A MORTE COMEÇA ANTES DO TIRO: UMA REFLEXÃO SOBRE O ... · LORDE, A. A transformação do...
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A MORTE COMEÇA ANTES DO TIRO: UMA REFLEXÃO SOBRE O PROCESSO DE SILENCIAMENTO NO CONTEXTO ACADÊMICO
Paulo Vitor Palma Navasconi (Universidade Estadual de Maringá)
Murilo dos Santos Moscheta (Universidade Estadual de Maringá)
Resumo
A presente proposta tem como objetivo apresentar um relato de reflexão e experiência de um Psicólogo negro em um programa de doutorado em Psicologia na Universidade Estadual de Maringá. Nestas reflexões pontuamos a necessidade e a urgência de repensarmos aquilo que damos como certo em nossa maneira de perceber e conceber o mundo e compreender como as descrições e formas de pensar funcionam, para quê servem, e em que situações e para quem. É preciso suspeitar do óbvio. Para algumas pessoas torna-se natural, óbvio e confortável tomarmos o conhecimento eurocêntrico, branco, colonizador como sendo nosso conhecimento representativo, mas esta realidade seria ela natural? Palavras-chave: Alienação; Descolonizar; Psicologia; Silêncio; Violência. Introdução
(...) As minhas memórias não são doces. São amargas.
Embora pudessem ter sido memórias de orgulho se estas
imagens me tivessem sido mostradas antes (...).
Infelizmente passei boa parte da minha vida vivendo numa ilusão, isto é, a
construção da minha biografia esteve imersa num processo ilusório e de alienação,
contudo, arrisco-me a dizer que você leitor/a também vivenciou ou ainda vivencia um
processo ilusório, uma vida que infelizmente não é bem assim como acreditamos
que fosse.
Desde muito cedo aprendi que os meus semelhantes eram unicamente
escravos e consequentemente pessoas inferiores. Desde muito cedo aprendi que eu
não era tão belo suficiente para ser reconhecido e valorizado socialmente. Desde
muito cedo aprendi que a minha cor, meu cabelo, meus traços e minha
ancestralidade não eram dignas de positividade e sim características de
negatividade. Desde muito cedo tive que aprender a me comportar enquanto um
corpo silencioso e a me silenciar, posto que a minha voz estava ancorada enquanto
uma voz não digna aos ouvidos de um grupo maior.
Mas o estranho destas lembranças é justamente a ideia de que eu nunca fui
tímido, e sim silenciado (grifos meus). Se nas minhas memórias eu me enxergava
enquanto uma criança extremamente falante, com autoestima e que minimamente
gostava de mim, com o tempo esta criança falante foi se sucumbindo e aos poucos falecendo. A sociedade tentou me matar (grifos meus). Com o tempo eu fui me
silenciando e me invisibilizando por conta de uma determinação histórica na qual
para mim ser o semelhante foi necessário que me silenciasse, ou seja, calasse.
Calei-me e acreditei numa história contada sob a lógica da voz única, isto é,
eu não me via representado nos livros didáticos, eu não me via representado nas
grandes mídias, nos brinquedos, na história, na cultura, aliás, a representação da
minha cor estava presente, mas era apenas para reforçar a lembrança de que
pessoas semelhantes a mim eram sujeitos inferiores e desprovidos de humanidade,
assim passei a construir lembranças, histórias e memórias amargas, tristes e
violentas.
Com isto, quando afirmo que fui silenciado isto denota justamente um projeto
de sociedade, ou seja, um projeto que visa e pauta-se pelo esquecimento de uma
história colonial, de uma história fragmentada, violenta, brutal, segregacionista,
genocida, assassina e consequentemente alienante, pois me faz crer que, por
exemplo, o processo do colonialismo foi por si só um processo de valorização, afinal,
possibilitou avanços, progressos e desenvolvimentos. Mas me questiono: avanços,
progressos e desenvolvimentos para quem?
C o r p o S i l e n c i a d o: marcado para morrer?
Não é por acaso que inicio essa proposta afirmando que meu corpo e parte
da minha biografia foi uma ilusão. Afinal, o que tento sinalizar aqui é que denomino
como sendo constituição do projeto colonial, ou seja, um projeto de linguagem, de
narrativas, de terminologias, de arquiteturas e consequentemente de construções
subjetivas pautadas numa relação de poder e de inferiorização que me faz crer que
existe apenas um único saber e, por conseguinte romantizar um processo violento
tal como foi o processo colonial.
