A Luz do Baile

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A Luz do Baile – Monteiro Lobato 1918. Despercebidos de todo passaram-se este mês dois aniversários. A 2 de dezembro nasceu, a 5 de dezembro faleceu D. Pedro II. Quem foi este homem que não deixou lembranças neste país? Apenas um Imperador… Um Imperador que reinou apenas durante 58 anos… Tirano? Despótico? Equiparável a qualquer facínora coroado? Não. Apenas a Marco Aurélio. A velha dinastia bragantina alcançou com ele esse apogeu de valor mental e moral que já brilhou em Roma, na família Antonina, com o advento de Marco Aurélio. Só lá, nesse período feliz da vida romana, é que se nos depara o sósia moral de Pedro II. A sua função no formar da nacionalidade brasileira não está bem estudada. Era um ponto fixo, era uma coisa séria, um corpo como os há na natureza, dotados de força catalítica. Agia pela presença. O fato de existir na cúspide da sociedade um símbolo vivo e ativo da Honestidade, do Equilíbrio, da Moderação, da Honra e do Dever, bastava para inocular no país em formação o vírus das melhores virtudes cívicas... O juiz era honesto, senão por injunções da própria consciência, pela presença da Honestidade no trono. O político visava o bem público, se não por determinismo de virtudes pessoais, pela influência catalítica da virtude imperial. As minorias respiravam, a oposição possibilizava- se: o chefe permanente das oposições estava no trono. A justiça era um fato: havia no trono um juiz supremo e incorruptível. O peculatário, o defraldador , o político negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso, o mau cidadão enfim, e mau por força de pendores congeniais, passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num só deslize. A natureza o propelia ao crime, ao abuso, à extorsão, à violência, à iniquidade – mas sofreava as rédeas aos maus instintos a simples presença da Equidade

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A Luz do Baile de Monteiro Lobato

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A Luz do Baile Monteiro Lobato 1918.

Despercebidos de todo passaram-se este ms dois aniversrios. A 2 de dezembro nasceu, a 5 de dezembro faleceu D. Pedro II. Quem foi este homem que no deixou lembranas neste pas? Apenas um Imperador Um Imperador que reinou apenas durante 58anos Tirano? Desptico? Equiparvel a qualquer facnora coroado? No.

Apenas a Marco Aurlio.

A velha dinastia bragantina alcanou com ele esse apogeu de valor mental e moral que j brilhou em Roma, na famlia Antonina, com o advento de Marco Aurlio. S l, nesse perodo feliz da vida romana, que se nos depara o ssia moral de Pedro II.

A sua funo no formar da nacionalidade brasileira no est bem estudada. Era um ponto fixo, era uma coisa sria, um corpo como os h na natureza, dotados de fora cataltica.

Agia pela presena.

O fato de existir na cspide da sociedade um smbolo vivo e ativo da Honestidade, do Equilbrio, da Moderao, da Honra e do Dever, bastava para inocular no pas em formao o vrus das melhores virtudes cvicas...

O juiz era honesto, seno por injunes da prpria conscincia, pela presena da Honestidade no trono. O poltico visava o bem pblico, se no por determinismo de virtudes pessoais, pela influncia cataltica da virtude imperial. As minorias respiravam, a oposio possibilizava-se: o chefe permanente das oposies estava no trono. A justia era um fato: havia no trono um juiz supremo e incorruptvel. O peculatrio, o defraldador , o poltico negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionrio relapso, o mau cidado enfim, e mau por fora de pendores congeniais, passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num s deslize. A natureza o propelia ao crime, ao abuso, extorso, violncia, iniquidade mas sofreava as rdeas aos maus instintos a simples presena da Equidade e da Justia no trono.

Ignorvamos isso na Monarquia.

Foi preciso que viesse a Repblica, e que alijasse do trono a fora cataltica, para patentear-se bem claro o curioso fenmeno.

A mesma gente, o mesmo juiz, o mesmo poltico, o mesmo soldado, o mesmo funcionrio at 15 de novembro honesto, bem intencionado, bravo e cumpridor dos deveres, percebendo, na ausncia do imperial freio, ordem de soltura, desaamaram a alcatia dos maus instintos mantidos em quarentena. Da, o contraste dia a dia mais frisante entre a vida nacional sob Pedro II e a vida nacional sob qualquer das boas intenes quadrienais, que se revezam na curul republicana.

Pedro II era a luz do baile.

Muita harmonia, respeito s damas, polidez de maneiras, jias de arte sobre os consolos, dando ao conjunto uma impresso genrica de apuradssima cultura social.

Extingue-se a luz. As senhoras sentem-se logo apalpadas, trocam-se tabefes, ouvem- se palavreados de tarimba desaparecem as jias

Como, se era a mesma gente!

Sim, era a mesma gente. Mas gente em formao, com virtudes cvicas e morais em incio de cristalizao.

Mais um sculo de luz acesa, mais um sculo de catlise imperial, e o processo cristalisatrio se operaria completo. O animal, domesticado de vez, dispensaria o aamo. Consolidar-se-iam os costumes; enfibrar-se-ia o carter. E do mau material humano com que nos formamos sairia, pela criao de uma segunda natureza, um povo capaz de ombrear-se com os mais apurados em cultura.

