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Estudos de narrativa

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  • A narrativa da experincia

    em Foucault e ThompsonFernando Nicolazzi*

    Resumo. O texto tem por escopo analisar o conceito de experincia nos escritos deMichel Foucault e de Edward Thompson, especificamente a maneira como cadaum dos autores organiza, no espao de uma narrativa histrica, um campo deao particular, caracterizado pela temporalidade da construo de um sujeito nahistria.Palavras-chave: Michel Foucault. Edward Thompson. Experincia.

    O tempo torna-se tempo humano na medida em que estarticulado de modo narrativo; em compensao, a narrativa significativa na medida em que esboa os traos daexperincia temporal.

    * Professor substituto do Departamento de Histria da UFRGS, Doutorandoem Histria na UFRGS e bolsista Capes.

    Tempo e narrativa, termos que, se percebidos segundo umareflexo terica particular, bem poderiam ser intercambiados poruma expresso to significativa quanto complexa: experinciahistrica. Pois seguindo tal reflexo, orientada pelos caminhos

    Paul Ricoeuer

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  • abertos por Paul Ricoeur, bastante explcitos na epgrafe que abreeste texto, que trao algumas consideraes sobre a maneira comoMichel Foucault e Edward Palmer Thompson, cada qual atravs desua respectiva postura intelectual, estabelecem os contornos distoque se poderia definir como uma experincia histrica, particular-mente, o interesse reside na forma como ambos os autores, em textospropriamente historiogrficos, organizam uma experincia de tempoem uma narrativa de histria. De fundo, o que essas consideraespermitem realizar uma aproximao terica entre as anliseshermenuticas de Ricoeur e os conceitos tericos sobre os diferentesestratos de tempo desenvolvidos por Reinhardt Koselleck.1

    Michel Foucault e a experincia da sexualidade grega

    Tanto no prefcio de seu primeiro grande livro, Histria daloucura na idade clssica, publicado em 1961, quanto no ltimotexto ao qual deu seu aval para publicao, antes de seu falecimento,em 1984, Michel Foucault utiliza o termo experincia de maneirano-despropositada.2 No primeiro caso, justificava-se tal empregoem virtude da considerao da loucura como uma experincia cujoestudo significaria interrogar uma cultura sobre suas experincias-limite, [ou seja] question-la, nos confins da histria, sobre umdilaceramento que como o nascimento mesmo de sua histria(Foucault, 1999b, p.142). Experincia aqui, e salientando aperspectiva estrutural da anlise de Foucault, significa um planoanterior histria ao qual apenas um arquelogo, em sua arqueologiada alienao, seria capaz de apreender. No segundo caso, o escopoera diferenciar duas formas de procedimento filosfico, a saber, alinha divisria que separa uma filosofia da experincia, do sentido,do sujeito e uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito(Foucault, 2000, p.353). Em outras palavras, o estudo da experincia,ou seja, da razo prtica, implica algo distinto de um estudopropriamente epistemolgico sobre a conceituao de tal razo, cujoexemplo marcante para Foucault foi Georges Canguilhem.3

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    A narrativa da experincia em Foucault e Thompson

  • Nos vinte e trs anos que separam os dois textos, recorrenteo uso do termo nos escritos de Foucault, fato que chamou a atenode alguns comentadores.4 No caberia aqui o levantamentominucioso das diversas acepes assumidas pela palavra experinciaem tais escritos, tarefa que por si s se constituiria em uma pesquisaespecfica. Entretanto, no custoso esboar uma espcie desemntica histrica do conceito de experincia na obra do pensadorfrancs. Se, a princpio, tal conceito aparece em uma obra realizadacomo um estudo estrutural do conjunto histrico compreendidopela experincia da loucura, ele remete a um campo de ao definidopor estruturas que, na sua continuidade, antecedem a emergnciade formas histricas dispersas, possibilitando a existncia de figurasvariadas da loucura. Tal concepo de experincia, ainda nos anossessenta, passar por algumas transformaes que modificaro essaespcie de continuidade fundamental, culminando na perspectivadescontinusta apresentada em As palavras e as coisas, de 1966, ondea experincia nua da ordem dos saberes consiste em espaos dsparessegundo o solo epistemolgico do qual fazem parte (Foucault, 1995).Nesse sentido, ao invs de uma experincia fundamental em que sealojaro loucuras diferentes, o livro de 1966 apresenta, para aepisteme de cada poca determinada, uma experincia de saberdiferente e singular, a qual origina formas de conhecimentodiversificadas.5

    De qualquer modo, a postura arqueolgica assumida porFoucault admite a experincia como fundadora e condio da his-tria. Ela se situa em uma posio dicotmica em relao cincia,e, embora constituam referncias mtuas a experincia origina acincia, que, por sua vez, possibilita novas experincias , entre asduas h um espao no qual se localiza o saber: entre a cincia e aexperincia h o saber: no absolutamente como mediao invisvel,como intermedirio secreto e cmplice, entre duas distncias todifceis ao mesmo tempo de reconciliar e de distinguir; de fato, osaber determina o espao onde podem separar-se e situar-se, umaem relao outra, a cincia e a experincia (Foucault, 1999b,p.117). Essa concepo tem por caracterstica principal, fato que gerou

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  • grande parte das polmicas em torno da obra de Foucault, a ausnciade um sujeito da experincia (Ternes, 2000, p.54-67). H, anteriora ele, apenas um espao no qual ele no passa de uma posio a serassumida, localizada essa no interior de formaes discursivasannimas, destacadas das experincias subjetivas dos indivduos,ainda que o prprio discurso seja visto como prtica: que no maisse relacione o discurso ao solo inicial de uma experincia nem instncia a priori de um conhecimento; mas que nele mesmo ointerroguemos sobre as regras de sua formao (Foucault, 1997,p.89).

    Essa perspectiva, aos poucos, ceder lugar a um conceito deexperincia histrica diferente, medida que a anlise arqueolgicaser complementada pela prtica genealgica dos anos setenta.6 Nesseperodo, e seguindo at o momento derradeiro de sua obra, em 1984,experincia e subjetividade sero conceitos cada vez maiscorrelacionados. Prxima idia de uma atitude histrico-crtica apartir da qual um indivduo relaciona-se consigo mesmo e com osoutros, a experincia consistir um espao de ao no qual seroconstitudos sujeitos histricos segundo processos definidoshistoricamente: a experincia que a racionalizao de umprocesso, ele prprio provisrio, que termina num sujeito ou emvrios sujeitos (Foucault, 1984c, p.137). Muitos so os textos queremetem a essa questo e para esse uso do conceito de experincia; oestudo sobre o uso dos prazeres na Grcia clssica (Foucault, 1984a) de particular importncia para se tentar apreender o processo deconfigurao da ao mediante o uso do termo experincia comoconceito operatrio e articulador da narrativa.7

    Elas no deveriam ser uma histria dos comportamentos nemuma histria das representaes. dessa maneira que MichelFoucault (1984a, p.9) define, pela negativa, a srie de pesquisas quepretendia tratar da sexualidade. Seu objetivo mais preciso realizaruma histria das problematizaes ou uma histria do pensamentoacerca disso que hoje denominamos sexualidade.8 Assim, o espaode ao do qual pretende dar conta restringe-se, no caso do textoem questo, ao mundo grego clssico, entre os sculos V e IV a.C.

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  • Seu projeto bem definido: uma histria da sexualidadeenquanto experincia se entendermos por experincia a correlao,numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade eformas de subjetividade (Foucault, 1984a, p.10). Tratar-se-ia deum trabalho histrico-crtico sobre as relaes que o indivduoestabelece consigo mesmo atravs das quais ele se reconhece e seconstitui como sujeito, levando em considerao os jogos de verdadedos quais faz parte.9 Em outras palavras, o caso de uma genealogiado processo de subjetivao do indivduo grego, considerando-onos limites de uma moral dirigida para homens livres e que possuemcerto status na sociedade. Seria, de fato, a histria de uma experinciahistrica: o ser se constitui historicamente como experincia, isto, como podendo e devendo ser pensado (Foucault, 1984a, p.12).

    O que hoje chamamos sexualidade foi problematizado, pelosgregos, como um campo moral particular, no qual estavamimplicadas tcnicas de si visando a uma esttica da existncia. Aquesto era relativa forma ideal de se conduzir no mundo quandoos prazeres eram tematizados, assim como as regras de temperanaque deveriam ser seguidas e os modelos de parcimnia que deveriamser praticados, sendo as exigncias de austeridade medidas segundocertos critrios de estilo em uma arte da existncia, que era tantouma arte de governar os outros, no exerccio de seu poder, comouma arte de governar a si mesmo, na prtica da prpria liberdade.O tema no se colocava da maneira como ocorreria pela experinciacrist da carne e mesmo pela experincia moderna da sexualidade,segundo parmetros de proibies e permisses nos quais estariamassentados uma espcie de medo (em relao masturbao), umesquema de comportamento (nos limites do matrimnio), umaimagem (o perfil da homossexualidade) e um modelo de absteno(a castidade). Nesse sentido, Foucault adverte que foi levado asubstituir uma histria dos sistemas de moral, feita a partir dasinterdies, por uma histria das problematizaes ticas, feita apartir das prticas de si (Foucault, 1984a, p.16). Assim, era precisopesquisar a partir de quais regies da experincia, e sob que formas,o comportamento sexual foi problematizado, tornando-se objeto

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  • de cuidado, elemento para a reflexo, matria para a estilizao(ibid., p.25).

