A Palavra Resistente José Saramago
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A palavra resistente
Escolha o leitor uma palavra qualquer, diga-a muitas vezes seguidas — pouco a pouco, ela irá
perdendo sentido e densidade, até se transformar num articulado sonoro incoerente, que nada exprime
já. Chegado a esse ponto crítico, nasce em si um movimento de pânico: precisa de recuperar a palavra
destruída, amassá-la de novo no complexo de emoções que lhe restituirão a antiga e familiar
fisionomia. É uma experiência simples que serve para mostrar a que extremos precisamos das palavras
para continuarmos a ser.
Se achar a introdução pretensiosa, dê-a o leitor por não lida. Nem eu a teria escrito se não tivesse
aqui à mão uma palavra que já resistiu a todas as minhas tentativas de pulverização: por alguma coisa
andamos a dizer, há séculos, que a exceção é que confirma a regra.
A tal palavra é «horizonte». Cheguei a pronunciá-la cinquenta vezes. Pois ao fim de toda essa
canseira, acabei por me descobrir eu dentro de uma esfera ressoante, no centro de um círculo
vertiginoso e inacessível. Foi então que descobri o prestígio desta palavra, o qual provém do carácter
muito particular daquilo que exprime.
Ora vejamos. O horizonte, segundo as definições correntes, é a linha em que o céu parece
confundir-se com a terra ou com o mar. Se o observador se deslocar em qualquer sentido, a linha do
horizonte desloca-se igualmente. Vai-se formando assim uma sucessão de círculos secantes, como se
o observador fosse empurrando o espaço adiante de si, e arrastando atrás uma cortina distante, que é o
limite do seu alcance visual. Daqui se conclui que nunca ninguém pôde estar no horizonte. De qualquer
lugar onde nos encontremos, o horizonte é sempre uma imagem que nos desafia, que nos promete
maravilhas. Vamos para ele e logo se afasta, para outra vez nos fazer negaças.
Tudo isto, como o leitor já percebeu, tem dois sentidos: o próprio e o figurado. Um, é o da
realidade física — e contra ele nada podemos, uma vez que não é possível estar aqui e além ao mesmo
tempo, ser simultaneamente o observador e o observado, estar colocado onde se está e também na linha
onde o céu, etc., etc. Deste sentido não curemos, para defesa da nossa sanidade mental.
O outro sentido (o figurado), esse sim, convém-nos. Agora falo de um horizonte transposto para
o plano da realização pessoal, para os trinta mil ramos em que essa realização pode projetar-se. E isto
é muito mais importante do que ter o dom da ubiquidade. Claro que também neste caso a linha do
horizonte se deslocará a cada passo que dermos. Para além do horizonte, há espaço infinitamente. Não
consente a brevidade da vida (da nossa vida) um longo trajeto no caminho das realizações possíveis.
Mas, se atentarmos bem, esta vida não teria grande sentido se não fosse, ou não devesse ser, um
continuado esforço para atingir horizontes — mesmo que eles já não estejam onde os tínhamos visto
antes.
Deu-me hoje para aqui. Outras vezes me tem acontecido contar casos reais ou histórias
inventadas, de tal maneira embrechadas que acabo por não saber onde acaba a realidade e onde começa
a invenção. Desta vez, no silêncio e no isolamento em que trabalho, foi como se por artes mágicas me
tivesse desdobrado e me estivesse vendo a caminhar, seguro e obstinado, pela paisagem interior da
minha humanidade, com os olhos num horizonte a que nego a inacessibilidade — porque é para ele
que vou. Como quem sobe a pulso uma longa e áspera corda, que tem a realidade da sua aspereza e da
sua extensão, mas a que imponho a realidade do querer e desta indefinível certeza que não perco
mesmo quando pareço afogado em dúvidas: não há outro caminho senão aquele em que podemos
reconhecer-nos em cada gesto e em cada palavra, o da resistente fidelidade a nós próprios.
Deu-me para aqui hoje, leitor. Tenha paciência e vire a página.
José Saramago, Deste Mundo e do Outro, Lisboa, Editorial Caminho, 1997
Horizonte
Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidéreo
'Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp´rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.
Fernando Pessoa
As Palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade