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ISSN 2176-1396 A INTERFERÊNCIA DA LÍNGUA DE SINAIS NA AQUISIÇÃO DA ESCRITA DE FILHOS OUVINTES DE PAIS SURDOS Eliziane Manosso Streiechen 1 - UNICENTRO Gilmar de Carvalho Cruz 2 - UNICENTRO Cibele Krause-Lemke 3 - UNICENTRO Eixo Psicopedagogia, Educação Especial e Inclusão Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Este artigo tem como objetivo discutir a interferência da língua de sinais na aquisição da linguagem escrita de um sujeito ouvinte (10 anos de idade) filho de mãe surda. A pesquisa foi realizada em uma cidade do interior do Estado do Paraná, onde esse sujeito reside com seus pais e avós maternos. Na família, desse sujeito, há cinco línguas envolvidas: Ucraniana, Portuguesa, Alemã, Inglesa e a Libras. Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, de cunho etnográfico de investigação, apoiada em um estudo de caso. Os registros foram coletados por meio de entrevistas realizadas com professores, psicóloga e equipe pedagógica das escolas, onde o sujeito estuda ou estudou e com o próprio sujeito. Os resultados confirmam a tendência de que a maioria dos filhos ouvintes de pais surdos tornam-se bilíngues, pelo fato de dominarem duas línguas (a de sinais, utilizada pelos pais surdos e a língua oral, utilizada pelos ouvintes que os rodeiam). A língua de sinais pode interferir no processo de aquisição da linguagem escrita desses alunos, visto que, ao internalizarem a estrutura sintática dessa língua e também da língua portuguesa, natural e simultaneamente, eles acabam misturando essas línguas no momento da elaboração da escrita. Isso pode gerar consequências negativas no processo escolar, uma vez que os aspectos da cultura surda, vivenciados tanto pelos pais surdos quanto pelos filhos ouvintes, são totalmente negligenciados pela maioria das escolas brasileiras. Pretende-se, com este trabalho, contribuir com a área da Educação ao se destacar que os filhos de pais surdos, apesar de não carregarem o estereótipo da deficiência, necessitam de um olhar especial e diferenciado por parte da comunidade escolar, a fim de que esses sujeitos não sejam excluídos de um efetivo processo de ensino e aprendizagem. Palavras-chave: Filhos ouvintes de pais surdos. Libras. Surdos. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa /PR. E- mail: [email protected] 2 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa /PR e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste. E-mail: [email protected] 3 Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste Campus de Irati/PR. E-mail: [email protected]

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ISSN 2176-1396

A INTERFERÊNCIA DA LÍNGUA DE SINAIS NA AQUISIÇÃO DA

ESCRITA DE FILHOS OUVINTES DE PAIS SURDOS

Eliziane Manosso Streiechen1 - UNICENTRO

Gilmar de Carvalho Cruz2 - UNICENTRO

Cibele Krause-Lemke3- UNICENTRO

Eixo – Psicopedagogia, Educação Especial e Inclusão

Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir a interferência da língua de sinais na aquisição da

linguagem escrita de um sujeito ouvinte (10 anos de idade) filho de mãe surda. A pesquisa foi

realizada em uma cidade do interior do Estado do Paraná, onde esse sujeito reside com seus

pais e avós maternos. Na família, desse sujeito, há cinco línguas envolvidas: Ucraniana,

Portuguesa, Alemã, Inglesa e a Libras. Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, de cunho

etnográfico de investigação, apoiada em um estudo de caso. Os registros foram coletados por

meio de entrevistas realizadas com professores, psicóloga e equipe pedagógica das escolas,

onde o sujeito estuda ou estudou e com o próprio sujeito. Os resultados confirmam a tendência

de que a maioria dos filhos ouvintes de pais surdos tornam-se bilíngues, pelo fato de dominarem

duas línguas (a de sinais, utilizada pelos pais surdos e a língua oral, utilizada pelos ouvintes que

os rodeiam). A língua de sinais pode interferir no processo de aquisição da linguagem escrita

desses alunos, visto que, ao internalizarem a estrutura sintática dessa língua e também da língua

portuguesa, natural e simultaneamente, eles acabam misturando essas línguas no momento da

elaboração da escrita. Isso pode gerar consequências negativas no processo escolar, uma vez

que os aspectos da cultura surda, vivenciados tanto pelos pais surdos quanto pelos filhos

ouvintes, são totalmente negligenciados pela maioria das escolas brasileiras. Pretende-se, com

este trabalho, contribuir com a área da Educação ao se destacar que os filhos de pais surdos,

apesar de não carregarem o estereótipo da deficiência, necessitam de um olhar especial e

diferenciado por parte da comunidade escolar, a fim de que esses sujeitos não sejam excluídos

de um efetivo processo de ensino e aprendizagem.