    Para a definio de tais regies da experincia, Foucaultpermite-nos pensar que os indivduos, no processo de constituiode si mesmos enquanto sujeitos de uma experincia singular,encontram maneiras diferentes de se conduzir, ou seja, de agir emrelao a um cdigo de ao que define os contornos de umaexperincia possvel. No caso em particular do mundo grego, essarelao que, em outros termos, trata da dialtica sujeito-estruturaconstantemente tematizada pela reflexo terica, definida segundocertos critrios especficos. Em primeiro lugar, pela determinaoda substncia tica, que procura circunscrever a parte do indivduoque ser objeto de sua conduta moral; em seguida, pelo modo desujeio ou postura assumida em relao a uma regra, na obrigaode coloc-la em prtica; em terceiro lugar, pela elaborao de umtrabalho tico, no qual o indivduo levado a se transformar emsujeito moral de sua conduta; por fim, por uma teleologia dosujeito, pois uma ao no moral somente em si mesma e na suasingularidade; ela o tambm por sua insero e pelo lugar queocupa no conjunto de uma conduta; ela um elemento e um aspectodessa conduta, e marca uma etapa em sua durao e um progressoeventual em sua continuidade (Foucault, 1984a, p.28). Portanto,uma vez que toda ao moral comporta uma relao ao real emque se efetua, o processo de subjetivao no se limita meramentea uma tomada de conscincia de si segundo a frmula cartesiana docogito, mas tambm implica uma problematizao do processo aoqual se sujeitado: no simplesmente a constatao do pensamentoque garante a existncia, mas tambm a necessidade de seproblematizar aquilo sobre o que se pensa e mesmo sobre a formacomo se pensa.

    , ento, em torno de quatro temas que se problematiza aconduta dos indivduos: a aphrodisia, ou os prazeres propriamenteditos; a chrsis, ou o uso dos prazeres; a enkrateia, ou a relao consigoe o domnio que se estabelece sobre si mesmo; e a sphrosun, ou oestado de liberdade ao qual chega o indivduo como sujeito em sua

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  • relao com a verdade. Quatro tambm so os modelos de ao oueixos da experincia problematizados na cultura grega antiga: adiettica, que, tal como na alimentao, prev regimes especficospara o controle dos excessos; a econmica, pautada pelo modeloprivado da oikos, ou seja, da gerncia matrimonial da casa, estendidaao ambiente pblico da administrao da cidade; a ertica, a qualcoloca como alvo do cuidado a relao com os rapazes, visto que,como foi dito, tratava-se de uma moral essencialmente masculina; euma discusso em torno do verdadeiro amor, das possibilidades deacesso verdade e de relaes entre liberdade e amor.

    At aqui, como ficou evidente com a terminologia utilizada(regies da experincia, eixos da experincia), o que se sobressai a composio de um campo onde uma ao torna-se possvel.Trata-se de um campo moral, historicamente determinado, quedefine as possibilidades de condutas a serem praticadas pelosindivduos no que diz respeito ao seu uso dos prazeres. Dessamaneira, restaria a delimitao da dinmica temporal ou, dito emoutras palavras, do processo histrico que tornaria vivel a tal campode ao ser narrado, ou seja, a atribuio, atravs da narrativa, deum sentido para a experincia que nele toma lugar. No caso deFoucault, a experincia da sexualidade concerne ao processo desubjetivao dos indivduos, isto , constituio de si como sujeitosde uma prtica moral: uma experincia histrica a ao de tornar-se sujeito dessa experincia. Assim, antes de prosseguir nesta anlise, preciso apontar as caractersticas principais do sujeito histrico,segundo a perspectiva filosfica de Foucault.

    A fim de se indicarem essas caractersticas do sujeito histrico,h que se consider-lo nos seguintes termos. Antes de tudo, o sujeito uma categoria histrica: a fragmentao do tempo praticada porFoucault em histrias descontnuas, como, por exemplo, em Aspalavras e as coisas, onde um corte definitivo entre espaos de saber instaurado, teve por mrito mostrar a historicidade do pensamentosobre o homem e, conseqentemente, do sujeito de conhecimento;afinal, em cada tempo distinto, se pensa o humano de uma maneiradiferente. Em se tratando de discursos, o homem no lhes soberano,

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  • mas apenas uma posio ocupada diante deles, a qual tem umadurao bastante restrita, como os prprios discursos. Condiesque lhe so alheias dominam-no; ele constitudo por discursos eprticas sociais as condies polticas, econmicas de existnciano so um vu ou um obstculo para o sujeito de conhecimentomas aquilo atravs do que se formam os sujeitos de conhecimentoe, por conseguinte, as relaes de verdade (Foucault, 1999a, p.27).A genealogia de Foucault descartava, pois, a figura do sujeitoconstituinte, recusava a idia de encar-lo fora do campo deacontecimentos como que perseguindo sua identidade vazia aolongo da histria (Foucault, 1998, p.7). Para o autor, o sujeito no mais que um acontecimento historicamente datado com seucomeo no j comeado e seu sempre iminente momento derradeiro,o qual somente aparece no corpo social por meio de prticas desubjetivao. Disso decorre que sempre uma forma deassujeitamento o que se realiza. Contudo, ela se apresenta sob duasperspectivas distintas e opostas: de um lado, o sujeitar-se ao outrosob coero, por uma disputa de foras desiguais que no soexclusivamente de carter fsico; de outro, a escolha pessoal, a qualassume as vezes de escolha esttica ou poltica, como discernimentode uma forma de existncia. L, situa-se o carter jurdico-moral dedisciplinamento disciplinarizao; aqui, as tcnicas de si baseadasem uma esttica ou estilstica da existncia.

    A subjetivao, ou seja, o prprio sujeito, d-se enquantoexperincia, o que implica, por sua vez, o estabelecimento de relaesde verdade. Isso equivale a dizer que no existe uma verdade essenciale interior inerente ao sujeito. Pelo contrrio, entende uma verdadeconstituda por meio de regimes especficos, uma certa polticageral de verdade (Foucault, 1998, p.12), ou seja, imposio eacatamento (ou oferta e acolhimento) de valores que definem overdadeiro em relao ao falso, que legitimam discursos comoverdadeiros, que autorizam determinados indivduos a proferirem-nos, que permitem certos procedimentos de obteno da verdadeetc. Por conseguinte, as relaes estabelecidas so definidas porFoucault como jogos de verdade, nos quais so evidenciadas as

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  • formas e as modalidades da relao consigo atravs das quais oindivduo se constitui e se reconhece como sujeito (Foucault, 1984a,p.11).

    Assim, percebe-se que se reconhecer como sujeito no significareencontrar-se em uma identidade interior e anterior, situada emum lugar originrio. Em outras palavras, quer se dizer que asubjetividade no , de maneira alguma, uma categoria a priori, masque o sujeito existe apenas na medida em que se constitui como tal.A experincia, por sua vez, traz em si mesma sua prpria histori-cidade, os limites temporais que a delimitam. Ela no colocadacomo que por sobre uma histria que a perpassa anterior a ela e quedefiniria seu fim prximo; ela mesma o comeo e o fim de umadeterminada histria. Em uma expresso, experincia a duplaconstruo, a de histrias pelos sujeitos, a dos sujeitos nas histrias.

    Alguns dos comentadores que levaram em considerao oconceito de experincia em Foucault invariavelmente o identificama esse processo de subjetivao. Entretanto, a perspectiva de seuscomentrios assimila, da maneira como no ser aqui realizada, aobra a seu autor, isso , trata-a como experincia realizada peloprprio filsofo no sentido de desvelar novas formas de subjetividadepara seu presente. A experincia que interessa neste estudo particularmente a experincia grega da sexualidade, a reconstituiodo espao de ao onde os indivduos gregos do sexo masculino e dedeterminada camada social podiam se constituir enquanto sujeitosmorais no uso de seus prazeres e, especialmente, a temporalidadeprpria dessa ao. Antes, porm, de estabelecer as relaes temporaisda ao e o sentido da narrativa, convm analisar as caractersticasdo conceito de experincia segundo a perspectiva de Thompson,uma vez que ela permitir desenvolver mais detalhadamente asconcepes aqui propostas.

