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Michel Foucault (1926-1984)
A ordem do discurso
• Por Sergio Granja em 14 de novembro de 2009
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Num ensaio denso, intitulado A Revolução Russa – e que, em vida, ela não se dispôs a
publicar -, Rosa Luxemburg (1871-1919) emite opiniões duras sobre certas opções e
algumas das concepções de Lenin e de Trotski na condução do processo revolucionário
dos bolcheviques. A certa altura do texto, a revolucionária polaco-a lemã expressa-se com
todas as letras: “Liberdade é sempre a liberdade daquele que pensa de modo diferente”
[Socialismo e Liberdade no 2, p. 89]. A não ser assim, aliás, seria o mesmo que dizer,
como o disse claramenre Millor Fernandes durante a ditadura militar, que “livre-pensar é
só pensar”. Embora a questão da livre proliferação dos discursos (agora com os recursos
da internet) esteja longe de ter sido resolvida, ela é crucial para um partido que se quer do
socialismo e da liberdade. Arrisquemo-nos, pois, a verificar em que medida, então, um
pensador pós-moderno como Foucault poderia estimular a nossa reflexão sobre a matéria.
“À semelhança de Nietzsche, Foucault opta
por um brilho atordoante, que a o leitor
deixa a escolha entre sentir-se fascinado ou
reconhecer-se um imbecil.”
Luiz Costa Lima
Mímesis: Desafio ao Pensamento
[Civilização Brasileira; p. 249]
L’ordre du discours – sob esse título, Michel Foucault
(1926-1984)1 pronuncia, em 2 de dezembro de 1970, a sua
aula inaugural no Collège de France, ao assumir a
cátedra que fora ocupada por Jean Hippolite, a quem
rende comovida homenagem.
I – Onde, afinal, está o perigo?
Foucault começa expondo as hesitações, a inquietação, o
mal-estar que não é apenas seu, mas do orador instado a
dizer as palavras iniciais de qualquer discurso, a
introduzir a discussão, a abrir o debate de não importaqual tema, sobretudo pelo que esse ato possa “ter de
singular, de terrível, talvez de maléfico”.[p. 6] A isso, diz ele, “a instituição responde de
modo irônico; pois que torna os começos solenes, cerca-os de um círculo de atenção e de
silêncio, e lhes impõe formas ritualizadas, como para sinalizá-los à distância”.[p. 7]
O desejo do orador é esquivar-se à “ordem arriscada do discurso”, ao que ele “tem de
categórico e decisivo”; mas em vão: “o discurso está na ordem das leis”. E mais: “lhe foi
preparado um lugar que o honra mas o desarma”.[p. 7] Isto é, o discurso não vale por si
mesmo, mas pelo poder que a instituição lhe confere – subsunção do discurso à
institucionalidade.
Foucault aventa a hipótese de que esse desejo de esquiva não seja mais do que a outra face
da ação profilática da instituição – desejo e instituição colocados diante de uma mesma
“inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas
palavras cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades”. E lança o repto: “Mas o que
há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem
indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” [p. 8]
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II – Os procedimentos de controle do discurso
Foucault examina de que maneira “a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,
esquivar sua pesada e temível materialidade”.[p. 8-9]
Os primeiros desses procedimentos são os de exclusão, que podem ser de interdição (“não
se tem o direito de dizer tudo”[p. 9]), de separação e rejeição (“a oposição razão e
loucura”[p. 10]) , de vontade de verdade (“oposição do verdadeiro e do falso” [p. 12]).
Os procedimentos de exclusão “se exercem de certo modo do exterior” e “concernem, sem
dúvida, à parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo”.[p. 21]
Formam um segundo grupo os “procedimentos internos”. Estes “funcionam, sobretudo, a
título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição”, e visam “submeter
outra dimensão do discurso: a do acontecimento e do acaso”.[p. 21]
Existe ainda um terceiro grupo de procedimentos de controle dos discursos que não trata
“de dominar os poderes que eles têm, nem de conjurar os acasos de sua aparição”, mas
“de determinar as condições de seu funcionamento”.[p. 36] Foucault precisa: “rarefação,
desta vez, dos sujeitos que falam”.[p. 37]
III – O poder do desejo e o desejo do poder
Foucault indica três tipos de interdições: “tabu do objeto”;[p. 9] “ritual da circunstância”;
[p. 9] “direito privilegiado ou exclusivo do sujeito”[p. 9] . E aponta “as regiões da
sexualidade e da política”[p. 9] como os seus alvos por excelência.