Palavras-chave: Filhos ouvintes de pais surdos. Libras. Surdos.

1Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa /PR. E-

mail: [email protected] 2 Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa /PR

e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste. E-mail:

[email protected] 3 Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste

Campus de Irati/PR. E-mail: [email protected]

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Introdução

A partir da oficialização da Língua Brasileira de Sinais (Libras), Lei 10.436/2002

(BRASIL, 2002), os sujeitos surdos tornaram-se o alvo de inúmeras pesquisas, principalmente,

no âmbito escolar (inclusão, alfabetização, bilinguismo etc.). Atualmente, alguns estudiosos

têm se preocupado também com os filhos ouvintes de pais surdos, no entanto as pesquisas nessa

área ainda são bastante escassas e incipientes.

Os filhos ouvintes, pelo fato de conviverem com seus pais surdos, adquirem,

naturalmente, a língua de sinais (LS) – quando os pais se comunicam por meio dela – e

internalizam a cultura surda. Entre os elementos que fazem parte da cultura das pessoas surdas,

podemos destacar: a Libras; campainha luminosa; legenda na televisão em tempo integral;

sensor de choro para bebês; piadas, arte, músicas e livros em língua de sinais; tradutor/intérprete

de língua de sinais, entre outros (STREIECHEN, 2013). Por isso, a vida familiar das crianças

que têm pais surdos pode se tornar diferente daquelas que têm pais ouvintes. Esses aspectos

podem influenciar no processo de escolarização desses sujeitos, no entanto, pelo fato de não

carregarem o estereótipo da deficiência, a escola nem sempre consegue considerar as

necessidades e desafios que esses educandos enfrentam em sua escolaridade.

A partir de um levantamento bibliográfico no Banco de Teses e Dissertações da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); no Instituto

Brasileiro de Informação em Ciências e Tecnologia(IBICT)4, no Sistema de Información

Cientifica Redalyc5; bem como em alguns periódicos conceituados, entre os anos de 2005 a

2015, encontramos os seguintes estudos sobre os filhos de pais surdos, realizados no Brasil:

1. Quadros e Masutti (2007), a partir de um estudo de caso, abordaram aspectos que

envolvem situações de fronteira e contato entre línguas e percepções do universo surdo

e do ouvinte, destacando as formas como as conexões são percebidas por esta pessoa,

filha de pais surdos.

2. Andrade (2011) discutiu a construção da identidade de sete indivíduos ouvintes filhos

de pais surdos, partindo de reflexões sobre família, socialização e surdez.

3. Sousa (2012) procurou retratar o percurso de vida de um grupo de dez ouvintes -

4Fonte:

http://bdtd.ibict.br/vufind/Search/Results?lookfor=coda&type=AllFields&page=5http://www.redalyc.org/home.o

a 5Sistema de Información Científica RedalicRed de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y

Portugal Universidade Autonomadel Estado de México Versión 2.2 beta, 2015: [email protected].

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portugueses e catalães - cujos pais são surdos, abordando as suas vivências e

experiências como membros ouvintes na comunidade surda Portuguesa e Catalã.

4. Sousa e Quadros (2012) investigaram a alternância da língua portuguesa oral com a

língua de sinais brasileira, na fala de uma criança e de um adulto, ambos ouvintes e

filhos de surdos.

5. Neves (2012) analisou as narrativas de oito sujeitos bilíngues bimodais e a competência

narrativa nas duas línguas.

6. Gonçalves (2012) apresentou uma investigação que visa caracterizar os intérpretes de

língua gestual portuguesa (LGP), consoante ao seu exercício profissional resulte

exclusivamente de formação superior nessa área ou, concomitantemente, da sua

condição de filho de pais surdos.

7. Pereira (2013) buscou apresentar a sua relação e de mais três pessoas ouvintes com seus

pais surdos.

8. Streiechen (2014) analisou o contexto multilinguístico de dois irmãos ouvintes (8 anos

e 1 ano e 3 meses de idade), filhos de mãe surda, a fim de identificar qual ou quais

poderiam ser consideradas a(s) língua(s) materna(s) desses sujeitos.

9. Souza (2014) analisou a construção de identidades de profissionais tradutores e

intérpretes da língua de sinais (TILS), filhos de pais surdos.