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  • Edward PalmerThompson e a experincia da classe operria inglesa

    O livro A formao da classe operria inglesa (Thompson, 1987a)foi de incio pensado, a pedido de um editor, como uma verso dahistria do movimento trabalhista britnico no perodo de 1832 a1945. Recuando seu olhar em quase meio sculo, fato que, como sever, de capital importncia para a sua concepo de experinciahistrica, Thompson sequer conseguiu chegar ao ano de 1840, poisestabeleceu seu recorte entre as dcadas de 1790 e 1830, escrevendo,apenas sobre esse perodo, quase um milhar de pginas poucoconvencionais se forem levados em considerao os parmetrosacadmicos. O prprio autor considerou seu trabalho um tantoinocente quanto s exigncias de adequao para um pblicoespecificamente universitrio. Em relao sua ntida e por vezesextravagante tomada de posio, dissonante em relao proclamadaausteridade cientfica da academia, afirmou categoricamente: ahistria a memria de uma cultura e a memria jamais pode estarlivre de paixes e de comprometimentos. No me sinto inibido deforma nenhuma pelo fato de que minhas prprias paixes ecomprometimentos sejam evidentes (apud Palmer, 1996, p.123-124).10 No obstante o distanciamento de seu autor em relao universidade, inegvel a importncia que teve o livro nos caminhose descaminhos da historiografia acadmica do sculo XX, quer sejapor questes terico-metodolgicas gerais, quer seja por questesespecificamente internas ao marxismo, ao materialismo histrico, histria socialista ou histria social.11

    Saliente-se ainda o fato de que, muito festejada, a escritahistoriogrfica de Thompson nem sempre objeto de consideraesmais cuidadosas e detalhadas. Segundo Hobsbawm (2001, p.15),Thompson, presenteado pela ddiva da escrita, era escritor damais fina e polmica prosa do sculo XX. Perry Anderson, em umadiscreta ironia, sugere que, antes de importantes escritos de histria,A formao da classe operria inglesa (Thompson, 1987a) e Senhorese caadores (Thompson, 1987b) so, sobretudo, grandes obras deliteratura (Anderson, 1985, p.1). Edgar Salvadori de Decca, por

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  • sua vez, comenta que o ponto central do pensamento radical, querdizer, do ser radical, dissidente e libertrio (exemplificado porThompson) , antes de tudo, ter a paixo pela palavra, a paixo pelodiscurso. Ele vai ainda mais longe e enfatiza o papel preponderanteda narrativa thompsoniana: a narrativa tudo, a narrativa queconstri o objeto histrico, o modo pelo qual o discursohistoriogrfico se constitui enquanto lgica, enquanto coerncia paraque determinadas bases factuais sejam legitimadas (de Decca, 1995,p.15 e 17). A parte mais interessada nesta ltima colocao, isto , oprprio Thompson, talvez tivesse algumas ressalvas a fazer quanto atal afirmao.

    Assim, entre a prosa e a literatura, passando pelo carterinstituidor de sua narrativa, a escrita da histria tal como praticadapelo autor de A formao da classe operria inglesa objeto decomentrios que, em alguns casos, acabam por contradizernitidamente a postura terica do prprio autor (o que no por sis uma falha), mas cujo teor nem sempre ultrapassa a simplesimpresso esttica. Nesse sentido, um olhar mais detido sobre essaprtica, centrado principalmente na superfcie do texto tomado comoparadigma de anlise,12 pode apresentar detalhes mais interessantesao leitor que o simples louvor, a fina ironia ou o inflamadopanegrico. Para tanto, prope-se aqui um desvio em relao sprprias intenes de Thompson, que considerava seu livrosobretudo como um conjunto de estudos sobre temas correlatos eno tanto uma narrativa seqenciada (Thompson, 1987a, v.I,p.12). Ou seja, a proposta que se segue trat-lo justamente enquantouma narrativa de um fenmeno histrico singular, isto , a formaode uma classe operria em determinado espao de ao e num prazode tempo definido.

    De incio, destaca-se o carter ativo do processo em questo, ofazer-se da classe operria inglesa. Thompson aponta para a noode making enquanto um fenmeno que remete tanto ao humanacomo aos condicionamentos, salientando que a classe em questoestava presente ao seu prprio fazer-se. Trata-se de um fenmenohistrico no qual convergem acontecimentos dspares tanto na

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  • matria-prima da experincia como na conscincia, fenmeno talque aponta para uma caracterstica fundamental: classe no umobjeto dado de antemo, mas uma relao que se constri na medidade sua construo (Thompson, 1987a, v.I, p.9).13 Para o autor, aexistncia concreta de uma classe evidencia-se pela identidade deinteresses e valores, partilhados por indivduos segundo umaexperincia em comum, que se contrapem a interesses e valores deoutros indivduos que partilham uma experincia diversa e que, demodo semelhante, constituem uma classe antagnica.14 Dois so ostermos-chave nessa noo: de um lado, tem-se a experincia de classe,em grande medida determinada pelas relaes de produo nas quaisos indivduos so involuntariamente inseridos; de outro, tem-se aconscincia de classe, que se refere ao trato cultural da experincia(tradies, sistemas de valores, idias e formas institucionais). Se aprimeira determinada, a segunda pode-se dizer determinante, poisorienta o sentido das aes realizadas. Nessa direo, podemos veruma lgica nas reaes de grupos profissionais semelhantes que vivemexperincias parecidas, mas no podemos predicar nenhuma lei(Thompson, 1987a, v.I, p.10).

    Percebe-se que aqui o conceito de experincia desponta comoum espao, definido segundo relaes produtivas especficas, no qualaes conscientes tomam lugar e so praticadas. Nesse caso, a aode constituio de uma classe que aparece como experincia: a classe definida pelos homens enquanto vivem sua prpria histria e, aofinal, esta sua nica definio (ibid., p.12).15 Em decorrncia dessaconcepo, para Thompson impossvel vislumbrar-se uma classeem um recorte sincrnico, onde, segundo ele, h simplesmente umamultido de indivduos com um a montoado de experincias; poroutro lado, em um perodo adequado de mudanas, ou seja, nadiacronia, observam-se padres e regularidades nas aes queimplicam, como foi visto, menos leis do que uma lgica histricaprpria: no podemos entender a classe a menos que a vejamoscomo uma formao social e cultural, surgindo de processos que spodem ser estudados quando eles mesmos operam durante umconsidervel perodo histrico (idem).16

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    A narrativa da experincia em Foucault e Thompson

  • Assim, semelhante noo apresentada por Foucault, aexperincia histrica em A formao da classe operria inglesa trata,de maneira geral, do processo histrico segundo o qual se elaboraum espao de ao onde se constitui um sujeito da experincia.17 Ohistoriador ingls, na narrativa de tal fenmeno, retorna ltimadcada do sculo XVIII, momento em que no havia ainda umaclasse definida pela conscincia que lhe assegurasse uma identidadehistrica, para reconstituir, ao longo do texto, o conjunto detradies persistentes que propiciaram o campo de possibilidadepara a formao da classe operria inglesa: a tradio da Dissidnciainfluenciada pelo metodismo; a tradio nacional em torno da noode liberdade (o ingls livre de nascimento); e a tradio popularde manifestao do sculo XVIII (a turba), que mais tarde seriadefinida detalhadamente pelo autor como economia moral damultido.18

    A persistncia de uma espcie de radicalismo adormecidodo sculo XVIII, eventualmente reavivado durante o XIX, aliou-seao quietismo poltico de seitas religiosas dissidentes que dirigiamsua expectativa e o consolo compensatrio das injustias terrenaspara uma vida no alm. Entretanto, salienta Thompson, aDissidncia, enquanto oposio Igreja Anglicana oficial, fortementeinspirada no fervor do jacobinismo ingls do momento, apesar desua rigidez disciplinar e de um certo intelectualismo que diminuasua capacidade de atrao popular, encontrou solo propcio nodescontentamento de camadas sociais desfavorecidas: a histriaintelectual da Dissidncia composta de choques, cismas, mutaes;muitas vezes sentem-se nela os germes adormecidos do radicalismopoltico, prontos para germinar logo que semeados num contextosocial promissor e favorvel (Thompson, 1987a, v.I, p.36).19 Dessamaneira, a ao dissidente foi pelo autor definida como viveiropara as variantes da cultura operria do sculo XIX (ibid., p.52).

    No conjunto das tradies em que se insere a Dissidncia,Thompson localiza ainda duas outras tradies definidas comosubpolticas: os fenmenos do motim e da turba e as noespopulares de um direito de nascimento do ingls (ibid., p.62).

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  • No primeiro desses fenmenos, est implcita uma distinoentre cdigo legal e cdigo popular, a qual orienta a dinmica doconflito social em torno da noo de propriedade: de um lado oaparato jurdico institudo, de outro a prtica de um direitoconsuetudinrio. Alm disso, os motins originavam-se tambm deum descontentamento mensurvel, por exemplo, pela alta no preodo po. Esses distrbios sociais por causa de alimentos constituam-se como aes populares legitimadas por uma antiga economiamoral paternalista: segundo o autor, aes de tal envergaduraindicam um modelo de comportamento e crena com razesextraordinariamente profundas (Thompson, 1987a, v.I, p.69).Entre tais movimentos, a turba londrina de finais do sculo XVIIIdesponta, no olhar de Thompson, como uma turba em transio,quase como uma multido radical autoconsciente em vias de sereconhecer como classe.21

    Outra tradio que expandiu o universo da cultura popular,possibilitando a formao da classe operria na Inglaterra, foi a queremetia s noes de patriotismo e independncia expressas pelafrmula do direito de nascimento, alimentando a idia de liberdadeindividual no iderio poltico ingls. Segundo Thompson, essa ret-rica da liberdade transcendia os limites da segurana de propriedadee englobava muitas outras manifestaes que, no conjunto, refletiamum certo consenso moral compartilhado at mesmo pelas autorida-des. O indivduo, livre por nascimento, aparecia como valor quedesempenhava o papel de contraponto centralizao estatal; parao historiador ingls, nessa hostilidade ao aumento dos poderes dequalquer autoridade centralizada, temos uma curiosa mescla deatitude paroquial defensiva, teoria liberal e resistncia popular(Thompson, 1987a, v.I, p.89). Alm da liberdade e da segurana doindivduo em relao a qualquer arbtrio ou ingerncia do Estado,havia uma tradio marcada por idias igualitrias; sua expressomaior estava no escrito de Thomas Paine, Os direitos do homem, pa-ra Thompson uma nova retrica do igualitarismo radical, que afetouas reaes mais profundas do ingls livre de nascimento e penetrounas atitudes subpolticas do operariado urbano (ibid., p.102).