Desse modo, as interdições ao discurso “revelam logo, rapidamente, sua ligação com o
desejo e com o poder”.[p. 10] E não sem razão. De um lado, “o discurso – como a
psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo;
é, também, aquilo que é o objeto do desejo”.[p. 10] De outro, “isto a história não cessa de
nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”.[p. 10]
IV – A loucura do louco
Foucault observa que “era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco”,
e que, portanto, “elas eram o lugar onde se exercia a separação”.[p. 11] Palavra que,
durante séculos, foi considerada de um modo paradoxal: ou era nula, “não podendo
testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo
nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um
corpo”; [p. 11] ou era investida de “estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida,
o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos
outros não pode perceber”.[p. 11]
Vale sublinhar a ironia do pa radoxo do paradoxo: ao louco não lhe era permitido sequer
“fazer do pão um corpo” – delírios, alucinações…
Segregação: “a palavra só lhe era dada simbolicamente, no teatro onde ele se apresentava,
desarmado e reconciliado, visto que representava aí o papel de verdade mascarada”.[p.
12] Segregação que ainda hoje persiste, “basta pensar em todo o aparato de saber
mediante o qual deciframos essa palavra”[p. 12] – médico, psicanalista… “E mesmo que o
papel do médico não fosse senão prestar ouvido a uma palavra enfim livre, é sempre na
manutenção da cesura que a escuta se exerce.”[p. 13]
V – A vontade de verdade
Foulcaut sinaliza que, “ainda nos poetas gregos do século VI”,[p. 14] verdadeiro “era o
discurso que pronunciava a justiça e atribuia a cada qual a sua parte; era o discurso que,
profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar, mas contribuia para a
sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com o destino”.[p. 15]
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Mas que, “entre Hesíodo e Platão”, decorrido um século, a verdade se deslocara da
enunciação para o enunciado, desvinculando-se do exercício do poder: “o sofista é
enxotado”.[p. 15] “Essa divisão histórica deu sem dúvida sua forma geral à nossa vontade
de saber.”[p. 16]
Foucault nos remete à história da ciência (o empirismo dos séc. XVI e XVII na Inglaterra)
e diz que a vontade de verdade (como vontade de saber) apoia-se em instituições e
práticas como a pedagogia, os sistemas de livros, de edição, de bibliotecas, “as sociedades
de sábios outrora, os laboratórios hoje”, mas “é também reconduzida, mais
profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, comoé valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído”.[p. 17]
Essa vontade de verdade exerce sobre os outros discursos “uma espécie de pressão” e “um
poder de coerção”[p. 18] que se manifesta: “na maneira como a literatura ocidental teve
que buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência
também – em suma, no discurso verdadeiro”;[p. 18] “na maneira como as práticas
econômicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente como moral,
procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se a partir
de uma teoria das riquezas e da produção”;[p. 18] “na maneira como um conjunto tão
prescritivo quanto o sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é
certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico,
psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser
autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade”.[p. 18-19]
A vontade de verdade assujeita os outros dois sistemas de exclusão que atingem o
discurso, a saber: a palavra proibida e a segregação da loucura. Estas buscam sua
legitimação naquela. E, chamando a atenção para esse ponto, Foucault sublinha a
vontade de verdade “como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que,
ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade, lá
justamente onde a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e definir a loucura”.
[p. 20]
VI – Os princípios de rarefação do discurso
Há que considerar também, como procedimentos internos de controle e delimitação do
discurso, os “princípios de classificação, de ordenação, de distribuição”.[p. 21]
Relacionados a esses estão o que Foucault chama de princípios de rarefação do discurso:
o comentário, o autor, a disciplina.