10. Melo (2015), a partir de um estudo de caso, investigou o processo de aquisição da língua

de sinais e a responsabilidade de uma pessoa ouvinte que se tornou a intérprete, tanto

dos pais quanto dos amigos surdos.

11. Streiechen et al. (2015), a partir de um estudo de caso, discutiram a cultura, identidade

e a escolarização de um sujeito ouvinte (40 anos de idade), filho de pais surdos.

Somam-se ao todo onze trabalhos sobre as pessoas ouvintes, filhas de pais surdos. Esse

número revela a incipiência em pesquisas nessa área, principalmente, quando os dados mostram

que no Brasil há cerca de 5,7 milhões de pessoas surdas ou com algum tipo de deficiência

auditiva6 (BRASIL, 2014). E, ao considerarmos que os surdos têm conquistado cada vez mais

6Para a comunidade surda brasileira, existe uma diferença entre o deficiente auditivo e o surdo. O primeiro é aquele

que não tem uma surdez profunda. Ele pode ou não fazer uso de próteses auditivas e se comunicar por meio da

língua falada, oralmente. O termo ‘deficiente auditivo’ costumava ser utilizado pela corrente oralista que defendia

o desenvolvimento da fala para que os surdos pudessem ser inseridos à sociedade. Essa corrente tratava o surdo

com uma visão clinico terapêutica, segundo a qual, depois de diagnosticada, a surdez era classificada como leve,

moderada, severa ou profunda, cujo objetivo era o de indicar o uso do aparelho auditivo e as sessões de terapia de

fala (fonoaudiologia). Já, o surdo é aquele que possui uma identidade surda, ou seja, se aceita como surdo, usa a

língua de sinais como sua primeira língua e participa das Associações de Surdos, dos movimentos e lutas surdas

(STREIECHEN, 2013).

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o seu espaço na sociedade - conseguindo usufruir direitos tais como: estudar com a mediação

de intérpretes de Libras; ter empregos fixos; entender os programas televisivos; votar nas

eleições; ter acesso aos programas de diversões (shows, esportes, teatro, viagens etc.) - muitos

deles têm constituído famílias, aumentando, consequentemente, o número de ouvintes, cujos

pais são surdos. Algumas pesquisas, como a de Lane (1992), Wrigley (1996), Quadros (1997),

apontam que a maioria dos surdos, mesmo casados entre surdos, possui uma chance de 90 a

95 % de gerarem filhos ouvintes. Essa informação desconstrói a crença de que todos os surdos

podem gerar, exclusivamente, filhos surdos, exceto os casos de hereditariedade.

Percebe-se que a maioria dos estudos, acima elencados, foca a identidade e/ou as

questões linguísticas dos ouvintes, filhos de surdos. Essas pesquisas se justificam pelo fato de

que esses sujeitos, em sua maioria, são considerados bilíngues. Eles adquirem, natural e

simultaneamente, as duas línguas envolvidas em seus contextos familiares: a língua oficial do

país – falada pelas pessoas com as quais eles convivem (parentes, vizinhos, amigos, escola etc.),

mais a língua de sinais – utilizada pelos pais surdos (SOUSA, 2012; STREIECHEN, 2014;

MELO, 2015).

Diante dessas considerações, pretendemos discutir a interferência da língua de sinais na

aquisição da linguagem escrita de um sujeito ouvinte (10 anos de idade) filho de mãe surda.

Para não revelarmos sua identidade, usaremos a letra P para nos referirmos ao sujeito.

A partir de outras pesquisas realizadas com P (Letras Libras - 2008 a 2012; mestrado –

2012 a 2014) descobrimos que ele possui altas habilidades. Aos 6 anos de idade, por exemplo,

antes de ingressar à escola, P já lia texto longos com fluência. Segundo o próprio sujeito, foi

com sua mãe (surda) que ele aprendeu a ler e a escrever.

Desde os cinco anos de idade, P falava a LP com concordância, ou seja, com os ‘s’ e ‘r’.

Além da fluência na LS e LP, P pronunciava palavras e frases em alemão e compreendia parte

das conversas, nessa língua, entre seus avós maternos (descendentes de alemães). Seu hobby

predileto sempre foi estudar inglês pela internet. Algumas de suas revistas em quadrinhos

(gibis) estão escritas em inglês. Ele faz tradução do inglês para o português de textos longos

com muita facilidade, sendo que ele nunca frequentou uma escola ou cursos para aprender tal

língua. Contudo, apesar da sua notável habilidade em adquirir línguas e aprender assuntos

complexos com tanta facilidade, nas séries iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano) P

apresentou problemas na aquisição da escrita, gerando vários conflitos entre ele e seus

professores.