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  • Na descrio de tais tradies, Thompson desenvolveu umpercurso que lhe permitiria, no decorrer da narrativa, reconstituir ofenmeno histrico marcado pela experincia de formao da classeoperria inglesa e a simultnea constituio da conscincia de classe.Opo de mtodo e postura terica: segundo ele, tratava-se dederrubar as muralhas da China que separavam, no conjunto dahistoriografia tradicional, o sculo XVIII e XIX. Com essa derrubada,estabelece-se uma ligao marcada pela convergncia entre a histriada agitao operria e a histria cultural e intelectual do resto danao (ibid., p.111). Trata-se de uma relao tambm temporal,uma vez que insere determinada experincia a constituio deuma classe em um estrato de tempo que a determina mas tambma ultrapassa, j por ela modificada: um espao de ao (no apenasde possibilidades discursivas) no qual um sujeito, atuando econstituindo-se nesse atuar, expande as perspectivas do sentido daexperincia. Se as tradies definem tal espao pela dinmicatemporal que elas mesmas alimentam, ele simultaneamentedelimitado de acordo com um modelo estrutural das relaes deproduo.22

    Thompson destaca mais de cem pginas para discorrer sobremodos de explorao no antagonismo das classes e a correlatadeteriorao das condies de vida dos trabalhadores. Recusa umaverso tradicional do tema, segundo a qual a classe operria seriameramente um produto de uma equao economicista na qual asvariantes principais seriam a energia do vapor e a indstria algodoeira.Em suas palavras, no podemos assumir qualquer correspondnciaautomtica ou excessivamente direta entre a dinmica do crescimentoeconmico e a dinmica da vida social ou cultural (Thompson,1987a, v.II, p.69).23 As transformaes por que passou a indstriade algodo, por exemplo, das manufaturas artesanais para o tearmecnico, ainda que com importantes implicaes no desenvolverdo processo, no podem ser consideradas como razo elementar dofenmeno, pois tal posicionamento tende a desconsiderar, ou arelegar ao mbito redutor da dicotomia base/superestrutura (Wood,2003, p.51-72), a persistncia de tradies polticas e culturais nas

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  • comunidades trabalhadoras; os operrios longe de serem filhosprimognitos da revoluo industrial, tiveram nascimento tardio(Thompson, 1987a, v.II, p.16).24

    Thompson coloca em jogo, dessa maneira, a relao entreexperincia e conscincia, uma vez que, instituindo um termosingular (classe) ao invs do plural que mantm as diferenas epolissemias internas das classes, defende que, pelo crescimento daconscincia de classe e das formas correspondentes de organizao eatuao polticas, possvel homogeneizar as diferentes categoriasenglobando-as sob um conceito singular: classe.25 Da que, emtrs captulos subseqentes, analisa as condies de vida, vale dizer,as experincias de trs categorias variadas: trabalhadores rurais,artesos e outros e teceles. Para o autor, tratava-se de umaperspectiva terica precisa que procuraria retomar o sentido globaldo processo, sentido esse marcado no s pela nitidez da exploraoeconmica e opresso poltica, mas tambm pela contribuio coeso social e cultural do explorado, favorecida ambiguamentepelo metodismo, que servia tambm como disciplina social, e pelanoo de comunitarismo, marcadamente as sociedades de auxliomtuo.

    O que se sucede na narrativa, ento, a atuao prpria dostrabalhadores no processo em direo a uma conscincia de classeplenamente constituda, atravs da descrio emprica de momen-tos significativos para os argumentos do autor: as vitrias eleitoraisem Westminster, ao sul da Inglaterra, na primeira dcada do sculoXIX, favorveis aos trabalhadores e que funcionaram como vlvulade escape democrtica para o descontentamento popular; o retrai-mento por conta das medidas jurdicas tomadas pelas autoridadesno sentido de proibir as associaes de cunho operrio; o movimentoluddista em diversas localidades, cujas prticas eram encaradas comomanifestao da cultura operria, opondo o direito oriundo dos cos-tumes s prerrogativas da legislao estatal; e o impacto, traumticopara ingleses livres de nascimento, do massacre de Peterloo, noqual uma manifestao pblica foi duramente rechaada pela polciamontada, ocasionando diversas mortes de manifestantes.

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  • Todos esses fatores, para Thompson, contriburam para oprocesso de formao de uma classe operria consciente de suaidentidade histrica. No ambiente de diversos conflitos convergentes(a luta pela liberdade de imprensa, aumento da fora sindical,revogao das Leis de Associao, crescimento do livre pensamento,expanso das cooperativas), formou-se o solo propcio para germinaruma conscincia proveniente da dupla experincia da RevoluoIndustrial e do radicalismo popular: partiu-se da prtica radical auma cultura poltica conscientemente articulada e fez-se valer oautodidatismo dos trabalhadores que, a partir de sua experinciaprpria e com o recurso sua instruo errante e arduamente obtida[...] formaram um quadro fundamentalmente poltico da organizaoda sociedade (Thompson, 1987a, v.III, p.304) a classe formando-se a si mesma.

    Nesse perodo que segue da ltima dcada do sculo XVIIIat as trs primeiras do XIX, Thompson estabelece o espao no qualuma ao tomou lugar: a experincia histrica da formao da classeoperria inglesa. Evidenciada nos discursos que, a partir de ento,assumiam um ns coletivo e nos quais o autor percebe a maturidadedo movimento operrio,26 a classe operria inglesa, plenamenteconsciente de seus prprios interesses e valores, em 1832, no estmais no seu fazer-se, mas j foi feita, e a presena operria pode sersentida em todos os condados da Inglaterra e na maioria dos mbitosda vida, se no por outros fatores, mas pela prpria luta de classes(Thompson, 1987a, v.III, p.411). Com esse ensejo, encerradatambm a narrativa de tal experincia.

    Ainda que se incorra na desproporo de espao concedidoaos dois autores em pauta, preciso deter-se um pouco mais emuma questo-chave na obra de Thompson, visto que ela foi objetode inmeras e pertinentes discusses, fato que no ocorreu (ainda)com o mesmo vigor em relao aos escritos de Foucault. Dos lucrose das despesas oriundos desse seu primeiro grande livro, Thompsonguardou, no decorrer da sua carreira, um que certamente encontra-se entre os principais: o conceito de experincia. Se lucro ou despesa,no se sabe ao certo.

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  • Dois anos aps a publicao de A formao da classe operriainglesa, em uma das suas primeiras grandes polmicas no interior dahistoriografia marxista, Thompson aponta algumas questesconceituais a serem discutidas pelo materialismo histrico. Salien-tando a importncia do uso de modelos analticos no estudo deprocessos histricos, o autor defende a necessidade da concepo demodelos que permitam trabalhar com a autonomia da conscinciaem frente s determinaes do ser social.27 Para Thompson, enfticonessa questo, sem cultura no h produo; a cultura determinao processo histrico tanto quanto a economia e, a partir dessaconcepo, a luta de classes , ao mesmo tempo, uma luta deinteresses e valores elaborados culturalmente:28

    [...] o que muda, assim que o modo de produo e asrelaes produtivas mudam, a experincia de homense mulheres existentes [...] a transformao histricaacontece no por uma dada base ter dado vida auma superestrutura correspondente, mas pelo fatode as alteraes nas relaes produtivas seremvivenciadas na vida social e cultural, de repercutiremnas idias e valores humanos e de serem questionadasnas aes e crenas humanas (Thompson, 2001,p.260-262).

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    Surge da o papel central assumido pelo conceito de experinciana obra do historiador ingls, qual seja, desempenhar um papelmediador entre a conscincia social e o ser social.29 Em sua famosapolmica contra Louis Althusser, publicada em 1978 com o ttulode A misria da teoria (Thompson, 1981), destacam-se pontoscapitais sobre epistemologia da histria tais como entendidos epraticados por Thompson. Para este, sem meias palavras, aexperincia no espera discretamente, fora de seus gabinetes, omomento em que o discurso da demonstrao convocar a suapresena. A experincia entra sem bater porta e anuncia mortes,crises de subsistncia, guerra de trincheiras, desemprego, inflao,genocdio (ibid., p.17). Ela se caracteriza pelas presses do ser social

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  • sobre a conscincia social e tambm aparece como resposta mentale emocional dos indivduos ou grupos sociais em determinadosacontecimentos.30 Para o autor, a relao entre a histria, enquantofluxo de tempo, e o indivduo, em sua finitude temporal, d-se pelaexperincia, que surge espontaneamente no ser social, mas isso apenasse d quando esse ser pensado: assim como o ser pensado,tambm o pensamento vivido (id.).

