A Mimese Na Poética de Aristóteles

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15 A mimese na poética de Aristóteles adernos Cespuc Belo Horizonte - n. 22 - 2013 A mimese na poética de Aristóteles Carlos Vinícius Teixeira Palhares* A Poética (1959) de Aristóteles tem importância capital na história do pensamento humano e da crítica literária. Considera-se que, ainda hoje, esta obra permaneça um marco para as teorias estética literária e teatral e, até os dias atuais, são poucas as obras sobre poesia que abrigam tantas portas para compreensão. Sob o ponto de vista aqui elencado para a análise, isto é, os elementos de teoria literária, ressaltamos que a análise aristotélica se dá acerca da arte estética poética enquanto aquela que produz ou constrói ou cria alguma coisa. Para tanto, esta é caracterizada ativa e sistematicamente como uma forma de imitação, a mimese. O que Aristóteles faz é lançar um conceito fundamental da mimética como marca distintiva da natureza imitativa da arte literária, levando em consideração o modo como se narra, os critérios de eficácia e excelência da narração e suas categorias como foco, tempo, espaço e personagem. A tragédia seria, então, imitação de uma ação completa com princípio, meio e fim, ação que deveria comportar certa extensão e seu objetivo seria a da catarse, ou Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais CEFET-MG. Poética de Aristóteles tem importância capital na história do pensamento humano e da crítica literária. O termo mimese é constantemente utilizado para designar o processo estético de composição do mito que não é cópia ou reprodução de acontecimentos ou coisas pré-determinadas. Neste artigo faremos uma análise em que a mimese não é dada como simples e pura duplicação do real, mas como algo capaz de criar o existente através de novas correlações, proporcionando bases para possíveis interpretações do mesmo. O modelo da estética mimética por excelência será buscado na tragédia e, portanto, não podemos deixar de apontar para o mito trágico como base necessária para o estudo da mimese enquanto uma ação correspondente a um todo de certa extensão e uno. Após essas considerações, observaremos que a mimese acaba por reunir duas exigências estéticas, quais sejam a de reprodução reconhecível do modelo original e a de sua elevação, sobretudo ética. Palavras-Chave: Mimese. Processo estético. Aristóteles. Trágico. A Resumo

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    adernosCespucBelo Horizonte - n. 22 - 2013 A mimese na

    potica de Aristteles

    Carlos Vincius Teixeira Palhares*

    A Potica (1959) de Aristteles tem importncia capital na histria do pensamento humano e da crtica literria. Considera-se que, ainda hoje, esta obra permanea um marco para as teorias esttica literria e teatral e, at os dias atuais, so poucas as obras sobre poesia que abrigam tantas portas para compreenso. Sob o ponto de vista aqui elencado para a anlise, isto , os elementos de teoria literria, ressaltamos que a anlise aristotlica se d acerca da arte esttica potica enquanto aquela que produz ou constri ou cria alguma coisa. Para tanto, esta caracterizada ativa e sistematicamente como uma forma de imitao, a mimese. O que Aristteles faz lanar um conceito fundamental da mimtica como marca distintiva da natureza imitativa da arte literria, levando em considerao o modo como se narra, os critrios de eficcia e excelncia da narrao e suas categorias como foco, tempo, espao e personagem. A tragdia seria, ento, imitao de uma ao completa com princpio, meio e fim, ao que deveria comportar certa extenso e seu objetivo seria a da catarse, ou

    Centro Federal de Educao Tecnolgica de Minas Gerais CEFET-MG.

    Potica de Aristteles tem importncia capital na histria do pensamento humano e da crtica literria. O termo mimese constantemente utilizado para designar o processo esttico de composio do mito que no cpia ou reproduo de acontecimentos ou coisas pr-determinadas. Neste artigo faremos uma anlise em que a mimese no dada como simples e pura duplicao do real, mas como algo capaz de criar o existente atravs de novas correlaes, proporcionando bases para possveis interpretaes do mesmo. O modelo da esttica mimtica por excelncia ser buscado na tragdia e, portanto, no podemos deixar de apontar para o mito trgico como base necessria para o estudo da mimese enquanto uma ao correspondente a um todo de certa extenso e uno. Aps essas consideraes, observaremos que a mimese acaba por reunir duas exigncias estticas, quais sejam a de reproduo reconhecvel do modelo original e a de sua elevao, sobretudo tica.

