem da biosfera

decorre de uma longa, complexa e conflituosa cadeia de relações entre o mundo

humano e o mundo natural”. Estamos vivendo uma tal desordem ambiental, que

podemos chamá-la de caos. Em grego, a palavra caos (kháos) deriva do verbo

khaínein, que significa abrir-se, entreabrir-se, o que por si só já traz um sentido

68

profundo. Contudo, no exercício de compreender o mundo, a mente humana

complexa significa e ressignifica as palavras, instituindo verdades relativas e

provisórias. Como sustenta o pensamento de Merleau-Ponty (2002, p. 39), “A

filosofia não é a passagem de um mundo confuso a um universo de significações

fechadas. Ao contrário, ela começa com a consciência daquilo que corrói e faz ruir,

mas também renova e sublima nossas significações adquiridas”.

Qual a impressão que a leitura da palavra caos provoca em você? Com sentidos

diversos, “o caos” esteve presente na História denominando momentos da

humanidade. Na cosmogonia egípcia, por exemplo, o caos é uma energia poderosa

do mundo informe, que cinge a criação ordenada. “Existia antes da criação e

coexiste com o mundo formal [...], na tradição chinesa, o caos é o espaço

homogêneo, anterior à divisão em quatro horizontes, que equivale à criação do

mundo” (BRANDÃO, 2000, p. 184).

Na religiosidade da antiga civilização egípcia, situada no período da XVIII Dinastia, o

faraó Akenaton fundou o culto monoteísta consagrado ao deus solar Aton. O poema

“Pequeno hino a Aton”, como registro histórico dessa época, permite a percepção de

um conceito de caos profundamente religioso e interpretado como “[...] a estrutura

de onde emerge aquele que criará a vida” como se o universo fosse caos até a

intervenção divina. Foi a partir de Aton que se deu a ordem no caos e se fez a vida,

como pode ser notado no hino egípcio, citado por Eliade (1978, p. 134), que diz: “Foi

Aton quem criou todos os países, e os homens e as mulheres, e colocou cada um

em seu lugar próprio, atentando para suas necessidades”.

Embora múltiplas significações sejam possíveis, o conceito de caos por nós aqui

utilizado diz respeito ao plano das irregularidades, descrito pela teoria do caos

originada na Matemática e posteriormente associada à Física.

Essa revelação sobre o caos21 foi feita pela primeira vez por cientistas cerca do final da década de 1960, e desde então vem sendo intensamente pesquisada. Contudo, o verdadeiro significado do caos para nós, como indivíduos e como sociedade, só agora está começando a ser explorado (BRIGGS; PEAT, 2000, p. 13).

21 O termo científico “caos” refere-se a uma interconectividade subjacente que existe em fatos aparentemente aleatórios (BRIGGS; PEAT, 2000, p. 13).

69

Para essa teoria, pode-se identificar ordem na desordem aparente dos sistemas e é

nessa maneira de olhar o caos, do ponto de vista da ciência, que nos interessa

analisar e entrelaçar esse conceito com os demais. Embora descoberta recente, da

ciência formal, no Ocidente, a idéia de caos, como vimos, já circula há muito na

história da humanidade, especialmente quando procura retratar a busca das

civilizações pela compreensão das gêneses humana e do mundo.

Consideramos, como o faz Gobbi (2002), que, diante da “percepção do caos como

categoria de análise”, podemos inferir que, tanto no nível de realidade em que se

movimenta a ciência, quanto nos níveis de realidade sugeridos pelas crenças

religiosas, existem possibilidades de se estabelecer um diálogo, um entrelaçamento

que se manifesta inicialmente na transgressão de uma lógica binária, não-linear e,

posteriormente, no questionamento e revisão dos princípios do terceiro excluído e de

causalidade da lógica clássica. Pensar uma realidade multidimensional implica a

obrigatoriedade de estabelecer um estudo pormenorizado com base numa

perspectiva humanista, subjetiva e transdisciplinar a partir do qual sejamos capazes

de contemplar o sagrado destituídos dos preconceitos e fundamentalismos

culturalmente cristalizados.

Falar de fundamentalismo é chamar a atenção para as maneiras absolutistas de

interpretação das orientações teóricas de certas doutrinas religiosas, políticas ou de

qualquer outro lugar social, em detrimento do cuidado essencial com a vida. Diante

dos acontecimentos atuais, nós mesmos, por vezes, temos desejado que, no correr

do tempo, uma mudança se processe e que os conhecimentos produzidos por nossa

sociedade sejam colocados a serviço da paz mundial. Já se passaram mais de 100

anos desde que Max Planc revelou ao mundo a simultaneidade entre partícula e

onda ampliando o campo do conhecimento científico para uma lógica não-linear que

comporta diferentes níveis de Realidade. Contudo, com essas descobertas, pouco

ou quase nada se modificou no âmbito da educação que permanece em grande

parte sob influência de uma lógica binária.

No pensamento de Boff (2002, p. 39-40), “[...] outro tipo de fundamentalismo

comparece no paradigma científico moderno. Ele está assentado sobre a violência

contra a natureza”. Boff ilustra as idéias do filósofo ao citar seu pensamento:

70

[...] há de se torturar a natureza como o faz o inquisidor com seu inquirido, até que ela entregue todos os seus segredos. Impõe-se esse método, fundado no corte e na compartimentação da realidade una e diversa, como a única forma aceitável de acesso ao real. Desmoralizam-se outras formas de conhecimento que vão além ou ficam aquém dos caminhos da razão instrumental-analítica.

No desempenho de seu papel, coube, portanto, à ciência dar sentido ao meio

ambiente, o que de fato aconteceu a partir de uma cosmovisão objetiva e

reducionista, como vimos. Num movimento silencioso e transgressor de resistência,

opondo-se ao pensamento clássico científico, inúmeros fios, espalhados pelo tecido

social como “pontas soltas” (ASSMAMM, 1998), resistiram e se perpetuaram através

da História. Dentre eles, destacamos a hermenêutica que, na concepção de Grün

(2004, p. 28-29), “[...] permite trazer a Natureza alienada para perto de nós

mantendo a sua alteridade, sua Outridade... A hermenêutica não visa dominar a

natureza e sim escutá-la e entendê-la como Outro para que possamos voltar

modificados desse encontro”. Nesse sentido, consideramos essa “escuta sensível”

(Barbier, 1985) de si e do outro como movimento criador de novas tessituras, de

formulação e reformulação de valores, sejam eles individuais, sejam coletivos,

presentes na sociedade, associando-os em muitos momentos ao sagrado.

De acordo com o exame realizado por Soffiati (2004, p. 98), “[...] as diversas

concepções de natureza produzidas pelas sociedades humanas, seja pelos sistemas

religiosos, seja pelos sistemas filosóficos, seja ainda pelos sistemas filosófico-

religioso podem ser reunidas em seis grandes grupos”, a saber: visão sacralizada da

natureza, visão semisacralizada da natureza, visão holística dos físico-gregos, visão

semi-dessacralizada judaico-cristã, visão mecanicista da natureza e visão

organicista da natureza, cujas heranças, no mundo ocidental, foram uma forte

dogmatização religiosa que parece reverberar no enfrentamento das questões

socioambientais contemporâneas.

Trazer para o diálogo da Educação Ambiental a dimensão espiritual e considerar os

sentidos daquilo que é sagrado, na percepção dos formadores entrevistados, é

reconhecer uma condição de humilde insuficiência da racionalidade científica. Esse

reconhecimento representa uma reflexão sobre seres humanos e,

71

conseqüentemente, sobre sociedades, cônscios de sua incompletude e, portanto,

abertos à experiência do transcendental. No entendimento de Merleau-Ponty (1999,

p. 95), “[...] esta palavra significa que a reflexão nunca tem sob seu olhar o mundo

inteiro [...], que ela só dispõe de uma visão parcial e de uma potência limitada”.

No postulado de Baumam (2001, p. 74), “[...] estar inacabado, incompleto e

subdeterminado é um estado cheio de riscos e ansiedade, mas seu contrário

também não traz um prazer pleno, pois fecha antecipadamente o que a liberdade

precisa manter aberto”.

Apesar da noção de abertura, implícita no paradigma pós-moderno, notamos que

sua formulação não faculta à sociedade contemporânea o descolamento dos valores

e modos de pensar e agir da Modernidade. Ocorrendo simultaneamente, os

pressupostos de ambos coabitam o cotidiano, impregnando nossa visão de mundo

com sua axiomática, ao mesmo tempo em que abastecem os celeiros do

fundamentalismo como aquilo que “[...] representa a atitude daquele que confere

caráter absoluto ao seu ponto de vista” (BOFF, 2002, p. 25).

No mundo globalizado de hoje, que procura submeter as coletividades à perda de

suas identidades em favor da massificação nos níveis social, político, econômico e

cultural, estão sujeitos a tornarem-se fundamentalistas grupos de militantes políticos,

religiosos ou cientistas, dependendo para isso de sua visão de mundo e,

principalmente, de suas posturas no desenvolvimento das ações que lhes competem

tomar, sejam eles mais abertos e universalistas, sejam mais fechados e

individualistas em suas próprias convicções.

72

4.2 DESAFIOS DA EDUCAÇÃO AMBIENTAL: SUSTENTABILIDADES E ÉTICA

COMPLEXA

Diante de vários níveis de realidade, o espaço entre as disciplinas e além delas está cheio, como o vazio quântico está cheio de todas as potencialidades [...] (NICOLESCU, 1999. p. 52).

Uma matéria mais fina penetra uma matéria mais grosseira. As duas coexistem, cooperam numa unidade que vai da partícula quântica ao cosmo (NICOLESCU, 1999, p. 27).

Os estudos de percepção vêm contribuindo na investigação das relações humanas

com o meio ambiente, porque possibilitam compreender as diferenças de

valorização, as relações, atitudes, comportamentos e importância atribuídos a estes,

além de tornar visíveis as aspirações das populações humanas envolvidas em

questões ambientais, considerando não apenas os aspectos cognitivos, como,

também, fatores de crenças, valores individuais e coletivos, busca da felicidade

pessoal e progresso material, processos políticos e ideológicos, além de

comportamentos socioeconômicos e culturais.

É o conjunto desses aspectos que sustenta nossas vidas. Quero dizer, que nenhum

de nós pode eleger apenas um dos aspectos descritos, para cuidar. A complexidade

da rede de interdependência entre as dimensões humanas éticas, políticas e

estéticas é que dá sustentabilidade à vida. Pensar, portanto, em sustentabilidade

implica pensar no que é insustentável à nossa condição. Nesse sentido, a sociedade

atual oferece vasto campo para reflexão, basta fechar os olhos, ou abri-los e refletir

sobre nosso sistema penitenciário ou sobre o sistema político brasileiro. Em nível

mundial, parar um minuto na compreensão da complexa teia do sistema econômico,

cujo principal e paradoxal fator de operação é a especulação. Do mesmo modo,

encontra-se insustentável o modelo educacional que adotamos, e assim por diante.

Se a reflexão avança sobre o sistema ecológico planetário, então vemos um

panorama no mínimo constrangedor e, com grande clareza, que as dinâmicas

insustentáveis não são mais apenas restritas a determinados locais no planeta. A

insustentabilidade dos sistemas locais vem provocando uma crise de

sustentabilidade planetária. “Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem

73

mundial” (VELOSO, 1992). Na questão ecológica, por exemplo, algumas das

principais ameaças globais são: o esgotamento de água potável, a realidade das

mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, a poluição e a redução dos

recursos energéticos. Sobre essas questões, vejamos a que emergiu no Grupo

Focal 2, na forma de (pre)ocupação manifestada por Tati:

Eu acho que a gente tá vivendo a questão do limite porque nós estamos muito perto, nessa discussão que tá sendo colocada... a questão do aquecimento global, como irreversível, como sendo um processo que a gente vai viver, que a gente já tá dentro dele, esse é o limite! É um limite pra humanidade, não tem como ficar ainda ensaiando coisas. A gente vai ter que aprender a viver com limite, tentar protelar essa questão, tentar resolver a questão de alguma forma, mas a gente tá dentro e parece que não tem retorno, não tem como voltar. As geleiras começarem a congelar de novo! Não tem mais isso, sabe? Já tá dado, o mar vai subir mesmo, muitas populações vão desaparecer, muitas terras vão... quer dizer, então é o processo que a gente tá vivendo. E eu acho que tá colocando esse limite pra gente, esse limite que eu tô falando: nós usamos e abusamos enquanto espécie, muito além do que a Terra tinha condições de agüentar, então agora ela está dentro daquela perspectiva de Gaia, colocada pelo Lovelock, que ela tá se arrumando, a Terra tá buscando seu reequilíbrio e vai jogar fora aqueles que estão desafiando isso [...].

No decorrer das últimas quatro décadas, as formas de expressão da preocupação

mundial com a capacidade suporte do planeta Terra têm se apresentado de maneira

variada, ocupado as mídias e os diferentes cenários de discussão entre as nações.

A referência de emprego do termo sustentabilidade remonta ao século XVIII.

Segundo Brasil (2001, p. 155), “[...] o termo sustentabilidade foi usado pela primeira

vez por Carlowitz, em 1713, em uma referência à exploração de florestas na

Alemanha”. Depois, o termo foi cunhado de outras formas ganhando, a cada nova

terminologia, outros sentidos sem, contudo, haver, dentre suas matrizes discursivas,

uma definição clara e delimitada (LOUREIRO, 2003). Alguns desses conceitos que

aqui citamos são: desenvolvimento ecotecnológico (1973), ecodesenvolvimento,

(1980), desenvolvimento sustentável (1987/1972), desenvolvimento endógeno

(1988) e sociedades sustentáveis. Na análise de Tristão (2004, p. 48), a base do

paradigma da sustentabilidade “[...] está calcada nos pilares do desenvolvimento

sustentável, pois foi a partir disso que se pensou em sociedades sustentáveis; uma

garantia de renda mínima a todos os necessitados, isso conciliado com um clima de

liberdade e respeito aos direitos de participação nas políticas de desenvolvimento”.

74

Na mesma linha de pensamento, o Tratado de Educação Ambiental para

Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global afirma a importância da

Educação Ambiental no processo de incentivo à formação de sociedades

sustentáveis, que o documento identifica como devendo ser, socialmente justas,

ecologicamente equilibradas e que conservem entre si relação de interdependência

e diversidade. Layrargues (2004, p. 50) vai além, quando nos convida a lembrar que

sociedades sustentáveis “[...] são aquelas ao mesmo tempo ecologicamente

prudentes, economicamente viáveis, socialmente justas, culturalmente diversas e

politicamente atuantes”. Há quem possa dizer que tais sociedades são utópicas,

mas, como diria o poeta Quintana (1999, p. 36):

DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis...ora! Não é motivo para não querê-las...

Que tristes os caminhos, se não fora A presença distante das estrelas!

Voltando ao nosso movimento de busca pelo significado das palavras, fizemos

descoberta especial ao nos depararmos com as profícuas possibilidades de

significação do vocábulo sustentar, que dá origem aos conceitos discutidos

anteriormente. Segundo Holanda (1986, p. 1342), a palavra SUSTENTAR significa:

“[...] impedir a ruína, dar ânimo, proteger, defender com argumentos, alimentar física

e moralmente, estimular, incitar, instigar e pelejar a favor de”. O desencontro entre

significado e sentido pode ser observado no cotidiano, pois, se o termo

“desenvolvimento sustentável” apresenta um par de contrários, mostrando-se

inconciliáveis pelo modelo hegemônico, sua aplicação tem se revelado uma farsa

incontestável, sugerindo a necessidade de se pensar outros níveis de Realidade

envolvendo ecologia, economia e uma linha de dignidade22 humana, que comportem

uma lógica ternária.

Articular Educação Ambiental e sustentabilidade no âmbito da sociedade em que

vivemos implica pensar criticamente e romper com a farsa. Pensar não mais em um

22 Segundo Silva (2006) “[...] a Linha de Dignidade (LD) vem sendo desenvolvida pelo Projeto Brasil Sustentável e Democrático - no âmbito do Programa Cone Sul e em interlocução periódica com os projetos Chile, Uruguai e Argentina Sustentáveis. Este estudo tem o objetivo de transcender os limites dos indicadores normalmente em uso, como o IDH e a Linha de Pobreza”.

75

desenvolvimento sustentável, já que não existe perspectiva de que, com esse

parâmetro de desenvolvimento imperalista, a sustentabilidade aconteça.

Recursivamente retomamos a idéia de sociedades sustentáveis que parecem

sinalizar um diferente porvir. Essa diferença de emprego na terminologia nos

favorece a compreensão de que, ao educarmos para constituição de sociedades

sustentáveis, é imprescindível reconhecer o fracasso do atual modelo de

desenvolvimento econômico, político e social em que nos referenciamos. Por

conseguinte, como no jogo do xadrez, essa reflexão coloca em xeque os valores

sociais amplamente disseminados pelo movimento da globalização.

Na visão de Capra (1996, p. 27), “[...] se olharmos para a nossa cultura industrial

ocidental, veremos que enfatizamos em excesso as tendências auto-afirmativas e

negligenciamos as integrativas. Isso é evidente tanto no nosso pensamento como

nos nossos valores”. Como exemplo, o autor opõe algumas dessas tendências,

conforme demonstra o quadro 1 a seguir:

PENSAMENTO VALORES

Auto-afirmativo Integrativo Auto-afirmativo integrativo

racional intuitivo expansão conservação

[analítico] [sintético] competição cooperação

reducionista holístico23 quantidade qualidade

linear não-linear dominação parceria

QUADRO 1: Oposição de pensamentos e valores, segundo a percepção de Capra,

1996.

A globalização, como a percebemos hoje, é um fenômeno que busca a

homogeneização da cultura humana. Ela procura impor a todos o desejo de querer

fazer parte dessa atraente cultura “universal” que tem o poder aparente de nos

conectar em segundos com tudo o que há, num ilusionismo perfeito que induz à

sensação de completo domínio de tempo e de espaço. No âmbito da globalização,

23 Segundo N. do T., em Capra (1982, p. 13), “[...] o termo ‘holismo’, do grego ‘holos’, ‘totalidade’, refere-se a uma compreensão da realidade em função de totalidades integradas cujas propriedades não podem ser reduzidas a unidades menores”.

76

estamos de fato conectados uns aos outros, mas por uma rede extremamente frágil

de relações voláteis e volúveis cuja satisfação é tão passageira e superficial quanto

pode ser uma visita a sítio de internet.

Por outro lado, o fenômeno da globalização, por afrontar, assim, abertamente a

tendência humana de viver em grupo, parece alimentar em algumas pessoas uma

forte rejeição à proposta de hibridização da sociedade, gerando uma relação

paradoxal de supervalorização daquilo que é eminentemente identitário. Se, por um

lado, a cultura de massa leva à perda das identidades locais, por outro, pode

estimular o resgate e o fortalecimento da diversidade. No entendimento de Elias

(1993), para se compreender o fenômeno indivíduo/sociedade, é necessário desistir

de pensar em termos de substâncias únicas e começar a pensar em termos de

relações e funções.

Nesse caso, remetidos pelo pensamento do influente sociólogo da década de 70,

Norbert Elias, cujas obras também refletiram o pensamento sistêmico e complexo da

sociedade organizada como grandes “redes sociais”, recordamos que também vem

da Biologia a idéia de que realmente estamos conectados em redes, assim como

ocorre com os processos metabólicos, cujo encadeamento se dá por meio de redes

químicas, os ecossistemas se constituem e sustentam através de redes de

organismos e estes, por sua vez, resultam da relação entre uma delicada e

complexa rede de células. Finalmente, as células apresentam-se, nessa perspectiva,

como redes de moléculas e, assim, como sustenta Capra (2002, p. 27), “[...] onde

quer que haja vida, há redes”.

Ora, no contexto de uma comunidade internacional globalizada, referenciada por

uma lógica capitalista que se fundamenta em valores e pensamentos auto-

afirmativos, a expansão de uma “cultura-mercadoria” (GATARRI; ROLNIK, 1986)

que transforma pessoas e bens em mercadorias culturais, incluindo aqui também a

educação, tende a disseminar nas redes de nossas relações e funções,

pensamentos, discursos e atitudes insustentáveis. As questões colocadas no

contexto da relação meio ambiente e globalização vão, portanto, além de uma

preocupação com a visão utilitarista de recursos, cujo principal problema é a

77

escassez de matérias-primas ou a diminuição das fontes de energias renováveis.

Segundo Bauman (2003, p. 8):

Os riscos de hoje são de outra ordem, não se podendo sentir ou tocar em muitos deles, apesar de estarmos todos expostos, em algum grau, a suas conseqüências [é o que acontece por exemplo com] os processos de globalização sem controle político ou ético que solapam as bases de nossa existência e sobrecarregam a vida dos indivíduos com um grau de incerteza e ansiedade sem precedentes.

Ao sucumbirmos diante da mercantilização da vida, dos interesses individualistas

colocados acima do interesse público, das tramas subjugadoras do poder, das

facetas enganadoras da tentativa de globalização da cultura ou da força devastadora

da ambição, estaremos aprisionando séculos de história, lutas e conquistas, no

vazio de um futuro no qual a ética tende a se tornar, cada vez mais, fluida e seu

sentido cada vez mais difuso. “Contudo, mulheres e homens, seres histórico-sociais,

nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir,

de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos

sendo” (FREIRE, 1996, p. 36).

Considerando nossa interdependência fundamental de ser-no-mundo, o fechamento

em si mesmo, o isolamento voluntário, o individualismo exacerbado a que nos

conduziu a visão de mundo da Modernidade é destrutivo em alta escala e a falta de

ética é o sinal dessa decadência. Mas de que ética falamos? No entendimento de

Morin (2005, p.36):

[...] a ética é, para os indivíduos autônomos e responsáveis, a expressão do imperativo da religação. Todo ato ético, vale repetir, é na realidade, um ato de religação, com o outro, com os seus, com a comunidade, com a humanidade e, em última instância, inserção na religação cósmica.

Sendo assim, não é difícil convergir o sentido atribuído ao sagrado pela abordagem

transdisciplinar e a ética complexa apresentada por Morin. É mesmo curioso

perceber a recursividade do processo de produção de sentidos pelas palavras

usadas para compreendê-la: religação, autonomia, responsabilidade. É possível

notar também a presença da preocupação com o outro, com as relações e com o

cosmo, refutando, do ponto de vista da ética complexa, a mercantilização da vida. O

chileno Pablo Neruda vai ao encontro desse pensamento fazendo uma crítica,

78

quando discursa ao receber o Prêmio Nobel. Diz o poeta:

O mercado tem uma relação muito direta com os danos ambientais. A contaminação dos solos não afeta apenas os ares, os rios e as florestas, mas também as almas. Uma sociedade possuída de um frenesi para produzir mais, consumir mais, tende a converter as idéias, os sentimentos, a arte, o amor, a amizade e as próprias pessoas em objetos de consumo. Tudo se envolve com coisa que se compra, que se usa e se joga no lixo. Nenhuma sociedade havia produzido resíduo como a nossa. Resíduos materiais e morais.

Nesse contexto de discussão e ação, podemos parecer nostálgicos, mas “[...] quem

é que nunca levanta de noite querendo de volta o perdido”? (SÁ; GUARABIRA,

2005). Pela abordagem da complexidade, ao pensarmos em sociedades

sustentáveis, não podemos deixar de (re)considerar os fios soltos do passado,

naquilo em que demonstram espelhar nossa condição humana que, além de

guerras, misérias e fomes, também é capaz de criar a arte, aprimorar os cuidados

com a sobrevivência e avançar no desenvolvimento de tecnologias que assegurem

uma vida digna e com qualidade. Também não podemos abrir mão de uma noção de

ética que seja complexa.

[...] as sociedades mais complexas comportam, ao mesmo tempo que a própria religação comunitária, antagonismos, rivalidades, desordens, todos inseparáveis das liberdades. Além disso, no espírito dos indivíduos, as religações acontecem a partir da responsabilidade, da inteligência, da iniciativa, da solidariedade, do amor (MORIN, 2005, p. 35).

Essas referências passam a ser imprescindíveis no enfrentamento da atual crise

civilizatória, entendendo como principais desafios a serem enfrentados pela

Educação Ambiental emancipatória articular as questões envolvendo

sustentabilidade com a ética. Os processos formativos, nesse contexto, serão

capazes de contribuir para ressignificar valores e pensamentos de expansão,

competição e dominação atualmente estabelecidos, buscando compreendê-los a

partir de outros níveis de realidade para que se convertam em seus pares de

contrários, quais sejam, as noções de conservação, preservação, recuperação,

cooperação e parceria. Nessa perspectiva, Tristão (2004) argumenta que o que a

Educação Ambiental propõe é uma teoria comprometida com a emancipação dos

sujeitos, com a transformação da realidade socioambiental.

79

Emancipar significa tornar independente, libertar. Quando nos referimos a uma

Educação Ambiental emancipatória, estamos subentendendo a educação como

processo democrático e participativo por meio do qual cada cidadão tem direito à

manifestação livre de suas idéias e realizações, mas, ao mesmo tempo, é convidado

a repensar seu campo perceptivo, para ampliar sua noção de pertencimento24 a que

a idéia das redes nos remete. E, assim, reportando-nos para a idéia do pensamento

em rede, podemos associar à cognição as noções de responsabilidade, autonomia,

respeito à diversidade, isonomia, multidimensionalidade e exercício do poder.

Por meio da partilha solidária, da descoberta de novos caminhos para a reinvenção

do mundo, acreditamos que se dê a potenciação dos sujeitos para enfrentamento

livre e libertário do imobilismo social e dos sentimentos silenciosos de impotência.

Nessa perspectiva, como educadores, visamos a contribuir com práticas, de fato,

inclusivas e responsáveis que se articulem com as necessidades e problemas

relacionados com a questão socioambiental dos tempos atuais, em atendimento às

necessidades da coletividade e não do interesse de poucos.

É nesse sentido que retomamos a expressão sociedades sustentáveis, postulada

pelo Tratado de Educação Ambiental Para Sociedades Sustentáveis e

Responsabilidade Global, importando considerar a complexidade das relações

sociais e destas com a natureza, para sustentar o movimento contra-hegemônico de

suplantação dos pensamentos e valores auto-afirmativos em favor daqueles de

natureza integrativa, considerando-se a auto-organização, inerente ao pensamento

das redes, como importante estratégia para criar e aceitar novos níveis de realidade.

Ao citar a auto-organização, estamos nos referindo “[...] a dinâmica de emergência

espontânea de padrões de ordem e de caos num sistema devido às relações

recursivas internas do próprio sistema e/ou às interações do mesmo com seu meio

ambiente” (ASSMAMM, 1998. p. 135).

Nesse sentido, há um fundamento complexo sobre o qual cresce a noção de

sustentabilidade, comprometida com a dinâmica socioambiental-econômico-cultural,

24 Expressão utilizada para designar um princípio que admite um sentimento de inclusão societária sem perda de identidade individual (MOURÃO, 2005).

80

cuja conquista requer, obrigatoriamente, um movimento ético de empoderamento

coletivo com um novo arranjo lógico, que deve considerar a necessidade e

relevância das noções transdisciplinares. O pensamento complexo

[...] não é um conceito manipulável, é o de integrar em si próprio uma visão que busca a multidimensionalidade, a contextualização. É uma ajuda ao pensamento pessoal, não é um programa, um método ou modelo que pode sair da minha bolsinha e ser utilizado. É uma integração em sua mente de alguns princípios fundamentais (MORIN, apud SATO; PASSOS, 2003, p. 20).