    Thompson considera o mbito da cultura como lugar primeiroda experincia, uma vez que esta d cor cultura. Assim, salientaque a experincia um dos silncios de Marx, bem como o termoausente no planetrio de Althusser: naquele, a nfase recai nasdeterminaes de base econmica da infraestrutura; neste, a teoriasobrepe-se ao mundo emprico. Contudo, Thompson permaneceno mbito do materialismo histrico, reinventando-o e rejeitandoveementemente a alcunha de culturalista, pois acredita que aexperincia sempre gerada na vida material, sob a pressodeterminante do modo de produo sobre a conscincia dosindivduos. Seu interesse ressaltar a agncia humana no processohistrico, apontando para um retorno do sujeito da experincia,no como sujeitos autnomos, indivduos livre, mas como pessoasque experimentam suas situaes e relaes produtivas determinadascomo necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguidatratam essa experincia em sua conscincia e sua cultura das maiscomplexas maneiras e em seguida agem, por sua vez, sobre suasituao determinada (Thompson, 1981, p.182). Portanto, ao invsde um processo previsvel no qual os fenmenos se ligariam porcausalidades mecnicas, Thompson retoma a imprevisibilidade daao humana, na manipulao pelos indivduos de sua prpriaexperincia.

    Essa imprevisibilidade no implica uma recusa da racionalidadedo processo, o que por Thompson definido como statusontolgico do passado. Como o autor j havia salientado em Aformao da classe operria inglesa, no se trata de leis regendo ahistria, mas de uma lgica construda mediante a significao doprocesso; para ele, seria possvel medir-se, pela relao entre ser e

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  • conscincia, a amplitude das aes possveis em um definido contex-to, embora seu sentido permanea para alm das predeterminaes.Uma crtica pertinente a tal concepo foi formulada por PerryAnderson, que considera problemtica a ligao to direta entre aoe conscincia. Para este, h setores na histria em que a ao noincide socialmente de maneira voluntria ou consciente, como asanlises demogrficas e os estudos sobre a lngua podem comprovar;neste caso, a conscincia do ato (de reproduzir-se ou de falar) estinserida em um conjunto de determinaes que transcendem ocontrole dos indivduos. Em A formao..., por exemplo, a formafundamental que tomou esta ao foi a converso de uma experinciacoletiva em uma conscincia social que, assim, definiu e criou por simesma a classe (Anderson, 1985, p.32). Com isso, conclui ele, opeso elevado da conscincia na ao acaba por tornar esta uma refmna obra de Thompson, com um papel ajustado ad hoc paraencaixar-se em determinados propsitos. Constantemente procuradono livro, o papel da ao segue nele sendo esquivo.

    Se, para Thompson, a experincia o mediador entre ser sociale conscincia, para Anderson, essa mediao no de todo evidentee, em alguns casos, deixa de existir pela presso absoluta do ser sobrea conscincia. William Sewell Jr., por sua vez, acredita que experincia o conceito-chave da estratgia narrativa de Thompson, o qualno pode desempenhar um papel mediador justamente pelo fato dea formao da classe ser ela mesma uma experincia. O que poderiaaparecer como paradoxo impulsiona o olhar para outra direo dodebate. Ao invs de aprofundar a discusso das relaes entre ser econscincia, Sewell Jr. sugere que o verdadeiro sentido do conceitode experincia como medium menos a mediao entre doiselementos e mais o espao em que as aes tomam lugar e realizam-se: as relaes de classe tacitamente colocadas como presentes nabase material, so realizadas no meio (medium) da experinciahumana [...] uma estrutura sincrnica tacitamente colocada realiza-se a si mesma nas vidas reais, histricas e experienciadas dos atoreshumanos (Sewell Jr., 1990, p.60). Aquilo que no poderia serexplicado por determinaes infra-estruturais seria deslocado para

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  • o mbito da experincia, esta categoria residual que concerne sprofundas complexidades da existncia humana e operaoimprevisvel da agncia humana (ibid., p.62-63).

    Talvez categoria residual, pelo seu papel central no debate,no seja um termo de todo adequado para definir o conceito deexperincia em Thompson, mas possvel seguir-se a linha deraciocnio de Sewell Jr. deixando-se de lado o debate tal comoconduzido por Anderson. Ao invs de se perceber a experinciaapenas por meio da dicotomia ser/conscincia, possvel consider-la, no interior da narrativa como conceito que estabelece um espaode ao determinado por relaes estruturais de produo, no quala conscincia encontra o meio (medium) para se constituirautonomamente e, por conseqncia, ser determinante no modocomo tais relaes so vivenciadas. a experincia como ao quese tematiza, no apenas como relao, e, enquanto tal, a dinmicada ao que interessa discutir tendo por pano de fundo asconvergncias entre o tempo da narrativa da experincia bem comoo tempo da experincia narrada. Vejamos, portanto, em que medida possvel trabalhar-se com o conceito da maneira como desenvolvidopor Foucault e Thompson.

    A experincia histrica

    Encontrar-se uma maneira de trabalhar o mesmo conceitoutilizando-se autores oriundos de tradies to dspares e antagnicasno das coisas mais simples. Como aponta Durval Muniz deAlbuquerque Junior, em artigo que tem por tema justamente oconceito de experincia em Thompson e Foucault, esses dois autorespartem de pressupostos tericos tais, cuja distino tornainconcilivel um ao outro (Albuquerque Jr., 2002, p.61-75). Ambosdefinem a histria a partir de duas diferentes perspectivas,denominadas pelo autor como realismo e nominalismo. Naprimeira, notadamente a de Thompson, Albuquerque sugere que oque se defende so essncias, totalidades, a verdade na razo e uma

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  • experincia unitria; a realidade existe anterior linguagem, e aexperincia distingue-se da conscincia como uma empiria anterior,caracterizando-se como o lugar por excelncia do ser. A outra,propriamente de Foucault, apresentada pelo autor como dispersodas totalidades, como polissemia da verdade, pela crtica da razo epela fragmentao da experincia; realidade e linguagem condicio-nam-se mutuamente, no havendo um a priori do discurso: na expe-rincia, o ser e a conscincia so inseparveis.

    Parece-me, contudo, que, neste caso, se trata da experinciamuito mais como uma idia norteadora de determinada posturaepistemolgica (para Thompson, histria como estudo dassemelhanas; para Foucault, como estudo das diferenas) do queprecisamente, tal como se entende aqui, como conceito inseridoem uma narrativa, utilizado para garantir a dinmica temporal deum definido processo. Essa uma sutileza terica que sugere certodesvio em relao a grandes generalizaes. Tomando-se a experinciacomo conceito que tem por escopo estabelecer uma refernciaemprica na ordem temporal de determinado fenmeno, pode serpossvel realizar-se essa reflexo no ponto de cruzamento dos textosde tais autores. Como se buscou evidenciar, tanto na histria dasexualidade grega quanto na da classe operria inglesa, a experinciadiz respeito a um processo no qual, segundo condies tais, d-seum fenmeno cuja construo simultnea constituio daqueleque age enquanto sujeito. No que tido como bvio, esse o dadoprvio fundamental: a experincia histrica refere-se experinciade um sujeito da histria. Alterando-se o foco, possvel inserirem-se alguns outros dados nesse problema, abstraindo-se sua evidenteobviedade: experincia e subjetividade tornam-se mais compreen-sveis quando relacionadas com duas outras categorias, quais sejam,ao e tempo. O resultado o enlace entre um sujeito da ao e suaexperincia de tempo.

    Tanto Thompson como Foucault estabelecem o conceito deexperincia como espao onde uma ao desenvolve-se segundoarticulaes de tempo distintas. A formao da classe operria inglesa uma ao na qual se privilegia o espao de experincia de seu

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  • sujeito, enquanto que a constituio do sujeito moral grego (naperspectiva do que consideramos como sexualidade) uma aoorientada preponderantemente em direo a um horizonte deexpectativa.31 Tais argumentos talvez se tornem evidenciados se oolhar incidir sobre o texto narrativo.

    A primeira parte de A formao da classe operria inglesa destinada reconstituio do que Thompson definiu como tradiespersistentes, cujos germes adormecidos desabrochariam segundocondies favorveis. Tais tradies criariam as circunstnciaspropcias para a formao de uma classe operria, no apenasenquanto fator do modo de produo, mas segundo um grau elevadode conscincia que gerasse sua identidade histrica prpria. Nesseprocesso, o conflito de interesses visto sob a perspectiva culturalsurge como conflito por temporalidades diferentes; a luta de classes,entendida como luta de valores, encontra expresso em doiselementos contraditrios entre os quais o tempo sofre a tenso dedirees opostas: o retorno ao anterior dos valores consuetudinriosdas camadas de trabalhadores e o agora em diante do modeloprogressivo de uma classe capitalista.

    Referente a tais tradies, o autor salienta um princpiosubpoltico que aparece em alguns momentos especficos: na defesairredutvel das aspiraes liberais do indivduo representado pelanoo de ingls livre de nascimento, bem como a idia depatriotismo, pela qual havia a crena em um lugar original; naeconomia moral legitimando formas de ao espontnea na segundometade do sculo XVIII, momento em que, segundo Thompson,tornou-se mais aguda a distino entre um cdigo popular no-escrito em processo de deteriorao em prol de um cdigo legaloficializado; nos motins resultantes da alta no preo dos alimentosou mesmo da perda de espaos de sociabilidade como as feiras livres,nas quais vigoravam certos costumes de preo-justo, em oposio especulao do livre mercado, e que, para o historiador, indicavamum comportamento com razes bastante profundas da culturapopular. Aquilo que Thompson qualifica como subpoltico estinserido em um plano de sucesso: o prefixo, no caso, remete a

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  • certa anterioridade de uma ao, que muito mais uma escala detempo que uma hierarquia de valores; o subpoltico no est abaixodo poltico, ele o que precede este.