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico de investigação, apoiada em

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um estudo de caso. Pretende-se, com este trabalho, contribuir com os estudos relacionados à

inclusão escolar e às questões que envolvem o ensino e aprendizagem dos filhos ouvintes que

têm pais surdos.

O que dizem as pesquisas sobre a escolarização dos filhos ouvintes de pais surdos?

Conforme acima descrito, sete dos onze trabalhos, acima elencados, direcionaram seus

estudos à compreensão da formação da identidade, cultura e a relação das pessoas ouvintes com

seus pais surdos; os outros três estudos focaram as questões linguísticas dos filhos de pais

surdos. Não encontramos nenhum trabalho em que o objetivo fosse, especificamente, discutir a

escolarização dos alunos ouvintes que têm pais surdos. Os autores abordam sutilmente esse

aspecto apenas quando há depoimentos de seus participantes, relatando os conflitos e desafios

pelos quais passaram na vida escolar, sem, contudo, investigar a posição da escola em relação

a esses alunos e alunas. Entre os principais conflitos, os participantes desses pesquisadores

destacam a dificuldade de aprender a língua oral e a escrita, uma vez que estão habituados a

falar sempre por meio da língua de sinais, principalmente quando há mais surdos na família

(avós, tios, primos...), além dos pais.

A língua de sinais, apesar de sua difusão no Brasil, ainda não possui o

mesmo status linguístico das demais línguas. Quando uma pessoa fala publicamente por meio

da língua portuguesa e inglesa, por exemplo, logo se subentende de que ela é bilíngue e,

portanto, dotada de certa inteligência, pois domina dois códigos linguísticos. Isso faz com que

muitos demonstrem admiração por essa pessoa bilíngue. Entretanto, quando uma pessoa fala

por meio da língua portuguesa e da língua de sinais, subentende-se que uma delas é ‘deficiente’

e isso desperta preconceito ou piedade por parte de muitas pessoas. Esse estigma, conforme

descrito por Gofmann (1988), faz com que os filhos ouvintes de pais surdos não se sintam

confortáveis em conversar com seus pais surdos em público.

Enfim, são tantas experiências diferentes vivenciadas pelos ouvintes filhos de pais

surdos que, conforme menciona Souza (2014), não se pode ensinar em um curso, mas tem a ver

com a singularidade que apenas quem tem pais surdos pode entender.

Acerca da escolaridade dos alunos ouvintes, filhos de pais surdos, Quadros e Masutti

(2007) enfatizam que:

Dentro dessas escolas, os pais se tornam figuras alienígenas, não recebem o feedbak

em relação aos seus filhos, porque a maioria delas não está preparada nem para

compreender a cultura surda e muito menos a língua de sinais. Isso cria uma cisão

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entre o mundo escolar e o universo íntimo, espaços que concorrem de maneira distinta

na forma de colocar relevância aos assuntos e construir um olhar para a realidade

(QUADROS; MASUTTI 2007, p. 256-257).

Os problemas com a escrita, na maioria dos casos, estão atrelados ao fato desses filhos

ouvintes se comunicarem durante muito tempo, quase que exclusivamente, por meio da língua

de sinais com os pais surdos. Com isso, eles podem internalizar a estrutura sintática da língua

de sinais muito mais do que a da língua oral. Isso poderá gerar conflitos na hora de escrever,

pois precisam utilizar a estrutura da língua portuguesa que difere completamente da língua de

sinais (SOUZA, 2014; MELO, 2015; PEREIRA, 2013).

A escola precisa estar atenta aos indícios de qualquer tipo de intolerância ou baixo

rendimento escolar desses alunos ouvintes, filhos de pessoas surdas, para que, dessa forma,

possa tomar as iniciativas coerentes e de acordo com cada caso, a fim de ofertar igualdade de

oportunidades e possibilidades para todos, conforme determinam as leis e diretrizes

educacionais brasileiras que dizem respeito à inclusão.

Método

Esse estudo, de natureza qualitativa, de cunho etnográfico apoiado em um estudo de

caso, desenvolve-se em torno da trajetória escolar de P. Ele está inserido em um contexto

familiar em que há cinco línguas envolvidas, a saber: a Língua Portuguesa, falada por todos os

membros da família, exceto pela mãe que é surda; a Língua Sinais, falada pela mãe; a Língua

Alemã, considerada a Língua 1 (L1) dos avós maternos; a Língua Ucraniana, falada pelo pai e

pelos avós paternos dos participantes; e, por último, a Língua Inglesa que P aprende de forma

autodidata.