VII – O comentário
Foucault distingue dois tipos de discursos: “os discursos que ‘se dizem’ no correr dos dias e
das trocas, e que passam com o ato mesmo que os pronunciou”;[p. 22] “os discursos que,
indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda
por dizer”[p. 22] Do segundo tipo são os “discursos fundamentais ou criadores”; do
primeiro, os que “repetem, glosam e comentam”.[p. 23] Pode ocorrer, no entanto, um
deslocamento: “por vezes, comentários vêm ocupar o primeiro lugar”.[p. 23] Nessesentido, vale notar que “uma mesma obra literária pode dar lugar, simultaneamente, a
tipos de discurso bem distintos: a Odisseia como texto primeiro é repetida, na mesma
época, na tradução de Bérard, em infindáveis explicações de texto, no Ulysses de Joyce”.
[p. 24]
“O desnível entre texto primeiro e texto segundo”,[p. 24] permite: “construir (e
indefinidamente) novos discursos”;[p. 25] “dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto,
já havia sido dito”;[p. 25] “e repetir incansavelmente aquilo que, no entanto, não h avia
jamais sido dito”.[p. 25] Desse modo, o comentário permite dizer “algo a lém do texto
mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado”.
[p. 26]
VIII – O autor
O autor como foco de coerência do discurso não voga nas conversas cotidianas (logo
apagadas), nem nos decretos ou contratos (têm signatários, não autores), nem nas
receitas domésticas ou técnicas (anônimas) etc. Mas vige nos discursos de autoria:
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“literatura, filosofia, ciência”.[p. 27]
Na Idade Média, a autoria era indispensável como indicador de verdade no discurso
científico, enquanto as obras literárias podiam circular anonimamente. Em contrapartida,
desde o séc. XVII, a função do autor vem se enfraquecendo no discurso científico, ao
passo que foi se tornando indispensável no literário: “o autor é aquele que dá à inquietante
linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real”.[p. 28]
IX – A disciplina
“O comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que teria a forma
da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma
identidade que tem a forma da individualidade e do eu.”[p. 29] Para Foucault, “a
organização das disciplinas se opõe tanto ao princípio do comentário como ao do autor”.
[p. 30] Uma disciplina se define por: “um domínio de objetos”;[p. 30] “um conjunto de
métodos”;[p. 30] “um corpus de proposições consideradas verdadeiras”; [p.30] “um jogo
de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos”.[p. 30] A disciplina se opõe ao
princípio do autor, pois “constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem
quer ou pode servir-se dele”.[p. 30] E se opõe ao princípio do comentário: neste, “é um
sentido que precisa ser redescoberto” ou “uma identidade que deve ser repetida”;
enquanto, na disciplina, o ponto de partida “é aquilo que é requerido para a construção
de novos enunciados”, posto que ela pressupõe “a possibilidade de formular, e de formular
indefinidamente, proposições novas”.[p. 30]
Advirta-se, no entanto, que “uma disciplina não é tudo o que pode ser dito de verdadeiro
sobre alguma coisa”.[p. 31] E isso por duas razões: as disciplinas “são feitas tanto de erros
como de verdades”;[p. 31] uma proposição, “antes de poder ser declarada verdadeira ou
falsa, deve encontrar-se, como diria M.Canguilhem, ‘no verdadeiro'”.[p. 34]
Foucault alinha diversos exemplos: até o séc. XVI, a botânica preservara “os valores
simbólicos” que as plantas traziam da antigüidade; a partir do fim do séc. XVII, só era
botânica o que “dissesse respeito à estrutura visível da planta, ao sistema de suas
semelhanças próximas ou longínquas ou à mecânica de seus fluidos”;[p. 32] a partir do
séc. XIX, a proposição médica não podia usar mais metáforas “como as de engasgo, de
líquidos esquentados ou de sólidos ressecados”; mas podia usar as noções igualmente
metafóricas de outro modelo funcional e fisiológico: “era a irritação, a inflamação ou a
degenerescência dos tecidos”;[p. 32-33] até o séc. XVIII, “a busca da língua primitiva”[p.