    A experincia de formao da classe compreendida comoum espao de experincia em que, na presso exercida pelo passadosobre o presente, criada a condio histrica da classe operria.Entre tais indivduos, saliente-se a presena de homens que nutremressentimentos pelos direitos perdidos e apresentam as resistnciasinerentes ao ingls que nasceu livre (Thompson, 1987a, v.II, p.57).A destruio de padres de vida impulsionava seu anseio pelo retornoa certos modelos ancestrais, explcitos nas palavras do lder cartistaFeargus OConnor, que do mostras do que Thompson chamou demito social da idade de ouro da vila comunitria anterior aoscercamentos e s Guerras: que possamos viver para assistir restaurao dos velhos tempos na Inglaterra, das velhas tradiesinglesas, dos antigos dias santos, da antiga justia, e que cada homemviva do suor do seu rosto [...] (apud Thompson, op. cit., p.65).Entre os teceles do norte, por exemplo, as recordaes do statusperdido fundamentava-se em experincias reais e de longa durao,permeadas pela lenda de um passado melhor (ibid., p.120).

    O que se evidencia que a conscincia que se constitua noprocesso era tambm uma conscincia de tempo, de um rumo e deum ritmo temporais contra a qual seria possvel imporem-seexperincias outras, pautadas por temporalidades diferentes, comseus valores agregados fundados segundo padres diversos. Nesseponto, momento de transio entre duas formas de vida social, stradies dissidentes apresentadas na primeira parte do livrojuntaram-se modelos de explorao que marcavam as condies devida dos trabalhadores, descritas na segunda parte. A conscincia declasse em formao era tambm uma forma de resistncia; tratava-se de uma resistncia consciente ao desaparecimento de um antigomodo de vida, freqentemente associada ao radicalismo poltico(ibid., p.300). O desaparecimento da velha Inglaterra acompa-nhava-se de uma classe nova que se fazia surgir.

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  • As atividades luddistas expostas na terceira parte do livroseguem, em grande medida, uma tal conscincia. O radicalismo,nas suas condutas, apontava para um conflito de transio, pois,de um lado, olhava para trs, para costumes antigos e uma legislaopaternalista que nunca poderiam ressuscitar; de outro lado, tentavareviver antigos direitos a fim de abrir novos precedentes (Thompson,1987a, v.III, p.123). A isso se soma a funo de amlgamadesempenhada pelo metodismo no sentido de um espao comumpara o sentimento de pertencimento a determinado grupo, alm dacapacidade de organizao institucional desse grupo. Evidenciava-se ainda mais a conscincia de classe pela formao de um instrumen-tal discursivo pertinente, destacando-se aqui a apropriao pelostrabalhadores das idias owenistas. Dentro de tal movimento, varia-das tendncias eram assumidas e, para uma parte do grupo de traba-lhadores, os qualificados, o movimento que comeara a tomarforma em 1830 finalmente parecia dar corpo a sua aspirao htanto tempo alimentada uma unio nacional geral (ibid., p.399).

    Em 1832, portanto, segundo o espao de experincia que atornou possvel, a classe operria inglesa chegava finalmente ao seupresente, e sua presena, para Thompson, era j sentida por todaparte. Nesse caso especfico, as presses do passado orientam a ao;o passado-presente define a possibilidade de uma histria e, da mesmamaneira, determina tambm suas condies de representao, isto, sua forma narrativa.

    A experincia da sexualidade grega estabelece uma dinmicaatravs da qual o horizonte de expectativa do sujeito que aexperiencia aquilo o que define o sentido temporal da aoempreendida. A problematizao dos prazeres, da forma comoFoucault a realiza, instaura o recorte de diversos eixos daexperincia, por meio dos quais, segundo condies especficas, oindivduo reconhece-se como sujeito, isto , ele se pensa atravs deum conjunto de valores definidos como uma esttica da existncia. verdade que toda ao moral comporta uma relao ao real emque se efetua, e uma relao ao cdigo a que se refere; mas ela implicatambm uma certa relao a si; essa relao no simplesmente

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  • conscincia de si, mas constituio de si enquanto sujeito moral(Foucault, 1984a, p.28). Da que a agncia humana tambmtematizada por Foucault, na medida em que ele estabelece a distinoentre elementos do cdigo moral e elementos da ascese pessoal. Arelao entre ambos determina o grau de autonomia desenvolvidapelo sujeito da ao relativamente ao seu campo de atuao.

    As regras de temperana que definem o uso dos prazeres tmpor escopo fundamental a longevidade que se apresenta sob doisaspectos: de um lado, o prolongamento da vida singular do indivduoe, de outro, a perpetuao coletiva da espcie. No primeiro caso, afinitude de tempo, ou seja, a durao, encontra-se recortada peloslimites do corpo e, no segundo caso, ela estabelecida pelo perododa vida. O uso adequado dos prazeres garante a energia do corpo ea reproduo da vida. A relao de si do sujeito , em razo disso,tomada em dois nveis: uma relao consigo mesmo e uma relaosocial com o grupo. Em Plato, por exemplo, desenvolve-se ummodelo cvico de moderao, sendo que nele a tica dos prazeres da mesma ordem que a estrutura poltica (ibid., p.67). O horizontede expectativa que se abre segundo os modelos dessa esttica davida visa a um estado de liberdade em conformidade com a verdadeda razo (logos), no entendida como livre-arbtrio, mas como oposta servido; trata-se de uma liberdade ativa do sujeito, indissocivelde uma relao estrutural, instrumental e ontolgica com a verdade(ibid. p.84). A tica dos aphrodisia sustenta o domnio de si mesmo,em contraposio escravido das prprias paixes, e sustentatambm uma idia de sociedade no regida pelo desmedido poderdo tirano, mas pelo controlvel exerccio do chefe.

    O que se sobressai disso tudo um ideal de vida bastantesingular. Pelo logos, pela razo e pela relao com o verdadeiro quea governa, uma tal vida inscreve-se na manuteno ou reproduode uma ordem ontolgica; e, por outro lado, recebe o brilho deuma beleza manifesta aos olhos daqueles que podem contempl-laou guard-la na memria (ibid., p.82). Mais adiante, Foucaultacrescenta: o indivduo se realiza como sujeito moral na plstica deuma conduta medida com exatido, bem visvel de todos e digna de

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    A narrativa da experincia em Foucault e Thompson

  • uma longa memria (ibid., p.84). A constituio do sujeito naexperincia histrica narrada por Foucault uma ao dirigida aofuturo, ao devir, destinada a se perpetuar na memria; uma ao deespera e esperana de acordo com as possibilidades e probabilidadesde algo vir a ser real (realizado). Nos eixos da experinciaconsiderados, a perspectiva semelhante.

    O regime dos prazeres na diettica tem por objeto o cuidadocom o corpo, no para empurr-lo para alm de suas capacidadesnaturais, mas para segui-lo na completude de seus limites, semantecip-los por motivo de dispndio de energia. O bom uso docorpo pelo indivduo tem tambm como uma de suas funes ocuidado com a progenitura e com o futuro de sua famlia, bemcomo, em outra escala de valor, o futuro da espcie, esta ligada aoprincpio da reproduo, na medida em que coloca como finalidadeda procriao paliar o desaparecimento dos seres vivos e dar espcie,tomada no seu conjunto, a eternidade que no pode ser concedidaa cada indivduo (ibid., p.121). J a econmica, no movimento quesegue da condio matrimonial domstica chegando em uma idiamais abrangente de vida civil, ou cidadania, o caso de projeesrelativas boa gerncia dos bens, conservando e ampliando estruturasmateriais da famlia, mas tambm relativas ao destino do grupo social,ao bom governo das pessoas e boa administrao da cidade. Aqualidade de chefe de famlia funciona como parmetro para umbom governante e para um futuro desejado para a plis. Na ertica,por sua vez, a escolha dos rapazes e a condio entre ativo e passivona relao envolvem critrios e valores que concernem manutenoda honra e do status do indivduo. O perigo constante de seestabelecer um vnculo vergonhoso, marcado pelo excessivo poderexercido entre os parceiros, tornava-se, ento, problemtico. Afinal,era uma relao entre indivduos do mesmo sexo, embora de idadesdiferentes, em que a atividade ou passividade do rapaz em relaoao homem dizia respeito futura posio de tal jovem na cidade.

    Enfim, nas palavras de Foucault, a exigncia de austeridadeimplicada pela constituio desse sujeito senhor de si mesmo no seapresenta sob a forma de uma lei universal, qual cada um e todos

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  • deveriam se submeter; mas, antes de tudo, como um princpio deestilizao da conduta para aqueles que querem dar sua existnciaa forma mais bela e realizada possvel (ibid., p.218). A expectativa projetada em direo a uma vida bela, marcando, de certamaneira, a permanncia do indivduo para alm dos limites fsicosde sua existncia, atravs de uma experincia memorvel.