Para vivermos em comunidades sustentáveis e levar a mensagem de autonomia que

a Educação Ambiental emancipatória sugere, faz-se necessário, primeiramente, que

os sujeitos se emancipem. A emancipação começa em cada um de nós, passa pela

dinâmica complexa e auto-organizativa íntima, mas não termina enquanto não se

estender, também, em nível micro e macro, à sociedade dos indivíduos. Parece-nos

notório que a crise ecológica atual evidencia, antes de tudo, uma crise da própria

sociedade. Configurando esse fato, acrescido de outros, o conceito de sociedade de

risco (BECK, 1997; GIDDENS, 2000) referencia nosso olhar sobre as questões

cotidianas. “Não se deve acreditar que a questão da complexidade só se coloque

hoje em função dos novos progressos científicos. Deve-se buscar a complexidade lá

onde ela parece em geral ausente, como, por exemplo, na vida cotidiana” (MORIN,

2005, p. 57).

Sentimos que há, agora, uma abertura na unidade do pensamento complexo para

mergulharmos no nível de Realidade do sagrado.

Para a filosofia ocidental uma crença intelectual fixa é a parte mais importante de um culto, é a essência de seu significado e o que o distingue dos outros. Assim é que as crenças formuladas fazem verdadeira ou falsa uma religião [uma teoria, uma filosofia, uma ciência], de acordo com sua concordância ou não com o credo de seus críticos (SRI AUROBINDO, apud D’AMBROSIO, 2001, p. 107).

81

5 CAMINHANTE E CAMINHOS

A transdisciplinaridade não é neutra, pois ela opta pelo sentido [...] o sujeito-conhecedor faz parte integrante da Natureza e do conhecimento (NICOLESCU, 2005).

O presente trabalho foi tecido numa perspectiva transdisciplinar, de tal forma que,

em sua constituição, pudéssemos abrigar as características de uma investigação

fenomenológica, inicialmente direcionada pela bússola do complexo olhar

merleaupontiano e posteriormente entrelaçada com elementos da teoria geral dos

sistemas, da auto-organização, da teoria do caos e da complexidade, consideradas,

por muitos, como abordagens pós-modernas e que, a nosso ver, ampliam as noções

de conexão/integração/(re)ligação/conjunção implícitas no pensamento de Merleau-

Ponty e presentes no paradigma emergente.

A percepção é aqui compreendida como referência a um todo que por princípio só é apreensível através de certas partes ou certos aspectos seus. A coisa percebida não é uma unidade ideal possuída pela inteligência (como por exemplo uma noção geométrica); ela é uma totalidade aberta ao horizonte de um número indefinido de perspectivas que se recortam segundo um certo estilo, estilo esse que define o objeto do qual se trata (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 48).

As novas possibilidades teórico-metodológicas subsidiadas pelo movimento da

transição paradigmática permitem-nos diferentes olhares sobre os mesmos

problemas, facultando um rearranjo no espaço conceitual das bases epistemológicas

aqui abordadas. Tornar mais elásticas as fronteiras disciplinares de um sistema é um

primeiro exercício no sentido de viver sem elas.

Para tecer os fios das percepções, atravessando suas fronteiras, articulando-as

entre si, visitando territórios alheios, seja do ponto de vista dos campos de saber

envolvidos nesta pesquisa, seja pela partilha intersubjetiva entre os sujeitos

participantes, concordamos com Morin, quando afirma que “[...] precisamos

ultrapassar a idéia simples de encerramento que exclui a abertura, a idéia simples

de abertura que exclui o encerramento [...] quanto mais complexo é um sistema,

mais ampla é a sua abertura, mais forte é o seu encerramento” (MORIN, 1997,

p.169-170).

82

Nessa perspectiva, abertura e fechamento são os mesmos conceitos que sempre

fizeram parte de nosso vocabulário. Entretanto ganham, no contexto do pensamento

complexo, uma conotação não excludente que se aproxima da idéia da lógica

ternária defendida por Nicolescu e encontra-se referenciada ao longo deste estudo.

Esta tensão existente entre os pares antagônicos engendra um princípio dialógico

que se encontra presente tanto na teoria da complexidade quanto na lógica do

terceiro incluído proposta pela abordagem transdisciplinar.

Em busca das percepções do sagrado, percepções presentes nos processos de

formação em Educação Ambiental, identificamos a configuração de múltiplos

sentidos atribuídos à palavra, o que nos remete a uma análise não estruturalista dos

resultados, eliminando de início a possibilidade de uma análise de conteúdo ou

análise textual. Segundo Carvalho (2005, p. 204),

[...] ao fechar-se na esfera do simbólico, o estruturalismo afirmaria sua necessidade de um universo de sentido logicamente estabilizado, expulsando de seus domínios a força dos jogos, deslocamentos e decisões de sentido que se impõem desde o plano da ação dos sujeitos e do acontecer histórico.

Pelo que foi discutido no quadro teórico, não acreditamos nessa estabilidade dos

sentidos e muito menos em uma lógica conceitual absoluta que desconsidere as

subjetividades dos sujeitos presentes no discurso. Para Spink (1999, p. 42),

produção de sentidos “[...] é uma prática social, dialógica, que implica a linguagem

em uso [...], é tomada, portanto, como fenômeno sócio-lingüístico”.

Do ponto de vista do olhar merleau-pontiano, a virtude da linguagem é nos lançar ao

que ela significa: do signo ao sentido. O sentido triunfa ao apagar-se a palavra e dá-

nos acesso ao pensamento do autor. Nisso somos sustentados pelo movimento do

nosso olhar e de nosso desejo.

Os jogos intersubjetivos e a realidade espaço-temporal em que foi constituída esta

pesquisa influenciaram claramente os resultados, como podemos exemplificar nos

recortes feitos no conjunto das narrativas e depoimentos que passamos a

apresentar:

83

[...] o que me apavora ainda um pouco, e a gente pega pela questão do sagrado, ultimamente, quando eu tenho sentido assim, na fala do meu filho de doze anos, que algumas pessoas jovens demais... o que tá me preocupando muito é, é a falta da perspectiva de futuro. Meu filho falou comigo um dia conversando... eu falando de uma coisa de futuro, daqui a 30 anos: ‘Ah! Nem sei se eu vou tá vivo’. E aí ele falou assim: ‘Mãe, quem é que sabe que vai tá vivo daqui a 30 anos?’(TATI).

Após seu depoimento, Tati solta um enorme suspiro deixando transparecer que

acabara de fazer um profundo desabafo e esfrega o peito em movimentos circulares.

Logo em seguida, outra participante faz sua colocação:

Esse pessimismo, é que eu não concordo muito com ele. Eu acho que nós já usamos bastante a capacidade suporte do planeta, mas agora a gente tem que correr atrás do prejuízo, como se diz [...] (AMANDA).

Por esse motivo, entendemos haver uma riqueza de sentidos, sentimentos, afetos e

crenças que precisa ser valorizada. Então, tomamos as narrativas como práticas

discursivas que entendemos ser “[...] as maneiras a partir das quais as pessoas

produzem sentidos e se posicionam em relações sociais” (SPINK, 1999, p. 45) e

procuramos privilegiar igualmente as linguagens verbal e não-verbal, como formas

de expressão.

Além da possibilidade dialógica das narrativas, vemos como Silva (1995, p. 205),

que “[...] é através de histórias sobre o passado – narrativas - que podemos dar

sentido ao presente e construí-lo e é também assim que podemos imaginar um outro

futuro”.

Parece evidente que os problemas ambientais, de âmbito global, enfrentados por

nós na atualidade, aliados às questões de ordem econômica e social, afetam

diretamente nossa percepção, alçando-nos algumas vezes para outros níveis de

Realidade. A maneira de expressar o sentido daquilo que percebemos passa pela

linguagem verbal, mas inclui também uma linguagem não-verbal – respirações,

posturas corporais, gestos, expressões da face etc. cujo conteúdo influencia a

relação dialógica no grupo, talvez até muito mais do que a fala em si. Somos mais

tocados pela linguagem não-verbal do que pelo conteúdo do verbo.

84

5.1 ENCONTROS E HOLOGRAMAS

Encontrar pessoas foi o caminho escolhido para o desenvolvimento desta pesquisa.

Pessoas são, potencialmente, hologramas da sociedade. Nesse sentido, encontrar

pessoas pode representar um encontro com os diferentes níveis da realidade social.

No pensamento de Tristão e Fassarela (2007), os encontros e eventos de educação

ambiental são também como rituais de iniciação e de (auto)formação em Educação

Ambiental junto a pessoas que se sensibilizam, se mobilizam e participam desse

debate. Sendo assim, consideramos que os encontros de formação ou eventos

seriam lugares bastante favoráveis à expressão do sagrado por aqueles que estão

tecendo suas redes de contatos e sentidos.

As estratégias utilizadas nas etapas de abordagem dos sujeitos, no âmbito geral,

foram baseadas em entrevistas semi-estruturadas, que consistem na interação que

se desenrola a partir de um esquema básico, porém que não se aplica com rigidez,

permitindo mudanças e adaptações de acordo com o andamento do trabalho

(GATTI, 2005). Consideramos importante, nessa fase, ouvir (linguagem oral) e

observar (linguagem gestual, postura corporal, expressões faciais etc.), pois, de

acordo com Merleau-Ponty (2002, p. 23), “[...] exprimir não é então nada mais do

que substituir uma percepção ou uma idéia por um sinal convencionado que a

anuncia, evoca ou abrevia”.

No que se refere aos Grupos Focais, Gatti (2005, p. 44) também afirma que “[...]

cuidar da expressão das falas é importante, pois a análise delas constitui rico

manancial para a busca dos sentidos atribuídos ao tema pelo grupo”. Sendo assim,

como apoio aos momentos de encontro para entrevistas e Grupo Focal, foram

utilizados diário de campo, gravador para fita cassete panasonic e, no caso dos

grupos focais, filmadora Handycam 20 X optical zoom; 800X digital zoom da Sony.

Para todas as entrevistas e também para os participantes dos grupos focais foi

solicitada permissão para uso das informações concedidas, dentre as quais algumas

vieram oralmente, outras por escrito. Os modelos de registro encontram-se anexos.

85

Nesses termos, todos os entrevistados consentiram na utilização irrestrita de suas

narrativas para efeito do trabalho investigativo. Mesmo assim, optamos por omitir os

nomes reais nos relatos apresentados para que a palavra recortada e aprisionada na

frieza do papel não remeta à figura dos educadores conhecidos, pois são

consideradas como idéias dinâmicas e em constante processo de “autofazimento”.

As narrativas e depoimentos obtidos nas entrevistas-teste, com educadores

estrangeiros (México e Bolívia), foram traduzidos para o português com auxílio de

duas professoras de espanhol, de forma a garantir a compreensão e a interpretação

correta dos termos, expressões e regionalismos próprios de cada entrevistado.

Também foi com auxílio de uma tradutora que o Termo de Consentimento, em

língua estrangeira foi elaborado.

As cinco horas de áudio gravadas foram transcritas, mas deixaram muitas lacunas

em trechos em que duas ou mais pessoas expressavam suas idéias

simultaneamente. Esses trechos não puderam ser compreendidos, remetendo-nos à

necessidade de rever as filmagens na tentativa de esclarecer as obscuridades das

respostas. As cinco horas de gravação em fitas mini DV Sony foram, então,

convertidas, pelo laboratório de áudio e vídeo do Departamento de Comunicação da

UFES, em formato digital e gravadas em CD-ROM, o que permitiu a revisão dos

textos e complementação dos trechos perdidos, além de favorecer a observação das

posturas corporais, expressões faciais e linguagem gestual, utilizadas pelas

participantes. Apesar desse esforço para aproveitar ao máximo as narrativas, alguns

trechos foram perdidos ou deixaram dúvidas que impossibilitaram seu

aproveitamento para este estudo.

Como conceito, o sagrado foi (re)visitado pelos participantes da pesquisa, a partir de

seus contextos de vida, por onde a atribuição dos sentidos foi sendo tecida.

Considerando a natureza complexa deste trabalho e a escolha do tema, optamos

por estabelecer diálogos com e sobre os resultados a partir de uma análise

hermenêutica, pois, para a hermenêutica, “[...] a principal preocupação é com o

sentido. Este é produzido na experiência dos sujeitos no mundo e, portanto, é

contextual” (CARVALHO, 2005, p. 209).

86

Olhar atentamente, entrar num processo de escuta sensível do outro que fala, não

pelo que é falado, mas perscrutando o sentido do que se fala, propicia compreender

que

[...] a linguagem como a entende a hermenêutica, se constitui enquanto abertura à significação, aonde o jogo da produção de sentidos vai se dar através da dialogicidade e da interpretação, numa perspectiva de produção de conhecimento pela via que a hermenêutica designa como compreensiva (em oposição a via explicativa) (CARVALHO; GRÜN, 2005, p. 179).

Nesse sentido e considerando a dialogicidade, a recursividade e a noção de

holograma como princípios que balizam a teoria da complexidade, articulamos a

análise hermenêutica, com as noções de unidade aberta (NICOLESCU) do

pensamento transdisciplinar e da unitas multiplex (MORIN), esta última presente na

teoria da complexidade como estratégia de eliminar a tensão entre a individualidade

das práticas discursivas e a emergência dos sentidos para o grupo. Para Morin

(2005, p. 73-75):

O princípio dialógico nos permite manter a dualidade no seio da unidade [...]. A idéia recursiva é, pois, uma idéia em ruptura com a idéia linear de causa/efeito, de produto/produtor, de estrutura/superestrutura, já que tudo o que é produzido volta-se sobre o que o produz num ciclo ele mesmo autoconstitutivo, auto-organizador e autoprodutor. A própria idéia hologramática está ligada à idéia recursiva, que está ligada, em parte, à idéia dialógica.

Como, no princípio hologramático, o todo está nas partes e as partes compõem o

todo, o holograma, do círculo hermenêutico que propomos criar é a ponte

interdimensional que liga os diferentes níveis de percepção e Realidade permitindo o

“[...] fluxo de informação que atravessa [esses níveis] e pelo fluxo de consciência

que atravessa os níveis de percepção” (NICOLESCU, 1999, p. 63).

Não pretendemos, portanto, esgotar esta análise em nossa percepção dos

resultados obtidos, pois cada leitor poderá, dentro do fechamento axiomático da

abordagem teórica que apresentamos, dar sentido às narrativas a seu modo,

evidenciando essa ou aquela percepção emersa no universo das práticas

discursivas registradas. Nossas leitura e análise desses resultados servirão apenas

como uma percepção a mais, além daquelas investigadas e tantas outras possíveis.

87

Os cenários escolhidos para a realização das entrevistas foram encontros de

Educação Ambiental, explicitamente destinados, ou não, à formação. Como critério,

ficou estabelecido que esses espaços-tempos de formação deveriam reunir um ou

mais profissionais com história de atuação nessa área, em nível nacional e/ou

internacional.

Considerando tratar-se de uma pesquisa sobre o “sagrado”, as metodologias de

abordagens qualitativas escolhidas no primeiro momento foram, conforme descrito,

as entrevistas individuais e coletivas, semi-estruturadas, pois, segundo afirmam

Lüdke e André (1986, p.34), “[...] uma entrevista bem feita pode permitir o tratamento

de assuntos de natureza estritamente pessoal e íntima, assim como temas de

natureza complexa e de escolhas nitidamente individuais”.

No cronograma inicial, as atividades destinadas às entrevistas ocorreriam de junho a

setembro de 2006, porém, para verificar a metodologia proposta e aproveitar a

oportunidade de realização de um encontro internacional de Educação Ambiental

que foi realizado no Brasil, congregando centenas de educadores, no período de 5 a

8 de abril, fizemos um pré-teste. O trabalho teve início, portanto, no V Congresso25

Ibero-Americano de Educação Ambiental, realizado em abril, na cidade de Joinvile,

e, na ocasião, foram entrevistados quatro educadores/formadores.

Os resultados do pré-teste, obtidos nessa primeira etapa, foram tão significativos

que indicaram a inserção de mais um instrumento metodológico, que foi a realização

dos grupos focais. As percepções obtidas foram tão importantes que consideramos

necessário contemplá-las como resultados e por isso foram inseridas na discussão

deste estudo. A despeito da qualidade dessas primeiras percepções coletadas, foi

feito um ajuste nas questões de investigação propostas, mantendo-se o eixo da

pergunta e flexibilizando-se a linguagem e sua profundidade de acordo com a

25 Esse evento contou com a participação de aproximadamente 5.000 participantes de 22 países. Sua realização ficou a cargo dos Ministérios do Meio Ambiente e da Educação, do Brasil, por meio do Órgão Gestor da Política Nacional de Educação Ambiental e teve por objetivo discutir as potencialidades da Educação Ambiental na construção de sustentabilidade planetária. “O Congresso, realizado no âmbito da Rede de Formação Ambiental do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA/ORPALC) representa um marco na integração regional dos educadores ambientais ibero-americanos.” MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE/MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2006. Disponível em ‘www.viberoea.org.br’. Acesso em 25/11/2006.

88

disposição dos entrevistados. Na prática, o objetivo de utilizar a entrevista como

instrumento na coleta dos dados garantiu a interação entre o sujeitobjeto da

pesquisa e o pesquisador, favorecendo uma relação respeitosa, não impositiva e de

confiança.

Além desse, outros objetivos motivaram a realização do Congresso Ibero-Americano

no Brasil: reunir as redes de Educação Ambiental, Ongs, movimentos sociais,

instituições públicas e privadas, educadores, estudantes e pesquisadores(as) de

várias partes do mundo; debater a contribuição da Educação Ambiental na

construção de valores, bases culturais e bases políticas de modo a contribuir para a

promoção de sociedades sustentáveis; consolidar e ampliar a Rede de Educadores

Ambientais Ibero-Americanos; e expandir a iniciativa de articulação e cooperação

internacional para os países de língua portuguesa.

Devido à diversidade de profissionais presentes, o evento representou ambiente

propício para a escolha de educadores com experiências e formações diversas,

presumindo-se diferentes percepções sobre a temática em questão. Essa escolha foi

acontecendo no decorrer do evento, por meio da observação dos participantes nas

atividades em que estivemos presente, pela oportunidade de abordagem e

disponibilidade dos entrevistados. Sendo assim, desde o início do evento, vários

potenciais sujeitos foram identificados.

Desses, quatro educadores ambientais, historicamente comprometidos com a

Educação Ambiental, foram entrevistados durante o encontro, sendo três deles

estrangeiros, o que abriu um leque extraordinário de informação e percepção,

enriquecendo muito a pesquisa, porque proporcionou o intercâmbio entre diferentes

contextos socioeconômicos, culturais e político-religiosos.

Os diálogos foram iniciados a partir de duas questões de investigação, apresentadas

em língua portuguesa, com tradução em apenas um dos casos para o espanhol, por

outro participante bilíngüe.

Durante o desenvolvimento das entrevistas-teste, notamos uma tendência natural

89

em haver uma socialização do debate em torno das questões apresentadas e dos

sentidos relacionando o sagrado com a Educação Ambiental. Isso aconteceu após

as primeiras entrevistas, quando colegas educadores, que tomaram conhecimento

do trabalho, iniciaram espontaneamente uma conversa, como segue transcrita:

A dimensão espiritual está presente na minha prática em Educação Ambiental. Na minha preocupação com a formação, existe esse elemento, através da minha maneira de atuar. Agora não sei se ela está presente, por exemplo, em termos de conteúdo, ou em termos de assunto que vai ser abordado, nesse sentido não (POLLY). Eu acho que está, porque a espiritualidade tem a ver com os valores, e a Educação Ambiental também tem, como princípios, um dos princípios da Educação Ambiental são os valores. Os valores éticos, a solidariedade, responsabilidade com o outro, o respeito, principalmente você considerar o outro, legitimar o outro, então esses valores eu acho que são valores que também estão presentes na espiritualidade e estão presentes na Educação Ambiental (AMANDA).

Considerando a multiplicidade de iniciativas existentes na formação do educador(a)

ambiental, a sua possibilidade de acompanhamento e a previsão de realizar

encontros de Grupo Focal, decidimos seguir o fluxo da pesquisa, pois foi ela mesma,

aos poucos, já se configurando, moldando-se ao real sentido e vivido. Sendo assim,

redefinimos o cronograma inicialmente proposto de forma a não estender as

atividades além do mês de abril do ano de 2007.

5.2 A DESCOBERTA DOS/NOS ENCONTROS: PRAZER E APRENDIZAGEM

Após o V Ibero e até março de 2007, chegou ao nosso conhecimento a ocorrência

de outros encontros de Educação Ambiental, entre congressos, seminários, oficinas

e cursos, promovidos pela iniciativa privada e pelo setor público na região da Grande

Vitória, região que abrange os municípios de Vitória, Vila Velha, Serra, Viana e

Cariacica, excluídos os encontros de formação, dos quais participamos, direta ou

indiretamente, no planejamento e/ou desenvolvimento das ações, que contaram com

a nossa percepção de educador. Dos que restaram, quatro momentos nos

pareceram significativos para nosso mergulho investigativo.

90

Promovido pela Rede Capixaba de Educação Ambiental (RECEA)26 e realizado no

período de 5 a 7 de novembro de 2006, o IV Encontro Estadual de Educação

Ambiental teve por objetivos: fortalecer a Rede Capixaba de Educação Ambiental;

aprofundar as discussões do V Congresso Ibero-Americano de Educação Ambiental;

integrar os educadores e educadoras ambientais do Espírito Santo; promover trocas

de experiências em Educação Ambiental; dar visibilidade às ações e práticas de

Educação Ambiental dentro de uma perspectiva da sustentabilidade no Espírito

Santo; inserir o Estado no debate nacional e internacional de Educação Ambiental.

A realização desse encontro contou com a formação de uma comissão organizadora

formada pelo grupo de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação do

Centro de Educação da UFES, o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos em

Educação Ambiental (NIPEEA).

Durante o evento, foram realizadas mesas-redondas, Grupos de Trabalho,

minicursos, oficinas, sessão coordenada com apresentação de projetos previamente

selecionados e apresentação de pôsteres, congregando diversos educadores da

Capital e cidades vizinhas no Centro de Educação da Universidade Federal do

Espírito Santo.

Como convidados para participação nos debates, vieram, de outras localidades,

cinco educadores conhecidos pelo trabalho que desenvolvem em áreas específicas.

Dentre as quais despertaram nosso interesse a formação e suas articulações com

as Danças27 Circulares Sagradas. Essa atividade começa a fazer parte da

programação de vários eventos de Educação Ambiental e nos perguntamos por quê,

qual a relação existente?

O contato com as Danças Circulares Sagradas tocou-nos profundamente; dançar é

puro prazer. Êxtase sagrado! A dança está presente em muitas culturas, talvez em

26 A rearticulação e fortalecimento da RECEA fazem parte do projeto de extensão do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos em Educação Ambiental e Ensino de Ciências da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). 27 A abordagem para a realização da entrevista com a focalizadora das danças circulares foi realizada e aceita com alegria. Contudo não conseguimos conciliar o tempo para realizá-la. Seis meses depois, uma nova oportunidade surgiu e conseguimos, enfim, entrevistar essa educadora.

91

todas. Esteve presente em minha infância. A dança é a linguagem do corpo.

Dançando ao ritmo da música, nossas percepções parecem formar, por alguns

instantes, uma unidade contendo vários níveis de percepção e é aí que a

circularidade promove o encontro com o ritmo do nosso corpo e com o ritmo do

“corpo” do grupo que dança, levando-nos de um nível a outro de Realidade, sem

resistências.

Bernhard Wosien, bailarino alemão, coreógrafo e professor de dança, iniciou sua

pesquisa sobre as Danças Circulares em 1952, investigando danças tradicionais de

diferentes povos. As danças foram por ele denominadas “Sagradas” porque

expressam – e conseqüentemente, nos fazem experimentar – a sabedoria da alma

dos povos e as qualidades espirituais, “[...] conteúdos primordiais da nossa própria

alma” (RAMOS, 1998).

Nas palavras de nossa entrevistada:

O sagrado é aquilo que todo mundo consegue acessar de uma maneira simples. O sagrado é aquele sentimento que a gente percebe em todos, igual. Não interessa o que eles são, de que formação ele é, de que tamanho, de que altura, de que idade que é, é aquele ponto que a gente tem em comum e que a dança circular consegue fazer acessar. Todos acessam juntos, ao mesmo tempo e se encontram, se encontram dentro desse ponto (IZA).

A subjetividade está presente no depoimento de Iza, o que nos leva a concluir que a

prática das Danças Circulares introduz, no movimento da Educação Ambiental, a

experiência de religação com aquilo que é sentido, numa vivência plena da

corporeidade28 na educação. Continua Ramos (1998):

O assombro diante da vida, a alegria, o amor, a vontade de conhecer o mundo e a si próprio, a coragem, a gratidão, a intuição do sagrado e do absoluto são percepções humanas universais, presentes em cada indivíduo, nas sociedades e culturas. Esses conteúdos são normalmente experimentados de forma isolada na nossa vida diária. Mas se potencializam na sessão de Dança, pois os participantes são estimulados a vivenciá-los de uma só vez.

28 “O termo pretende expressar um conceito pós-dualista do organismo vivo. Tenta superar as polarizações semânticas contrapostas (corpo/alma;matéria/espírito;cérebro/mente) (ASSMAMM, 1998, p. 150).

92

Findhorn, localidade onde se concentra a formação dos focalizadores em Danças

Circulares, é uma fundação, em forma de vilarejo, localizada na Escócia, nas

proximidades do Mar do Norte. Em Findhorn, vivem pessoas de todos os continentes

do globo. No Brasil, o movimento teve início em 1986, em Belo Horizonte, e se

espalhou por vários Estados.

Apesar da denominação, as Danças Circulares podem ser desenvolvidas em forma

de roda, linha ou espiral, independentemente da raça, credo, sexo ou idade, pois

todos são envolvidos pela magia do som e do movimento, harmonizados pelo

coletivo dos participantes. Há as danças de natureza alegre e vibrante, essas são

chamadas solares, e há as introspectivas, que são chamadas lunares.

Existe uma coreografia que se repete durante a reprodução das músicas. Porém,

após certo tempo, o corpo vai se soltando das amarras dos passos ensaiados e

ocorre uma abertura ao grupo, uma entrega daquilo que está dentro com todos que

estão fora, uma espécie de conexão entre o grupo que dança e cada pessoa

presente. “Quando repetimos os movimentos, realizados ao longo dos séculos por

inúmeras gerações, despertamos, da memória do planeta Terra, o significado

profundo contido em cada gesto” (BARTON, apud RAMOS, 1998, prefácio).

Promovido pelo Programa de Comunicação Social da Companhia Siderúrgica de

Tubarão (CST – Arcelor Brasil) e realizado entre os dias 20 e 23 de novembro de

2006, o II Encontro de Avaliação do Projeto Educacional Gênesis (Devolutiva),

trouxe ao Espírito Santo três educadoras paulistas. Após os contatos, conseguimos

participar de um dos encontros como observadora e também, a partir dele, foi

possível agendar entrevistas com duas delas, que haviam participado de todo o

processo na etapa de formação dos educadores capixabas.