33] era um tema perfeitamente legítimo da lingüística; na segunda métade do séc. XIX, já
se tornara inadmissível; quando Schleiden nega a sexualida de vegetal em pleno séc. XIX,
“mas conforme as regras do discurso biológico, não formula senão um erro disciplinado”;
[p. 35] do mesmo modo, quando Naudin “sustentara a tese de que os traços hereditários
eram descontínuos”,[p. 34] embora parecesse estranho, situava-se como um enigma no
interior do discurso biológico; mas, quando Mendel (1865) destacou os traços hereditários
da espécie e do sexo que os transmite, e os observou no domínio de uma série
indefinidamente aberta de gerações, segundo regularidades estatísticas, “dizia a verdade,
mas não estava ‘no verdadeiro’ do discurso biológico de seu tempo”.[p. 35] E conclui que
“a disciplina é um princípio de controle do discurso”; acrescentando: “ela lhe fixa os
limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente
das regras”.[p. 36]
X – A rarefação dos sujeitos
Foucault observa que o acesso a algumas regiões do discurso é relativamente livre,
enquanto a outras é muito restringido. Nestas últimas, “ninguém entrará na ordem do
discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-
lo”.[p. 37]
O filtro de acesso dos sujeitos às regiões mais ou menos fechadas do discurso se faz através
do que Foucault chama de “os grandes procedimentos de sujeição do discurso”, quaissejam: “os rituais da palavra, as sociedades do discurso, os grupos doutrinários e as
apropriações sociais”.[p. 44]
XI – O ritual
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O ritual define: “a qualificaçã o que devem possuir os indivíduos que falam (e que no jogo
de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e
formular determinado tipo de enunciados)”;[p. 39] “os gestos, os comportamentos, as
circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso”;[p. 39] “a
eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os
limites de seu valor de coerção”.[p. 39] Para Foucault, “os discursos religiosos, judiciários,
terapêuticos e, em parte, também os políticos não podem ser dissociados dessa prática”.[p.
39]
XII – A sociedade do discurso
Foucault decalca a noção de sociedade do discurso do modelo arcaico dos grupos de
rapsodos. Eles “possuiam o conhecimento dos poemas a recitar ou eventualmente a fazer
variar e a transformar”. A memorização desses poemas “fazia estar ao mesmo tempo em
um grupo e em um segredo”. E o que é significativo: “entre a palavra e a escuta os papéis
não podiam ser trocados”.[p. 40]
Modernamente, Foucault vê na instituição do escritor “uma ‘sociedade do discurso’ difusa,
talvez, mas certamente coercitiva”,[p. 40-41] cujos traços são:’ “a diferença do escritor,
sem cessar oposta por ele mesmo à atividade de qualquer outro sujeito que fala ou
escreve”;[p. 41] “o caráter intransitivo que empresta a seu discurso”;[p. 41] “a
singularidade fundamental que atribui há muito tempo à ‘escritura'”;[p. 41] “a
dissemetria afirmada entre a ‘criação’ e qualquer outra prática do sistema linguístico”.[p.
41]
Há muitas outras formas atuais de sociedade do discurso: “lembremos o segredo técnico
ou científico, as formas de difusão e de circulação do discurso médico, os que se
apropriam do discurso econômico ou político”.[p. 41]
XIII – O grupo doutrinário
Contrariando o hermetismo da sociedade do discurso, o grupo doutrinário (religioso,
político, filosófico) tende à expansão pela difusão da doutrina.