Contudo, a partir do momento em que consigo deslocar e romper com o
silêncio que fora imposto historicamente, instaura-se o medo apreensivo de que ao
romper com o silêncio a dissociação estará posta, ou seja, histórias e experiências
que foram e têm sido negadas, reprimidas e mantidas como segredos passarão a
existir e, consequentemente a ganharem formas. Os segredos como a escravidão, o
colonialismo e o racismo deixaram de serem segredos, uma vez que corpos
desobedientes passam a romper com o silêncio e a nomear as violências e, por
conseguinte, a contar uma história da qual muito se nega, mas que esteve presente
na nossa constituição.
Lorde (1977), afirma ser de suma importância rompermos com os silêncios
que nos foram impostos, pois, caso ao contrário, o peso do silêncio vai acabar nos
engasgando. E, neste ponto eu enquanto doutorando em Psicologia afirmo e
questiono: a Psicologia enquanto uma ciência que é construtora de saberes,
realidades e subjetividades tem suma importância neste processo de ruptura com os
silêncios impostos historicamente.
Haja vista que, romper com o silêncio também é romper e escancarar
realidades das quais, a Psicologia contribuiu e contribui para manutenção, por
exemplo, o curso/profissão de Psicologia é composto majoritariamente por mulheres:
quantas autoras mulheres estão nas grades curriculares? Quantas mulheres negras
compõem as grades curriculares? Quantas docentes negras formam a equipe dos
docentes nos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia?
Com isto, romper com o silêncio também é romper com privilégios, pois há um
privilégio branco que eu não tenho, as pessoas brancas têm acesso às
determinadas estruturas que eu não tenho, isto é, a branquitude tem acesso a uma
representação que eu não tenho. Basta abrirmos os jornais, livros didáticos e
revistas eu não me vejo representado, a minha voz não é representada, a minha
perspectiva não é representada. Sou constantemente confrontado com uma imagem
que não é a minha, sou constantemente confrontado com a falta de representação,
ou seja, ser representado passa a ser um privilégio (KILOMBA, 2012, tradução
nossa).
Desta maneira, para transformar e descolonizar essa realidade nós temos,
sem demora, que mudar as configurações do conhecimento, mas para que este
empreendimento seja realizado, temos que mudar as configurações do poder, ou
seja, as pessoas que geralmente não têm acesso ao centro e que estão nas
margens, passem a adentrar nessas relações de poder para decidirem, pontuarem e
colocarem suas perspectivas, seus temas, suas linguagens, suas visualizações, ou
seja, sua voz, pois só assim poderemos minimamente pensar e vislumbrar a
possibilidade de descolonizar o pensamento, isto é, a possibilidade de se vislumbrar
uma pluralidade de vozes, conhecimentos e saberes.
No entanto, o deslocamento, a ruptura e a transformação na maioria das
vezes, não acontecem de maneira pacífica, com isto, entendo este movimento
enquanto um espaço de tensionamentos, ou seja, é uma luta contra a norma, assim
como afirma Mombaça (2016), para que possamos romper com a norma
universalista que considera uma única voz e um único corpo, é necessário
guerrearmos, logo não produz guerra sem violências.
Considerações finais Comecei a arguição deste resumo afirmando o quanto o sistema colonialista é
extremamente agressivo, posto que tende a posicionar os corpos abjetos fora do
sistema da humanidade, e por conseguinte silencia, apaga e exclui de maneira
brutal e violenta. Kimbola (2012) afirma que este processo colonial é
excessivamente violento e traumático, uma vez que esta agressão traumática
corresponderia a uma dor a nível psíquico, isto é, uma dor tão intensa que a pessoa
não consegue organiza-la, elaborá-la ou nomeá-la para dar uma lógica à violência
que esta pessoa vivenciou e vivencia.
E consequentemente quando não consigo nomear aquilo que vivenciei eu sou colocado fora da humanidade, logo penso que descolonizar o pensamento, a
história e as vivências referem-se a um processo necessário, fundamental e urgente, todavia, partir e romper com esta história dói, logo é fundamental que
possamos distribuir a dor que foi imposta apenas há uma parcela da população.
Para isto, convido você que está lendo este projeto imaginar que está página
corresponderia a um espelho e então pergunto: O que está sendo refletido neste
espelho? O que você enxerga neste espelho? Você toma este reflexo como a
norma? Referências
KILOMBA, G. Plantation Memories: Episodes of everyday Racism. Munster: Unrast Verlag, 2012. LORDE, A. A transformação do silêncio em linguagem e ação. Comunicação de Audre Lorde no painel “Lésbicas e literatura” da Associação de Línguas Modernas em 1977. MOMBAÇA, J. Rastros de uma submetodologia indisciplinada. Concinnitas, ano 17 volume 01, número 28, 2016.