De acordo com o fotógrafo Sebastião Salgado,29 autor do projeto, “Gênesis”, foi

concebido como uma tentativa de “[...] religar-nos com o mundo do início antes que

a humanidade o transforme de vez em algo quase irreconhecível. É um projeto que

dá continuidade à longa pesquisa fotográfica que deu origem a meus livros e

29 Texto extraído do caderno: Roteiros de viagem/manual do professor, emprestado da empresa Arcelor-mital, em agosto de 2006.

93

exposições”.

Suas fotografias capturam a essência de sua proposta e nos remetem a reflexões

sobre a relação tempo-espaço; natureza –sociedade e nossas origens, como a

demonstra a Figura 2 abaixo:

Figura 2: Lago no topo do vulcão Bisoke, fronteira entre Ruanda e a República Democrática do Congo Fonte: Sebastião Salgado (2007)

Apresentaremos um breve perfil desse autor, pelas palavras de uma de nossas

entrevistadas, pois, ao mesmo tempo em que descreve sua ação como fotógrafo, vai

analisando seu percurso de educador, cuja forma de comunicação e linguagem é a

imagem fotográfica:

Ele é um economista que começou a fotografar e se dedicou a fazer uma fotografia de denúncia, uma fotografia belíssima. Fotografia em que ele pega sempre gente e situações humanas. Olhares, gestos, relações, atitudes, grupos, situações, circunstâncias humanas, tudo isso muito forte, realmente de grande impacto, cada foto dele. Agora ele foi um militante em 64, perseguido, inclusive se exilou, fugiu, foi pra França onde foi morar e aí ele foi pelo mundo inteiro, fazendo essa fotografia de denúncia. Numa certa altura, ao que parece, ao que tudo indica, ele se encanta por esse mundo, pelo nosso planeta! Pela realidade de existência do mundo e ele, de uma certa forma, resolve se dedicar a ir mais fundo na questão, como se essa transformação que ele buscava na área de economia, que ele... a primeira crítica que ele faz, que leva a uma crítica política, que leva a uma discussão da realidade social e de uma necessidade de transformação; ele vai questionando mais fundo e ele chega a uma conclusão, como eu disse, do meu ponto de vista... ,ou seja, que se trata de uma mudança... a necessidade não é só uma mudança de visão política ou de visão econômica. É uma visão de paradigma mesmo, uma mudança civilizatória (MARA).

94

A narrativa de Mara vai além de um simples relato. Ela conta uma história e imprime

nela percepções e sentimentos que são seus. Apresenta, através do seu olhar, a

visão de mundo dinâmica do artista, tocada pela sensibilidade, que marca

definitivamente sua carreira e parece emocionar despertando admiração e profundo

respeito. É como se sua própria visão de mundo entrasse num processo

condensado/intensivo de transformação, seguindo a trajetória vivida pelo outro.

Quanto ao “Gênesis”, trata-se de um projeto educacional, cujo objetivo geral é

[...] contribuir para que a humanidade, redescobrindo-se como parte da natureza, lute pela conservação do meio ambiente, mudando as prioridades e as formas de promover o desenvolvimento e contribuir para ações de educação ambiental no ensino básico, articulando governos e diferentes parceiros na promoção de iniciativas que auxiliem educadores, crianças e jovens a atuar em favor de melhores condições socioambientais em suas comunidades, no país e no mundo (SALGADO, 2006, p. 4).

Figura 3 – Gorila na floresta impenetrável de Biwindi, área de Ruhija, Uganda Fonte: Sebastião Salgado.

Baseando seu trabalho na imagem fotográfica, Salgado rompe a linearidade

cognitiva e permeia de subjetividade o trabalho pedagógico, abrindo tempo-espaço

escolar para trocas intersubjetivas que favorecem o desenvolvimento de uma “razão

sensível”, como afirmam Tristão e Nogueira (2007) :

95

A imagem fotográfica pode nos transportar para outros mundos, fascinando-nos, maravilhando ao fugir da trivialização, como pode nos alertar sobre as mazelas do mundo e do cotidiano massacrante. Ela pode ser também transgressora do lugar-comum, do que às vezes os olhos sem suas lentes não conseguem ver, captar e sentir.

No contexto desse trabalho especial, é que abordamos as formadoras, com o

convite para participação na pesquisa. O grupo mostrou-se muito disponível e, como

em outros momentos no percurso desta pesquisa, o planejado foi ganhando

contornos diferentes na medida em que se concretizava, muitas vezes

surpreendendo, pelas descobertas propiciadas na dinâmica de “ir ao em-contro do

outro”. Nesse caso, a flexibilidade fenomenológica favoreceu esse desenho vivo,

bem humano, da realidade que vai sendo tecida por meio dos acontecimentos,

antes, durante e depois dos encontros de formação.

Foi assim que uma educadora, que, em princípio, não seria abordada para a

entrevista das outras duas, por não ter participado dos processos de formação do

referido projeto, demonstrou interesse em integrar-se à entrevista, passando a

figurar, de maneira espontânea, na pesquisa. Seu interesse manifestou-se,

sobretudo, pela presença de abordagem do sagrado e pela larga experiência, com

significativas observações sobre o assunto. As entrevistas que foram pensadas para

acontecer individualmente, nesse caso, iniciaram-se dessa forma e foram evoluindo

em entrevista coletiva pelo interesse e participação das entrevistadas, o que

proporcionou a todos agradáveis momentos de troca e aprendizagem.

Outro encontro que permitiu nossa aproximação foi o II Seminário de Formação de

Professores em Educação Ambiental, promovido pelo MEC/MMA e realizado pela

Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo (SEDU), no período de setembro

a dezembro de 2006, envolvendo professores de 5ª a 8ª séries do Ensino

Fundamental das escolas que participaram da II Conferência Infanto-Juvenil Pelo

Meio Ambiente.

O objetivo desse encontro de formação foi o fortalecimento e enraizamento da

96

Educação Ambiental nos espaços escolares; a formação de multiplicadores e o

incentivo ao protagonismo juvenil e formação das Comissões de Meio Ambiente e

Qualidade de Vida (COMVIDA) nas escolas. Para tanto, a formação contou com a

colaboração de sete educadores capixabas, dos quais dois já constavam como

convidados para participação na pesquisa. Dentre os demais, foi escolhido e

entrevistado um educador que conhecemos durante o IV Encontro Estadual de

Educação Ambiental do Espírito Santo e cuja disponibilidade favoreceu nos

reunirmos para a entrevista.

Após experimentar esses momentos e considerando a proposta fenomenológica do

trabalho, optamos por agregar ao processo metodológico, em desenvolvimento, a

realização de entrevistas nas quais pudesse haver troca de idéias entre os

participantes, cuja intenção foi ampliar a observação dos fluxos de informação e

consciência a respeito do sagrado, numa dinâmica de grupo.

Uma opção que nos pareceu interessante foi a realização do grupo focal por se

tratar de uma estratégia voltada para trabalhos em grupo, muito comum em

abordagens qualitativas nas pesquisas sociais. As definições de composição do

grupo, local das sessões, registros das interações grupais e o papel do moderador

foram referenciados com base em Bernadete Gatti, conforme veremos,

detalhadamente, em seguida à exposição dos procedimentos das entrevistas.

O grupo focal caracteriza-se por privilegiar a reunião de pessoas que apresentem

conhecimentos, vivências, interesses e outros pontos de vista que os habilitem para

uma discussão temática, favorecendo, assim, a teorização exploratória. A

possibilidade de utilização dessa técnica manifestou-se a partir das primeiras

entrevistas realizadas, como já descrito, e revelou-se um ótimo caminho para o

aprofundamento do olhar complexo sobre a percepção do sagrado.

O planejamento e organização dos encontros ocorreram de tal forma que cada

participante pôde contribuir com elementos presentes nas suas experiências

pessoais. Em nosso caso, a experiência de educadores ambientais. Na definição de

Powel e Single (apud GATTI, 2005, p. 16), “[...] um grupo focal é um conjunto de

97

pessoas selecionadas e reunidas por pesquisadores para discutir e comentar um

tema, que é objeto de pesquisa, a partir de sua experiência pessoal”.

Considerando a temática em questão, o período de tempo disponível e pensando

interagir os resultados obtidos nas entrevistas, com a dinâmica do grupo focal,

optamos por realizar dois encontros com o mesmo público. Para facilitar essa

descrição, ao longo do trabalho, denominamos tais encontros como grupo focal 1 e

grupo focal 2, GF1 e GF2, respectivamente.

Para a composição dos grupos, de acordo com o critério estabelecido, foram listados

24 educadores capixabas conhecidos. Dessa listagem, selecionamos 12

educadores, preferencialmente com práticas de atuação em ambientes

diversificados, dentre eles Ongs, órgãos públicos e iniciativa privada. Procuramos,

também, dentro do possível, variar na seleção as afinidades religiosas dos

participantes, evitando a constituição de um grupo constituído por pessoas que

representassem o pensamento de apenas uma tradição religiosa. Como sugere Gatti

(2005, p. 18), “[...] a escolha das variáveis a serem consideradas na composição do

grupo depende [...] do problema da pesquisa, do escopo teórico em que ele se situa

e para quê se realiza o trabalho”, justificando, assim, nosso cuidado. Dos doze

convidados, oito confirmaram presença na data e hora agendadas. Destes, cinco

compareceram no primeiro grupo focal. No segundo encontro, também

compareceram cinco, dos doze convidados, e três destes foram comuns,

comparecendo aos dois.

Tomando o contexto da formação como cenário de emergência, ou não, do sagrado,

é que elegemos, para participar do GF1, educadores com mais de um ano de

experiência em processos formativos de Educação Ambiental e opções religiosas

variadas como traço comum. Vale destacar que, para efeito de sua participação, os

educadores poderiam ou não ter participado em eventos recentes de formação.

Com a perspectiva de realização dos grupos focais, uma educadora ambiental,

conhecida nossa, demonstrou interesse, solicitando a oportunidade de participar, no

que foi atendida. Portanto marca nossa trajetória uma abertura na construção do

caminho metodológico que caracteriza a pesquisa fenomenológica quando acolhe “a

98

coisa mesma”, o real, o acontecimento vivido.

O local escolhido para a realização dos encontros foi a própria universidade, pela

localização mais acessível e facilidade para a organização do trabalho. Foram

escolhidas salas com ar-refrigerado, carteiras confortáveis, dispostas em círculo.

Nossa intenção foi colocar os participantes em contato visual constante para que se

sentissem à vontade e se situassem no debate, explicitando pontos de vista,

analisando, inferindo, fazendo críticas e abrindo perspectivas diante das questões

apresentadas quando fosse pertinente.

Iniciamos a atividade por uma breve apresentação interpessoal, explicação da

proposta e funcionamento do grupo focal e solicitação de permissão para registro

em áudio e vídeo. A justificativa apresentada para essas formas de registro foi uma

captação mais fidedigna dos diálogos que estavam por vir.

Pensávamos enfrentar algum constrangimento inicial, conforme relata Gatti (2005, p.

26), “[...] as pessoas tendem a se sentir mais à vontade com a gravação em áudio

do que em vídeo”. Contudo notamos no GF1 apenas uma preocupação das

participantes com relação à sua aparência: eram todas do sexo feminino. No GF2,

apesar de também serem todas do sexo feminino, não houve constrangimento

aparente e os registros seguiram conforme o combinado com o grupo.

Para o GF1 realizado no dia 23-12-2006, assim como por ocasião das entrevistas,

foi lançada uma questão inicial, visando a dar impulso aos debates. As questões

propostas e aceitas pelo grupo foram:

a) A questão do sagrado tem surgido nos processos de formação em EA que você

facilita? Como? A que você atribui isso?

b) A relação sagrado-natureza está presente nas discussões que envolvem o meio

ambiente? De que forma?

Os diálogos que se seguiram aconteceram de maneira natural, não tendo sido

necessárias novas inferências para motivar ou retomar o foco no tema. O grupo fluiu

99

numa dinâmica própria de relatos, trocas, concordâncias e discordâncias que

conduziu os trabalhos até o limite do tempo previsto que foi de três horas. Ao final,

apresentamos uma música e os participantes foram convidados a trocar cartões de

mensagens entre si. Uma das participantes demonstrou o desejo de que o tema

fosse gerador de um grupo de discussão permanente.

O GF2, realizado no dia 30 de março de 2007, aconteceu em outra sala, com a

mesma dinâmica de apresentação da técnica do grupo focal. Compareceram três

convidados, que estiveram presentes também no GF1. Por essa razão, sugerimos

ao grupo apresentar, além da “questão problema” definida para o encontro anterior,

outra questão e/ou trechos de respostas obtidos tanto nas entrevistas quanto no

GF1. O objetivo dessa sugestão foi socializar com os presentes alguns dos

resultados já obtidos e, a partir dessa interação, dar início ao processo de debate e

observação. Ao contrário do primeiro encontro, o início do debate foi mais lento, de

difícil fluência e, no decorrer, houve certo desencontro na disposição dos diálogos,

entremeado com períodos de silêncio desconcertantes, conforme registramos no

diário de campo e apresentamos a seguir:

SEGUNDOS DE SILÊNCIO DESCONFORTANTE: parece haver um estranhamento, talvez não estejam se sentido muito à vontade de trabalhar com as falas de terceiros, talvez seja a técnica empregada ou a filmagem, talvez estejam apenas pensando sobre os textos recebidos.

Talvez, como nos diz Randon (2002, p. 41), “[...] como o território do sentido é tão

diferente, é preciso um tempo de adaptação”. Em função desse conjunto de fatores,

a realização do segundo GF foi reduzida a duas horas e não houve possibilidade de

finalizar com uma atividade integrativa como no primeiro. O grupo foi se desfazendo

aos poucos.

Embora completamente diferente em sua dinâmica, com diálogos às vezes

truncados, o GF2 não foi menos interativo no que se refere ao desenvolvimento das

percepções dos participantes, pois consideramos esse ambiente carregado de uma

certa tensão, a princípio indecifrável, um resultado interessante na medida em que

retrata como as redes de sentidos vão sendo tecidas no dia-a-dia da Educação

Ambiental. Da mesma forma que os encontros, os desencontros das percepções

100

podem conservar o princípio dialógico na complexidade, mantendo a dualidade no

seio da unidade em desordem.

Ao final do tempo definido, mesmo com a saída de três participantes, continuamos

reunidos procurando avaliar verbalmente o encontro realizado. Na avaliação, foi

discutida a importância do trabalho em grupo para tratar de temas delicados, como é

a questão do sagrado, por tocar na diversidade de pensar e de ser dos educadores

e possibilitar a troca de idéias, o desenvolvimento do respeito às diferenças e à

prática da tolerância.

No pequeno grupo ali reunido, foi lançada a sugestão anterior de prosseguir com

encontros periódicos, independente de trabalho acadêmico, com o objetivo de dar

continuidade ao debate da Educação Ambiental num contexto mais amplo da

formação, abrangendo, além do sagrado, outras dimensões humanas.

5.3 ENTRE EMERGÊNCIAS E IMPOSIÇÕES

No diário de campo, ficaram registradas algumas das percepções imediatas aos

momentos das entrevistas. Essas observações ganharam contorno e volume numa

leitura posterior, revelando-se ora como emergências do e no processo de

investigação e ora como imposições a ele.

Podemos chamar emergências as qualidades ou propriedades dum sistema que apresentam um caráter de novidade em relação às qualidades ou propriedades dos componentes considerados isoladamente e dispostos de maneira diferente num outro tipo de sistema (MORIN, 1997, p. 104). [...] imposições, restrições ou sujeições, fazem [os sistemas] perder ou inibem neles qualidades ou propriedades (MORIN, 1997, p. 105).

Como forma de organização dos resultados, inicialmente, pensamos a elaboração

de uma espiral concênctrica de sentidos, sustentada por um fio-eixo imaginário que

seriam os níveis de percepção sobre os quais girariam as questões de investigação

e as metodologias empregadas. Foi dessa forma que os sentidos do sagrado, as

emergências e imposições se revelaram intuitivamente a nós.

101

Posteriormente, percebemos ser possível conciliar a intuição inicial com o conceito

de círculo hermenêutico, pois, segundo Carvalho e Grun (2005, p. 177), “[...] para

Shleirmacher [primeiro a desenvolver a concepção de círculo hermenêutico], a

compreensão se dá sempre de uma forma circular, oscilando numa relação

recíproca entre o singular e o todo do qual esse singular faz parte”. Afastamo-nos,

desse modo, da objetividade atribuída à concepção metodológica de Dilthey, do

círculo hermenêutico, e passamos a uma interpretação compreensiva das narrativas

por acreditarmos que, “[...] no círculo da compreensão as relações dicotômicas

tendem a ser diluídas e, portanto, a idéia de causa-efeito ou ainda objetivo –

resultado [...] ficam sem sentido” (p.181).

Esses círculos concêntricos virtuais pareciam se sobrepor, podendo em alguns

momentos se tocarem ou se afastarem, dependendo dos fluxos de consciência e

informação que os atravessavam. Algumas vezes, o fluxo da espiral parecia ser

interrompido por imposições, para, em seguida, continuar espiralando como uma

molécula de DNA.30 As pontas da espiral, por mais que se aproximassem, nunca se

fechavam, fazendo-nos pensar que, quanto maior for a complexidade do sistema,

maior será o nível de condensação das idéias, maior o enovelamento dos sentidos e

a possibilidade de se formarem campos de resistência ou a passagem de um nível

para outro, assegurada pela lógica do terceiro incluído.

Do ponto de vista do registro gráfico dessas imagens, não conseguimos avançar,

não só por limitações no domínio da informática, mas como pela complexidade de

cartografar uma seqüência de emergências e imposições que vão se espiralando na

medida em que acontecem os diálogos, como citamos o exemplo originado no GF 1.

Se podemos fazer algo: recortar trechos dos diálogos e tentar reproduzi-los. Esse

recorte começa quando alguém recorda uma educadora ambiental capixaba cujo

nome e trabalho estiveram, segundo a interpretação da narrativa, vinculados ao

30 O DNA, ou como se fala em português, ADN: ácido desoxirribonucleico é uma molécula orgânica que concentra as informações genéticas que comandam o desenvolvimento e o funcionamento dos organismos vivos. É essa molécula protéica a responsável pela transmissão das características hereditárias de cada espécie existente. O ADN não existe como fita simples, composta por uma molécula única, mas sim como um par de moléculas associadas entre si que se enrolam em forma de uma dupla hélice.

102

misticismo, o que gerou preconceito por parte de colegas daquela época e levou

uma das participantes a um outro episódio em sua vida profissional, quando um

sonho fez com que descobrisse o preconceito de colegas que se reuniam para orar

e pedir a Deus punição para ela, que era considerada bruxa em função da sua

espiritualidade.

[...] ela tinha essa capacidade. Era uma pessoa que, quando falava pra multidão e tal...Nossa Senhora! Era um sacerdote falando, ela tinha essa capacidade e isso despertou na equipe de trabalho [...] um sentimento muito negativo em relação à pessoa dela, assim...de preconceito. Entendeu? As pessoas não... valorizaram esse trabalho dela como educadora ambiental, não. Achavam que era tudo um misticismo, que ela era muito mística [..]” (TATI).. [...] Nossa! Essa noite eu tive um sonho estranho... aí falei do sonho [e a colega respondeu]: ‘Eles vão lá todos os dias de manhã antes de vir pra cá, eles vão orar, e pedem a Deus que você queime no fogo do inferno’ [...]. Olha o século!!! XXI. Iam rezar, [...] em vez de rezar pelo bem do planeta, das pessoas, da harmonia, da paz, iam rezar pro meu mal, pra eu arder no fogo do inferno, porque eu era malévola, eu era... bruxa (YARA). [...] lavou os pés das meninas. Vocês sabem o que isso significa? [...] Nisso ele tava dizendo que ele era humilde, lavando os pés de cada [...] aí eu perguntei: ‘E vocês deixaram ele lavar o pé?’. ‘ Ah! Eu deixei, Yara, ele é o chefe!’ (YARA).

O desenvolvimento do debate no GF1 foi ganhando contornos de um espaço para

denúncia, desabafo e manifestação da indignação pelo preconceito e incoerência

das práticas ritualísticas nos ambientes de trabalho, envolvendo a Educação

Ambiental. Embora densos, os relatos foram transpassados por muita descontração

e risos, pois as situações descritas eram tão pitorescas que, contadas ali no grupo,

também divertiam.

Cada uma de nossas percepções, no momento do GF1, interagia com as outras,

como círculos concêntricos, em movimento. O diálogo aberto e o respeito às

individualidades foram conduzindo o grupo a uma zona de não resistência, que

permitiu a exposição dos sentidos atribuídos ao sagrado e de forma recursiva

retroalimentou o diálogo. A zona de não resistência possibilitou um fluxo de

informação e consciência que gerou as matrizes do pensar-sentir-fazer coletivos.

103

O problema do sagrado, entendido como a presença de algo indubitavelmente real no mundo, é inevitável para qualquer abordagem racional do conhecimento. Podemos afirmar ou negar a presença do sagrado no mundo e em nós, mas para a elaboração de um discurso coerente sobre a Realidade, é obrigatório fazer referência a ele (NICOLESCU, 2002, p. 59).

A emergência do misticismo, das preconcepções, da atribuição de juízo e valor, da

prática ritualística de fundo religioso, dentre outras, permitiu a interação entre os

diferentes níveis de Realidade existentes no grupo o que, por conseguinte,

possibilitou a ação da lógica do terceiro incluído. A manifestação do terceiro incluído

só é possível quando houver um “fluxo” de informação entre os níveis de Realidade,

pois é a presença desse fluxo que induz a uma estrutura aberta no conjunto dos

níveis de Realidade. No momento em que falávamos de preconceito, o grupo,

religiosamente diverso, assumiu uma atitude transreligiosa.31

Dentre os múltiplos sentidos atribuídos ao sagrado no decorrer desta pesquisa,

podemos destacar uma tendência à associação imediata com aquilo que é religioso,

místico, espiritual, esotérico, e também à sabedoria, à idéia de Deus, à ética, ao

holismo, à educação de valores e ao pensamento de Paulo Freire, no que se refere

ao ato de transformação da realidade. A verdade também emerge no diálogo como

sinônimo do sagrado. Essa polissemia da palavra fala da importância dos contextos

onde são geradas as univocidades ou plurivocidades, no caso de espaços de

formação em Educação Ambiental, “[...] trata-se, sobretudo de manter uma postura e

um olhar atento ao diálogo, ao Outro e ao ambiente em sua outridade” (CARVALHO;

GRUN, 2005, p. 181).

31 É a atitude “[...] que nos permite aprender a conhecer e apreciar a especificidade das tradições religiosas ou não religiosas que nos são estranhas [...]” (NICOLESCU, 2002, p. 62-63).

104

6 (ENTRE)LAÇOS: NO DESVELAR DO SAGRADO A POÉTICA DE SER COM O

OUTRO

A ação transdisciplinar propõe a articulação da formação do ser humano na sua relação com o mundo (ecoformação), com os outros (hetero e co-formação), consigo mesmo (autoformação), com o ser (ontoformação) e também com o conhecimento formal e o não formal (NICOLESCU, 2005).

Antes de percorrer os caminhos de onde partirão nossos olhares sobre as

percepções reveladas e suas contribuições, concordamos com Santos (2000),

quando sustenta que “[...] todo conhecimento é também auto-conhecimento”.

Parece-nos convidativo (com)partilhar a experiência de ser-sendo aprendiz de

pesquisadora, mediada pelo mundo, no processo de tessitura da rede de saberes e

sentidos que foi se fazendo ao longo desses últimos dois anos. “A própria noção de

discurso [aqui] está submetida [...] a outra ordem de coisas, isto é [...] está

posicionada dentro de um registro fenomenológico que pensa o ser-aí (dasein) e

remete à experiência como origem do discurso” (CARVALHO, 2005, p. 209).

Inicialmente, o sujeitobjeto escolhido para o estudo desta investigação suscitou certa

apreensão, por se tratar de assunto delicado, polêmico e tradicionalmente refutado

pelo pensamento científico tradicional. Foi mesmo como um mergulho numa outra

dimensão, desconhecendo aonde nos levaria. Contudo, na medida em que o

caminho foi sendo percorrido, com parceria constante da orientadora, com a

preparação e repetição dos rituais de encontro com os sujeitos da pesquisa e com a

descoberta do sentido de cada um que os encontros proporcionaram; na

possibilidade de efetivação do diálogo democrático em torno do delicado assunto; na

identificação do amplo referencial bibliográfico, as angústias e o medo foram

cedendo lugar à alegria da descoberta e à felicidade, abrindo-se em mim um novo

espaço-tempo-com-sagrado à investigação científica, que fortaleceu o propósito de

prosseguir.

Antes de prosseguir, queremos expressar o quanto nos sentimos sensibilizada por

esses encontros investigativos na perspectiva fenomenológica. (Re)conhecemos, na

realização dos encontros, um jeito prazeroso de fazer ciência, uma ciência com

sentido. Sendo assim, participar de um encontro é ir ao encontro do outro e nesse

105

movimento, “[...] é necessário que minha experiência me dê, de alguma maneira, o

outro, já que, se não o fizesse, não falaria sequer de solidão e não poderia sequer

declarar o outro inacessível” (MERLEAU-PONTY, apud PASSOS; SATO, 2002, p.3).

Caminhamos sem pressupostos ou categorias previamente definidos. Sem a

pretensão de saber o que iríamos encontrar, mas aberta a encontrar no mundo algo

da diversidade, próprio do conhecimento, que nos contasse sobre a presença do

sagrado na Educação Ambiental. Nas palavras de TATI, descobrimos que

[...] a gente que lida com a Educação Ambiental, de uma forma ou de outra, a gente vai tocar ou vai ser tocado pela questão do sagrado, porque a gente não faz isso como obrigação da formação, a gente faz Educação Ambiental porque a gente foi sensibilizada para [...].

Seguimos fiel à proposta da pesquisa, procurando, buscando, investigando. Superar

o medo das incertezas, romper as resistências àquilo que é estranho foi o primeiro

difícil desafio. Desafio que pudemos reencontrar na apreensão compartilhada por

uma das entrevistadas que, apesar de não ter sido intencionalmente escolhida,

escolheu-se para entrar no processo investigativo interagindo espontaneamente com

as outras duas entrevistas. Sobre essa presença do medo, passamos a expor

alguns relatos e tecer considerações:

6.1 DE PESQUISADORA À PESQUISADA E DE VOLTA À PESQUISADORA

Em alguns momentos, sentimos como se algo terrível nos aguardasse no caminho

de pesquisa que escolhemos percorrer, tamanha foi a manifestação do cuidado e do

desejo em nos proteger e orientar por parte de uma das entrevistadas:

[...] a academia ela... eu não sou da academia... eu sou da academia também, mas eu sou também muito da prática do professor e eu sei como a academia é, tenho sofrido muito, as pessoas que estão participando de tese, elas estão sofrendo muito, então assim na metodologia e na personalização dos conceitos. Talvez o nome do seu trabalho, talvez você possa pensar... não sei... se você quer chocar, ótimo (MARIA).