    *

    Na anlise das duas obras que se utilizam do conceito deexperincia, procurei o entendimento das funes desse conceito nointerior do texto em que est inserido, articulando temporalidadesvariadas e organizando-as no tempo de uma narrativa especfica.Tanto em A formao da classe operria inglesa quanto em O uso dosprazeres, o que se objetiva uma ao particular, a constituio desujeitos histricos, porm, no primeiro caso, a experincia orientadado passado para um presente, enquanto que, no segundo caso, elase orienta do presente para um futuro. Todavia, no por si ssuficiente essa simples constatao, a de que Thompson e Foucaultutilizam o conceito de experincia de modo semelhante (enquantocampo de ao para determinado sujeito), embora com umadiferena fundamental de sentido (a experincia em relao aopassado, para um, e ao futuro, para outro). Certamente a tradiointelectual qual ambos se filiam desempenha a preponderanteinfluncia, com conseqncias capitais para o entendimento quefazem da histria, as quais so esboadas em artigo j mencionado(Albuquerque Jr., 2002). Entretanto, elas explicam pouco sobre osentido temporal dado experincia pelos autores, tema restrito dopresente estudo.

    Seria possvel argumentar-se que o apego de Thompson aoromantismo desviaria seu olhar para o passado, enquanto que, paraFoucault, pertinente mais sua biografia, tratar-se-ia de umaconstante recusa em permanecer imvel, no anseio de sempre sedeslocar e inventar novos modos de vida. No obstante, emdecorrncia mesmo da perspectiva aqui assumida, a pergunta que se

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  • coloca menos sobre o porqu de uma tal escolha e mais sobre asimplicaes dela na feitura do texto historiogrfico. Essa opo nodesconsidera o mbito contextual do texto, mas apenas restringe oolhar para a superfcie do escrito, isto , os elementos textuais danarrativa.

    O fato de eles partirem de determinaes tericas diferentesacarreta, por conseguinte, concepes dspares de sujeito e deprocesso de subjetivao. Coerente em sua postura, Thompsonenfatiza a lgica do processo ou o que define como status ontolgicodo passado. Dessa maneira, uma histria una constitui-se a partirde diversas outras histrias, de modo que todas essas histriasdistintas devem ser reunidas no mesmo tempo histrico real, o tempoem que o processo se realizada (Thompson, 1981, p.111). No anseiode explicitar o papel determinante da agncia humana nesse processoconstitudo de inteligibilidade e intenes, segundo os pressupostosdo materialismo histrico ao qual se filia, o historiador ingls acabapor desenvolver uma concepo teleolgica da subjetividade, pois,seguindo seu raciocnio, se a classe estava presente em seu prpriofazer-se, as intenes de faz-la tambm estavam presentes desde oincio de sua formao. Nesse processo linear das ltimas dcadasdo sculo XVIII at precisamente o ano de 1832, a classe aparece,ento, como um sujeito unificado em um presente segundocondies estabelecidas pelo seu espao de experincia, isto , peloseu passado. Se a lgica da ao no implica uma lei, nela est inseridadesde logo uma teleologia do sujeito, de um sujeito comofundamento da histria.

    A expresso teleologia do sujeito tambm utilizada porFoucault, embora com um sentido profundamente desigual. Nestecaso, trata-se de colocar o sujeito em um tempo que no se realiza,jamais se tornando presente, ou seja, um futuro sempre empurradopara mais adiante. Foucault no assume uma identidade do processohistrico que possibilitaria uma concepo unificada de sujeito, masatribui histria uma lgica dos acasos. A genealogia foucaultianaespreita os acontecimentos tidos como sem histria no anseio dereencontrar o momento em que ainda no aconteceram. Isso no

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  • quer dizer, em absoluto, tratar-se de uma pesquisa de origem, estedesdobramento meta-histrico das significaes ideais e dasindefinidas teleologias (Foucault, 1998, p.16). A genealogia apaciente procura dos comeos histricos, l onde no h umaidentidade originria, apenas o disparate dos acasos, daquilo que j comeado; o genealogista, por sua vez, faz descobrir que na raizdaquilo que ns conhecemos e daquilo que ns somos no existema verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente (ibid., p.21).Nessa linha de raciocnio, no h uma origem fundadora para asubjetividade, e o sujeito plenamente constitudo apenas aparececomo disperso em um futuro inatingvel, estando sempre por serealizar na e pela histria.

    Thompson consegue vislumbrar, em um momento especfico,uma classe plenamente formada atravs de um processo de luta,consciente de seus interesses antagnicos em relao a outra classe.Se a experincia narrada era a da formao dessa classe, a narrativapode ser interrompida nesse momento oportuno, o ano de 1832. Jh, configurada no texto, uma ao una e completa: o sujeitohistrico aparece inteiramente constitudo, o que no implica oencerramento de uma histria, mas o fechamento de uma narrativa mas os trabalhadores no devem ser vistos apenas com as miradesde eternidades perdidas. Tambm nutriam, por cinqenta anos ecom incomparvel energia, a rvore da Liberdade. Podemosagradecer-lhes por esses anos de cultura herica (Thompson, 1987a,v.III, p.440). Em Foucault, a ao no atinge seu termo, no emergeem determinado momento do texto um sujeito plenamenteconstitudo; a narrativa no se conclui em um ponto derradeiro, elaapenas indica a direo ao futuro, ao prximo volume da longahistria da experincia ampla da sexualidade. O texto encerrado, ea intriga fecha-se no limite do livro, com um espao configurado deuma ao possvel, mas a experincia da subjetividade permanece edesloca-se: a tica crist ser diferente, e, depois dela, nos prximosvolumes, outros deslocamentos. No interessa a ele a durao daao, mas seu campo de possibilidade; a ao narrada sempre umaao possvel, uma ao a ser realizada.

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  • Na base de tais concepes, esboa-se um lugar particular, comsuas determinaes especficas na construo de cada texto. ParaThompson, seu escopo bastante claro: se a experincia umprocesso com uma lgica prpria e una, em ltima anlise, a lgicado processo s pode ser descrita em termos de anlise histrica;nenhuma analogia derivada de qualquer outra rea pode ter maisque um valor limitado, ilustrativo e metafrico (Thompson, 1981,p.97). Em decorrncia, a conseqncia bvia para ele que omaterialismo histrico deve, neste sentido, ser a disciplina na qualtodas as outras disciplinas humanas se encontram [...] a Histriadeve ser reconduzida a seu trono como rainha das humanidades...(ibid., p.83). bem verdade que, para evitar o imperialismoepistemolgico, Thompson adverte que a disciplina histria tambm a mais imprecisa, devendo sempre estar atenta a seuspressupostos terico-metodolgicos. O que se salienta que a lgicahistrica o prprio discurso de comprovao da histria, aquiloque a legitima como conhecimento. Foucault enftico de outramaneira, e seu escopo justamente o contrrio da defesa de umterritrio. No seu entendimento, trata-se de realizar a crtica daperspectiva metafsica da histria que, segundo o modeloantropolgico de um sujeito fundador e unificado, busca inserir, nacontinuidade de uma origem, um lugar para a identidade. Para ele,saber, mesmo na ordem histrica, no significa reencontrar esobretudo no significa reencontrar-nos. A histria ser efetiva namedida em que ela reintroduzir o descontnuo em nosso prprioser (Foucault, 1998, p.27).

    Em suma, da parte de um, a histria construo de umaidentidade histrica para determinado sujeito, mostrando de ondeele se originou e o que ele ou est para ser; da parte do outro, ela a prtica de rarefao da identidade, do desvanecer do sujeito,mostrando o que ele deixou de ser e o que no mais nem ainda. Oconceito de experincia, da maneira como aparece nos textos de cadaum desses autores, devedor de suas respectivas posturas tericas ede suas diferentes concepes de histria, mas, no interior da intrigaarmada, tanto para um quanto para outro, tal conceito organiza o

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  • sentido da histria e confere significado para a ao realizada e, valedizer, narrada.

    The narrative of experience in Foucault and Thompson

    Abstract. The text analyzes the concept of experience in Michel Foucaults andEdward Thompsons works, specifically the way both organize, in the historicalnarrative, a particular action, characterized by the temporality of the constructionof a historical subject.Keywords: Michel Foucault. Edward Thompson. Experience.