Nas séries iniciais do ensino fundamental, P estudou em uma escola da rede municipal

de ensino. Nessa escola, ele enfrentou sérios desafios para concluir sua escolaridade. Apesar de

ingressar à escola, diretamente no 1º ano, sem passar pela pré-escola, sabendo ler e escrever,

ele não se sentia motivado para realizar as atividades na escola ou em casa (tarefas). Isso fazia

com que os professores também se desmotivassem em relação ao seu comportamento que, de

acordo, com os docentes, era muito difícil de compreender e lidar.

A coleta de dados ocorreu com professores, psicóloga e com o próprio sujeito. A escola

municipal, onde P estudou nas séries inicias (2010 a 2014), locus dessa pesquisa, localiza-se

em uma cidade do interior do Estado do Paraná. Os dados dos registros foram coletados por

meio de entrevistas gravadas em áudio que, posteriormente, foram transcritas e analisadas.

Os participantes da intervenção serão identificados da seguinte forma: ‘professores 1’

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(Prof 1), para aquele que ministrou aulas no 1º ano; professor 2 (Prof 2), para o docente do 2º

ano e assim sucessivamente até o 5º ano. À professora que trabalhou na Sala de Recursos, que

P frequentou durante o 5º ano, usaremos: professora da sala de recursos (Prof SR). Já, à

psicóloga que avaliou P, usaremos a sigla ‘Psico’.

Atualmente, P frequenta o 8º ano em um colégio da rede estadual de ensino, na mesma

cidade. A princípio, não há nenhuma queixa dos professores em relação ao seu rendimento

escolar e comportamento. Muito pelo contrário, P tem se destacado pelas elevadas notas,

participação em aula, inclusive se tornou medalhista das Olímpiadas de Matemática, em 2016.

Análise e discussão

As dificuldades encontradas por P, no processo de escrita, do 1º ao 5º ano, foram as

principais queixas da maioria das docentes entrevistadas, vejamos algumas: “Não queria

escrever” (Prof 1, 2016). “Ele não gostava de escrever, ele aprendia ouvindo e falando, pra

ele não interessava muito a parte escrita, registrar os conteúdos” (Prof 2).“Ele tinha problemas

na escrita [...]” (Prof 3).“[...] ele não gostava de escrever [...] ele dizia que odiava escrever,

daí odiava a professora e tudo, né” (Prof 4).“Ele simplesmente não gostava de escrever. E a

dificuldade maior dele também era no português, normas da língua, parágrafo, acentuação,

trocas de letras, produção de texto” (Prof 5).

A partir dos estudos de Pereira (2013), Souza (2014), Streiechen et al. (2015), entre

outros, acima elencados, podemos afirmar que a dificuldade de P, em relação à escrita, pode

estar diretamente relacionada ao fato dele possuir duas línguas maternas: Português e Libras7.

Isso faz com que suas ideias sejam processadas em ambas as línguas. No entanto, na escola, a

única estrutura que ele deve se utilizar é da LP, mas sua mente não sabe disso e o pensamento

em LS pode surgir enquanto ele escreve, causando a interferência de uma língua sobre a outra.

Apesar de P se comunicar, com os ouvintes, por meio da LP, ele internalizou também a cultura

linguística da LS, visto que a mãe é a pessoas com quem ele mais interage, em casa.

Quadros e Masutti (2007) explicam que os filhos ouvintes de pais surdos “se constituem

com ambas estruturas linguísticas que se mesclam e interagem na constituição de sua

subjetividade, especialmente quando a experiência com o bilinguismo se dá sem a violência

colonial e o recalque da língua de sinais” (QUADROS et al, 2007, p. 263-264).

7P foi considerado um sujeito bilíngue na pesquisa de mestrado de Streiechen (2014).