106

Ser ou não ser da academia, essa dúbia condição parece descobrir uma

fragmentação desconfortável daquele que é professor universitário, mas não

compartilha de um certo modo de ser, pensar e fazer acadêmicos. Quantos mais

estão espalhados por aí que compartilham desse sentimento? Mentes brilhantes

desconectadas da força transformadora, que irradiam suas emoções. Essa condição

de dubiedade representa, em certa medida, a tensão existente entre os pares

antagônicos da teoria e da prática, diferentes níveis de Realidade em que nos

situamos na educação e na vida e que aqui parece nos remeter a uma dimensão de

sofrimento. Para Nicolescu (1997, p.3):

Todas as várias tensões – econômica, cultural, espiritual – são inevitavelmente perpetuadas e aprofundadas por um sistema de educação moldado por valores de um outro século e por um desequilíbrio acelerado entre as estruturas sociais contemporâneas e as mudanças que estão ocorrendo atualmente no mundo contemporâneo.

Aqui, em um dos níveis de Realidade, cultivamos nossa face teórica, simbolizada

pela entrevistada como o universo acadêmico. No outro, reconhecemos nosso agir

cotidiano, nossa vida prática, constituída por aspirações, inspirações e sentimentos;

aquilo que somos, solitários ou juntos. Educar é confrontar inevitavelmente teoria e

prática, o que percebemos de forma explícita nas palavras da entrevistada. O

enfrentamento do par de contrários emerge quando se toca a noção do sagrado,

que, então, se apresenta com o sentido de um tabu acadêmico, deixando

transparecer o paradoxo entre o que a educadora pensa e sente sobre a práxis e

sua vivência como professora universitária.

NOÇÕES Cecília Meireles

Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação dos meus desejos afligidos. Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge. Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram. Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a. Minha virtude era esta errância por mares contraditórios, e este abandono para além da felicidade e da beleza. Óh meu Deus, isto é minha alma: qualquer coisa que flutua sobre este

107

corpo efêmero e precário, como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera [...]

Outra percepção parece repetir a tendência de relacionar a abordagem do sagrado

com uma dimensão de sofrimento, por considerar que “na academia não há espaço

para isso”. Diz outra entrevistada que chamarei de Mirna:

[...] o que você vai fazer... eu acho muito interessante, você manter essa orientação. Eu tenho uma amiga que na educação ela fez surgir a questão do espiritismo, imagina! Na academia não há um espaço pra isso. Ela conseguiu um orientador, e aí fez lá um embasamento filosófico e tudo, mas foi inédito e ela teve que decidir se ela fazia algumas concessões por conta da academia ou se ela arcava, ela pagou um preço e foi.

O interesse pelo tema, aliado ao cuidado demonstrado com minha felicidade,

resultou na constituição de uma zona de não-resistência coletiva ou um campo do

sentido, ou campo semântico, repertórios compartilhados pelo grupo, cujos sentidos

muito se assemelham. Por nos situarmos nesse lugar, espaço, zona ou campo de

não resistência coletivos, foi que pudemos superar a tensão gerada pelos diferentes

níveis de Realidade e dialogar abertamente, expressando cada uma suas

expectativas, sonhos, preocupações, desejos, angústias e medos. Foram momentos

muito agradáveis.

Ainda sobre o título da pesquisa, Maria prossegue questionando:

O que chama atenção no seu título é que o sagrado se percebe ou o sagrado emerge? A percepção do sagrado dá a impressão que você vai captar a representação social de cada pessoa sobre o sagrado, que é o que eu acho que você vai fazer. Mas pelo que você está colocando, parece que você vai um pouco além, não é isso? Ou eu estou enganada?

Não estava. O desejo de ir além foi intencional desde o começo, daí a opção por

uma abordagem complexa e transdisciplinar das percepções. O sagrado emerge da

complexidade do Real e é percebido ou não por nós. É nesse sentido que optamos

pela “[...] substituição da representação pela apresentação das coisas.”

(MAFFEZOLI, 1998, p. 19). Não importa muito decodificar as representações

simbólicas com que cada um expressa seus pensamentos e sentimentos em relação

108

ao sagrado, isso está em segundo plano aqui, embora identificar a associação que

cada um faz seja considerado um exercício importante para perceber os sentidos

que emergem da palavra e com que sentidos vão se entrelaçando com o fazer

educativo no âmbito da formação em Educação Ambiental. Como realizar essa

intenção foi uma dúvida que permaneceu até o momento de fazê-lo.

A princípio, concordamos que o título poderia mesmo representar um paradoxo

insustentável. Entretanto, demonstra-se no paradoxo o caráter complexo e

transverso da questão, sendo ele mesmo fechamento e abertura. Essa mesma

pergunta nos fizemos várias vezes até descobrir que “[...] a percepção é pois um

paradoxo, e a coisa percebida é em si mesma paradoxal. Ela existe enquanto

alguém pode percebê-la” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 48).

No fechamento da afirmativa merleau-pontiana, parece haver uma abertura que, de

forma tácita, revela uma saturação dos fluxos de informação e consciência, os quais

rompem as fronteiras do antagonismo, lançando-se para outro nível de Realidade e

permitindo a manifestação de um terceiro incluído que, nesse caso, é a zona de não

resistência, sobre a qual nos apoiamos para articular com a percepção subjetiva, a

objetividade das representações que também delimitam fronteiras dogmáticas,

sejam elas de natureza acadêmica, sejam religiosa.

Essas idéias nos fizeram recordar da permeabilidade seletiva da membrana

plasmática, que, sendo de natureza lipoprotéica, apesar de fechada e encerrar no

seu interior o material citoplasmático e nuclear, torna-se aberta de acordo com a

maior ou menor saturação do fluxo de substâncias que entram e saem da célula, por

meio do seu mecanismo de arranjo e rearranjo molecular. Na compreensão de

estarmos mergulhados num mundo profano, somos ou nos tornamos (com)sagrados

pelo encontro de nossas percepções, quando permitimos que isso aconteça,

quaisquer que sejam os níveis de Realidade em que nos situamos.

6.2 PRECONCEITO E MEDO, ZONAS DE RESISTÊNCIA AO SAGRADO

Também durante a realização do GF1, a percepção do sagrado na formação em

Educação Ambiental foi associada a uma experiência de religiosidade, gerando

109

medo e preconceito. Diz o relato da Tuca:

Foi um trabalho que a gente desenvolveu junto [a um grupo] no mosteiro Zen Budista32... Então a gente desenvolveu... uma vivência [...] pra todos os alunos que entraram [...] esse ano [...]. Foram quatro turmas de aproximadamente 40 alunos. Em todas as quatro turmas a gente [...] e eles chegavam lá assim, eles já subiam assim: ‘O que que a gente vai fazer aqui?’. A primeira turma chegou desesperada, achando que eles iam sofrer torturas lá em cima, no meio do mato [...].

Com o objetivo de compreender melhor o relato, procuramos captar mais elementos

perguntando como ela chegou a essas conclusões sobre o medo. Se foi sua

percepção, se houve comentários ou se foi apenas foi fruto de sua observação, ao

que ela responde:

Não, não, eles comentaram: ‘O que a gente vai fazer no meio do mato, lá em cima do morro?: Quer dizer, mato pra eles era uma coisa ruim, a visão do mato pra eles era ruim. O que eu posso fazer no meio do mato? [...] Eles jamais imaginavam que [...] iam pra lá curtir o mato. Extrair do mato o que ele tem de bom e se sentir integrado e se sentir mato [...], na verdade, é isso. A gente acabou fazendo eles se sentirem ambiente [...]. Então eles chegaram com essa resistência [...]. Em todas as turmas a gente encontrou a resistência com relação à questão espiritual, do sagrado em função da religiosidade [...] então eu vivi muito isso durante esse tempo todo. E, no final, só saía menino assim [mostrou um largo sorriso] com um sorriso de fora a fora e arrepiados. Depoimentos que a gente colheu, a gente tem tudo registrado, depoimentos assim lindíssimos: ‘Eu nunca imaginei que eu fosse viver isso aqui, eu nunca imaginei que meio ambiente fosse isso [...].

Considerando, como Morin (1997, p. 109), que “[...] toda a relação organizacional

exerce restrições ou imposições sobre os elementos ou partes que lhe estão

submetidos”, notamos que o preconceito surge no contexto da Educação Ambiental

como uma imposição. Segundo o entendimento do índio Tapuia Jecupé33

(informação verbal), “[...] o preconceito nasce da ignorância e a ignorância nasce da

falta de educação”. Mas, como educar se, ao fazê-lo, impregnamos a educação com

32 O Mosteiro Zen Morro da Vargem, fundado na década de 70, está localizado no município de Ibiraçu, ao Norte da cidade de Vitória, capital do Espírito Santo. Cuida de uma área de 150 hectares, de Mata Atlântica e tornou-se, nos anos 90, um pólo de Educação ambiental do Estado, desenvolvendo ações educativas em conjunto com visitantes, líderes e escolas da região.

33 Em palestra proferida no Centro de Educação Ambiental na Arcelor Mittal Tubarão, em 2007.

110

tantos (pré)juízos? A educadora, participante do grupo focal, na sua prática

discursiva, associa o espiritual ao sagrado e nota que estes estão intimamente

vinculados à expressão religiosa, o que acaba se tornando uma fonte de preconceito

e resistência no caminho de aprendizagem escolhido, cuja referência parece ser

uma abordagem holística. Nesse caso, percebemos a Educação Ambiental como um

terceiro incluído que, mediando as tensões existentes entre as diferenças religiosas

e perceptivas, lança o grupo num outro nível de Realidade, um nível situado numa

dimensão integradora, sistêmica, em que emerge uma atitude transreligiosa,

resguardada por uma zona de não resistência — o sagrado — que faz da imposição,

emergência; da tensão, relaxamento; do medo, descoberta e autodescoberta; da

desconfiança, confiança; do estranhamento, maravilhamento. Pelas palavras a

seguir, parece ser esse o sentido da Educação Ambiental aqui realizada:

Quando a gente trabalha a Educação Ambiental, a gente vai além, a gente trabalha também espiritualidade, trabalha o sagrado, quando a gente fala de Terra, de planeta Terra, de vida, não tem como deixar de abordar essas coisas e têm certos grupos que oferecem um pouco de resistência, dependendo do que a gente vai colocar[...]. (TUCA)

Encontramos, com facilidade, uma convergência de sentidos da questão ambiental

com as representações simbólicas do sagrado. São condicionamentos aos quais

estamos sócio-historicamente vinculados, subjetivamente ou não, e mais do que

imaginamos, esses condicionamentos influenciam nosso arbítrio do que e como

ensinar. Outra entrevistada, a Mara, expressou isso de forma clara:

Quando eu falo de equação do segundo grau, eu não remeto a nada do sagrado, mas quando eu falo de meio ambiente, se meio ambiente implica uma visão de mundo e uma visão de respeito, então eu tô já tangenciando.

Em alguns outros momentos, pudemos também detectar a presença de outros

condicionamentos internos ou externos, que estiveram à frente das narrativas,

reprimindo a clareza da linguagem e expressão oral. Tais condicionamentos

emergiram na forma de um silêncio impregnado de múltiplos sentidos, gestos de

uma opressão contida, risos nervosos e posturas corporais absolutamente

expressivas. Citamos, a seguir, alguns desses momentos, intercalando as

impressões que nos causaram:

111

Após a apresentação da proposta de trabalho no segundo grupo focal, houve um silêncio desconcertante na sala. Parece haver um estranhamento... eu fico sem lugar, a proposta pareceu muito clara pra mim, então por que estão tão quietas? [...] Amanda sugere que utilizemos tudo, as perguntas e os trechos transcritos das entrevistas como motivação para o debate. Com esse profícuo comentário caímos novamente no silêncio desconfortável, haveria medo em abordar o tema?

Essas incertezas não nos imobilizaram na elaboração de possíveis respostas, pois

não havia por aqui intenções de um estudo objetivante, mas sim de valorização das

subjetividades e intersubjetividades presentes no vivido. Nessa perspectiva, vale

mais evidenciar o caminho percorrido e nossas percepções do que encontrar as

respostas certas e por isso passamos a destacá-las, apresentando-as segundo

nosso próprio e limitado horizonte perceptivo. Como sustenta Merleau-Ponty (1990,

p. 47), “[...] Não é por acidente que o objeto se oferece deformado a mim, segundo o

lugar que eu ocupo; é a este preço que ele pode ser real”.

“O silêncio” esteve presente no GF2 e durante uma das entrevistas. O

desenvolvimento do debate no GF1 foi muito diferente, não emergiram, como no

GF2, momentos de tensão, embora as narrativas tenham, em algumas situações,

sido densas. Qual o sentido desse silêncio que emerge quando se propõe falar

sobre o sagrado? Talvez ele esteja indicando ser mais difícil do que se pensa

adentrar na zona de não resistência, no espaço do sagrado, quando estamos no

coletivo, quando integramos um grupo. Pode ser que cada um estivesse esperando

uma referência do que é o sagrado para só, então, a partir do conceito fechado, se

manifestar. O silêncio, nesse sentido, apresentou-se como tempo e lugar. Lugar

seguro onde nos refugiamos para não errar, e tempo de choque34 ou latência,

preparatório para a entrada na zona de não resistência.

Na relação de entrevista, o silêncio também emergiu diante da questão proposta: a

dimensão do sagrado está presente na formação dos educadores ambientais?

Como? Analu, ao responder à pergunta, disse:

34 Expressão utilizada pelo professor Drº. Hiran Pinel em reunião realizada para debate dos resultados obtidos no Grupo Focal 2.

112

Eu creio que não se fala [do sagrado] porque temos muitas distrações, e normalmente estamos muito reprimidos. Não queremos saber de nada do que temos medo e se é problema, não queremos saber o que se passa a outra pessoa, o que está acontecendo com as plantas [...].

A entrevistada fez um breve silêncio, parecia faltar o ar que respirava e sua

expressão ficou tensa, só depois pude compreender a presença do “medo de falar”.

Ao final de certo tempo, ela prosseguiu:

[...] nos reprimimos e necessitamos espaços para sensibilizar-nos e espaços para expressar os valores que temos. Todos temos capacidades e temos valores, mas este mundo nos reprime e desgraçadamente mais às mulheres, não te dão a oportunidade de nada, de expressá-lo.

Essas observações vão revelando uma rede de relações e sentidos do ser mulher,

educadora, em frente aos problemas do mundo, da educação e da vida social,

reprimida na manifestação de sua sensibilidade. Mais tarde, durante outra entrevista,

é que pude compreender melhor aquele nó na garganta que interrompeu o fluxo das

idéias. Rico, educador de mesma nacionalidade que Analu, parece ter sentido o

mesmo impacto, pois comentou e, no seu comentário, revelou mais uma ramificação

da rede de sentidos do sagrado, agora na sua interface político-religiosa:

[...] nas universidades públicas, principalmente do México onde a educação é laica por lei, não tem que envolver questões religiosas, ninguém. Não pode, é proibido por lei. Então, se tem uma situação especial. Por isso Analu falava isso. Pela situação da lei, de educação laica, é uma situação que freia e os professores ficam com distância porque pode acontecer que os pais podem se inteirar que professores ficam com essas situações e eles podem denunciar e o professor pode ainda perder o seu trabalho.

Essa relação de poder do Estado sobre a manifestação religiosa do povo mexicano

está vinculada ao processo histórico daquele país que, em certa medida, representa

também a história de outros países. Conseqüência da estreita relação de alguns

grupos religiosos à política partidária com a finalidade de lutas internas. São reflexos

do passado no presente. Ele continua: “Tem agora um programa muito forte de

educação dos valores, mas valores universais: respeito, responsabilidade, liberdade, amor,

paz, só isso”.

113

Pergunto: isso resolveria a questão?

[...] Não, é muito etéreo, muito longe, é tudo e não é nada. Nós temos que ficar com exemplos concretos. Se posso fazer, não é problema, mas não é muito acertado ainda [...]. Você vai no banco, vai no escritório da instituição oficial, não tem nenhuma indicação religiosa oficial, situações oficiais de governo não tem, há muito receio.

O olhar que nos oferecem os dois educadores mexicanos apresenta elementos de

um nível de Realidade interno (microcosmo) à vida do País. Essas percepções

engendram combinações coletivas de representações sociais que, por se tornarem

muito amplas, perdem sua identidade individual e se colocam em processo

constante de ressignificação. No que diz respeito ao tema aqui proposto, notamos

que há, constantemente, uma confusão entre os sentidos do sagrado, do que é

religioso e do arcabouço simbólico a eles atribuídos.

Esse modelo que reúne, num mesmo conjunto, diferentes práticas discursivas sem a

preocupação de reconhecer e respeitar suas identidades, é excludente, inclusive

para quem fez a opção de viver num mundo dessacralizado. E também tende a

reforçar os dogmatismos existentes nos diálogos intersubjetivos, do homo

religiousus, podendo tornar-se obstáculo aos princípios de participação, integração,

inclusão e ética da Educação Ambiental.

No entendimento de Carvalho (2002, p. 99), com o qual concordamos,

[...] a religião tem um papel importante no ideário ecológico [...] o sujeito ecológico parece ser atravessado por um espírito religioso cuja melhor expressão estaria no sentido latino do re-ligare, que alude a um movimento de realinhamento humano com a natureza como lugar sagrado.

Considerando, portanto, esse modo de ser-sendo-no-mundo educador

ambiental/sujeito ecológico,35 reconhecemos haver uma importância em garantir os

espaços paradoxais entre as identidades culturais dos sujeitos, sem o fechamento à

diversidade, igualmente sem a abertura pseudo-includente que procura 35 Expressão utilizada por Carvalho (2004, p.65-67) para designar “[...] um ideal de ser que condensa a utopia de uma existência ecológica plena [...] e agrega uma série de traços, valores e crenças e poderia ser descrito em facetas variadas”.

114

homogeneizar o diverso, concordando com Ferreira (1998, p.64): “[...] a não-

homogeneidade serve como ponto de referência e orienta o homem dentro de um

espaço homogêneo que é o caos”.

Nilo, outro educador, também estrangeiro e latino, expressa sua percepção,

estabelecendo uma comparação da percepção do sagrado em diferentes lugares do

mundo, fazendo uma narrativa que parte de um nível de Realidade macro:

Quando observamos uma realidade latino-americana, sim, podemos localizar essa presença do espiritual também no âmbito universitário, porém, se falamos, por exemplo, de uma realidade européia, a presença do espiritual é quase marginal, quer dizer, não temos a presença do espiritual, nem do religioso, nem do sagrado como tal, como uma expressão religiosa dentro do âmbito da universidade, porque a crença religiosa ou esse sentimento do sagrado é algo particular e pessoal de cada sujeito. Portanto não se deve mesclar com outras dimensões [...]. Essa seria a visão que se tem na Europa, essa visão de desligar as coisas humanas do que aparentemente ou se diz que é: o sagrado.

Um depoimento no grupo focal contribuiu com esse enfoque transcultural, na medida

em que indicou a presença de uma visão de mundo diferenciada com relação ao

sagrado, na região do Oriente. O olhar é da mitologia hindu e a vivência é

disseminada em larga escala no cotidiano da sua população. Diz o relato:

[...] se a gente observar as culturas mais antigas, a gente tem essa coisa... tudo muito interligado, não é separado, se você vê a cultura indiana, nada é separado, nada. A ciência, do que é religioso, do que é lenda. Então o panteon deles, as deidades, é um negócio assim, uns arquétipos psicológicos maravilhosos... Então, assim, porque a vaca é tão sagrada? [...] quando o homem... fazendo grandes queimadas, muita guerra, Bhumi [como é chamada a vaca] desesperada foi em direção a Brahma que é a deusa, para pedir misericórdia, foi aí que Brahma então falou que ela seria considerada um animal sagrado [...].por isso, pros indianos, hoje, a vaca é um animal sagrado e que representa a Terra, representa o planeta, um grande respeito porque ela dá, assim, o leite e todos os seus derivados, não a carne.

Em sintonia com o pensamento de conjunção, a música brasileira já anunciava a

insuficiência da visão masculina e cartesiana de mundo. “Um dia vivi a ilusão de que

ser homem bastaria. Que o mundo masculino tudo me daria, do que eu quisesse ter”

(MOREIRA, 1979). Esse mundo masculino de que nos fala a música parece

115

representar também uma visão de mundo mecânica e auto-suficiente. Nesse

contexto de fragmentação, do olhar cartesiano, o feminino, a cultura, o sagrado,

quando se expressam, em geral são subjugados e/ou tomados à conta de

romantismo, o que tacitamente obriga a revestirmos nosso olhar feminino, com a

visão de mundo materialista que é hegemônica. Por conseguinte, a Educação

Ambiental, em sua natureza feminina e repleta de sentidos, parece tomar, algumas

vezes, um aspecto objetivo, rijo e sem alma.

A contribuição da identidade feminina na Educação Ambiental passa pela aceitação

do ser sensível. Um ser educador, que pode reconhecer, na Terra que o alimenta e

sustenta, sua mãe. “Não importa o nome pelo qual se possa chamá-la: vitalismo,

naturismo, terra-mãe, existe uma indubitável ligação entre uma sensibilidade

ecológica e uma ecologia do espírito, da qual a intuição é um dos aspectos mais

evidentes” (MAFFESOLI, 1998, p. ). Intuição e sensibilidade vão tangenciando de

alma e sentimento o fazer pedagógico, temporariamente enquadrado na razão-

cognitiva. Pensamos que o medo, tão presente em alguns dos relatos que vimos até

agora, nasce dos desejos e das relações de domínio e poder de subjugação da

verdade de um sobre a verdade do outro.

É esse o sentido que damos à narrativa de Polly, concordando com a importância

que destaca em propiciar atividades preparatórias para superação do estranhamento

e entrada na zona de não resistência, no sagrado, quando planejamos encontros de

formação. Momentos de ambientação capazes de romper, por meio de um toque da

delicadeza feminina e da diversidade cultural, as fronteiras dimensionais que se

interpõem entre os níveis de Realidade em que se encontram os componentes do

grupo, como descreve a narrativa a seguir, colhida no transcorrer dos trabalhos do

GF2:

[...] considero essa dimensão que estaria além do tangível, além do material, além do quantificável, fundamental na educação e também na Educação Ambiental [...]. Acho que essa dimensão ela tem que ser uma preocupação nossa, tem formas de ser trabalhada. E... a gente... eu gosto de buscar essas formas através de imagens, através de práticas, dinâmicas, música e sinto que isso enriquece o trabalho e cria uma... um sentido mais profundo no trabalho de Educação Ambiental (POLLY).

116

Além do olhar cuidadoso sobre os encontros de Educação Ambiental, a narrativa de

Polly parece nos conduzir à idéia da ecologia profunda (Deep Ecology), uma

concepção e tendência do ambientalismo que não separa os seres humanos da

natureza e cuja abordagem, segundo Marin (2003, p. 25), “[...] trata de valorizar as

dimensões espirituais”. A expressão foi criada por NAESS (1973), influenciada pelo

pensamento ecológico-filosófico de Henry Thoreau e com seus pressupostos de

igualdade entre as espécies e uma vida em simplicidade e harmonia com a natureza

e pretende contrapor-se ao paradigma hegemônico. O próprio ambientalismo, como

sugere Tristão (2004), questiona não apenas o modo de produção das sociedades,

mas o modo de vida, tentando recuperar valores não materialistas ou ecológicos.

Outro aspecto que emerge das palavras da entrevistada é o papel da arte no

processo de ambientação. Para ela, imagens e sons têm a capacidade de “[...] criar

um sentido mais profundo no trabalho de Educação Ambiental” (2004, p. 173). As

abordagens transculturais, nesse sentido, tendem a ampliar as fronteiras

perceptivas, superando dicotomias, conduzindo os sujeitos a novas visões de mundo

“[...] e quando a nossa perspectiva sobre o mundo muda, o mundo muda. Na visão

transdisciplinar, a Realidade não é só multidimensional, é também multireferencial”

(NICOLESCU, 2002, p. 55).

6.3 NA RECURSIVIDADE DAS EMOÇÕES A DIMENSÃO ESTÉTICA DO

SAGRADO

Para Juca, um educador engajado no movimento da Educação Ambiental e que

participou como facilitador de cursos de formação para educadores ambientais:

[...] o sagrado está nessa emoção das pessoas [...] é como eu tô percebendo isso, a gente vê que as pessoas se emocionam muito em muitos momentos, é eu sinto que [...] que tem um pouco de sagrado nisso.

Ele procura explicar o que está dizendo, como se explicasse pra si mesmo o que

percebe como sagrado e segue oferecendo detalhes da emoção que promove os

sentimentos de engajamento e pertencimento de um determinado grupo em relação

às ações de Educação Ambiental na região do Caparaó, no Espírito Santo. Do

117

encantamento das emoções ao engajamento nas ações. No engajamento das ações

o sentimento de pertencer e ser solidário. Na sua explicação, ele vai tecendo os fios

da emoção e da ação, numa recursividade entrópica.

Eu sinto que é sagrado porque [...] as pessoas continuam se colocando à disposição, continuam lutando contra a maré que é a pouca visibilidade, que é a pouca comunhão das pessoas no processo. A gente sabe que como está era pra parar tudo, todo mundo fazer a sua parte individual e coletiva, mas não é essa a realidade ainda, então eu sinto que [...] isso tem sagrado, e aí eu não consigo quantificar, mas na emoção das pessoas, na doação dessas pessoas, no prazer dessas pessoas em continuar o trabalho, na sua escola, nos seus pequenos projetos, em toda a região do Caparaó, eu sinto que tem isso, é o sagrado, é, as pessoas se doarem, estarem lá, doarem seu tempo, doarem o seu lixo, doarem seu... a não presença na família, pra esse momento de formação ou de voluntariado, eu sinto que tem sagrado nisso, porque é um despertar.

Esse “despertamento” pode se dar de diversas formas, mas notamos que em nossa

cultura de fragmentação, cultura, ciência e religião aparecem como saberes

desarticulados que desfavorecem esse “despertar”. Na fragmentação, estaria

escondida a perversa e paralisante ameaça do erro, a abominação da diversidade.

Contudo a emoção transpõe os muros da separação e, em alguns momentos,

emerge como expressão artística. A arte emociona e, como tal, pode ser percebida

como “aquilo que liga”, uma racionalidade estético expressiva, como diria

Boaventura (2000).

É assim em nossa cultura. Saindo do âmbito da unidade da nossa cultura e numa

objetividade sem parênteses, considerando também como nossa a cultura indígena,

passamos para outro nível de Realidade em que é possível notar que, nos troncos

culturais ancestrais dos povos indígenas, princípios e valores constituem, segundo

sua crença, o espírito dessa cultura, algo como uma entidade própria. Para esses

povos, essa fragmentação inexiste e “[...] toda diversidade gera riqueza e a riqueza

gera prosperidade. Tudo o que foge ao respeito à diversidade fere o valor”

(JECUPÉ, informação verbal). Também em um dos depoimentos, podemos perceber

o sentido atribuído a essa relação:

118

No mundo indígena ou no mundo de hoje, o meio ambiente e o sagrado vão de mãos dadas, quer dizer, as coisas da natureza, sobretudo as coisas vivas, os animais sempre foram considerados como algo que é útil ao homem, mas, ao mesmo tempo, como algo que tem uma vida própria e deve de ser respeitado e nesse sentido, por exemplo em minha casa, em minha formação nunca tivemos essa cultura de rejeição” (NILO).