    Palavras-Chave: Mimese. Processo esttico. Aristteles. Trgico.

    A Resumo

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    mais exatamente obter, por meio da piedade e do terror, a purificao ou purgao da emoo teatral. Ressaltamos que o filsofo legou um conceito chave, no s para a filosofia e a esttica, mas tambm para a teoria literria, que o de catarse.

    A partir da observao de que para Aristteles uma causa fundamental que d origem arte potica o fato de que o homem possui tendncia congnita para imitar e de que, em tais imitaes, encontra prazer, comearemos este artigo pela discusso acerca da noo de mimese apresentada na Potica. O filsofo compreende que o poeta assim se denomina, no porque simplesmente faz poesias em versos, mas porque, em virtude de sua capacidade criadora (mimtica) cria mitos/fbulas. Por sua vez, esses so sempre aes acerca do comportamento humano e considerando que os indivduos no seguem modelos reguladores, agem sem regras e com grande variedade de atitudes, temos a formao de uma gama de possibilidades para a inveno literria que, embora ficcionais, constituem-se como plausveis e/ou verossmeis em relao aos eventos, ao factual, ao terico.

    Aristteles examina as condies em que esse resultado esttico mais seguramente obtido e estuda obras que melhor asseguram esse prazer. Investiga, tambm, a questo da escolha do personagem em vista da melhor qualidade da tragdia, considerando, principalmente, seu desenlace. Da que nos parece que os incidentes na tragdia produzem seu efeito mximo quando se verificam de maneira inesperada e a ttulo de consequncias uns dos outros, sendo seus elementos a reviravolta da fortuna e a descoberta da identidade das personagens.

    A poesia e as artes em geral, contudo, no dependem estritamente do contedo de verdade do seu objeto. Caracterizam-se como poesia e arte as produes que se tornam capazes de acrescentar ao objeto, no caso da poesia esttica, algo mais. Em um sentido mais amplo, o campo de operao das representaes e/ou imaginaes poticas o ficcional. dado, ento, que o termo mimese constantemente utilizado para designar o processo de composio do mito que no cpia ou reproduo de acontecimentos ou coisas pr-determinadas. Da verificamos tambm que, diferentemente do que foi considerado por Plato, para o estagirita a mimese no representa uma mera imitao: trata-se, na verdade, de uma atividade que, ao mesmo tempo que reproduz o real, na possibilidade, o supera, o aprimora, o melhora, modificando e recriando-o, ou seja, o termo foi concebido no no sentido da cpia, mas da criao de novos parmetros para a observao do real. Acreditamos, dessa forma, que a mimese no dada como simples e pura duplicao do real, mas como algo capaz de criar o existente atravs de novas correlaes, proporcionando bases para possveis interpretaes do mesmo.

    O modelo da esttica mimtica por excelncia ser buscado na tragdia e, portanto, no podemos deixar de apontar para o mito trgico como base necessria para o estudo da mimese enquanto uma ao correspondente a um todo de certa extenso e uno. De fato, o todo ser descrito como algo que possui princpio, meio e fim, constituindo uma elaborao una, ordenada e determinada pelo necessrio: a tragdia

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    a imitao de uma ao importante e completa. (ARISTTELES, 1959, p. 287). Quanto importncia que Aristteles dava mimese e ao como elementos fundamentais do Trgico, leiamos o captulo VI da Potica:

    A imitao (mimese) de uma ao o mito (fbula)... A parte mais importante a da organizao dos fatos, pois a tragdia a

    imitao, no de homens, mas de aes, da vida, da felicidade e da

    infelicidade (pois a infelicidade resulta tambm da atividade)... Da

    resulta serem os atos e a fbula a finalidade da tragdia. Sem ao,

    no h tragdia. (ARISTTELES, 1959, p. 299).