Para esta obra moderadora, organizadora, cristalizadora, ningum mais capaz do que Pedro II; nenhuma forma de governo melhor do que sua monarquia.

Mas sobrevm, inopinada, a Repblica.

Idealistas ininteligentes, emparceirados com a traio e a inconscincia da fora bruta, substabelecem-se numa procurao falsa e destroem a obra de Pedro II em nome da nao.

A nao no reage, inibida pela surpresa, e tambm porque lhe acenam logo com um programa de maravilhas, espcie de paraso na terra.

sempre assim. No variam com a longitude nem com a latitude os processos psicolgicos de assalto ao poder.

Aqui, assaltado o poder e conquistadas as posies, houve um geral arrancar de mscaras: Enfim, ss.

O Alagoas levava a bordo a luz importuna, a luz que empatava. E comeou a revista de ano que h trinta anos diverte o pas.

Que diverte, mas que envenena.

Que envenena e arruna.

O que havia de cristalizao social dissolve-se; volta ao estado de gelia.

Sucedem-se na cena os atores, gingam-se as mesmas atitudes, murmuram-se as mesmas mensagens, reeditam-se eternas promessas.

O povo, cansado e descrente, farto de uma palhaceira destituda da mnima originalidade, cochila nas arquibancadas. Nem aplaude, nem assobia; dorme e sonha, entre outras coisas, com o inopinado surto em cena de um delegado de polcia louro e dez praas de uniforme desconhecido, que ponham fim a pantomima.

No intervm para realizar por mos prprias o basta, porque se sente to gelatinoso como os atores. Nada o galvaniza, no o espanta nenhum jangotismo de tony.

Abudistado, assiste at o indecoroso matar-se em massa.

As cenas do ano 1900, desenroladas na capital da Repblica, durante a ltima epidemia, so os noves fora nada da obra do 15 de novembro. A mquina governamental, carssima, no funciona nos momentos de crise. No feita para funcionar, seno para sugar com fria acarina o corpo doente do animal empolgado.

De norte a sul o povo lamuria a sua desgraa e chora envergonhado o que perdeu.

Tinha um rei. Tem strapas.Tinha dinheiro. Tem dvidas.Tinha justia. Tem cambalachos de toga.Tinha parlamento. Tem antessalas de fmulos.Tinha o respeito do estrangeiro. Tem irriso e desprezo.Tinha moralidade. Tem o impudor deslavado.Tinha soberania. Tem cnsules estrangeiros assessorando ministros.Tinha estadistas. Tem pegas.Tinha vontade. Tem medo.Tinha leis. Tem estado de stio.Tinha liberdade de imprensa. Tem censura.Tinha brio. Tem fome.Tinha Pedro II. Tem No tem!Era. No .

Numa poca terrvel para a vida universal, em que cada pas procura chefiar-se por intermdio dos homens de suprema energia, Wilson, Loyd George, Clemenceau, Ebert, o Brasil apalpa pescoo e no sente cabea. Chegou a maravilha teratolgica duma acefalia indita.

Anos atrs foi apresentado Cmara dos Deputados um projeto de lei mandando trasladar os restos de Pedro II para a terra natal. A conscincia desse ramo do Legislativo, num assomo de revivescncia, votou, em apoteose, a lei. Mauricio de Lacerda definira, nesse dia, a poltica republicana, como feita de alcouces e corrilhos.

A Cmara desmentiu-o por cinco votos. Mas o Senado confirmou-lhe o asserto, por quase unanimidade. No convinha turba desarcorhamphus, pacificamente acomodada em torno da presa a devorar a Ptria a transladao dos restos mortais. Quem sabe, conservariam essas cinzas algo da misteriosa fora que caracterizou em vida Pedro II?

E viriam elas agindo pela presena perturbar a paz do festim? Nada, no perturbemos nossa digesto pensou o Senado. E o projeto caiu.

O Brasil uma nao a fazer. Ou refazer, j que destruram os alicerces da primeira tentativa sria. Cortado o fio da evoluo natural, baralhados os materiais, dispensados os operrios honestos e hbeis, hipotecadas as suas rendas, a poltica de hoje vive de uma indstria nova: aluguel da conscincia. Cada empresa estrangeira aluga uma srie. De uma, a mais poderosa de todas, sabido que chegou perfeio de fichar comercialmente o preo de homens pblicos.

a deliquescncia final, o esverdear este estado de coisas , entretanto, galvanizvel. Bastaria repor na mquina a pea mestra que tudo coordena, essa forca cataltica sem a qual nenhum povo como o nosso, instvel, em formao, produto dos mais dspares elementos tnicos, conseguiu jamais alcanar as etapas sucessivas da nacionalidade.

Um homem, uma continuidade de ao, um pulso o bisneto de Marco Aurlio ou Rosas.

A fora mansa que norteia o evoluir ou a fora violenta que arrasa, desespera, e cria pela dor o instinto de defesa.

Tudo prefervel ao reino manhoso dos vermes de boca dupla uma que mente ao povo, outra que o ri at aos ossos.

Esperemos em Anhang, o deus brasileiro. Peamos-lhe, neste ms dos aniversrios imperiais, que ressuscite e reponha no seu lugar o esprito bom que neutralizava a influncia dos espritos maus.

a nossa derradeira esperana, Anhang