Falar de diversidade é falar de integração, conexão das partes. “Enquanto o conceito

racional empenha-se em trazer de volta a unidade – reductio ad unum (Augusto

Comte) -, a intuição, aceitando o múltiplo e contentando-se em nomeá-lo, permite

pensar o diverso” (MAFFEZOLI, 1998, p. 135). Esse princípio de conjunção, em que

uno e o múltiplo se encontram em (comum) união, é igualmente percebido em

Bergson (1999) e Bateson e Bateson (1994) encontrando ressonância na concepção

de “unidade aberta” de Nicolescu (1999) e na idéia de unidade diversa, unitas

multiplex, de Morin (1997). Tal articulação de conceitos parece nos permitir uma

compreensão mais ampla do conhecimento. Há uma recursividade organizacional no

campo das idéias colocadas em ação por essas abordagens conceituais, e essa

recursividade nos remete à dimensão estética, porque a arte pode também surgir

como algo que liga, sendo ela mesma uma potência de ação capaz de criar novas

resistências ou pulverizá-las, como sugere o pensamento de Jane, expresso durante

o GF1:

[...] eu gosto muito de poesia, porque ela foge dessa fragmentação que a religião acaba fazendo, Mário Quintana, principalmente, eu leio muito, gosto dele e ele tem um poema que fala que: milagre não é transformar pão em peixe ou peixe em pão e água em vinho, mas é as pessoas acreditarem nisso e esse é o grande milagre.

O poema de Mário Quintana (1999, p.36) a que Jane se refere citamos na íntegra:

DOS MILAGRES

O milagre não é dar vida ao corpo extinto, Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo...

Nem mudar água pura em vinho tinto... Milagre é acreditarem nisso tudo!

O sentido atribuído à arte, no desenvolvimento do grupo focal, surge como um

caminho de aproximação, algo que religa, sem impor uma crítica ou abdicar da

119

diversidade de opiniões. A estetização é a grande tendência contemporânea. Nas

palavras de Maffesoli (1998. p. 120): “Isso quer dizer que ao lado de elementos

lógicos, racionais, utilitários, todas as relações sociais põem em jogo aspectos

lúdicos, oníricos, afetuais”. Jane continua:

[...] então eu gosto sempre, inclusive até a arte pra mim ela é um canal, ela é um fio que atravessa tudo e não fica... então deixa as pessoas mais à vontade... do que ficar assim... explicando... ‘Ah! Ele é o quê? É cristão, é não sei o quê’, aí vai alimentando essas religiões e os pensamentos também [...].

6.4 A DIMENSÃO POLÍTICA DO SAGRADO

Acreditando na falácia moderna da disjunção do conhecer, do saber, do fazer, da

vida, criamos a ilusão de haver uma distância entre as dimensões humanas. Esse

distanciamento que inventamos e que a educação ocidental reifica parece ter nos

conduzido à tendência em criar pontes, pontes que nos coloquem de volta em

contato com cada uma dessas dimensões, buscando religar as partes.

As pontes ligam duas margens separadas, mas não restituem centralidade ao que

está na periferia. Falar de pontes é evocar instituições políticas e religiosas que

fazem parte de nossa vida social. Aquilo que constitui a especificidade de cada

grupo social conta com as manifestações fenomênicas dos aspectos ligados à

expressão da vida em sociedade; e aquilo que foi criado para juntar perpetua a

separação.

Uma das entrevistadas, ao expressar sua percepção da presença do sagrado na

formação em Educação Ambiental, cita os sentimentos de reverência e de

pertencimento que emergem da observação das pranchas fotográficas apresentadas

pelo projeto GÊNESIS, algumas das quais utilizamos para ilustrar nossa fala sobre o

projeto e seus resultados.

Estas fotografias retratam elementos da natureza e/ou paisagens, demonstrando,

como sugerem Tristão e Nogueira (2007), que a linguagem imagética:

[...] pode ser mais do que um simples objeto estético, julgado de

120

modo simplificado, entre o belo ou agradável, o feio ou degradante. Mesmo o feio, dificilmente, torna-se feio na plasticidade de uma fotografia. Assim, a imagem do cotidiano coloca em jogo muito mais do que um simples juízo de valor, mas mexe com nosso imaginário, com nossos sentimentos, com a nossa existência e cria subjetividades.

Paulo Freire também é mencionado como um autor, cuja visão humanista contribui

com a fundamentação teórica da metodologia do projeto GÊNESIS e, segundo a

entrevistada, o olhar freiriano encontra-se permeado pelo sagrado. Sobre o

desenvolvimento dessa metodologia e do sagrado, Mirna diz:

[...] o que a gente percebe [...] é a construção de um olhar de reverência! Mara intervem: ahã... Mais do que respeito, reverência!]. E aí esse olhar de reverência implica assim, também, no estabelecimento de uma relação com as forças que te cercam, numa atitude de respeito, numa atitude de pertencimento. Eu também pertenço ao mundo daqueles elementos, numa atitude de defesa, de preservação.

A concepção de pertencimento presente na narrativa acima parece partir de uma

noção de identidade biológica. Portanto, ainda reduzida, disjunta, partida, desprovida

da complexidade inerente à condição humana. Por outro lado, a dimensão estética

parece ser a ponte que religa a razão e a emoção, a teoria e a prática, a objetividade

e a subjetividade do ser no mundo. E o sentimento de pertencimento iminentemente

político parece ganhar o sentido de algo que, por meio da arte, se encontra com-o-

sagrado.

[...] então o olhar de reverência em relação aos elementos que cercam a natureza, possibilita essa visão do sagrado, eu, na minha subjetividade, construindo esse sentido, quer dizer: Nossa! Eu também pertenço ao mundo dos macacos, os macacos têm a ver comigo! Cria uma relação de pertencimento, uma idéia de uma família mais planetária que tem a ver com o sagrado (MIRNA).

Nesse contexto, a noção de sagrado vincula-se à noção de pertencimento que, aqui,

parece estar impregnada por uma visão de mundo de um lado fundada nos valores

judaico-cristãos de sacralização da natureza e, do outro, apoiada na idéia do ser

biológico concebido numa lógica científica, o que, em alguns momentos ou

ambientes, parece gerar resistências. De fato, essa questão emergiu em uma das

entrevistas e vem na fala de Maria:

121

Eu acho que... uma coisa muito interessante, que eu nunca... eu já tinha percebido isso, mas ao discutir esse assunto ficou muito mais claro foi o problema da... de uma tendência religiosa, de um evangelismo que não aceita a teoria da evolução [...]. E umas pessoas; duas falaram: eu achei as fotos lindas, mas ‘Eu não concordo com a teoria evolucionista’.

Eu pergunto se isso impediu que esses professores trabalhassem com o projeto, ao

que ela respondeu:

Trabalham, mas não aceitam... é outra abordagem. Tudo bem trabalhar, a gente não tá querendo que trabalhe numa só. Mas ta emergindo essa posição, vamos dizer, da própria concepção da criação do homem. Isso eu acho que é uma coisa com o sagrado.

Tantos séculos levamos disjuntos e mudos diante das evidentes violências que a

racionalidade cognitivo-instrumental nos impôs que nos parece normal esse

estranhamento ao darmos início a um exercício de conjunção. Nesse sentido, com

aquilo que é sagrado-religioso alguns professores não se identificam com a visão de

mundo científica evolucionista e simplesmente excluem essa abordagem em favor

daquela com a qual se identificam e que dá sentido às suas vidas.

A proposta curricular prescreve uma abordagem científica e, apesar de, no Brasil, a

educação ser laica por lei, como cita o art. 19 da Constituição Federal de 1988:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público [...].

O ensino religioso é um componente curricular da escola pública brasileira,

determinado pelo art. 33 da LDB/1996, em seu art. 33 que orienta:

122

O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (Redação dada pela Lei nº 9.475, de 22.7.1997) § 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. § 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

Mas será que as salas de aula vivem o prescrito? Ou o currículo se realiza na

vivência cotidiana? Quantas unidades de ensino dão cumprimento à orientação

legal, de uma educação laica, como menciona a Constituição Federal de 1988, em

seu art. 19? Todas essas questões nos remetem às inúmeras e pequeninas

transgressões individuais que vão se configurando diante dos estatutos legais.

Pudéssemos casar o estado de ordenamento legal ao estado da liberdade de

criação artística e talvez pudéssemos constituir uma sociedade menos hipócrita,

como convidam os belos versos de Thiago de Mello:

OS ESTATUTOS DO HOMEM (Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade. agora vale a vida, e de mãos dadas,

marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II Fica decretado que todos os dias da semana,

inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas,

que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra;

e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV

Fica decretado que o homem não precisará nunca mais

123

duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento,

como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:

O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar

a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa

com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida

antes da sobremesa.

Artigo VI Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos

e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII Por decreto irrevogável fica estabelecido

o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa

para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII Fica decretado que a maior dor

sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama

e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.

Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama

e que por isso é belo,

124

muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII Decreta-se que nada será obrigado

nem proibido, tudo será permitido,

inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes

com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:

amar sem amor.

Artigo XIII Fica decretado que o dinheiro

não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras.

Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal

para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre

o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964

Acreditamos haver subversões da ordem, que acontecem no cotidiano da escola e

fora dela, reflexo de uma identidade societária de fragmentação e que parece se

tornar um obstáculo para a superação da nossa incapacidade política de

transformação da microrrealidade curricular e da ampliação do debate na

macrorrealidade social. Estagnamos na idéia de uma identidade humana reduzida

pelo paradigma da Modernidade às nossas origens biológicas e deixamos de

avançar na compreensão de nossas identidades culturais.

É nesse sentido que podemos afirmar: os humanos somos pertencentes ao mundo físico, parentes de todos os seres vivos, mas ao mesmo tempo distanciados e estranhos a eles; somos profundamente enraizados em nossos universos culturais que ao mesmo tempo nos abrem e nos fecham as portas de outros possíveis conhecimentos (SÁ, 2005, p. 252).

125

As questões de pertencimento são complexas por si mesmas, pois, ao articular

simultaneamente indivíduo e sociedade, tocamos na ferida da modernidade, na qual

produzimos e somos produzidos, desligados de nossas identidades. Comumente na

“modernidade liquída”, 36 as relações são fluidas e desprovidas de conectividade, daí

decorre a estratégia social de (re)organização em redes. Porém, “[...] uma ‘rede‘

serve de matriz tanto para conectar quanto para desconectar; não é possível

imaginá-la sem as duas possibilidades” (BAUMAN, 2004, p. 12) e dessa dualidade

advém seu poder de sedução.

O paradoxo mantém a unidade aberta, ou seja, nosso sentimento de pertencimento

vai até onde nos identificamos com a rede de relações em que nos inscrevemos e

com as quais nos comprometemos. Não havendo mais essa identificação,

trafegamos do coletivo ao individual numa liberdade que alimenta os movimentos de

retração e expansão das redes. Como demonstra o depoimento de uma

entrevistada:

[...] eu percebo essa construção desse olhar de reverência, na formação, primeiro a partir de uma experiência pessoal minha e depois quando eu compartilho, eu vou percebendo um consenso, aí se torna um rito do grupo mesmo; da construção de atitudes, de valores, de defesa, de projetos, necessidade de intervenção pra se manter aquelas concepções que eu estou naquele momento reverenciando (MIRNA).

Ao reconhecermos o desafio de enfrentar o paradoxo entre abertura e

fechamento, percebemos que existe uma potencialidade de (trans)formação

dessa relação sociedade-natureza, em outro tipo de relação, dessa vez

permeada por uma percepção mais ampla de pertencimento, ligada a um

diferente nível de Realidade. “O princípio do pertencimento parece, assim,

traduzir-se como uma diálogo entre semelhança e estranhamento” (SÁ, 2005, p.

253).

36 Expressão utilizada pelo sociólogo Zygmunt Bauman para designar o que pela maioria dos autores é denominado como pós-modernidade.

126

Continua Mirna:

[...] a visão humanista do Paulo Freire é totalmente transversalizada por uma concepção do sagrado ainda que ele não o diga. Então quando ele concebe, por exemplo, o homem como um cri-a-dor,37 a questão da criatividade tem um olhar do sagrado: eu sou capaz de transformar minha realidade, isso é um toque do sagrado, um toque de poder [...].

Poder e sagrado parecem se fundir, aqui, formando uma unidade aberta do

conhecimento, unidade que se constitui e configura como uma potência de ação.38

Espinosa afirma que a única forma de sermos livres e, portanto, felizes é

conhecendo” (SANTOS; COSTA-PINTO, 2005, p. 297).

[...] conceber o mundo como um texto também é uma concepção que tem a ver com o ritual sagrado, Paulo Freire faz leitura de mundo: nossa então o mundo pode ser lido? Essa percepção é que desencadeia todas as outras. A necessidade de uma relação dialógica, sair fora de você em relação ao outro, entre as pessoas e com a natureza, dialogicidade preconizada por Paulo Freire também, você sai do seu encontro e vai ao encontro (MIRNA).

Apesar de não ser uma especialista no pensamento de Paulo Freire e este trabalho

não estar fundamentado teoricamente no pensamento freiriano, vamos nos atrever a

tecer alguns comentários dos sentidos produzidos pela fala apaixonada e

apaixonante da entrevistada. Paulo Freire é um educador “vivo”. Em sua obra, a vida

pulsa e com isso desperta um sentido de acordar outras vidas, rompendo as

fronteiras do tempo e da morte. Freire é uma grande referência para os teóricos,

pensadores e militantes da Educação Ambiental crítica. O sentido de seu

pensamento é reforçado na máxima de tornar o político mais pedagógico e o

pedagógico mais político.

Novamente, num movimento recursivo, o sentido do encontro emerge na fala como

momento privilegiado de entrelaçar política e sagrado, sugerindo a impossibilidade

de disjunção dessas dimensões. Política, nesse caso, porque toca na educação

como oportunidade de promover a capacidade crítica do sujeito sócio-historicamente

construído. E sagrado porque, a partir da leitura concreta da realidade, há uma

37 Ênfase dada pela entrevistada, que acentuou a divisão silábica ao se expressar 38 O termo refere-se à capacidade de transformação da realidade em busca da liberdade e da felicidade e fundamenta-se na obra do filósofo holandês Baruch de Espinosa.

127

capacidade de (re)criar o novo e (trans)formar a realidade. Educar é um ato de

poder, na medida em que potencializa o sujeito a transformar realidades. Ou,

poderíamos dizer, noutro sentido, na medida em que possibilita ao sujeito transitar

entre diferentes níveis de Realidade. Nas palavras de Mara: “[...] a coisa é uma

mudança de paradigma mais profunda do que mudar comportamento político, social

e econômico [...]”.

A questão que colocamos no âmbito da Educação Ambiental é: o quanto estamos

conseguindo avançar da sensibilização para a ação? E se não estamos

efetivamente conseguindo efetivar transformações, é importante fazê-lo? Que

dimensões precisamos tocar para impulsionar a potência de ação humana? Como

conta Eva:

[...] a gente ver um menino de bairro, conseguir ir lá no prefeito reclamar por uma praça. Até ele chegar no prefeito, meu Deus! Se ele chegar, vai ser um momento tão assim... que... logo... se for festivo é só pra foto, se for [...] pra uma reclamação, pra manifestação na comunidade, normalmente não é o prefeito que aparece, é o assessor que dá uma resposta pra amenizar, mas a solução não busca, mas a gente faz. Coloca no papel, na sua carta, vamos encaminhar, vamos fazer o ato mesmo, a prática... é o correio... é protocolar... é acompanhar... é cobrar... porque é um processo, não pode parar.

6.5 NO ENTRELAÇAMENTO ECONÔMICO-POLÍTICO-SOCIAL-AMBIENTAL:

QUAL O LUGAR DO SAGRADO?

A participação emerge no GF2 como crítica à desarticulação do sagrado em relação

às dimensões político-sociais consideradas fundamentais no debate das questões

ambientais: “Eu acho que a gente, quando falar alguma coisa, deve se colocar no

processo [...]”.

Em seguida, Norma parece explicar o que entende por participar:

Estão poluindo, mas quem tá poluindo? Que que eu participo nessa poluição? [...]. Está tudo certo. Errado está a gente, que fica falando e mostrando casa, anunciando na televisão e não vamos lá discutir o orçamento, pedir prioridade para o nosso saneamento público ser saneado mesmo. Aí você pega uma boca de recolhimento de canal, é aquela [...] que mata e impossibilita a vida, não só vida, mas o próprio recurso hídrico, como água, que é sagrado e não é vida [...] são coisas que se conectam.

128

As noções de certo e errado presentes no repertório discursivo de Norma expõem a

dicotomização da dimensão dialógica. Há uma crítica tácita a algo que parece

incomodar profundamente. Esse incômodo pode, talvez, ter sua origem num

sentimento de impotência em frente ao imobilismo geral, à dificuldade de

engajamento da população em torno das questões ambientais e das respostas

lentas e fracas de transformação da realidade vivida.

Em todo caso, a maneira como esse sentimento se expressa, dentro de uma lógica

ternária, causou, segundo a nossa percepção, um estranhamento no grupo,

denunciado por uma tensão, um silêncio, que acabou por produzir uma zona de

resistência, uma descontinuidade no debate. Foram vários os momentos em que

notamos essa descontinuidade presente no debate durante o GF2. Continua a

narrativa:

[...] eu acho a gente muito fashion, assim, pra falar desse sagrado, isso tudo eu acho que a gente não tem esse cacife, num geral, a gente não é eu, você nem ela, eu acho que a classe média, de país ocidental, quer mais é imitar [...] a classe que está em cima, acha que ela vive melhor, é mais digna, é mais perto de Deus aí se cria um monte de religião... falar de prosperidade...bater palma... em quantidade, a humanidade está indo por esse caminho e num geral é um traço proeminente de evolução humana, a gente não está ainda tirando os brincos,39 então, dando olhar de carinho pros meninos pobres. Eu acho que há uma diferença [...].

Debater o sagrado, nesse caso, parece requerer condições especiais de

envolvimento, ou posturas pessoais, ou níveis de participação que credenciem o

sujeito para tal, no que discordamos. O tema é livre e a nosso ver não deve fazer

(pre)juízo sobre o que ou quem fala. A participação é livre se pretende ganhar um

sentido diverso da adesão e o princípio da autonomia confere aos sujeitos o direito

de manifestar-se dentro de sua visão de mundo. Concordamos na importância em

se desenvolver uma autocrítica ao bordar tais assuntos, para evitar uma retórica

vazia e sem sentido, porque desconectada do vivido. Nesse sentido, Norma alerta

para a necessidade de se debater a questão do sagrado com foco, também, na

realidade social, o que gera novo debate a partir da questão que ela propõe: “Você

acha possível, alguém que tem muito, que acumulou muito, mesmo que seja pelo

39 Refere-se à seguinte fala da Norma, anterior à citada: “[...] a classe média é muito macaquinha da classe rica [...] não tem nada pra dar, mas tem um brinco que só vale 40 mil reais e tem que falar logo do brinco, aí dá um olhar lindo pro garoto que tá com fome, tá com a barri... está vomitando lombriga”.

129

seu trabalho, ter um olhar, ou o sentimento de desigualdade do outro que não tem

nada?”

Um caminho preconizado pelas tradições religiosas é a compaixão. No caso da

Filosofia, o sentido da alteridade. O sentimento de compaixão permite um exercício

legítimo de “colocar-se no lugar do outro”, deixando-se impregnar por seus

sentimentos, olhar os acontecimentos pelas lentes de outro. O pensamento da

alteridade nos convida à escuta sensível, mas somente “[...] a boa vontade permite a

projeção de nossa inteligibilidade no Outro” (GRÜN, 2004, p. 24) sem o que

passamos a obter apenas confirmação de nossos próprios pensamentos sobre o

outro.

Morin (2005, p. 35), ao referir-se à ética complexa, corrobora afirmando que:

[...] as sociedades mais complexas comportam, ao mesmo tempo que a própria religação comunitária, antagonismos, rivalidades, desordens, todos inseparáveis das liberdades. Além disso, no espírito dos indivíduos, as religações acontecem a partir da responsabilidade, da inteligência, da iniciativa, da solidariedade, do amor.

Nessa mesma linha de pensamento e compreensão, Polly emite sua opinião

durante o debate do grupo esclarecendo:

[...] é claro que a experiência pessoal é única, a gente fala isso no sentido figurado, colocar-se no lugar do outro, porque os problemas não são só financeiros e materiais. Uma pessoa, por exemplo, que não tem condições, passou fome, ela pode não ter nunca tido depressão e uma pessoa que tem todas as condições tá num buraco, morrendo, se suicidando, então nem um, nem outro vão realmente poder dizer que estão se colocando no lugar, porque a vivência de uma pessoa é totalmente única, muita gente usa essa expressão nesse sentido que Amanda falou, de você se aproximar da situação do outro e tentar compreender essa situação, às vezes tentar interferir, mas se solidarizar numa atitude diferente de uma indiferença [...].

O trabalho com as práticas discursivas, de certa forma, cumpre esse papel, na

medida em que possibilita um mergulho na percepção do outro. Em várias ocasiões,

ao longo deste estudo, o sentido do sagrado pareceu estar ligado à questão da

alteridade ou outridade.

130

O depoimento de Jane, participante do GF1, remete-nos também a esse olhar,

quando fala:

[...] se eu entendo que o sagrado sou eu e o outro, e a natureza, o tempo inteiro, se eu entendo isso, e eu vivo isso. Eu venho fazendo o que propõe a pergunta ali, essa formação. Mas isso não acontece [ela pára de falar e a sala fica em silêncio por segundos] no dia a dia, porque a formação se dá é no cotidiano e na família e no trabalho e num ambiente como esse, em qualquer lugar, é... e eu digo que isso é sagrado, cada momentinho desses é sagrado e eu acho que é uma mentira a gente dizer que trata dessa dimensão [...] existem, sim, como linguagem, essas dimensões, mas a gente sabe que isso tá tudo coladinho e junto, que a gente é um pouco disso tudo, então... assim... é mentiroso, eu acho, quando a gente tá dizendo que tá formando, fazendo formação de educadores ambientais. [...] eu acho que o exercício tem que ser muito mais profundo, a reflexão, é no pequeno, no diário, no outro.

Recorremos a uma lenda africana que fala da criação do mundo, citada por Martins

(1984, p. 21) e da qual nos valemos para auxiliar na abordagem de sentido do

sagrado e da percepção de Jane que, aparentemente, encontra-se profundamente

associada a um sentido dualista entre o bem e o mal, de fundo moral religioso.

Conta a história que:

Olofi, o Senhor que criou tudo – o bem e o mal, o bonito e o feio, o claro e o escuro, o grande e o pequeno, o cheio e o vazio, o alto e o baixo – criou também a Verdade e a Mentira. Fez, no entanto, a Verdade forte, marcante, bela, luminosa, e fez a Mentira fraca, feia, opaca. Ao ver assim a Mentira, deu a ela uma foice com a qual pudesse se defender. A Mentira sentia inveja da Verdade e queria eliminá-la. Certa ocasião a Mentira se defrontou com a Verdade e a desacatou. Brigaram. Empunhando sua foice, a Mentira, com um golpe, degolou a Verdade. Esta, vendo-se sem cabeça, começa a procurá-la tateando por volta. Apalpa um crâneo [sic] que supõe ser o seu. Com esforço agarra-o e o arrancando de onde estava coloca-o sobre seu pescoço. Mas aquela era a cabeça da Mentira. Desde então, a Verdade anda por aí enganando a toda gente.

Na dinâmica do grupo focal essa abordagem provocou uma tomada de consciência

reflexiva: estaríamos no enfrentamento da tensão teoria-prática vivenciando

múltiplas verdades ou mentiras bem contadas? Esse questionamento nos remete a

diferentes realidades que se interpõem, como no caso da história de dominação da

cultura judaico-cristã sobre as comunidades indígenas, que deixou profundas

marcas, como sugere o pensamento de Soffiati (2002, p. 38), quando diz que “[...] a

linha predominante no pensamento contemporâneo volta-se para a tradição judaico-

131

cristã, entendendo-a como a raiz intelectual mais profunda do domínio da natureza

não humana pelo ser humano”.

Do ponto de vista da percepção merleaupontyana, podemos também tecer algum

comentário, pois, em seus estudos, esse autor faz uma análise, que podemos

chamar de complexa, da verdade, situando-a no tempo e lugar de um nível de

percepção e conferindo-lhe um sentido não encapsulado num conceito

determinístico, abrindo-se ao campo das incertezas. Identifica e diferencia um duplo

sentido da verdade procurando evidenciar a estreita ligação que verdade e mentira

guardam entre si.

[...] ainda não tratamos de uma verdade fora do tempo, mas, antes, da retomada de um tempo por outro como, no nível de percepção, nossa certeza de abordar uma coisa não nos põe a salvo de um desmentido da experiência nem nos dispensa de uma experiência mais ampla. Seria preciso naturalmente estabelecer aqui uma diferença entre verdade ideal e verdade percebida[...]. Busco somente fazer ver o laço por assim dizer orgânico entre a percepção e a intelecção (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 55).

O eminente fenomenólogo parece antever a orientação dos fluxos de informação

que atravessam os níveis de Realidade e o fluxo de consciência que atravessa os

níveis de percepção, originando a unidade aberta do conhecimento transdisciplinar.

Ainda sobre a verdade, Merleau-Ponty (1990, p. 55) questiona: “Posso seriamente e

pensando no que digo, afirmar que minhas idéias de agora são minhas idéias de

sempre?”.

6.6 DIMENSÃO ÉTICA E O SAGRADO: “A ÉTICA DEPENDE DE UMA

PERSPECTIVA DE HUMANIDADE”

A realidade histórica de dominação entre culturas encontra-se perpetuada nas

práticas assistencialistas atuais que intentam corromper, mediante oferta de

“presentes”, a cultura indígena, forçando a fragmentação de suas crenças e impondo

uma forma de cultura hegemônica, homogênea. No depoimento do nosso

entrevistado, Nilo, fica claro que há, diante dessas práticas, uma insatisfação,

contudo notemos que, nesse caso, a noção de sagrado parece ser confundida com

religião:

132

Acho importante, por exemplo, e uma aberração que existam grupos religiosos que se aproveitem dessa perspectiva sagrada, por exemplo, dentro do âmbito dos povos indígenas, ou que algumas pessoas tratem de se fundamentar no sagrado para promover uma consciência global. Não, para mim o fundamento não é o sagrado, o fundamento é uma ética humana.

Essa confusão conceitual entre sagrado e religião esteve presente também no grupo

focal, porém a dialogicidade da dinâmica do grupo permitiu uma abordagem

diferenciada da questão, conforme nos apresentam os trechos das narrativas que

seguem:

[...] parece que houve um momento que ficou complicado misturar religião com o restante dos campos do conhecimento, então, precisou haver essa separação e nesse retorno à preocupação com a natureza, retorno a tentar integrar, a tentar integrar as disciplinas, campos do conhecimento, essa inserção do sagrado ela vai se fazendo necessária, mas há um receio se misturar com religião porque é como se tivesse havido um avanço em separar religião de ciência e agora estivesse havendo um retrocesso em reunir. Não sei se vocês estão entendendo o que estou falando. Percebo isso. Particularmente pra mim, eu não consigo fazer distinção, entre religião, espiritualidade, sagrado[...](POLLY).