    H sempre uma razo maior que, se no justificada, pelo menos fornece alguma explicao ao expectador. Em grande parte dos casos, o desenrolar lgico de antecedentes por si j calamitosos que se constituiro como desencadeadores da tragdia. Parece ser simplria a constatao de que o fato elucidativo da ao pode ser um fator externo ao enredo da trama. Mais ilustrativo para demonstrar tal situao a histria de dipo Rei, cujo fator causal dos flagelos de seu destino reside tambm no que j havia sido profetizado para ele e no fato de j ter sido amaldioado, inclusive em suas futuras geraes. Isso , os flagelos de seu destino residem num fator externo ao desenvolvimento do enredo da pea. Esse encadeamento acaba por nos revelar, de um lado, certo senso de justia e, de outro, certa inteno moral, educativo, no sentido esttico, do tragedigrafo.

    Aps essas consideraes, observamos que a mimese acaba por reunir duas exigncias estticas, quais sejam a de reproduo reconhecvel do modelo original e a de sua elevao, sobretudo tica. Nesse sentido, a tragdia, atravs de uma maneira natural e verossmil/ plausvel de compor os fatos, tornar-se-ia educativa pela imitao de personagens e aes importantes, alm de ser um objeto capaz de suscitar prazeres especficos com efeitos voltados para a obteno de sentimentos de compaixo e terror, surpresa e admirao, divertimento e indignao. E justamente nesse ponto que consideramos a funo catrtica da tragdia a catarse, que uns traduzem por purificao e outros por purgao. De acordo com Aristteles, a tragdia ao apresentada, no com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixo e o terror, tem por efeito obter a purgao dessas emoes. (ARISTTELES, 1959, p. 98). O mesmo autor complementa:

    A mais bela tragdia aquela cuja composio deve ser, no simples,

    mas complexa, aquela cujos fatos, por ela imitados, so capazes de

    excitar o temor e a compaixo (o terror e a piedade)... Em primeiro

    lugar, bvio no ser conveniente mostrar pessoas de bem passar

    da felicidade ao infortnio... nem homens maus passando do crime

    prosperidade... nem um homem completamente perverso deve

    tombar da felicidade no infortnio (tal situao pode suscitar em

    ns um sentimento de humanidade, mas sem provocar compaixo

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    nem temor- terror nem piedade)... Resta entre estes casos extremos

    a situao intermediria: a do homem que, no se distinguindo por

    sua superioridade (virtude) e justia, no obstante no mau nem

    perverso, mas cai no infortnio em consequncia de qualquer falta.

    (ARISTTELES, 1959, p. 313).

    Para tanto, seria fundamental que o artista induzisse os leitores/expectadores aos sentimentos de aprovao ou desaprovao e de simpatia ou antipatia em relao s aes das personagens. Para o artista literrio o essencial a emoo em relao ao apresentado e no seu contedo informacional, sendo, portanto, na catarse que encontraramos os propsitos da literatura enquanto ela capaz de engendrar bons efeitos ou resultados desejveis em relao regulao das qualidades e intensidades das emoes.

    Como j expusemos, ao elaborar os mitos/fbulas h, na verdade, a imitao das aes humanas na busca de um aperfeioamento das mesmas, a partir da possibilidade inerente a tais imitaes. E, como o objeto da imitao tambm se diferencia nas artes poticas, na medida em que imitar os homens em ao, melhores, piores ou iguais a ns, decorreria exatamente de seu carter criador, que a mimese seria capaz de unir o ser humano s coisas, concedendo arte uma consequente capacidade de gerar uma experincia interior. Nessa perspectiva, Aristteles afirma que os personagens trgicos so melhores do que ns, e os cmicos, piores. Ao dizer isso, ele o faz em relao grandeza, elevao da alma do personagem trgico, e no sua pureza. O personagem trgico, homem de carter excepcional e, por isso mesmo, personalidade na qual se misturam o bem e o mal, levado, pela prpria grandeza de suas paixes, de suas qualidades e de seus defeitos, a um conflito.