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Para entendermos a diferença estrutural entre a LS e a LP, trazemos um estudo de

Streiechen (2013), em que a autora cita o seguinte exemplo da ordem sintática utilizada na LS:

Figura 1: “Eu gosto de sol” em Libras

Fonte: (STREIECHEN, 2013)

Percebe-se, a partir desse exemplo, que a ordem do sujeito, do verbo e do objeto não é

sinalizada, em LS, na mesma ordem em que se fala em LP: “Eu gosto de sol”. Na frase em LS,

o objeto SOL é o primeiro elemento a ser mencionado. Observa-se, também, que a conjunção

‘e’, presente na frase em LP, não foi sinalizada, pois, “enquanto que no português há elementos

conectivos indicados com palavras, na Libras esses mecanismos são discursivos e espaciais,

estando incorporados ao movimento ou em referentes espaciais” (FERNANDES, 2012, p.62).

Assim, os conectivos (conjunções, preposições, artigos e alguns tipos de verbos) não são

sinalizados. Podemos perceber ainda que o verbo GOSTAR permanece no infinitivo, ou seja,

não sofre flexão mesmo estando na 1ª pessoa do singular, pois, “na Libras esses mecanismos

são discursivos e espaciais, estando incorporados ao movimento ou em referentes espaciais”

(FERNANDES, 2012, p.62).

Sousa e Quadros (2012) afirmam que a alternância poderá influenciar na aprendizagem

da língua oral na modalidade escrita, uma vez que “estruturas e itens lexicais de uma língua

podem ser transferidos para a outra em situações de bilinguismo –, trazendo, portanto,

implicações para sua escolarização” (SOUSA; QUADROS, 2012, p. 331).

Cabe ainda ressaltar que, além da LS, há também outras línguas faladas pela família de

P (alemã, ucraniana...). P pronuncia as palavras que possuem um “r” tal como o ‘r’ carioca,

conforme a palavra funciona[x]ios, ou seja, onde há apenas um ‘r’, ele pronuncia como se

tivessem dois, por exemplo, ‘funcionárrios’ (funcionários), ‘querria’ (queria). Em relação

às trocas de letras, a Profª 5 afirma que é perfeitamente normal essa troca ocorrer até o 2º ano,

etapa da alfabetização, mas, segundo ela, com P isso se estendeu até o 5º ano. A Prof da SR traz

uma afirmação que também revela essa dificuldade:

SOL EU GOSTAR

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“A (nome da pedagoga) achava que eu teria que pegar a parte escrita,

sabe, a fala porque ele falava, vamos dizer assim... ele tinha

dificuldade... são trocas fonéticas, ele trocava... eu trabalhei muito nas

trocas fonéticas, sabe? Até hoje ele tem, observe, ele troca...” (Prof

SR).

Percebemos, durante as entrevistas com P, que realmente ele fala de um modo diferente,

como se fosse um estrangeiro francês ou alemão falando em português. Mas é difícil descrever,

por meio da escrita, esse modo como ele fala. Acreditamos que precisaríamos de uma análise

mais profunda de um especialista da área da Fonética/Fonologia para descrever a forma como

ele pronuncia, principalmente a letra ‘R’. No entanto, para nós, nessa pesquisa, basta

entendermos que isso é interferência das línguas que a família utiliza e não saberíamos afirmar

se, futuramente, P deixará de falar dessa forma, haja visto que isso faz parte de sua cultura

linguística e, de acordo com a Sociolinguística, isso não pode ser considerado um ‘erro’ que

deve ser corrigido e/ou superado.

No relatório de avaliação psicológica, a profissional afirma que “o aluno faz trocas

clássicas de letras e na área da leitura apresenta regionalismos” (Psico). Esses

‘regionalismos’, portanto, são marcas das línguas (alemã, ucraniana etc.) presentes no contexto

familiar de P.

Dos professores entrevistados, apenas a Profª2 (a mesma da SR), em alguns momentos

conversou com P a respeito da LS, uma vez que ela já havia feito cursos para aprender tal

língua:

“Quando eu fiz um curso de Libras, eu dizia ‘Ai, P, como eu gostaria

de conversar tudo com você (em LS)’ Ele falava que aprendeu tudo com

a mãe. Ele ensinava para mim. Agora eu esqueci tudo. Pra ele, ele era

feliz. Ele não tem assim... preconceito de a mãe ser surda” (Prof SR).

Os demais docentes não relataram qualquer ação no sentido de dialogar, ou seja, ouvir

o que P tinha a dizer sobre o fato de sua mãe ser surda ou pela forma que ele se comunicava

com ela. Esses educadores também desconheciam a presença das demais línguas existentes no

contexto familiar de P. Isso pode se caracterizar como um desinteresse ou falta de conhecimento

por parte da escola sobre a cultura, os desejos, as frustrações e desafios que os filhos ouvintes

de pais surdos enfrentam diante dos compromissos que assumem em casa e na sociedade em

detrimento da surdez dos pais. P tem o privilégio de sua mãe ser bastante presente e participar

ativamente de sua escolaridade, caso contrário, talvez a escola nem tomasse ciência da surdez

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de sua mãe.