Interagindo com o discurso de Polly, Amanda e Norma, respectivamente, se

manifestam marcando um olhar distinto sobre a questão:

[...] Eu separo espiritualidade de religião, porque eu vejo a religião como um conjunto de dogmas, de normas, um estado político, constituído, instituído e a espitirualidade independe disso aí. Quer dizer, mesmo que eu não tenha nenhuma religião explícita, eu sou um ser espiritual.

Eu concordo.

A educadora Polly identifica, no espaço-tempo, um nível de Realidade gerado pelo

movimento de disjunção e conjunção da dimensão espiritual e acrescenta um

terceiro incluído engendrado pelas interações de seus níveis de percepção. Quando

afirma que não consegue fazer distinção, não nega a diferença formal entre o que

está institucionalizado e o que não está e afirma um novo sentido que atribui ao que

é denominado religião e sagrado. Voltando à questão das múltiplas verdades, o

contexto de significações e atribuição de sentidos na abordagem transdisciplinar

parece criar novas possibilidades conceituais.

133

Agregando à percepção de Polly mais alguns sentidos, em outro momento durante

uma entrevista, Iza, com muita clareza, analisa que:

[...] o sagrado está mal compreendido. Ele ficou fechado dentro das instituições religiosas. Todo mundo fala de sagrado e já pensa logo numa religião, numa instituição religiosa. Então não se pode falar de sagrado porque. “Ah! É uma crença, faz parte de uma crença [...]”. O sagrado eu acho que ele está malvisto, ele foi mal utilizado, ele ficou fechado dentro das instituições religiosas.

Essa percepção provoca um esvaziamento do problema, na medida em que situa no

tempo-espaço a confusão conceitual, colocando-a no passado e reconhece, no

presente, que há outros entendimentos, como no caso das danças circulares

sagradas. Talvez também por essa razão o movimento das danças circulares venha

ganhando tanta expressão nos encontros de Educação Ambiental. Iza continua

afirmando:

Não é isso que a dança circular traz [...] é estar em contato consigo mesmo, encontrar nos outros a mesma ressonância, fazer a conexão com a terra, com o céu, com o céu no sentido simbólico [...] Eu acredito que o sagrado está dentro de cada um de nós e é um pra todos. Então você tem aquele pontinho em comum que a dança circular [e] outros tantos sistemas, outras tantas maneiras de se trabalhar com as pessoas, também podem acessar, mas o que eu falo é da dança circular. Eu acredito que ela acessa realmente esse ponto em comum, esse ponto em comum é a verdade, é... difícil falar de verdade, mas é o sagrado, é esse pontinho em que todos têm o mesmo sentimento por ele.

E por falar em verdade, um outro fato relevante, por representar um aspecto da

verdade de determinados grupos religiosos e que tem interface com a realidade

vivida por educadores e educadoras nas suas práticas junto às comunidades, diz

respeito à tensão entre práticas afro-religiosas e preservação ambiental, pois

algumas dessas práticas consistem na realização de atividades com oferendas

depositadas em áreas naturais, em alguns casos em áreas legalmente protegidas, e

rituais realizados em favor da dieta alimentar de suas entidades espirituais, que

acabam por impactar ou provocar impactos ambientais. Sobre esse assunto

polêmico e controverso, Nilo acena com uma resposta em plena convergência com

o olhar transdisciplinar sobre a unidade aberta do conhecimento. Vejamos o que nos

diz:

134

[...] que cada um pratique o que tenha que praticar, mas no momento em que nós pensamos em ferir a vida, no momento em que pensamos em nome de uma divindade, destruir a natureza, o meio ambiente, então deveremos repensar se essa prática é boa ou se deve-se continuar com ela. Porque todas as religiões, todas as culturas sempre estão em um processo de desenvolvimento e não existe a cultura final, e nem existe a religião, nem o sagrado final, senão tudo isso faz parte de uma construção cultural e, nesse sentido, se aquilo é negativo para o meio ambiente, é negativo para a vida, gera dor, gera sofrimento, e quem pratica esse tipo de ritos, esse tipo de práticas deverá repensar e replanejar suas práticas e isso não implicará em renegar suas crenças, nem seus fundamentos de vida, senão, basicamente, serão eles que transformarão aquilo.

Essa visão de mundo é condizente com o princípio de inclusão da Educação

Ambiental, ao mesmo tempo em que não se omite diante da percepção e do

sentimento de profundo respeito pela vida. Aparece na narrativa a construção de um

olhar transcultural e transreligioso permeado por valores humanos de solidariedade,

cooperação e compreensão. Mas como e onde entram esses princípios no processo

de formação? Analu faz um recorte desse panorama segundo sua percepção:

[...] o maior problema que temos é que os alunos, seus valores não são firmes, como para falar de amor, de respeito, solidariedade. Então nos preocupamos, como fazer para que eles realmente... o conceito de solidariedade, por exemplo, como conduzi-los para que eles realmente se identifiquem com isso.

O respeito é a base para uma aprendizagem permanente e em constante

significação na proposta da Educação Ambiental, especialmente quando educadores

e educadoras atuam com o objetivo de contribuir para a realização de sociedades

sustentáveis. Assim referenciam os principais documentos da Educação Ambiental

brasileira, como o Tratado, a Carta da Terra, a Lei nº. 9.795/99 e até mesmo aqueles

documentos de orientação explicitamente pragmática, como a Agenda 21. Em outra

entrevista, também observamos uma postura que relaciona o sagrado com o

respeito. Diz Mara: “O sagrado é aquilo que merece respeito, aquilo que confere

dignidade”.

O educador Nilo também considera essa preocupação presente no debate da

Educação Ambiental, mas, em sua percepção, a resposta encontra-se além do

sagrado, como sustenta em um trecho do seu depoimento:

135

Creio que, dentro do âmbito da Educação Ambiental, se queremos difundir uma consciência ambiental planetária e global, mais do que do sagrado, deveríamos falar do ético. Porque é ético conservar a natureza, é parte de uma ética humana, é parte de uma ética humana respeitar o que vive contigo, é parte de uma ética humana guardar a identidade de outros, e o sagrado como já te disse é uma vivência privada.

No sentido de esclarecer ainda mais esse interessante ponto de vista, sugerimos

que ele detalhasse mais essa distinção entre ética e sagrado, o que resultou no

trecho que apresentamos a seguir:

A ética é distinta do sagrado, sim, a ética não depende de uma religião, a ética não depende de um Deus nem de uma divindade, a ética depende de uma perspectiva de humanidade. A ética, poder ter um ateu tão ético, pode ser alguém que não crê em nada do sagrado, e, nesse sentido, a ética é muito diferente ao que é o sagrado e, sobretudo quando se confunde o sagrado com o religioso, que também é algo muito diferente ao que pode ser sagrado. Religioso é muito distinto do que é sagrado, porque o religioso sistematiza o sagrado, o aprisiona, e o apresenta com uma etiqueta, como podia ser o sagrado católico, o sagrado guaiú, o sagrado kichwa.

Embora concordando com a distinção proposta pelo entrevistado, numa abordagem

complexa, não poderíamos deixar de considerar que as percepções do que é tocado

em nós pela sociedade, pela cultura e pela natureza não sofrem rupturas, mas,

antes, são constituídas por continuidades, prolongamentos e ramificações em

permanente transformação, como desvela Morin (2005, p. 19, grifo do autor) ao

afirmar:

[...] A ética manifesta-se para nós, de maneira imperativa como exigência moral. O seu imperativo origina-se numa fonte interior ao indivíduo, que o sente no espírito como a injunção de um dever. Mas ele provém também de uma fonte externa: a cultura, as crenças, as normas de uma comunidade. Há, certamente, também uma fonte anterior originária da organização viva, transmitida geneticamente. Essas três fontes são interligadas como se tivessem um lençol subterrâneo em comum.

136

7 (TRANS)CONCLUSÕES

[...] em vez de continuar pensando segundo um racionalismo puro e duro, em vez de ceder às sereias do irracionalismo, talvez seja melhor pôr em prática uma ‘deontologia’ que saiba reconhecer em cada situação a ambivalência que a compõe: a sombra e a luz entremeadas, assim como o corpo e o espírito, interpenetram-se numa organicidade fecunda (MAFFESOLI, 1998, p. 19).

Indispensável é considerar, em nossas conclusões, que vivemos uma época de

deterioração das relações humanas com franco enfraquecimento do espírito coletivo

e fragmentação crescente das instituições sociais levando, em alguns casos, à

dissolução de seus pressupostos e princípios. A falta de comprometimento com a

vida tornou as relações fluidas e vazias e, enquanto cresce a população mundial,

avança o sentimento de solidão. Difícil encontrar pessoas dispostas às renúncias e

ao sacrifício do pessoal em favor do coletivo. A lei é a da vantagem, sendo difícil

encontrar pessoas altruístas.

As doutrinas e teorias parecem, muitas vezes, formar exércitos que se defendem

uns dos outros como se inimigos fossem. E, de certa forma – onde imperam o

fundamentalismo, e os dogmatismos exacerbam – o são. A herança da Modernidade

é muito mais profunda e penosa do que nos parecia num primeiro momento e o

desafio que está posto na atualidade é o de criar e acreditar num movimento de

religação. O complexo caminha, lado a lado, com o simples. Religar conhecimentos

é romper fronteiras para religar pessoas. Como afirma Morin (2005, p. 183):

[...] Teorias, doutrinas, filosofias, ideologias não podem ser julgadas somente como erros ou verdades na tradução que fazem da realidade; não têm de ser concebidas como produtos de uma cultura, de uma classe ou de uma sociedade. São também seres noológicos,40 alimentando-se de substância mental e cultural e algumas delas, carregadas de forte substância mítico-religiosa, podem desenvolver um extraordinário poder de subjugação e de posse.

40 A expressão refere-se ao conceito de noosfera cunhado por Teilhard de Chardin em 1925. O termo “Noosfera” deriva do grego noos, que significa mente – a fim de designar uma teia de informação e conhecimento em formação e que nos influencia de forma crescente e permanente.

137

Esse é o sentido que pensamos e sentimos para a Educação Ambiental. Não há

lugar para um fechamento teórico, doutrinário, filosófico ou ideológico da Educação

Ambiental. Não há lugar para o preconceito ou a discriminação. É tempo de

caminhar juntos, com respeito e solidariedade a si, ao outro e à natureza, na direção

do universalismo, entendido no sentido do desenvolvimento de idéias, sentimentos e

atitudes de inclusão, uma consciência universalista que não reconhece fronteiras e

vê o outro como legítimo outro na convivência.

Essa dimensão, que procuramos investigar, parece emergir com freqüência nos

processos da Educação Ambiental, recebe muitas e diferentes denominações e tem

a propriedade de nos reconectar. Apesar de estar presente, sua presença está fora

de foco, é periférica, em alguns casos, intencional. Em outros, casual. É uma

presença que ainda causa estranhamento, é algo invisível, pertencente à esfera da

subjetividade, mas está aí, na vida, e se manifesta onde há pessoas envolvidas na

dinâmica educativa. Não podemos e nem devemos mais negá-la por medo de não

saber como lidar com ela. Como falar em transformação da realidade sem

considerar os condicionamentos, anseios e idéias inerentes a essa dimensão?

O caminho percorrido nesta pesquisa suscitou descobertas e um reencantamento

pela presença do outro. Ao caminhar, atenta, na busca pelos sentidos do sagrado,

fomos desvendando a necessidade de valorizar as oportunidades de encontrar o

outro e, nesse sentido, sacralizar os encontros por meio do desenvolvimento de uma

escuta sensível que nos permita estabelecer atitudes transreligiosas, para tessitura

de um conhecimento sempre aberto a seu constante auto-refazimento.

O sentido do sagrado parece ocupar um entrelugar, é e não é, está e não está,

apresenta-se de forma difusa, ora como algo religioso, ora como um conjunto de

valores, ora como dimensão espiritual, imaterial, intangível, não quantificável. Na

verdade, são muitos os sentidos e essa pode ser, dentre muitas, uma das razões

para o estranhamento que sua presença causa. Dando voz a um sujeito da

pesquisa, exemplificamos nossa percepção:

138

[...] então um dos conhecimentos que eu trago pra discussão é o conhecimento religioso, o conhecimento religioso de mundo e aí o conhecimento religioso mais genérico, e que contempla o sagrado, então isso é uma coisa que sempre surge. Sempre surge na discussão essa questão também dessa relação com o sagrado, mas não é o foco, realmente não é o meu foco, mas isso sempre aparece (OTO).

Movimento contrário à sacralização da natureza, por considerar essa uma tendência

dissociativa. Hoje estamos em outro momento, em que a Educação Ambiental, a

sustentabilidade e a transdisciplinaridade podem/devem tratar a dimensão espiritual.

Na complexidade inerente a todo processo educativo, afirmamos sem receios, como

Random (2000, p. 42-43), que “[...]os ensinamentos das grandes sabedorias e das

tradições são essenciais para enriquecer e até mesmo iluminar o espírito científico

[e, por outro lado,] a física quântica mostra que a própria ciência tem valor de

símbolo”.

Acreditamos que, por seu posicionamento filosófico, Merleau-Ponty possa ser

considerado um precursor do pensamento transdisciplinar, deixando em sua teoria

inúmeras aberturas e formulações que, apesar de não compreendidas e/ou aceitas

na época, parecem ter continuidade, hoje, nas abordagens teóricas

contemporâneas, como sugere esse autor ao afirmar: “[...] não há dois saberes, mas

dois graus diferentes de explicitação do mesmo saber, a psicologia e a filosofia se

nutrem dos mesmos fenômenos, os problemas estão apenas mais formalizados no

nível da filosofia” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 62).

A atitude transreligiosa nos convida a reconciliar o conhecimento científico ao

conhecimento propagado pelas principais tradições religiosas. Não apenas

reconciliação entre pares antagônicos, mas uma reconciliação íntima, que

reconheça, aceite e coloque em sinergia os diferentes níveis de Realidade, que

compõem a subjetividade humana. Em sua obra, as idéias merleaupontianas

parecem transitar por entre os embriões do pensamento transdisciplinar, quando

buscam “[...] definir um método de aproximação que nos dê o ser presente e vivo e

que deverá ser aplicado em seguida às relações do homem com o homem na

linguagem, no conhecimento, na sociedade e na religião” (MERLEAU-PONTY, 1990,

p. 63).

139

Um sujeito que desenvolve uma consciência reflexiva e se põe a pensar sobre

valores, estabelecendo diálogo e escuta sensíveis não apenas com seus

semelhantes, mas também com idéias que lhe são antagônicas. A partir de uma

unidade aberta do conhecimento, encontra o novo e se renova e se faz e refaz como

novo educador a cada instante. “Mudanças de paradigma requerem mudanças de

atitude” (SOFFIATI, 2002). O sagrado, nesse sentido, torna-se um ponto de muitas

linhas na rede de saberes e fazeres da Educação Ambiental.

Em meio a uma mudança paradigmática, buscamos a reinvenção do mundo. Mas,

para isso, é preciso ter a coragem de ousar. Garcia (2000) aborda com segurança

um assunto comumente colocado à margem desse processo: o erro. Ela nos fala

das vantagens de vencer o medo de errar na sala de aula e fora dela, e considera o

erro como adubo da aprendizagem afirmando que, sem o erro, não nasce o novo. A

autora instiga a nos desapegar da segurança dos caminhos retilíneos, claros e bem

mapeados para adentrar os “[...] atalhos labirínticos onde não se podem ver

antecipadamente aonde nos levam, mutantes que são e, irrequietos, indisciplinados,

[...] cheios de surpresas onde a única bússola é a busca permanente e obstinada”

(p.118).

Esse foi o convite que aceitamos ao iniciar o presente trabalho. Paradoxalmente

assustador e atraente, o labirinto passou a desenhar-se à nossa frente, ganhando

contornos cada dia mais visíveis. Diante do conjunto de corredores entrecruzados,

salas e caminhos desconhecidos, interpretamos a presença desse labirinto como um

espaço afetivo e cognitivo não-linear a ser percorrido pelo sujeito encarnado. Para

nossa cultura ocidental, o labirinto é um lugar de diversão e prazer, cuja construção

reúne um conjunto de passagens, corredores entrecruzados, salas e caminhos de

difícil saída.

Para a mitologia grega, o labirinto era um objeto sagrado, existente no palácio de

Cnossos. Foi construído por Dédalo, sob as ordens do rei Minos. Nele foi

aprisionado o minotauro, monstro mitológico cujo corpo era de homem e a cabeça

de um touro. A fera alimentava-se de carne humana e Teseu, herói mitológico,

140

conseguiu atravessar aquele labirinto utilizando um simples e surpreendente

recurso.

O estudo histórico filosófico da metáfora mitológica revela um papel religioso nas

culturas primitivas (ABRÃO; COSCODAI, 2000). Nesse sentido, descer a uma

caverna ou gruta, adentrar um labirinto significa a passagem por experiências que

nos conduzam à morte ritual e metafórica do velho e ao encontro com as origens do

ser para ressignificá-lo no novo. “Numa visão simbólica, o labirinto, como as grutas e

cavernas [...] tratam de uma figuração de provas iniciáticas discriminatórias, que

antecedem à marcha para o centro oculto” (BRANDÃO, 2000).

Viver a experiência de uma pesquisa acadêmica dentro de uma outra lógica, que

não a cognitiva-instrumental, foi a realização de antigo sonho, compartilhado por

outro biólogo, amigo querido dos tempos de formação acadêmica na década de 80

do século passado. Na ocasião, nós já vivenciávamos a experiência acadêmica

como sujeitos encarnados, questionávamos os estudos de Biologia baseados na

manipulação de corpos sem vida, dissecados, etiquetados e classificados e, por

defendermos outras formas de conhecimento, éramos encarados como loucos,

radicais e românticos.

Concordamos com Najmanovich (2001 p. 23), quando afirma que “[...] só podemos

conhecer o que somos capazes de perceber e processar com nosso corpo. Um

sujeito encarnado paga com a incompletude a possibilidade de conhecer”.

Sendo assim, dentro do que nos foi possível, atravessamos o labirinto, enfrentamos

alguns minotauros e, após muitas tentativas e erros na busca obstinada e

permanente pela saída, fizemos descobertas sobre nós mesmos, sobre a vida,

sobre a Educação Ambiental e sobre o sagrado, que procuramos compartilhar com

todos. Queremos deixar registrada nossa profunda admiração e respeito pela

educação e pelo poder de transformação que ela engendra nos sujeitos. Assim

como Teseu, encontramos, com a cooperação e solidariedade de todos que, direta

e indiretamente, participaram deste trabalho, uma saída. E agora, vamos deixando

atrás de nós esse labirinto até que outro se desenhe à nossa frente.

141

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148

ANEXOS

149

ANEXO A – PROJETO CIRET- UNESCO

Evolução transdisciplinar da Universidade

1997

[síntese do documento]

Congresso Internacional DE LOCARNO

QUE UNIVERSIDADE PARA O AMANHÃ?

EM BUSCA DE UMA EVOLUÇÃO TRANSDISCIPLINAR DA UNIVERSIDADE

Locarno, Suíça, de 30 de abril a 02 de maio de 1997

I - Introdução

O presente projeto estratégico transversal Evolução transdisciplinar da Universidade

é elaborado pelo Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares

(CIRET), em colaboração com a UNESCO (contrato inscrito no programa 28 C5 da

UNESCO). Ele consiste em uma síntese do documento e em várias contribuições

escritas pelos membros do CIRET (ver Anexo). Este projeto é apresentado como

documento de trabalho para o congresso internacional Que Universidade para o

amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade (Locarno,

Suíça, de 30 de abril a 02 de maio de 1997), subsidiado pela UNESCO e pelo

governo do Tessin e organizado pelo CIRET, em colaboração com a Associação

Internacional para o Vídeo nas Artes e na Cultura (AIVAC).

Durante todo o tempo de sua elaboração, o projeto foi dirigido por Madeleine Gobeil,

Diretora da Divisão de Artes e da Vida Cultural da UNESCO (atualmente consultora

do Diretor Geral da UNESCO) e por Basarab Nicolescu, Presidente do CIRET. Na

primeira fase de elaboração do projeto (outubro de 1995 - setembro de 1996), foi

constituído um grupo de direção. Eis a composição desse grupo:

Coordenadores: Madeleine Gobeil (UNESCO), Basarab Nicolescu (CIRET);

Membros: René Berger, professor honorário da Universidade de Lausane,

presidente de honra da Associação Internacional dos Críticos de Arte e da AIVAC;

150

André Bouriguignon, professor honorário de psiquiatria da Faculdade de Medicina de

Créteil, co-diretor da publicação das obras completas de Freud em francês; Michel

Camus, vice-presidente do Comitê de Iniciativa do Instituto Internacional para a

Ópera e a Poesia de Verona, escritor, filósofo, diretor da Editora “Letras Vivas”,

produtor-delegado na França-Cultura; Ubiratan d’Ambrosio, matemático, professor

emérito da Universidade de Campinas, membro da Academia de Ciências de São

Paulo; Giuseppe Del Re, químico teórico e epistemólogo, professor da Universidade

de Nápoles; Marco António Dias, diretor da Divisão de Educação Superior da

UNESCO; Pablo Gonzalez Casanova, ex-reitor da Universidade Nacional Autônoma

do México, diretor do Centro de Estudos de Ciências Humanas; Pierre Karli,

Neurobiologista de comportamentos, professor emérito da Universidade de

Estrasburgo, membro da Academia de Ciências; Jacques Lafait, físico, diretor de

pesquisas no CNRS, Universidade Pierre e Marie Curie, Paris; Christine Meddeb,

escritora tunisiana, professora da Universidade de Nanterre, diretora da revista

“Dedale”; Edgar Morin, filósofo e sociólogo, diretor de pesquisas no CNRS; René

Passet, economista, professor da Universidade de Paris I (Panteão-Sorbone);

Philippe Quéau, diretor da Divisão de Informação e Informática da UNESCO; Andreù

Sole, especialista em circunspeção, professor do Grupo de Altos Estudos

Comerciais (HEC).

Ainda na primeira fase da elaboração do projeto, uma jornada de estudo foi

organizada pelo CIRET para a UNESCO em 29 de março de 1996, tendo como tema

principal a evolução transdisciplinar da Universidade.

II - Finalidade do projeto

Na elaboração do projeto, o CIRET teve como cuidado principal evitar qualquer

duplo emprego no que diz respeito à grande quantidade de projetos, congressos e

colóquios que ocorrem e ocorrerão sobre a educação, afirmando sua originalidade:

fazer o pensamento complexo e transdisciplinar penetrar nas estruturas, nos

programas e na irradiação da Universidade do amanhã. Assim, este projeto se

posiciona como o complemento transdisciplinar do Relatório Delors, elaborado pela

Comissão Internacional Sobre a Educação Para o Século XXI junto à UNESCO. O

projeto será apresentado, sob uma forma ou outra, na conferência Mundial sobre o

151

Ensino Superior de 1998, organizado por iniciativa da UNESCO.

O objetivo do projeto CIRET-UNESCO, a curto prazo, é fazer com que a

Universidade evolua para a sua missão, hoje esquecida, de estudo do universal, em

nosso mundo caracterizado por uma complexidade que cresce de maneira

incessante. O pensamento estilhaçado é incompatível com a busca da paz na Terra.

A idéia central do projeto é a de que há uma relação direta e não contornável entre

paz e transdisciplinaridade.

Um outro objetivo do projeto CIRET-UNESCO é convencer, também a curto prazo,

alguns reitores de universidades do mundo a aplicar as nossas proposições em

caráter experimental, considerando a Universidade não apenas como um lugar de

aprendizado de conhecimentos, mas também como um lugar de cultura, de arte, de

espiritualidade e de vida. Nesse sentido, o projeto optou por ter um andamento

experimental. No mesmo espírito, temos a intenção de propor este projeto aos

líderes - aos que têm o poder de decisão - do mundo inteiro nas diferentes áreas da

educação, da política, da economia, da ciência, da arte, da religião e da ação social,

sob forma de um livro, elaborado depois do Congresso de Locarno.

III - Pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade -

distinções necessárias

O crescimento sem precedentes dos saberes em nossa época torna legítima a

questão da adaptação das mentalidades a esses saberes. O desafio é de grande

porte, pois a contínua expansão da civilização de tipo ocidental para todo o planeta

tornaria sua queda equivalente a uma catástrofe planetária de proporções muito

maiores do que as das duas primeiras guerras mundiais.

A harmonia entre as mentalidades e os saberes pressupõe que esses saberes

sejam inteligíveis, compreensíveis. Porém, na era do Big-Bang disciplinar e da

especialização sem limites ainda pode haver compreensão?

Um Pico de la Mirandola é inconcebível em nosso tempo. Hoje, dois especialistas da

mesma disciplina encontram dificuldade para compreender seus próprios resultados

152

recíprocos. Isso nada tem de monstruoso, na medida em que é a inteligência

coletiva da comunidade ligada a essa disciplina que a faz progredir e não um único

cérebro que teria forçosamente de conhecer todos os resultados de todos os seus

colegas-cérebros, o que é impossível, pois hoje há centenas de disciplinas. Como

um físico teórico de partículas poderia dialogar verdadeiramente, e não sobre

generalidades mais ou menos banais, com um neurofisiologista; um matemático com

um poeta; um biólogo com um economista; um político com um especialista em

informática? E, no entanto, um verdadeiro homem de ação - um líder - deveria poder

dialogar com todos ao mesmo tempo. A linguagem disciplinar é uma barreira

aparentemente intransponível para um neófito, e todos nós somos neófitos em

relação aos outros. Então a Torre de Babel é inevitável?

Esse processo de “babelização” não pode continuar, sem colocar em perigo nossa

própria existência, pois ele faz com que um líder se torne cada vez mais

incompetente, apesar de ser o detentor da decisão. Os maiores desafios da nossa

época, como por exemplo, os desafios de ordem ética, clamam cada vez mais por

competências. No entanto, a soma dos melhores especialistas em suas respectivas

áreas só pode engendrar uma incompetência generalizada, pois a soma de

competências não é a competência: no plano técnico. A interseção entre os

diferentes campos do saber é um conjunto vazio. Ora, o que é um líder, individual ou

coletivo, senão aquele que é capaz de levar em conta todos os dados do problema

que ele examina?

A necessidade indispensável de vínculos entre as diferentes disciplinas se traduz

pelo surgimento, na metade do século XX, da pluridisciplinaridade e da

interdisciplinaridade.

A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma única disciplina

por diversas disciplinas ao mesmo tempo. Por exemplo, um quadro de Giotto pode

ser estudado pelo enfoque da história da arte cruzado com o da física, da química,

da história das religiões, da história da Europa e da geometria. Ou a filosofia

marxista pode ser estudada pelo enfoque da filosofia entrecruzada com a física, a

economia, a psicanálise ou a literatura. O objeto em questão sairá, assim,

enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas. O conhecimento do objeto em

153

sua própria disciplina é aprofundado por um fecundo aporte pluridisciplinar. A

pesquisa pluridisciplinar enriquece a disciplina em questão (a história da arte ou a

filosofia, em nossos exemplos), porém esse enriquecimento está a serviço apenas

dessa disciplina. Em outras palavras, a abordagem pluridisciplinar ultrapassa as

disciplinas, mas sua finalidade permanece inscrita no quadro da pesquisa disciplinar.