    O que observamos que dentro do exposto pelo filsofo estagirita, mudana das personagens, efetuar-se-ia uma postura diferente na alma dos espectadores que experimentariam igualmente os sentimentos de compaixo e terror, gerando a catarse. Com isso, percebemos que o prazer encontrado na imitao, na representao de uma ao se trata tambm de um prazer intelectual, baseado na identificao do objeto imitado sua forma natural conhecida e no reconhecimento dessa semelhana. A arte imitativa escolhe, procurando reproduzir o geral e o necessrio. Sob as aparncias exteriores, ela descobre a essncia interna e ideal das coisas. Por meio da tragdia, as emoes violentas e penosas seriam purificadas e transformadas em deleite esttico e intelectivo, pois uma vez ocorrendo o processo catrtico, o homem seria libertado das emoes passionais, alcanando o equilbrio emocional e experimentando a sensao de sua alma se torna aliviada e pacificada.

    Ora, o comportamento moral e a mais habitual falha do homem se colocam no segundo caso. Os homens agem pelos conhecimentos ticos, mas nem sempre os conhecem ou querem aplic-los plenamente. Portanto, se a ao da tragdia deve conformar-se com os princpios da ao moral, claro que no pode considerar indivduos impecveis, cujas faltas no so por definio se no o infortnio, nem o indivduo

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    depravado, cuja prtica da maldade estranha gente comum. A continuidade do estatuo moral do personagem e do espectador, isto , o homem comum enquanto personagem, permite a identificao de um com o outro e, em seguida, os efeitos demandam o terror (se h medo em relao ao semelhante porque podemos nos colocar em seu lugar) e a piedade.

    O curso de ao que Aristteles considera tpico da tragdia ainda povoado de sugestes valiosas de toda espcie para a esttica. A realidade esttica aristotlica no se confunde com nenhum pensamento estreito, pois o que ela empreende a revelao da prpria essncia das coisas. Para o pensador grego, ela contm verdades to altas e nobres quanto as que o idealismo pressente, transferindo-as, porm exclusivamente para o mundo superior das essncias. Essas realidades podem ser alcanadas no entrelao com a prpria corrente de vida dos seres, tambm inesgotvel e profunda.

    So vrias as perspectivas de leitura da Potica. A pluralidade de leituras dessa obra demonstra a sua atualidade, considerando no s as reas de conhecimento que envolve, mas, tambm, seno principalmente, o leitor que, a cada releitura, encontra novos aspectos para observar e desfrutar. Muitos pontos acabam por nos revelar aspectos da realidade, da poltica, da tica e, at mesmo, da trgica, as quais tm. Entretanto, a relao de humanidade, a dimenso humana que estabelece com o interlocutor que faz a obra em anlise atemporal e passvel de interpretaes vrias.

    AbstractThe Poetic of Aristotle has capital importance in the history of human thought and literary criticism. The term mimesis is constantly used to describe the aesthetic process of composition of the myth that is not copying or reproduction of predetermined events or things. In this article we will analyze mimesis not as pure and simple duplication of the real, but as something capable of existing by creating new relationships, providing bases for possible interpretations of it. The tragedy is the model of mimetic aesthetic and the tragic myth is the necessary basis for the study of mimesis. After these considerations, we will note that mimesis gathers two aesthetic requirements, which are the recognizable reproduction of the original model and its elevation above all ethical.

    Keywords: Mimesis. Aesthetic process. Aristotle. Tragic.

    Referncias

    ARISTTELES. Potica. Traduo de Antnio Carvalho. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1959.

    HALLIWELL, S. The poetics of Aristotle. London: Duckworth, 1986