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    Notas

    1 Aviso desde j que no me deterei aqui nos escritos de Ricoeur e Koselleck, o quedemandaria outro artigo especfico. Quando necessrio, indicarei as obras nasquais baseei minhas consideraes.2 Para o prefcio primeira edio de Histria da loucura, ver Foucault (1999,p.140-148); para seu ltimo texto, ver Foucault (2000, p.352-366).3 Este texto uma verso modificada do prefcio traduo americana do livro doepistemlogo francs, O normal e o patolgico, publicado em 1985 no nmero daRevue de Mtaphysique et de Morale que tematizava a obra de Canguilhem.4 Em seu primeiro escrito publicado, uma introduo de 1954 a O sonho e aexistncia, do psicanalista suo Ludwig Binswanger, j aparece a utilizao dotermo, embora trate-se de um texto rejeitado por Foucault. Quanto aoscomentrios, possvel citar alguns mais explcitos: Godinho (1993, p.27-34);Marcos (1993, p.131-136); Souza (2000).5 De acordo com essa noo, Foucault considera que h semelhanas entre osconhecimentos de cada experincia em particular, os quais so profundamentediferentes dos conhecimentos das experincias anterior ou posterior. Desse modo,segundo o autor, a biologia muito mais parecida com a economia poltica, ambaspertencentes experincia epistemolgica moderna, do que com a histria naturalda episteme clssica.6 Para um ensaio fundamental que define a genealogia foucaultiana, ver o captuloNietzsche, a genealogia e a histria, em Foucault (1998, p. 15-38). Ali se encontraum dos pressupostos fundamentais desta prtica: nada no homem nem mesmoseu corpo bastante fixo para compreender outros homens e se reconhecerneles (p. 27).7 Quanto questo da configurao da ao, apenas remeto para os estudos sobrea trplice mmese realizados por Ricoeur (1994).8 Em Discourse and truth: the problematization of parrhesia, Foucault (1983) defineesse procedimento como o estudo sobre o modo como instituies, prticas,

  • hbitos e comportamentos se tornam um problema para as pessoas que secomportam de maneira especfica, que tm certos hbitos, que se engajam emcertos tipos de prticas e que constroem tipos singulares de instituies. Um anomais tarde, em entrevista, complementa tal definio: problematizao no querdizer representao de um objeto preexistente, nem criao pelo discurso de umobjeto que no existe. o conjunto das prticas discursivas ou no discursivas quefaz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e a constitui como objetopara o pensamento (seja sob a forma de reflexo moral, do conhecimento cientfico,da anlise poltica etc.) (Foucault, 1984b, p. 76).9 Para a questo especfica do sujeito nos escritos de Foucault a partir de 1976,segundo o recorte do tema da amizade e subjetividade, ver Ortega (1999). Parauma sntese mais generalizante e por vezes pouco convincente, ver Arajo (2000).10 Postura semelhante de Foucault genealogista, que criticava o fato de que oshistoriadores procuram, na medida do possvel, apagar o que pode revelar, em seusaber, o lugar de onde eles olham, o momento em que eles esto, o partido queeles tomam o incontrolvel de sua paixo (Foucault, 1998, p. 30).11 Para tais questes, limito-me apenas a algumas referncias bibliogrficas: Johnson(1983); Samuel (1984); Anderson (1985); Kaye (1990); o nmero especial Dilogoscom E. P. Thompson, da revista Projeto Histria. Revista do Programa de EstudosPs-Graduados em Histria e do Departamento de histria da PUC/SP, n. 12,out. 1995; e Palmer (1996).12 Para a noo de texto como paradigma de anlise de uma reflexo terica sobrea prtica dos historiadores, remeto a outro artigo no qual a desenvolvo com maispreciso (Nicolazzi, 2003, p. 45-76).13 Sobre esse ponto, ver o captulo Classe como processo e como relao, de Wood(2003, p. 73-98).14 No livro em questo, o autor no se detm sobre a classe contra a qual aconscincia operria construiu-se a si mesma, tomada desde o incio como dadoobjetivo pronto. Nesse sentido, ele desconsidera, em sua anlise, as possveis erecprocas influncias que a instituio de interesses e valores por ambas as classes,em seus processos de formao diferentes mas profundamente imbricados um nooutro, tiveram em suas experincias.15 Em outra ocasio, no texto As peculiaridades dos ingleses, o autor sustenta que adefinio de classe s pode ser feita atravs do tempo, isto , ao e reao, mudanae conflito [...] classe, mesmo, no uma coisa, um acontecimento (Thompson,2001, p. 169).16 William H. Sewell (1990, p.58-59) contrape a essa idia o argumento de quea prpria noo de relao (a classe como relao) profundamente sincrnica,pois a ela convergem fatores dspares em um determinado recorte de tempo eaponta para o fato de que o prprio texto de Thompson, ao tratar diacronicamentedo surgimento da classe, repleto de anlises pontuais e sincrnicas.

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    17 Segundo Keith McClelland (1990, p.3), tal o mrito da obra de Thompson,a saber, de que possvel para as pessoas fazer de si mesmas algo diferente do queaquilo que a histria fez delas. Sewell Jr. (1990, p.65) compartilha tal viso eaponta para a relao desse processo concreto com sua narrativa, sugerindo queThompson no desenvolve uma elaborada teoria do sujeito, mas passa boa partedo tempo construindo sujeitos em sua narrativa.18 Ver o captulo A economia moral da multido inglesa no sculo XVIII (Thompson,1998, p. 150-202). O original desse texto data de 1971, embora a expressoeconomia moral aparea j em A formao da classe operria inglesa, de 1963.19 O autor aponta ainda o fato de que, apesar da influncia regressiva eestabilizadora, o metodismo foi responsvel, embora indiretamente, por umamelhora na auto-estima e na capacidade de organizao do operariado (Thompson,1987a, p. 42 e ss).20 Esse conflito analisado pelo autor tambm em outro trabalho historiogrfico(Thompson, 1987b).21 Ao invs do disparate comum atribudo pelos estudiosos das massas do sculoXIX, Thompson aparece como expoente dos estudos que devolveramracionalidade poltica ao social das multides. Ver, a esse respeito: Julia (1998,p. 217-232); Desan (1995, p. 63-96); e Davis (1990), especialmente o captuloRazes do desgoverno (p. 87-106).22 O prprio autor, em entrevista de 1976, vale-se do termo verso estruturalista,para se referir ao captulo intitulado Explorao, da segunda parte do livro. Salientaainda de modo enftico que nenhum marxista pode no ser estruturalista, emcerto sentido (Thompson, 1984, p. 310). Apesar disso, no texto Folclore,antropologia e histria social, no deixa de traar crticas transposio de modelosestruturalistas da antropologia, isto , de Levi-Strauss, para a anlise historiogrfica,alm da famosa querela contra o estruturalismo althusseriano (Thompson, 2001,p. 248-249).23 A perspectiva cultural do autor ultrapassa a simples formulao terica e incidedecisivamente na prtica, isto , no acesso emprico pelo documento. Thompsonvale-se sobremaneira de fontes tais como relatos, dirios, cartas etc; todo um aparatoque lhe permitisse recuperar as minorias com linguagem articulada.24 Em passagem famosa do livro A formao da classe operria inglesa, Thompson(1987a, v.II, p.18) afirma que a classe operria formou a si prpria tanto quantofoi formada.25 Esse posicionamento motivo de uma das crticas ao livro feitas por PerryAnderson em seu debate no interior do marxismo ingls, na obra Teora, polticae historia. Un debate con E. P. Thompson (1985), cujo ttulo original Argumentswithin English marxism.26 Norberto Ferrera (1999, p.360-375), talvez de maneira apressada, percebe,alm das controvrsias, uma aproximao de Thompson com a chamada viradalingstica, a partir das relaes entre a experincia de classe e seu prprio discurso.

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    27 Conforme o texto As peculiaridades dos ingleses (Thompson, 2001, p. 75-180).Uma dcada aps, em Modos de dominao e revolues na Inglaterra, Thompsonafirma ainda essa idia, deixando, contudo, uma certa incoerncia de pressuposto: preciso levar a srio a autonomia dos acontecimentos polticos e culturais queso, todavia, em ltima anlise, condicionados pelos acontecimentos econmicos(Thompson, 2001, p. 207).28 Nesse sentido, talvez, no seja demais argumentar que a influncia weberianaem sua obra transcende alguns comentrios feitos a respeito dos estudos sobretica protestante e esprito capitalista, no captulo dedicado ao metodismo de Aformao..., influncia essa aparente no papel preponderante da cultura naformulao terica e no olhar prtico de Thompson. Vale citar, por exemplo, umapassagem de um dos mais conhecidos ensaios tericos de Max Weber, segundoquem o conceito de cultura ele mesmo um julgamento de valor e para quem acincia tem por mrito fazer notar que toda atividade e, bem entendido tambm,segundo as circunstncias, a inao, significam por suas conseqncias uma tomadade posio em favor de certos valores e do mesmo modo, em regra geral se bemque hoje em dia se esquece disso voluntariamente contra outros valores (Weber,1965, p. 124).29 So vrios os comentadores que discutem de maneiras diferentes tal conceitoem Thompson. Como exemplos, ver: Anderson (1985); Sewell Jr. (1990); e Renk(1996, p. 78-104).30 Trata-se de um junction concept, cuja juno se desdobra em experincia I, vividano social, e experincia II, percebida e elabora pela conscincia (Thompson, 1984,p.314).31 O espao de experincia diz respeito a um passado tornado presente, marcadopela recordao elaborada racionalmente e tambm pela lembrana gravadainconscientemente. O horizonte de expectativa remete a um futuro feito presente,segundo a perspectiva aberta pela projeo e pela espera. Assim, passado e futuroassentam suas presenas de maneiras distintas, assim como o presente situadona coordenao assimtrica entre o passado e o futuro. Para tais conceitos, remetoa Koselleck (1993, p. 333-357), onde consta a seguinte formulao: experinciae expectativa so apenas categorias formais [...] A antecipao formal de explicara histria com estas expresses polarmente tensas, unicamente pode ter a intenode perfilar e estabelecer as condies das histrias possveis, mas no as histriasmesmas. Trata-se de categorias do conhecimento que ajudam a fundamentar apossibilidade de uma histria.

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