A interdisciplinaridade tem uma ambição diferente daquela da pluridisciplinaridade.

Ela diz respeito à transferência dos métodos de uma disciplina à outra. É possível

distinguir três graus de interdisciplinaridade:

a) um grau de aplicação. Por exemplo, os métodos da física nuclear

transferidos à medicina conduzem à aparição de novos tratamentos de câncer;

b) um grau epistemológico. Por exemplo, a transferência dos métodos da

lógica formal ao campo do direito gera análises interessantes na epistemologia do

direito;

c) um grau de geração de novas disciplinas. Por exemplo, a transferência

dos métodos da matemática ao campo da física gerou a física-matemática; da física

de partículas à astrofísica, a cosmologia-quântica; da matemática aos fenômenos

meteorológicos ou aos da bolsa, à teoria do caos; da informática à arte, a arte-

informática. Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultrapassa as

disciplinas, mas sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar.

Seu terceiro grau inclusive contribui para o big-bang disciplinar.

A transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” o indica, diz respeito ao que está ao

mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de

toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos

imperativos para isso é a unidade do conhecimento.

Há algo entre, através e além das disciplinas? Do ponto de vista do pensamento

clássico, não há nada, absolutamente nada. O espaço em questão é vazio,

completamente vazio, como o vazio da física clássica. Mesmo quando se renuncia à

visão piramidal do conhecimento, o pensamento clássico considera que cada

154

fragmento da pirâmide, engendrado pelo big-bang disciplinar, é uma pirâmide inteira;

cada disciplina afirma que o campo de sua pertinência é inesgotável. Para o

pensamento clássico, a transdisciplinaridade é um absurdo, pois ela não tem objeto.

Por outro lado, para a transdisciplinaridade o pensamento clássico não é absurdo,

mas seu campo de aplicação é tido como restrito.

Diante de diversos níveis de realidade, o espaço entre e além das disciplinas é

cheio, como o vazio quântico é cheio de todas as potencialidades: da partícula

quântica às galáxias, do quark aos elementos pesados, que condicionam a aparição

da vida no universo.

Os três pilares da transdisciplinaridade: os níveis de Realidade, a lógica do

terceiro incluído e a complexidade determinam a metodologia da pesquisa

transdisciplinar.

A estrutura descontínua dos níveis de Realidade determina a estrutura do espaço

transdisciplinar, que, por sua vez, explica por que a pesquisa transdisciplinar é

radicalmente distinta da pesquisa disciplinar, embora sendo complementar a ela. A

pesquisa disciplinar diz respeito, no máximo, a um único nível de Realidade. Na

maioria dos casos, ela só diz respeito a fragmentos de um só nível de Realidade.

Por outro lado, a transdisciplinaridade interessa-se pela dinâmica gerada pela

ação de diversos níveis de Realidade ao mesmo tempo. A descoberta dessa

dinâmica passa necessariamente pelo conhecimento disciplinar. A

transdisciplinaridade, embora não sendo uma nova disciplina ou uma nova

hiperdisciplina, alimenta-se da pesquisa disciplinar, que, por sua vez, é clareada de

uma maneira nova e fecunda pelo conhecimento transdisciplinar. Nesse sentido, as

pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagônicas, mas

complementares.

Como no caso da disciplinaridade, a pesquisa transdisciplinar não é antagônica, mas

complementar da pesquisa pluri e interdisciplinar. A transdisciplinaridade, no

entanto, é radicalmente distinta da pluridisciplinaridade e da interdisciplinaridade

quanto à sua finalidade, pois a compreensão do mundo atual não pode ser inscrita

na pesquisa disciplinar. A finalidade da pluri e da interdisciplinaridade é sempre a

155

pesquisa disciplinar. Se a transdisciplinaridade é freqüentemente confundida com a

interdisciplinaridade e com a pluridisciplinaridade (como, aliás, a interdisciplinaridade

é freqüentemente confundida com a pluridisciplinaridade), isso se explica em grande

parte pelo fato de que todas as três ultrapassam as disciplinas. Essa confusão é

muito nociva, na medida em que ela oculta as diferentes finalidades dessas três

novas abordagens.

Embora reconhecendo o caráter radicalmente distinto da transdisciplinaridade com

relação à disciplinaridade, à pluridisciplinaridade e à interdisciplinaridade, seria muito

perigoso considerar essa distinção como absoluta, pois com isso a

transdisciplinaridade seria esvaziada de todo o seu conteúdo e a eficácia de sua

ação seria reduzida a nada.

A disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a

transdisciplinariade são as quatro flechas de um único arco: o do

conhecimento.

Se a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade entraram timidamente em certas

universidades, sobretudo a partir de 1950, a transdisciplinaridade, por sua vez, está

ausente das estruturas e programas da Universidade, salvo em algumas exceções

notáveis. Apesar de sua irrupção no mundo universitário, as experiências

pluridisciplinares e interdisciplinares não são consideradas em geral como muito

convincentes. Os poucos departamentos pluridisciplinares e interdisciplinares

criados em várias universidades, especialmente nos EUA, conduziram, na maioria

dos casos, a uma simples justaposição passiva, não interativa, dos professores ou

dos estudantes. Sob o ponto de vista desenvolvido no presente projeto, esse

impasse parcial é compreensível: é justamente a transdisciplinaridade a condição

sine qua non de uma interação fecunda e duradoura entre a disciplinaridade, a

pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade. Sua ausência equivale à ausência de

orientação, à falta de direção das abordagens que ultrapassam as fronteiras

disciplinares. Essa orientação está claramente explicitada na Carta da

Transdisciplinaridade, adotada no Primeiro Congresso Mundial da

Transdisciplinaridade, ocorrido no Convento de Arrábida, em Portugal, de 02 a 06 de

novembro de 1994.

156

IV - Pontos de referência da evolução transdisciplinar da educação

O surgimento de uma cultura transdisciplinar, que poderia contribuir para eliminar as

tensões que ameaçam a vida em nosso planeta, é impossível sem um novo tipo de

educação que leve em conta todas as dimensões do ser humano.

As diferentes tensões econômicas, culturais, espirituais, são inevitavelmente

perpetuadas e aprofundadas por um sistema de educação fundado em valores de

outro século, em descompasso acelerado com as mudanças contemporâneas. A

guerra larvária entre as economias, as culturas e as civilizações não deixa de

conduzir à guerra fria aqui e acolá. No fundo, toda a nossa vida individual e social é

estruturada pela educação.

Apesar da enorme diferença entre os sistemas de educação de um país para outro,

a mundialização dos desafios da nossa época leva à mundialização dos problemas

da educação. Os abalos que sacodem o campo da educação em um ou outro país

são apenas os sintomas da fissura entre os valores e as realidades de uma vida

planetária em mutação. Se não há, por certo, nenhuma receita milagrosa, há, no

entanto, um centro comum de interrogação que convém não ocultar, se desejamos

verdadeiramente viver em um mundo mais harmonioso.

O Relatório Delors elaborado pela Comissão Internacional Sobre a Educação para

o Século XXI, ligada à UNESCO e presidida por Jacques Delors, ressalta

nitidamente os quatro pilares de um novo tipo de educação: aprender a conhecer,

aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser.

Nesse contexto, a abordagem transdisciplinar pode dar uma importante contribuição

para o surgimento desse novo tipo de educação.

Aprender a conhecer significa, antes de mais nada, o aprendizado dos métodos

que nos ajudam a distinguir o que é real do que é ilusório e ter assim acesso aos

fabulosos saberes de nossa época. Nesse contexto, o espírito científico, uma das

mais altas aquisições da aventura humana, é indispensável. A iniciação precoce na

157

ciência é salutar, pois ela dá acesso, desde o início da vida humana, à inesgotável

riqueza do espírito científico, fundado no questionamento, na não-aceitação de

qualquer resposta pré-fabricada e de qualquer certeza que esteja em contradição

com os fatos. No entanto, espírito científico não quer dizer um aumento

desmesurado do ensino de matérias científicas e a construção de um mundo interior

fundado na abstração e na formalização. Um tal excesso, infelizmente corrente, só

poderia conduzir ao extremo oposto do espírito científico: as respostas prontas de

antigamente seriam substituídas por outras respostas prontas (que por sua vez,

ganhariam uma espécie de brilho “científico”) e, afinal de contas, um dogmatismo

seria substituído por outro. Não é pela assimilação de uma enorme massa de

conhecimentos científicos que se tem acesso ao espírito científico, mas pela

qualidade do que é ensinado. E “qualidade” quer dizer fazer com que a criança, o

adolescente ou o adulto penetrem no próprio coração da abordagem científica, que é

o permanente questionamento relacionado com a resistência dos fatos, das

imagens, das representações e das formalizações.

Aprender a conhecer também quer dizer ser capaz de estabelecer pontes entre os

diferentes saberes, entre esses saberes e suas significações na nossa vida

cotidiana, entre esses saberes e significados e nossas capacidades interiores. A

abordagem transdisciplinar será o complemento indispensável da abordagem

disciplinar, pois ela conduzirá a um ser continuamente unificado, capaz de adaptar-

se às exigências mutáveis da vida profissional e dotado de uma grande flexibilidade,

embora permanecendo sempre orientado para a atualização de suas

potencialidades interiores.

Aprender a fazer significa, certamente, a aquisição de uma profissão, bem como

dos conhecimentos e das práticas associadas a ela. A aquisição de uma profissão

passa necessariamente por uma especialização.

No entanto, em nosso mundo em ebulição, no qual o terremoto “informática” é

anunciador de outros terremotos futuros, fixar-se por toda a vida em uma única

profissão pode ser perigoso, pois corre-se o risco da condução do ser humano ao

desemprego, à exclusão, ao sofrimento desintegrador do ser. A especialização

excessiva e precoce deve ser banida em um mundo que vive transformações muito

158

rápidas. Quando se quer verdadeiramente conciliar a exigência da competição e a

preocupação com a igualdade de oportunidades para todos os seres humanos,

qualquer profissão no futuro deveria ser uma profissão a ser tecida, uma profissão

que estaria ligada, no interior do ser humano, com os fios de outras profissões. É

evidente que não se trata de aprender diversas profissões ao mesmo tempo, mas de

edificar interiormente um núcleo flexível capaz de permitir um rápido acesso a outra

profissão.

Nesse caso, a abordagem transdisciplinar também pode ser preciosa. Afinal de

contas, “aprender a fazer” é um aprendizado da criatividade. “Fazer” também

significa criar algo novo, trazer à luz as próprias potencialidades criativas. É esse

aspecto do “fazer”, que é o contrário do tédio sentido, infelizmente, por tantos seres

humanos, que são obrigados, para suprir as suas necessidades, a exercer uma

profissão que não está em conformidade com suas predisposições interiores.

“Igualdade de oportunidades” também quer dizer realização de potencialidades

criativas diferentes das dos outros seres humanos. “Competição” também pode

significar harmonia das atividades criadoras no seio de uma única coletividade. O

tédio, causador da violência, do conflito, da desordem, da abdicação moral e social,

pode ser substituído pela alegria da realização pessoal, qualquer que seja o lugar

em que essa realização se dê, pois para cada pessoa, a cada momento, esse lugar

só pode ser único.

Edificar uma verdadeira pessoa também quer dizer assegurar-lhe condições

máximas de realização de suas potencialidades criadoras. A hierarquia social, tão

freqüentemente arbitrária e artificial, poderia ser assim substituída pela cooperação

dos níveis estruturados, em função da criatividade pessoal. Esses níveis serão

níveis de ser e não níveis impostos por uma competição que não leva de modo

algum em conta a essência do homem. A abordagem transdisciplinar está

fundamentada no equilíbrio entre o homem exterior e o homem interior. Sem esse

equilíbrio, “fazer” não significa nada mais do que “sofrer a ação”, “submeter-se”.

Aprender a viver junto significa, em primeiro lugar, respeitar as normas que

regulamentam as relações entre os seres que compõem uma coletividade. Porém,

essas normas devem ser verdadeiramente compreendidas, admitidas interiormente

159

por cada ser e não sofridas como imposições exteriores. “Viver junto” não quer dizer

simplesmente tolerar o outro com suas diferenças de opinião, de cor de pele e de

crenças; submeter-se às exigências dos poderosos; navegar entre os meandros de

incontáveis conflitos; separar definitivamente a vida interior da vida exterior; fingir

escutar o outro embora permanecendo convencido da justeza absoluta das próprias

posições; assim, “viver junto” transforma-se inevitavelmente em seu contrário: lutar

uns contra os outros.

A atitude transcultural, transreligiosa, transpolítica e transnacional pode ser

aprendida. Ela é inata na medida em que há em cada ser um núcleo sagrado,

intangível. No entanto, essa atitude inata é apenas potencial e pode permanecer

para sempre não atualizada, permanecer ausente na vida e na ação. Para que as

normas de uma coletividade sejam respeitadas, devem ser validadas pela

experiência interior de cada ser.

Há um aspecto capital da evolução transdisciplinar da educação: reconhecer a si

mesmo na face do outro. Trata-se de um aprendizado permanente, que deve

começar na mais tenra infância e continuar por toda a vida. A atitude transcultural,

transreligiosa, transpolítica e transnacional permitir-nos-á, então, aprofundar mais a

nossa própria cultura, defender melhor nossos interesses nacionais, respeitar mais

nossas próprias convicções religiosas ou políticas. A unidade aberta e a pluralidade

complexa, como em todos os outros campos da Natureza e do conhecimento, não

são antagônicas.

Aprender a ser parece, a princípio, um enigma insondável. Sabemos que existimos,

mas como aprender a ser? Podemos começar aprendendo que a palavra “existir”

quer dizer, para nós, descobrir os nossos condicionamentos, descobrir a harmonia

ou a desarmonia entre nossa vida individual e social, sondar as fundações de

nossas convicções para descobrir o que está por baixo delas. Em uma edificação, a

etapa da escavação precede a das fundações. Para fundamentar o ser, é preciso

antes escavar as nossas incertezas, as nossas crenças, os nossos

condicionamentos. Questionar, questionar sempre. O espírito científico também é

para nós um precioso guia. Isso é aprendido tanto pelos educadores como pelos

educandos.

160

É evidente que os diferentes lugares e as diferentes idades da vida pedem métodos

transdisciplinares extremamente diversificados. Mesmo que a educação

transdisciplinar seja um processo global e de grande fôlego, é importante encontrar

e criar lugares que poderão iniciar esse processo e assegurar seu desenvolvimento.

A Universidade é o lugar privilegiado para uma formação apropriada às exigências

de nosso tempo; além disso, é o pivô da educação destinada às crianças e aos

adolescentes. A Universidade poderá, portanto, tornar-se o lugar ideal para o

aprendizado da atitude transcultural, transreligiosa, transpolítica e transnacional,

para o diálogo entre a arte e a ciência, eixo da reunificação entre a cultura científica

e a cultura artística. A Universidade renovada será o lugar de um novo tipo de

humanismo.

V - Mudar de sistema de referência

Diante da imensa diversidade dos problemas com que são confrontadas as

universidades em diferentes países, seria presunçoso tentar estabelecer um

catálogo de receitas, inevitavelmente ilusórias e inoperantes. Além do mais, a

própria noção de receita é contrária ao espírito transdisciplinar.

Com efeito, na medida em que a transdisciplinaridade corresponde a um novo

modo de conhecimento, não redutível ao conhecimento disciplinar, gera uma nova

teoria e uma nova prática da decisão. Na abordagem transdisciplinar não há mais

condições iniciais bem definidas do problema a resolver. Mais precisamente,

conseqüência imediata da complexidade intrínseca do mundo em que vivemos,

essas condições “iniciais” mudam continuamente. Em nossa vida universitária,

deparamo-nos com isso todos os dias e, no entanto, ainda não perdemos a ilusão de

uma “reforma”, de um milagre capaz de eliminar todos os males que atingem as

universidades. Se as condições iniciais dos diferentes problemas mudarem

incessantemente e se uma reforma milagrosa for simplesmente impossível, estamos,

então, condenados a assistir, impotentes, à decadência progressiva, mas certa das

universidades? A resposta será certamente “não”, se aceitarmos mudar de sistema

de referência, isto é:

161

1. considerar cada problema não mais a partir de um único nível de

Realidade, mas situando-o simultaneamente no campo de vários níveis de

Realidade;

2. não mais esperar encontrar a solução de um problema nos termos de

“verdadeiro” ou “falso” da lógica binária, mas recorrer a novas lógicas,

particularmente à lógica do terceiro incluído: a solução de um problema só pode

ser encontrada pela conciliação temporária dos contraditórios, ligando-os a um nível

de Realidade diferente daquele no qual esses contraditórios se manifestam;

3. reconhecer a complexidade intrínseca do problema, isto é, a

impossibilidade da decomposição desse problema em partes simples, fundamentais.

Na ausência de fundamentos, ausência que caracteriza o mundo atual, “mudar de

sistema de referência” também quer dizer tomar como fundamento precisamente a

ausência de fundamentos. Em outras palavras, substituir a noção de “fundamento”

pela coerência deste mundo multidimensional e multireferencial.

A consideração simultânea desses três pilares metodológicos da

transdisciplinaridade em cada ato da nossa vida universitária pode parecer de uma

extrema exigência e, portanto, irrealizável. Além disso, ela pode desencadear todo

tipo de fantasmas e de medos: o apagamento de territórios disciplinares, a

dissolução do local na globalidade, a aniquilação da eficácia em um mundo em que

a competitividade reina soberana etc. Por isso, essa metodologia só deve ser

aplicada gradualmente, de maneira pragmática, com grande prudência e rigor,

tomando como finalidade imediata a formação de formadores. Com efeito, a

inexistência de educadores animados de/ por uma atitude transdisciplinar faz com

que não possa haver evolução transdisciplinar e nem mesmo evolução da

Universidade.

Apesar das dificuldades metodológicas que acabamos de salientar, é possível, no

entanto, identificar os eixos da evolução transdisciplinar da Universidade:

1. Educação intercultural e transcultural, visando a edificar o fundamento

da paz e da compreensão internacional e transnacional.

162

2. Considerar o diálogo arte/ciência como um dos maiores eixos da nova

educação, visando à reunificação das duas culturas artificialmente antagônicas: a

cultura científica e a cultura artística, pela sua ultrapassagem mediante uma nova

cultura multidimensional, condição prévia para uma transformação das

mentalidades.

3. Integração da revolução informática na educação universitária.

4. Educação inter-religiosa e transreligiosa, tendo em vista o ensino do

conhecer e do apreciar a especificidade das tradições religiosas e não-religiosas que

nos são estranhas, para perceber melhor as estruturas comuns que as

fundamentam, para chegar, assim, a uma visão transreligiosa do mundo. Esse eixo

concerne não só aos crentes e aos ateus, como também aos agnósticos.

5. Educação transdisciplinar, tendo em vista alcançar a flexibilidade da

formação dos jovens e a abertura de espírito, em um mundo em que estão

presentes a exclusão, a não-realização das aspirações dos jovens, a desigualdade

de oportunidades de auto-realização e a ruptura entre a vida individual e a vida

social.

6. Educação transpolítica tendo em vista o respeito dos interesses dos

estados e das nações em um mundo caracterizado por uma globalização cada vez

maior.

7. Tomar as medidas institucionais concretas em vista de uma

transdisciplinaridade vivida na relação entre educadores e educandos.

Outra dificuldade surge com isso, pois é evidente que há uma forte correlação entre

todos esses eixos, uma interdependência, um condicionamento recíproco.

Essa dificuldade também pode ser vencida, se mudarmos de sistema de referência,

isto é, se identificarmos a mutação contemporânea do espaço e do tempo em que

vivemos e, portanto, das relações de causalidade que regem nossa vida e nossas

ações.

163

O espaço territorial de antigamente foi substituído pelo espaço informal, de

natureza quântica e planetária. O tempo local de antigamente, por sua vez, foi

substituído por um tempo mundial, cada vez mais estudado pelos sociólogos e

filósofos, tempo esse que está ligado ao mesmo tempo à natureza e ao imaginário e

que determina o encadeamento de fenômenos aparentemente desconectados. O

espaço informal e o tempo mundial podem ser unificados pela visão transdisciplinar.

Esse espaço-tempo transdisciplinar está ligado a um novo tipo de causalidade que

transcende o local e o global, unificando-os em um outro nível de realidade.

Compreende-se assim por que qualquer solução local, específica a um ou outro

país, que não leve em conta a dimensão planetária, está destinada de saída ao

impasse. Uma verdadeira evolução da Universidade requer a recusa de se deixar

encerrar na oposição binária mundialização/fechar-se em si. No fundo, a

Universidade de hoje pode reencontrar sua dimensão universal (na ausência da qual

“Universidade” não passaria de um nome abusivo e enganador) se souber pôr em

movimento a dinâmica transdisciplinar da unidade na diversidade e da diversidade

pela unidade, recusando seja o extremismo de um pragmatísmo auto-destrutor, seja

o extremismo de uma utopia sem eficácia alguma.

Enfim, uma última dificuldade que queremos sublinhar nessa revisão metodológica

está ligada à própria natureza deste documento. Enquanto documento sobre a

evolução transdisciplinar da Universidade, ele mesmo deve ser transdisciplinar em

sua estrutura e seu conteúdo e propor que o leitor tenha ele próprio uma atitude

transdisciplinar. Em outras palavras, este documento pressupõe um acordo prévio

sobre a linguagem utilizada, condição que não pode ser cumprida automaticamente,

pois ela pede uma mudança de sistema de referencia na própria linguagem. Esta

última dificuldade pode ser ultrapassada pela consulta dos Anexos ao presente

documento e da bibliografia que está incluída neles.

VI - Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade

A evolução transdisciplinar da Universidade é um processo de grande fôlego e,

conseqüentemente, para não destruir o imenso potencial dessa evolução, é

desejável e mesmo necessário começar com pequenos passos, levando em conta, a

cada instante, a sua finalidade. Neste capítulo, iremos esboçar algumas propostas,

164

que se encontram desenvolvidas nas contribuições ao presente documento (ver

Anexos):

1. Criação de ateliês de pesquisa transdisciplinar (ART) nas universidades

Como a transdisciplinaridade não é uma nova disciplina, não se trata de criar novas

cadeiras “transdisciplinares”. Por outro lado, é muito desejável criar, em algumas

universidades pilotos, verdadeiros pólos de excelência: ateliês de pesquisa

transdisciplinar. Esses ateliês terão como missão fazer eclodir o espírito

transdisciplinar através de propostas concretas sobre a coordenação transversal de

programas e as medidas institucionais internas a serem tomadas a fim de favorecer

a interação transdisciplinar entre os educadores e os educandos. Os ateliês

assumirão o papel de um verdadeiro terceiro termo entre os educadores e os

educandos. Na ausência de um verdadeiro terceiro termo, a interação entre os

educadores e os educandos se tornará, inevitavelmente, cada vez mais mecânica,

limitando-se a uma transmissão de um saber cada vez mais evasivo e sem nenhuma

ação sobre a vida individual e social.

Os ateliês devem ser estruturas abertas que integrem os pesquisadores exteriores à

Universidade (músicos, poetas, artistas), os representantes do mundo das

associações e dos municípios. Assim, com o tempo, os ateliês poderiam tornar-se

lugares de reflexão e proposição transdisciplinares a respeito do desemprego, da

exclusão, da fratura social, do trabalho, da integração das minorias.

A composição desses ateliês deve ser variável no tempo, em função das

necessidades do momento, embora mantendo sempre uma rigorosa orientação

transdisciplinar. Assim, a hierarquia não será mais pessoal, mas distributiva e

fundamentada exclusivamente na autoridade ontológica e não na administrativa. A

responsabilidade desses ateliês poderia ser confiada a uma estrutura ternária: um

representante das ciências exatas, um representante das ciências humanas e um

representante dos estudantes. Para manter uma estatura propícia à reflexão e à

pesquisa, a admissão nesses ateliês poderia ser feita por meio de cooptação.

Os ateliês de pesquisa transdisciplinar poderão com isso ser o lugar criativo da arte

165

de viver e aprender junto, em todos os níveis. Esses ateliês poderiam constituir

verdadeiros modelos, estimulando a criação de outros ateliês similares em qualquer

outra coletividade: empresa, instituição nacional ou instituição internacional.

2. Criação de unidades de formação e pesquisa transdisciplinar (UFRT)

Num nível mais formal, certas universidades poderiam sentir a necessidade de criar

uma unidade de formação e de pesquisa transdisciplinar, tendo autoridade de

decisão no plano universitário e encarregada de conceber, disseminar e coordenar o

conjunto de cursos, seminários e conferências de abertura transdisciplinar.

As UFRT terão como missão harmonizar os ensinos de caráter disciplinar,

multidisciplinar e interdisciplinar. Elas poderão decidir pela criação de ensinos de

sensibilização para os desafios sociais, culturais e éticos, pelo desenvolvimento de

cursos abordando os fundamentos históricos e epistemológicos das diversas

disciplinas, embora evitando cuidadosamente todo desgarramento ideológico ou

reducionista.

Numa etapa mais avançada, é possível supor que uma ou outra Universidade,

através de sua UFRT, decida que a habilitação para dirigir pesquisas seja

condicionada pelo comparecimento num seminário ou curso de história, filosofia ou

sociologia das ciências, coroado por uma dissertação sancionada pela decisão de

um júri transdisciplinar.

3. Criação de um fórum transdisciplinar permanente de história, filosofia e

sociologia das ciências (FPT)

A ART (no plano da reflexão e da pesquisa) e as UFRT (no plano da atividade

universitária concreta e de decisão) poderão constituir os dois pólos

complementares capazes de permitir o surgimento de um fórum permanente de

história, filosofia e sociologia das ciências, no qual duas direções privilegiadas

poderão ser o estudo da filosofia da Natureza e o estudo dos aspectos

antropológicos. Esse fórum poderia ter um campo muito amplo de atividade, indo

desde cursos e trabalhos dirigidos até debates públicos destinados à população da

166

cidade em que a Universidade estiver instalada.

As três novas estruturas que propomos, as ART, os UFRT e os FPT, poderiam ter, a

longo prazo, um impacto considerável sobre a sociedade de hoje, tratando de frente

a crise de representação que atravessamos. Nossos meios de representar o mundo

estão, de fato, ultrapassados e esse descompasso pode ter um efeito destrutivo

incalculável. O fim dos dogmas, o reinado absoluto do mercado, as guerras tribais,

as poluições globais e a desorientação genética são signos maiores dessa crise de

representação. O pensamento transdisciplinar é capaz de avaliar toda a dimensão

dessa crise radical e inventar os meios de ultrapassá-la. Nesse contexto, a

Universidade é um lugar privilegiado do desenvolvimento do pensamento e da

experiência transdisciplinares.

4. A criação de centros de orientação transdisciplinares (COT)

Com relação aos estudantes, esses centros transdisciplinares de orientação (COT)

terão uma função complementar em relação aos centros tradicionais de orientação.

Se a aquisição dos saberes de uma disciplina continua sendo uma prioridade

indiscutível, também é importante levar em conta a vida da pessoa lançada num

mundo que parece ter como único critério de valor a eficácia a qualquer preço. A

transdisciplinaridade tenta levar em conta simultaneamente as duas pontas do

bastão, o homem interior e o homem exterior, unidos por um terceiro termo que ela

se esforça por decifrar. Os COT poderão aconselhar os estudantes na direção de

uma flexibilidade interior e de um auto-aprendizado que poderiam permitir-lhes

mudar de profissão em qualquer momento de sua vida, não só para suprir as

necessidades da vida material, mas também para atualizar suas potencialidades.