Foucault assinala que “a pertença doutrinária questiona ao mesmo tempo o enunciado e osujeito que fala, e um através do outro”[p. 42]: “questiona o sujeito que fala através e a
partir do enunciado, como provam os procedimentos de exclusão e os mecanismos de
rejeição que entram em jogo quando um sujeito que fala formula um ou vários enunciados
inassimiláveis”; [p. 42] “questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na
medida em que a doutrina vale sempre como o sinal, a manifestação e o instrumento de
uma pertença”.[p. 43]
Desse duplo questionamento tira-se uma dupla lição: “a heresia e a ortodoxia não
derivam de um exagero fanático dos mecanismos doutrinários, elas lhes pertencem
fundamentalmente”;[p. 42] há sempre “uma pertença prévia – pertença de classe, de
status social ou de raça, de nacionalidade ou de interesse, de luta, de revolta, de
resistência ou de aceitação”.[p. 43]
Assim, “a doutrina realiza uma dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos
discursos ao grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam”.[p. 43]
XIV – A apropriação social
Em escala muito mais ampla, Foucault reconhece os grandes planos em que se dá “a
apropriação social do discurso”.[p. 43] Nessa questão, ele enfatiza o sistema educacional:
a educação “segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que
estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais”.[p. 43-44] Para ele, “todo
sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos
discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”.[p. 44] Foucault,
finalmente, identifica todos os grandes procedimentos de sujeição do discurso no sistema
de ensino como um grande edifício que é: “uma ritualização da palavra”;[p. 44] “uma
qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam”;[p. 44] “a constituição
de um grupo doutrinário ao menos difuso”;[p. 44] “uma distribuição e uma apropriação
do discurso com seus poderes e seus saberes”.[p. 44-45]
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XV – A filosofia
Foucault questiona se certos temas da filosofia não respondem e reforçam “esses jogos de
limitações e exclusões”.[p. 45] A resposta da filosofia se daria: “propondo uma verdade
ideal como lei do discurso e uma racionalidade imanente como princípio de seu
desenvolvimento”; e “recondu zindo uma ética do conhecimento que só promete a verdade
ao próprio desejo de verdade e somente ao poder de pensá-la”.[p. 45] E, o reforço, “por
uma denegação que recai desta vez sobre a realidade específica do discurso em geral”‘.[p.
46]
Foucault considera que “desde que foram excluídos os jogos e o comércio dos sofistas,
desde que seus paradoxos foram amordaçados”, deu-se uma “elisão da realidade do
discurso no pensamento filosófico”.[p. 46] E, não obstante, “o discurso nada mais é do que
um jogo”: “de escritura”, “de leitura”, “de troca”. Um jogo de escritura, “em uma filosofia
do sujeito fundante”. Um jogo de leitura, “em uma filosofia da experiência originária”.
Um jogo de troca, “em uma filosofia da mediação universal”.[p. 49]
Foucault diz que “essa troca, essa leitura e essa escritura jamais põem em jogo senão os
signos”; concluindo que “o discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na
ordem do significante”.[p. 49] E seria desse modo porque, sob uma “aparente veneração
do discurso, sob essa aparente logofilia”, vicejaria “uma profunda logofobia, uma espécie
de temor surdo”.[p. 50]
Para analisar essa questão, Foucault propõe: “questionar nossa vontade de verdade”;
“restituir ao discurso seu caráter de acontecimento”; “suspender, enfim, a soberania do
significante”.[p. 51]
XVI – O método
Foucault formula um método de análise que exige quatro regras: inversão,
descontinuidade, especificidade, exterioridade. “Inversão”: “nessas figuras que parecem
desempenhar um papel positivo como a do autor, da disciplina, da vontade de verdade, é
preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do
discurso”.[p. 51-52] “Descontinuida de”: “os discursos devem ser tratados como práticas
descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem”.[p. 52-53]
“Especificidade”: “não imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que
teríamos de decifrar apenas”; “deve-se conceber o discurso como uma violência que
fazemos às coisas, como uma prática que lhe impomos”; “e é nesta prática que os
acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade”.[p. 53]
“Exterioridade”: “a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade,
passar às suas condições externas de possibilidade”;'”àquilo que dá lugar à série aleatória
desses acontecimentos e fixa suas fronteiras”.[p. 53]
Dessas regras deduzem-se as quatro noções que servem de princípio regulador da análise:
“a noção de acontecimento”; “a de série”; “a de regularidade”; e “a de condição de
possibilidade”. E os quatro pares opositivos: “o acontecimento” se opõe “à criação”; “a