É como se todas essas sensações ficassem apenas do lado de fora dos muros escolares e

não afetassem o desenvolvimento biopsicossocial desses sujeitos. Assim, as características

culturais, sociais e linguísticas que deveriam ser tomadas como elementos relevantes para o

processo interativo escolar dos alunos, filhos de pais surdos, são totalmente desconsideradas e

neutralizadas (QUADROS et al, 2007). As autoras denunciam também que “na maioria das

vezes, a escola recebe essa criança ouvinte, filha de pais surdos, e estabelece um muro que a

separa de seus pais” (QUADROS et al, 2007, p. 256-257).

A partir dessa pesquisa, podemos concluir que a surdez da mãe não é o fator implicador

na escolarização de P, ou seja, na sua dificuldade de aquisição da escrita, mas a diversidade de

línguas presentes que o envolvem dentro da família. Entretanto, a comunidade escolar não

conseguiu identificar esse fator, pelo fato de não saber que na família havia outras línguas e que

elas poderiam interferir no seu processo de alfabetização. Por isso, essa cultura linguística de P

foi tomada como um suposto ‘erro’ que precisava ser corrigido. Isso indica que algumas

escolas brasileiras ainda apresentam dificuldades em trabalhar com práticas inclusivas ao se

depararem com alunos de famílias multiculturais e linguisticamente plurais, tendo em vista que

alguns docentes ainda se utilizam de métodos tradicionais, apresentando dificuldades em ouvir

o aluno, desconsiderando suas especificidades culturais e linguísticas.

Nesse sentido, deixamos como sugestão que a escolaridade dos filhos de pais surdos

seja discutida nos curso de formação de professores, dentro da disciplina de Libras, para que,

ao se depararem com esses alunos, os futuros docentes consigam direcionar uma atenção

especial no que se refere à alfabetização desses sujeitos. P teve o privilégio de ser um menino

muito inteligente, caso contrário poderia ter sido reprovado durante vários anos, pelo simples

fato de vivenciar uma cultura linguística diferente dos demais alunos filhos de pais ouvintes.

Nossas considerações

A partir dessa pesquisa, compreende-se que os filhos ouvintes de pais surdos vivem

entre duas culturas (a dos surdos e a dos ouvintes), por isso são considerados sujeitos

biculturais. Quando os pais surdos se comunicam por meio da LS, consequentemente os filhos

ouvintes se tornam bilíngues, pois também necessitam aprender a LS para se comunicar com

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os pais.

No entanto, a LS pode interferir na aquisição da linguagem escrita desses sujeitos, uma

vez que eles internalizam duas estruturas linguísticas: da LS e da LP. Por isso, no momento de

escrever, é comum que esses alunos misturem essas línguas, gerando consequências negativas

no processo escolar, uma vez que esses aspectos, normalmente, são negligenciados pela maioria

das escolas brasileiras por não compreenderem a cultura linguística desses sujeitos.

Nesse sentido, podemos considerar que viver na zona fronteiriça, entre o mundo surdo

e o mundo ouvinte, pode influenciar no processo de construção da(s) identidade(s) e

subjetividade das crianças que têm pais surdos e, consequentemente, em seu desenvolvimento

escolar. Entretanto, não é possível generalizar e afirmar que todas elas apresentam os mesmos

comportamentos e passam pelos mesmos conflitos, pois isso irá depender da situação linguística

em que seus pais estão envolvidos (STREIECHEN et al., 2015).

Nesse sentido, há que se levar em conta vários fatores que podem influenciar tanto na

aquisição da LS, quanto nas questões de formação de identidade e escolaridade de uma pessoa,

filha de pais surdos, por exemplo:

a) Em algumas famílias, onde apenas um dos pais é surdo, a aquisição da língua falada,

por meio da oralidade, tornar-se-á mais fácil, em virtude do contato do filho ouvinte com o pai

ou a mãe ouvinte.

b) Muitos surdos, principalmente os que vivem na zona rural, não utilizam a língua de

sinais para se comunicar, não tiveram a oportunidade de conviver com os usuários dessa língua.