Os COT também poderão assumir o papel de orientação dos educadores, uma vez

que eles devem igualmente se adaptar a um mundo em plena mutação, a fim de

evitar a esterilização intelectual e espiritual. Esses COT poderiam desempenhar a

função de verdadeiros observatórios, especialmente no que concerne à evolução do

sistema educativo sob a influência da revolução informática.

Os COT poderão criar não só um espaço de despertar e de renascimento dos

diferentes níveis de inteligência e de espírito criativo, como também um espaço de

167

relação entre uma democracia cognitiva e o espírito vivo.

5. Criação de lugares de silêncio e de meditação transreligiosa e transcultural

À imagem das monstruosas megalópoles, certas universidades são, do ponto de

vista arquitetural e de distribuição de espaços, gigantescos supermercados do

saber, desprezando qualquer sentido estético e poético, tão necessários a uma vida

real. Em tais espaços, o espírito de exclusão, de desprezo, de ignorância do outro,

de indiferença para com tudo o que é diferente de si mesmo só pode acentuar-se e

propagar-se na vida do adulto ativo que o estudante irá tornar-se ao fim de seus

estudos.

Nesse contexto, a criação de lugares destinados exclusivamente ao silêncio e à

meditação poderá desempenhar um importante papel na geração do espírito de

tolerância. Evidentemente devem ser, de acordo com o espírito laico da

Universidade, lugares transreligiosos e transculturais, onde cada um poderá

comungar com o outro no silêncio nutrido por sua própria religião e sua própria

cultura. Na perspectiva transdisciplinar, o silêncio põe em jogo um nível

extremamente rico de informação, a partir do qual uma comunicação e mesmo uma

comunhão podem se estabelecer.

6. Em busca da partilha universal dos conhecimentos: religar a Universidade

da área pública do ciber-espaço-tempo

O surgimento do ciber-espaço-tempo representa, mais que uma queda do muro de

Berlim, uma fabulosa oportunidade para a democracia, para o desenvolvimento

individual e social e para a partilha universal dos conhecimentos. Com a

condição, é claro, de que esse ciber-espaço-tempo não seja pervertido numa imensa

pompa financeira. O suporte das criações difundidas no ciber-espaço-tempo é da

textura das profundezas da matéria, está na proximidade do mundo quântico. Em

outras palavras, do ponto de vista científico, o espaço cibernético é de uma natureza

radicalmente diferente do nosso espaço habitual. Se a terra pode ser dividida em

territórios, cujas fronteiras separam os diversos estados-nações e os diversos povos

do mundo, uma tal divisão do espaço cibernético seria simplesmente contra a

168

natureza. Esse é o fundamento científico da necessidade de uma visão

resolutamente nova sobre a evolução da área pública, quanto a seus fins, sua

extensão e sua qualidade. No ciber-espaço-tempo, a área pública é de natureza

planetária e não nacional.

Se as organizações nacionais e internacionais tiverem coragem e inteligência de

fazer emergir uma nova visão do domínio público, o ciber-espaço-tempo poderia

tornar-se um fabuloso reservatório energético e dinâmico de desenvolvimento das

universidades do mundo inteiro. Uma Universidade de qualquer país, desenvolvido

ou em desenvolvimento, deveria ter a possibilidade de conectar-se com todas as

bases de dados do ciber-espaço-tempo. Poder-se-ia com isso transferir ao ciber-

espaço-tempo todas as funções mecânicas do ensino, operando assim uma

verdadeira liberação dos educadores, permitindo que eles se concentrassem na

criatividade, no diálogo e na interação com os estudantes. Aprender a aprender

poderia ser a missão do educador de amanhã: aprender a pensar, aprender a criar,

aprender a reunir o que está disperso e a eliminar o que é contingente. Substituir

assim o saber pela compreensão, a possessão rígida dos saberes pela capacidade

de religação e de invenção, o curriculum mortis pelo curriculum vitae.

A liberação dos educadores também significa a liberação dos estudantes; eles serão

livres para buscar seu justo lugar na sociedade e no interior deles mesmos, em vez

de permanecerem escravos de um sistema econômico indiferente a seu ser real.

O impacto social de tal metamorfose da Universidade é considerável, pois com isso

um novo laço social também pode estabelecer-se. Os conceitos novos como os de

transcultura, transreligião, transpolítica ou transnacionalidade, forjados pelos

pesquisadores transdisciplinares do CIRET e de outros lugares, poderiam assim

germinar no mundo da educação universitária e em seguida encarnar-se e propagar-

se numa escala planetária.

Uma nova solidariedade está perto de nascer. As universidades do mundo inteiro,

através de sua conexão com o ciber-espaço-tempo, tornar-se-ão os elos de uma

gigantesca e virtual Universidade das universidades, verdadeiro lugar do universal.

Graças à nova educação universitária, o perigoso e explosivo fosso entre os info-

169

ricos e os info-pobres (ricos e pobres em informática) também poderia reduzir-se

progressivamente.

Além do mais, esse processo é um processo circular; ele se auto-alimenta e se auto-

organiza. A criação dos fóruns de discussão sobre a evolução transdisciplinar da

universidade na Internet, que preconizamos, é muito desejável. O Observatório para

o Estudo da Universidade do Futuro (OEUF), criado pela Escola Politécnica Federal

de Lausane, em colaboração com o CIRET (http://www-uf.epfl.ch/UF/), é o lugar

virtual capaz de mediar tal fórum. E de um tal OEUF talvez saia o que invocamos

com todo nosso coração e nossos esforços a Universidade do Futuro.

Enfim, o ciber-espaço-tempo permitiria a germinação virtual das universidades em

busca de sua evolução transdisciplinar.

7. Conclusões

Rigor, tolerância e abertura são três conceitos colocados em destaque pela Carta de

Transdisciplinaridade (ver Anexos). No presente documento, tentamos pôr esses

três conceitos “na vida”.

Neste documento, limitamo-nos voluntariamente a algumas referências da evolução

transdisciplinar da Universidade. As propostas que apresentamos foram concebidas

longe de todo espírito de “metodolatria”, deixando cada um fazer seu próprio

caminho.

Certo, a transdisciplinaridade não é neutra, pois ela opta pelo sentido. Uma

educação neutra e objetiva não passa de um fantasma que nos foi legado pela

ideologia cientificista. A transdisciplianaridade tem como ambição a unificação, em

suas diferenças, do Objeto e do Sujeito: o sujeito-conhecedor faz parte integrante da

Natureza e do conhecimento.

A evolução transdisciplinar da Universidade não é nem um luxo, nem um arranjo

cosmético de uma instituição ameaçada, nem uma decoração agradável, mas

supérflua num velho e verdadeiro edifício, e sim uma necessidade. A vocação

170

transdisciplinar da Universidade está inscrita na sua própria natureza: o estudo do

universal é inseparável da relação entre os campos disciplinares, buscando o que se

encontra entre, através e além de todos os campos disciplinares.

Basarab Nicolescu

Presidente do CIRET

171

ANEXO B – CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE

(Elaborada no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, Convento

de Arrábida, Portugal, 2-6 novembro 1994)

Preâmbulo

Considerando que a proliferação atual das disciplinas acadêmicas conduz a um

crescimento exponencial do saber que torna impossível qualquer olhar global do ser

humano;

Considerando que somente uma inteligência que se dá conta da dimensão

planetária dos conflitos atuais poderá fazer frente à complexidade de nosso mundo e

ao desafio contemporâneo de autodestruição material e espiritual de nossa espécie;

Considerando que a vida está fortemente ameaçada por uma tecnociência triunfante

que obedece apenas à lógica assustadora da eficácia pela eficácia;

Considerando que a ruptura contemporânea entre um saber cada vez mais

acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um

novo obscurantismo, cujas conseqüências sobre o plano individual e social são

incalculáveis;

Considerando que o crescimento do saber, sem precedentes na história, aumenta a

desigualdade entre seus detentores e os que são desprovidos dele, engendrando

assim desigualdades crescentes no seio dos povos e entre as nações do planeta;

Considerando simultaneamente que todos os desafios enunciados possuem sua

contrapartida de esperança e que o crescimento extraordinário do saber pode

conduzir a uma mutação comparável à evolução dos hominídeos à espécie humana;

Considerando o que precede, os participantes do Primeiro Congresso Mundial de

Transdisciplinaridade (Convento de Arrábida, Portugal 2 - 7 de novembro de 1994)

adotaram o presente Protocolo entendido como um conjunto de princípios

172

fundamentais da comunidade de espíritos transdisciplinares, constituindo um

contrato moral que todo signatário deste Protocolo faz consigo mesmo, sem

qualquer pressão jurídica e institucional.

Artigo 1:

Qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera definição e de dissolvê-lo

nas estruturas formais, sejam elas quais forem, é incompatível com a visão

transdisciplinar.

Artigo 2:

O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por

lógicas diferentes é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer tentativa de reduzir

a realidade a um único nível regido por uma única lógica não se situa no campo da

transdisciplinaridade.

Artigo 3:

A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da

confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma

nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o

domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que

as atravessa e as ultrapassa.

Artigo 4:

O ponto de sustentação da transdisciplinaridade reside na unificação semântica e

operativa das acepções através e além das disciplinas. Ela pressupõe uma

racionalidade aberta, mediante um novo olhar sobre a relatividade das noções de

“definição” e de “objetividade”. O formalismo excessivo, a rigidez das definições e o

absolutismo da objetividade, comportando a exclusão do sujeito, levam ao

empobrecimento.

Artigo 5:

A visão transdisciplinar é resolutamente aberta na medida em que ela ultrapassa o

campo das ciências exatas devido ao seu diálogo e sua reconciliação não somente

com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a

173

experiência espiritual.

Artigo 6:

Com a relação à interdisciplinaridade e à multidisciplinaridade, a

transdisciplinaridade é multirreferencial e multidimensional. Embora levando em

conta os conceitos de tempo e de história, a transdisciplinaridade não exclui a

existência de um horizonte transhistórico.

Artigo 7:

A transdisciplinaridade não constitui nem uma nova religião, nem uma nova filosofia,

nem uma nova metafísica, nem uma ciência das ciências.

Artigo 8:

A dignidade do ser humano é também de ordem cósmica e planetária. O surgimento

do ser humano sobre a Terra é uma das etapas da história do Universo. O

reconhecimento da Terra como pátria é um dos imperativos da transdisciplinaridade.

Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade, mas, a título de habitante da

Terra, ele é ao mesmo tempo um ser transnacional. O reconhecimento pelo direito

internacional de uma dupla cidadania – referente a uma nação e a Terra - constitui

um dos objetivos da pesquisa transdisciplinar.

Artigo 9:

A transdisciplinaridade conduz a uma atitude aberta em relação aos mitos, às

religiões e àqueles que os respeitam num espírito transdisciplinar.

Artigo 10:

Não existe um lugar cultural privilegiado de onde se possam julgar as outras

culturas. A abordagem transdisciplinar é ela própria transcultural.

Artigo 11:

Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Deve

ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar

reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na

transmissão dos conhecimentos.

174

Artigo 12:

A elaboração de uma economia transdisciplinar está baseada no postulado de que a

economia deve estar a serviço do ser humano e não o inverso.

Artigo 13:

A ética transdisciplinar recusa toda atitude que se negue ao diálogo e à discussão,

seja qual for sua origem - de ordem ideológica, científica, religiosa, econômica,

política ou filosófica. O saber compartilhado deveria conduzir a uma compreensão

compartilhada, baseada no respeito absoluto das diferenças entre os seres, unidos

pela vida comum sobre uma única e mesma Terra.

Artigo 14:

Rigor, abertura e tolerância são características fundamentais da atitude e da visão

transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta todos os dados, é a

melhor barreira contra possíveis desvios. A abertura comporta a aceitação do

desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do

direito às idéias e verdades contrárias às nossas.

Artigo final:

A presente Carta Transdisciplinar foi adotada pelos participantes do Primeiro

Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, que não reivindicam nenhuma outra

autoridade exceto a do seu próprio trabalho e da sua própria atividade.

Segundo os procedimentos que serão definidos de acordo com as mentes

transdisciplinares de todos os países, esta Carta está aberta à assinatura de

qualquer ser humano interessado em promover nacional, internacional e

transnacionalmente as medidas progressivas para a aplicação destes artigos na vida

cotidiana.

Convento de Arrábida, 6 de novembro de 1994

175

ANEXO C – TERMO DE CONSENTIMENTO

Pelo presente termo eu, ....................................................................., residente à

rua.....................................................................................................RG:..................

......., CPF: .............................................................concedo e concordo com a

utilização das informações oferecidas em entrevista com fins de pesquisa

acadêmica desenvolvida pela Srª Maria da Penha Martins de Oliveira.

____________________, ____ de ______________ de 2006

176

CONSENTIMIENTO PARA PARTICIPACIÓN EN

PROYECTO DE PESQUISA.

Estoy de acuerdo en participar Del proyecto de pesquisa abajo mencionado:

PROYECTO: A Percepção do Sagrado na formação em Educação Ambiental *

Uma abordagem complexa e transdisciplinar

RESPONSABLE: Maria da Penha Martins de Oliveira

Prof. Drª Martha Ferreira Tristão - orientadora

INTITUICIÓN: Universidade Federal do Espírito Santo

OBJETIVO DE LA PESQUISA: Identificar que sentidos e significados adquire o

sagrado nos processos de formação em EA de

acordo com os níveis de percepção individuais e

coletivos

BENEFICIOS ESPERADOS: Contribuição teórica para o campo da Educação

Ambiental

IDENTIFICACIÓN DEL PARTICIPANTE:

NOMBRE:_________________________________________________________.

APELLIDOS: ______________________________________________________.

NACIONALIDAD: ______________ NR. DE PASAPORTE:__________________.

Estando así de acuerdo, firmo el presente documento de consentimiento.

_______________________________ _____________________________

Maria da Penha Martins de Oliveira

Participante Responsable

___________: ______ de _____________ de 2006.

177

ANEXO D – TRATADO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL PARA SOCIEDADES SUSTENTÁVEIS E RESPONSABILIDADE GLOBAL

Este Tratado, assim como a educação, é um processo dinâmico em permanente

construção. Deve, portanto, propiciar a reflexão, o debate e a sua própria

modificação.

Nós, signatários, pessoas de todas as partes do mundo, comprometidos com a

proteção da vida na Terra, reconhecemos o papel central da educação na formação

de valores e na ação social. Comprometemo-nos com o processo educativo

transformador através de envolvimento pessoal, de nossas comunidades e nações

para criar sociedades sustentáveis e eqüitativas. Assim, tentamos trazer novas

esperanças e vida para nosso pequeno, tumultuado, mas ainda assim belo planeta.

Introdução

Consideramos que a educação ambiental para uma sustentabilidade eqüitativa é um

processo de aprendizagem permanente, baseado no respeito a todas as formas de

vida. Tal educação afirma valores e ações que contribuem para a transformação

humana e social e para a preservação ecológica. Ela estimula a formação de

sociedades socialmente justas e ecologicamente equilibradas, que conservam entre

si relação de interdependência e diversidade. Isto requer responsabilidade individual

e coletiva em nível local, nacional e planetário.

Consideramos que a preparação para as mudanças necessárias depende da

compreensão coletiva da natureza sistêmica das crises que ameaçam o futuro do

planeta. As causas primárias de problemas como o aumento da pobreza, da

degradação humana e ambiental e da violência podem ser identificadas no modelo

de civilização dominante, que se baseia em superprodução e superprodução e

superconsumo para uns e em subconsumo e falta de condições para produzir por

parte da grande maioria.

Consideramos que são inerentes à crise a erosão dos valores básicos e a alienação

e a não-participação da quase totalidade dos indivíduos na construção de seu futuro.

É fundamental que as comunidades planejem e implementem sua próprias

alternativas às políticas vigentes. Dentre essas alternativas está a necessidade de

178

abolição dos programas de desenvolvimento, ajustes e reformas econômicas que

mantêm o atual modelo de crescimento, com seus terríveis efeitos sobre o ambiente

e a diversidade de espécies, incluindo a humana.

Consideramos que a educação ambiental deve gerar, com urgência, mudanças na

qualidade de vida e maior consciência de conduta pessoal, assim como harmonia

entre os seres humanos e destes com outras formas de vida.

Princípios da Educação para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade

Global

1. A educação é um direito de todos; somos todos aprendizes e educadores.

2. A educação ambiental deve Ter como base o pensamento crítico e inovador,

em qualquer tempo ou lugar, em seus modos formal, não-formal e informal,

promovendo a transformação e a construção da sociedade.

3. A educação ambiental é individual e coletiva. Tem o propósito de formar

cidadãos com consciência local e planetária, que respeitem a autodeterminação

dos povos e a soberania das nações.

4. A educação ambiental não é neutra, mas ideológica. É um ato político.

5. A educação ambiental deve envolver uma perspectiva holística, enfocando a

relação entre o ser humano, a natureza e o universo de forma interdisciplinar.

6. A educação ambiental deve estimular a solidariedade, a igualdade e o respeito

aos direitos humanos, valendo-se de estratégias democráticas e da interação

entre as culturas.

7. A educação ambiental deve tratar as questões globais críticas, suas causas e

inter-relações em uma perspectiva sistêmica, em seu contexto social e

histórico. Aspectos primordiais relacionados ao desenvolvimento e ao meio

ambiente, tais como população, saúde, paz, direitos humanos, democracia,

fome, degradação da flora e fauna, devem se abordados dessa maneira.

8. A educação ambiental deve facilitar a cooperação mútua e eqüitativa nos

processos de decisão, em todos os níveis e etapas.

9. A educação ambiental deve recuperar, reconhecer, respeitar, refletir e utilizar a

história indígena e culturas locais, assim como, promover a diversidade cultural,

lingüística e ecológica. Isto implica uma visão da história dos povos nativos

179

para modificar os enfoques etnocêntricos, além de estimular a educação

bilíngüe.

10. A educação ambiental deve estimular e potencializar o poder das diversas

populações, promovendo oportunidades para as mudanças democráticas de

base que estimulem os setores populares da sociedade. Isto implica que as

comunidades devem retomar a condução de seus próprios destinos.

11. A educação ambiental valoriza as diferentes formas de conhecimento. Este é

diversificado, acumulado e produzido socialmente, não devendo ser patenteado

ou monopolizado.

12. A educação ambiental deve ser planejada para capacitar as pessoas a

trabalharem conflitos de maneira justa e humana.

13. A educação ambiental deve promover a cooperação e o diálogo entre

indivíduos e instituições, com a finalidade de criar novos modos de vida,

baseados em atender às necessidades básicas de todos, sem distinções

étnicas, físicas, de gênero, idade, religião ou classe.

14. A educação ambiental requer a democratização dos meios de comunicação de

massa e seu comprometimento com os interesses de todos os setores da

sociedade. A comunicação é um direito inalienável e os meios de comunicação

de massa devem ser transformados em um canal privilegiado de educação, não

somente disseminado informações em bases igualitárias, mas também

promovendo intercâmbio de experiências, métodos e valores.

15. A educação ambiental deve integrar conhecimentos, aptidões, valores, atitudes

e ações. Deve converter cada oportunidade em experiências educativas de

sociedades sustentáveis.

16. A educação ambiental deve ajudar a desenvolver uma consciência ética sobre

todas as formas de vida com as quais compartilhamos este planeta, respeitar

seus ciclos vitais e impor limites à exploração dessas formas de vida pelos

seres humanos.

Plano de Ação

As organizações que assinam este Tratado se propõem a implementar as seguintes

diretrizes:

1. Transformar as declarações deste Tratado e dos demais produzidos pela

Conferência da Sociedade Civil durante o processo da Rio-92 em documentos a

180

serem utilizados na rede formal de ensino e em programas educativos dos

movimentos sociais e suas organizações.

2. Trabalhar a dimensão da educação ambiental para sociedades sustentáveis em

conjunto com os grupos que elaboram os demais tratados aprovados durante a

Rio-92.

3. Realizar estudos comparativos entre os tratados da sociedade civil e os

produzidos pelas Conferências das Nações Unidas para o Meio Ambiente e

Desenvolvimento – UNCED; utilizar as conclusões em ações educativas.

4. Trabalhar os princípios deste Tratado a partir das realidades locais,

estabelecendo as devidas conexões com a realidade planetária, objetivando a

conscientização para a transformação.

5. Incentivar a produção de conhecimentos, políticas, metodologias e práticas de

educação ambiental em todos os espaços de educação formal, informal e não-

formal, para todas as faixas etárias.

6. Promover e apoiar a capacitação de recursos humanos para preservar,

conservar e gerenciar o ambiente, como parte do exercício da cidadania local e

planetária.

7. Estimular posturas individuais e coletivas, bem como políticas institucionais que

revisem permanentemente a coerência entre o que se diz e o que se faz, os

valores de nossas culturas, tradições, história. As organizações que assinam

este Tratado se propõem a implementar as seguintes diretrizes:

8. Fazer circular informações sobre o saber e a memória populares; e sobre

iniciativas e tecnologias apropriadas ao uso dos recursos naturais.

9. Promover a co-responsabilidade dos gêneros feminino e masculino sobre a

produção, reprodução e manutenção da vida.

10. Estimular e apoiar a criação e o fortalecimento de associações de produtores e

consumidores e de redes de comercialização ecologicamente responsáveis.

11. Sensibilizar as populações para que constituam Conselhos populares de Ação

Ecológica e Gestão do Ambiente visando investigar, informar, debater e decidir

sobre problemas e políticas ambientais.

12. Criar condições educativas, jurídicas, organizacionais e políticas para exigir que

os governos destinem parte significativa de seu orçamento à educação e meio

ambiente.

181

13. Promover relações de parceria e cooperação entre as ONGs e movimentos

sociais movimentos sociais e as agências da ONU (UNESCO, PNUMA, FAO,

entre outras), em nível nacional, regional e internacional, a fim de estabelecer em

conjunto as prioridades de ação para a educação e meio ambiente e

desenvolvimento.

14. Promover a criação e o fortalecimento de redes nacionais, regionais e mundiais

para realização de ações conjuntas entre organizações do Norte, Sul, Leste e

Oeste com perspectiva planetária (exemplos: dívida externa, direitos humanos,

paz, aquecimento global, população, produtos contaminados)

15. Garantir que os meios de comunicação se transformem em instrumentos

educacionais para preservação e conservação de recursos naturais,

apresentando a pluralidade de versões com fidedignidade e contextualizando as

informações. Estimular transmissões de programas gerados por comunidades

locais.

16. Promover a compreensão das causas dos hábitos consumistas e agir para

transformação dos sistemas que os sustentam, assim como para a

transformação de nossa próprias práticas.

17. Buscar alternativas de produção autogestionária apropriadas econômicas e

ecologicamente, que contribuam para uma melhoria da qualidade de vida.

18. Atuar para erradicar o racismo, o sexismo e outros preconceitos; e contribuir para

um processo de reconhecimento da diversidade cultural, dos direitos territoriais e

da autodeterminação dos povos.

19. Mobilizar instituições formais e não-formais de educação superior para o apoio

ao ensino, pesquisa e extensão em educação ambiental e a criação em cada

universidade, de centros interdisciplinares para o meio ambiente.

20. Fortalecer as organizações movimentos sociais como espaços privilegiados para

o exercício da cidadania e melhoria da qualidade de vida e do ambiente.

21. Assegurar que os grupos de ecologistas popularizem suas atividades e que as

comunidades incorporem em seu cotidiano a questão ecológica.

22. Estabelecer critérios para a aprovação de projetos de educação para sociedades

sustentáveis, discutindo prioridades sociais junto às agências financiadoras.

Sistemas de Coordenação Monitoramento e Avaliação

Todos os que assinam este Tratado concordam em:

182

1. Difundir e promover em todos os países o Tratado de Educação Ambiental para

Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, através de campanhas

individuais e coletivas promovidas por ONGs, movimentos sociais e outros.

2. Estimular e criar organizações, grupos de ONGs e movimentos sociais para

implantar, implementar, acompanhar e avaliar os elementos deste Tratado.

3. Produzir materiais de divulgação deste Tratado e de seus desdobramentos em

ações educativas, sob a forma de textos, cartilhas, cursos, pesquisas, eventos

culturais, programas na mídia, feiras de criatividade popular, correio eletrônico e

outros.

4. Estabelecer um grupo de coordenação internacional para dar continuidade às

propostas deste Tratado.

5. Estimular, criar e desenvolver redes de educadores ambientais.

6. Garantir a realização, nos próximos três anos, do 1º Encontro Planetário de

Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis.

7. Coordenar ações de apoio aos movimentos sociais em defesa da melhoria da

qualidade de vida, exercendo assim uma efetiva solidariedade internacional.

8. Estimular articulações de ONGs e movimentos sociais para rever suas

estratégias e seus programas relativos ao meio ambiente e educação.

Grupos a serem envolvidos

Este Tratado é dirigido para:

1. Organizações dos movimentos sociais – ecologistas, mulheres, jovens, grupos

étnicos, artistas, agricultores, sindicalistas, associações de bairro e outros.

2. ONGs comprometidas com os movimentos sociais de caráter popular.

3. Profissionais de educação interessados em implantar e implementar programas

voltados à questão ambiental tanto nas redes formais de ensino como em outros

espaços educacionais.

4. Responsáveis pelos meios de comunicação capazes de aceitar o desafio de um

trabalho transparente e democrático, iniciando uma nova política de comunicação

de massas.

5. Cientistas e instituições científicas com postura ética e sensíveis ao trabalho

conjunto com as organizações dos movimentos sociais.

6. Grupos religiosos interessados em atuar junto às organizações dos movimentos

sociais.

183

7. Governos locais e nacionais capazes de atuar em sintonia/parceria com as

propostas deste Tratado.

8. Empresários comprometidos em atuar dentro de uma lógica de recuperação e

conservação do meio ambiente e de melhoria da qualidade de vida humana.

9. Comunidades alternativas que experimentam novos estilos de vida condizentes

com os princípios e propostas deste Tratado.

Recursos:

Todas as organizações que assinam o presente Tratado se comprometem a:

1. Reservar uma parte significativa de seus recursos para o desenvolvimento de

programas educativos relacionados com a melhora do ambiente de vida.

2. Reivindicar dos governos que destinem um percentual significativo do Produto

Nacional Bruto para a implantação de programas de educação ambiental em

todos os setores da administração pública, com a participação direta de ONGs e

movimentos sociais.

3. Propor políticas econômicas que estimulem empresas a desenvolverem e

aplicarem tecnologias apropriadas e a criarem programas de educação ambiental

para o treinamento de pessoal e para a comunidade em geral.

4. Incentivar as agências financiadoras e alocarem recursos significativos a projetos

dedicados à educação ambiental; além de garantir sua presença em outros

projetos a serem aprovados, sempre que possível.

5. Contribuir para a formação de um sistema bancário planetário das ONGs e

movimentos sociais, cooperativo e descentralizado, que se proponha a destinar

uma parte de seus recursos para programas de educação e seja ao mesmo

tempo um exercício educativo de utilização de recursos financeiros.