série” se opõe “à unidade”; “a regularidade” se opõe “à originalidade”; “a condição depossibilidade” se opõe “à significação”.[p. 54]
Foucault considera que “estas quatro últimas noções (significação, originalidade, unidade,
criação) de modo geral dominaram a história tradicional das idéias onde, de comum
acordo, se procurava”: “o ponto da criação”; “a unidade de uma obra, de uma época ou
de um tema”; “a marca da originalidade individual”; “e o tesouro indefinido das
significações ocultas”.[p. 54]
XVII – A concepção da história
Foucault propõe articular a análise do discurso ao seu contexto, o que pressupõe uma
concepção da História, na qual ele explicita o que talvez seja o seu traço pós-modernomais marcante: abandona os conceitos fundamentais de sujeito e continuidade, com seus
correlatos de liberdade e causalida de; não se quer estruturalista, descartando o signo e a
estrutura; diz que o acontecimento e a série é que são as noções que permitem a
abordagem histórica. O acontecimento singular é o elemento constitutivo da série
histórica – “das variações cotidianas de preço chega-se às inflações seculares”[p. 55] -, a
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qual apresenta os traços de “regularidade, casualidade, descontinuidade, dependência,
transformação”.[p. 57]
XVIII – O acontecimento discursivo
Foucault diz que “os acontecimentos discursivos devem ser tratados como séries
homogêneas, mas descontínuas umas em relação às outras”.[p. 58] E que a análise do
discurso focada no acontecimento discursivo “consiste em tratar não das representações
que pode haver por trás dos discursos, mas dos discursos como séries regulares e distintas
de acontecimentos”, implicando “o acaso, o descontínuo e a materialidade”.[p. 59]
IXX – O conjunto crítico e o conjunto genealógico
A análise do discurso, pa ra Foucault, se dispõe em dois conjuntos: conjunto crítico
(princípio de inversão) e conjunto genealógico (princípios de descontinuidade,
especificidade, exterioridade). O conjunto crítico faz “a análise das instâncias de controle
discursivo”. O conjunto genealógico analisa a “formação efetiva dos discursos”. “A crítica
analisa os processos de rarefação, mas também de reagrupamento e de unificação dos
discursos; a genealogia estuda sua formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e
regular.”[p. 65-66] Mas Foucault adverte que a distinção é apenas metodológica: “não há,
de um lado, as formas da rejeição, da exclusão, do reagrupamento ou da atribuição; e, de
outro, em nível mais profundo, o surgimento espontâneo dos discursos que, logo antes ou
depois de sua manifestação, são submetidos à seleção e ao controle”.[p. 66] “Entre o
empreendimento crítico e o empreendimento genealógico, a diferença não é tanto de
objeto ou de domínio mas, sim, de ponto de ataque, de perspectiva e de delimitação.”[p.
66-67] “Assim, as descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar-se,
apoiar-se umas nas outras e se complementarem.”[p. 69]
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 10. e., São Paulo: Loyola, 2004
Nota:
1 O filósofo francês Michel Foucault nasceu em Poitiers, em 15 de outubro de 1926.
Estudou na Escola Normal Superior de Paris, diplomando-se em psicologia e
psicopatologia.
Filiou-se ao Partido Comunista Francês, junto com Louis Althusser (1918-1990), em 1950,
mas logo em seguida tornou-se um dissidente.
Na década de 60, lecionou na Universidade de Clermont-Ferrand e em instituições de
ensino superior da Alemanha e da Suécia. Em 1970, assumiu uma cátedra no Collège de
France.
Pensador polêmico, fascinado por Nietzsche (1844-1900), procurou mostrar –
reinterpretando criticamente teses de Karl Marx (1818-1883), de Sigmund Freud (1856-
1939) e de outros grandes teóricos modernos – como as verdades sobre a natureza
humana e a sociedade, tidas como permanentes, constroem-se historicamente.
Em História da Loucura na Idade Clássica (1961), observa como o pensamento é
moldado pela hegemonia de um discurso e uma prática social determinados.
Em Vigiar e Punir (1975), um de seus principais livros, analisa como o poder e as
condições políticas específicas afetam a produção do conhecimento.
De 1976 a 1984 trabalhou na redação da História da Sexualidade, da qual publicou
apenas os três primeiros volumes.
Foi o filósofo do século XX que alcançou uma audiência e um prestígio tão
extraordinários que só têm paralelo em Jean Paul Sartre (1905-1980).
Visitou o Brasil várias vezes e exerceu notável influência em nossos meios intelectuais.
Transgressor, homossexual assumido, morreu com AIDS em 25 de junho de 1984.
Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos
8/16/2019 A Ordem Do Discurso » Fundação Lauro Campos
http://slidepdf.com/reader/full/a-ordem-do-discurso-fundacao-lauro-campos 8/8
19/05/2016 A ordem do discurso » Fundação Lauro Campos
http://laurocampos.org.br/2009/11/a-ordem-do-discurso/ 8/8
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