Por isso, a comunicação ocorre por meio de gestos caseiros criados pela própria família,

dificultando, assim, ainda mais a interação comunicativa. Perlin (2010) explica que esses surdos

desenvolvem um tipo de identidade embaçada, pois não conseguem captar a representação da

surdez. Logo, se os pais, que são surdos, não se comunicam por meio da língua de sinais,

obviamente, o filho ouvinte não irá aprender essa língua.

c) Há muitos surdos que fazem uso do implante coclear8 e, por isso, são proibidos de

utilizarem a LS para se comunicar, pois, de acordo com os especialistas, ela poderia afetar o

desenvolvimento da oralidade. Perlin (2010) postula que esses surdos podem desenvolver uma

identidade incompleta, pois, apesar de implantados, continuam sendo surdos, no entanto,

precisam se comportar como se fossem ouvintes. São orientados por profissionais e familiares,

8 O implante coclear é um dispositivo eletrônico de alta tecnologia, também conhecido como ouvido biônico, que

estimula eletricamente as fibras nervosas remanescentes, permitindo a transmissão do sinal elétrico para o nervo

auditivo, a fim de ser decodificado pelo córtex cerebral. Disponível em: http://www.implantecoclear.com.br/.

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a evitar envolvimento com outros surdos, assim, sentem-se impossibilitados de fazer suas

escolhas em relação à Língua e comunidade (surda/ouvinte). Desta forma, mesmo que o filho

conheça e domine a língua de sinais, não poderá utilizá-la com seus pais surdos.

d) Existem muitos surdos oralizados, ou seja, usam a fala por meio da oralidade para se

expressar. Conhecem a língua de sinais, mas evitam usá-la por preconceito ou imposição da

família. Esses são os surdos que têm identidade flutuante. De acordo com Perlin (2010), são os

surdos que têm consciência de sua surdez, porém desprezam a cultura surda, não participam de

associações e lutas políticas. Seguem a representação da identidade ouvinte. Assim, os filhos

ouvintes, tendo pais oralizados, não veem motivos para aprender a LS.

e) Alguns surdos desenvolvem uma identidade surda, ou seja, se reconhecem como

surdos e usam a língua de sinais como meio de comunicação. São pessoas politizadas que

gostam de estar entre outros surdos na escola, associações de surdos, reuniões, lazeres,

movimentos, lutas e conquistas (PERLIN, 1998). Para a autora, a construção da identidade

cultural dos surdos se dará no reconhecimento de si perante seus pares surdos e perante os

ouvintes. Os espaços de cada cultura devem ser compreendidos para que o indivíduo

compreenda a si mesmo como surdo com orgulho e dignidade. E, de acordo com Souza (2014,

p. 61), ao se considerar tanto o caráter individual como o coletivo, as identidades culturais são

construídas nos lugares, totalmente carregadas de sentido e vida. Portanto, os espaços do vivido

não servem somente como plano de fundo, mas são partes vivas das relações neles estabelecidas

(p. 61).

Nesta perspectiva, Strobel (2008) afirma que “é na posse da língua de sinais que o sujeito

surdo construirá a identidade surda [...] A maioria das narrativas tem como base a ideia de que

a identidade surda está relacionada a uma questão de uso da língua” (STROBEL, 2008, p. 89).

Geralmente, são nas famílias, em que os pais possuem identidade surda, que os filhos ouvintes

se envolvem com a cultura surda, ou seja, participam ativamente dos movimentos surdos, festas,

associações surdas etc. Alguns dos filhos ouvintes tornam-se intérprete profissional e se sentem

confortáveis em fazer parte da comunidade surda. Os resultados dessa pesquisa confirmam a

tendência de que a maioria dos filhos ouvintes de pais surdos torne-se bilíngue, pelo fato de

dominarem duas línguas (a de sinais, utilizada pelos pais surdos e a língua oral, utilizada pelos

ouvintes que os rodeiam). Além disso, a língua de sinais pode interferir no processo de

aquisição da linguagem escrita desses alunos, visto que, ao internalizarem a estrutura sintática

dessa língua e também da língua portuguesa, natural e simultaneamente, eles acabam

misturando essas línguas no momento da elaboração da escrita.

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Isso pode gerar consequências negativas no processo escolar, uma vez que os aspectos

da cultura surda, vivenciados tanto pelos pais surdos, quanto pelos filhos ouvintes, são

negligenciados por parcela das escolas brasileiras. Cabe destacar que os filhos de pais surdos,

apesar de não carregarem o estereótipo da deficiência, necessitam de um olhar especial e

diferenciado por parte da comunidade escolar, a fim de que esses sujeitos não sejam excluídos

de um efetivo processo de escolarização.

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