A INFÂNCIA MIDIATIZADA DE CRIANÇAS DE CLASSES … · 2 Trata-se da pesquisa “Percursos e...
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A INFÂNCIA MIDIATIZADA DE CRIANÇAS DE CLASSES POPULARES:
REFLEXÕES A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA COM
LITERATURA INFANTIL
Liége Freitas Barbosa1
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
1. Dizeres introdutórios
De que forma uma pesquisa com o foco em literatura infantil poderia revelar aspectos da
presença das mídias no cotidiano de crianças de uma escola pública de periferia? Em que medida
seria possível vislumbrar o surgimento de uma “infância midiatizada” na contemporaneidade, por
meio de uma experiência com literatura? Com o objetivo de tocar nessas questões, este trabalho
tem como proposta articular infância, literatura infantil e mídia, para apresentar e discutir, através
de uma primeira aproximação em uma pesquisa de literatura infantil, como algumas mídias atuam
na e constituem a vida cotidiana de crianças de classes populares de Porto Alegre - RS.
Produzido na perspectiva teórica dos Estudos Culturais em Educação, o texto é inspirado
em dados preliminares obtidos a partir da pesquisa2 de literatura infantil de cuja equipe faço parte.
Tal pesquisa trabalha com representações de infância em livros de literatura infantil, em conexão
com as leituras que as crianças fazem deles. O público-alvo são alunos entre 9 e 12 anos do quarto
e quinto anos do Ensino Fundamental de escolas públicas da capital gaúcha. O estudo basicamente
envolve sessões de leitura e discussão dos livros selecionados (a partir de sua qualidade literária,
da variedade de temáticas e da presença de personagens crianças como protagonistas) e realização
de atividades variadas com os alunos, que podem incluir, por exemplo, a produção de textos,
montagens, colagens e desenhos que visam a explorar as temáticas dos livros.
1 Jornalista, Mestre em Educação e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na linha de Pesquisa Estudos Culturais em Educação.
Integrante do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (Neccso). Bolsista do CNPq.
E-mail: [email protected]
2 Trata-se da pesquisa “Percursos e representações da infância em livros para crianças – um estudo de obras e de
leituras” (2015-2018) coordenada pela prof. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira e desenvolvida pelo grupo de pesquisa
do Núcleo de Estudos sobre Currículo, Cultura e Sociedade (NECSSO) da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). O estudo é apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, e
envolve pesquisadores da Ufrgs, Ulbra, Ufpel e Unesp.
1
Logo que tive oportunidade de entrar e estar em contato com o conteúdo das produções dos
alunos e de seus relatos em sala de aula, percebi que emergiam referências midiáticas diversas: de
telenovelas e seriados da TV aberta, até relatos (de inconformidade) sobre a sua competição com
as redes sociais pela atenção dos pais. As mídias, em seus diferentes suportes e linguagens, sejam
“velhas”3 ou “novas”, aparecem inscritas de alguma maneira nas atividades, nas respostas, nos
traços, nos desenhos, nas falas. Fazem parte do repertório das crianças em sala de aula, estão
integradas em seu cotidiano, na vida dentro e fora da escola. Acredito que a identificação de
referências recorrentes à mídia nos trabalhos desenvolvidos pelos alunos e em seus relatos em sala
de aula, pode nos dizer algo sobre a constituição de um determinado tipo de infância na
contemporaneidade. Uma infância que parece surgir atravessada pela multiplicidade de produções
midiáticas do nosso tempo.
A problematização que aponta para a possibilidade de uma infância midiatizada envolve
tomar a mídia não mais como mera mediadora do “real”, mas como articuladora dos processos de
interação. Fausto Neto (2006) acredita que estamos diante de novos modos de produção e
organização social na qual as mídias não podem mais ser consideradas apenas como instrumentos
organizadores. Segundo ele, na sociedade midiatizada – ou em vias de midiatização – as mídias
são instituidoras de modos de organização, de participação e de interação. Assim, quando me
refiro, neste trabalho, à possibilidade de uma infância midiatizada ou a um processo de
midiatização da infância em curso, destaco que se trata de uma via de abordagem que sugere
ampliar a participação do campo da mídia no processo de produção de sujeitos, como sugere Braga
(2002). Para esse autor, é preciso pensar na midiatização como um processo social e não apenas
em termos de meios de comunicação. Essa perspectiva de análise ganhará corpo ao longo da
pesquisa, que se encontra em sua fase inicial.
2. A infância pós-moderna no cenário de periferia: um breve recorte
Pensar sobre a infância na perspectiva teórica dos Estudos Culturais é entendê-la como
uma construção social, história e cultural que é contingente, estando sempre sujeita a mudanças.
Nesse sentido, ao assumir tal entendimento, também é necessário esclarecer de que infância estou
3 Quando falo em velhas mídias, refiro-me aos chamados meios tradicionais, como os impressos, televisão e rádio. Já
a noção de novas mídias refere-se à internet, especificamente blogs e redes sociais.
2
tratando aqui, pois nesse texto busco olhar para uma em específico: a de crianças de classes
populares que frequentam escolas públicas de periferia da capital gaúcha. São crianças do mundo
contemporâneo, inscritas na chamada cultura pós-moderna – o atual estado da cultura onde nos
encontramos. Estaríamos então falando de uma “infância pós-moderna”, e como ponto de partida
adoto essa expressão me valendo do posicionamento de Costa e Momo (2010):
Grandes transformações têm alterado substantivamente as formas de vivermos hoje, e
entendemos que as condições culturais contemporâneas produzem infâncias distintas do
que se convencionou chamar infância moderna − ingênua, dócil, dependente dos adultos
− e modificam as formas das crianças viverem e habitarem o mundo. Vivenciamos um
estado da cultura − com implicações contundentes da mídia e do consumo − que se tem
configurado diferentemente daquele da modernidade e produzido sujeitos distintos dos
sujeitos modernos (COSTA e MOMO, 2010, p. 967-968).
Nesse sentido, as autoras contribuem para pensarmos sobre os novos modos de ser criança
e de viver a infância, pois em suas pesquisas colocam em evidência e problematizam esses diversos
modos de ser de crianças escolares em condição de pobreza, apontando como elas também são
produzidas na cultura da mídia e do consumo. Dessa forma, inspirada pela potencialidade da
experiência com literatura infantil, pretendo apresentar uma leitura modesta (entre muitas
possíveis) que mostra como a mídia aparece e constitui a infância pós-moderna de crianças
escolares que vivem em um cenário urbano periférico, pertencentes a famílias ditas de baixa renda
e que compõem as classes populares brasileiras.
3. Sobre a pesquisa “Percursos e representações de infância em livros para crianças”
Como mencionado, o artigo tem origem em uma pesquisa de literatura infantil da qual
participo e apresenta, neste recorte, uma primeira aproximação com alguns dados preliminares já
obtidos. Assim, visando uma noção mais ampla do contexto onde o trabalho está inserido, exponho
brevemente algumas informações que, em linhas gerais, situam o referido projeto de pesquisa.
Tomando como ponto de partida a vasta presença de personagens crianças nos livros de
literatura infantil e levando em consideração a afirmação de Reuter (2002, p. 41) de que “a
personagem, com efeito, é um dos elementos-chave da projeção e da identificação dos leitores”, o
projeto de pesquisa tem como eixo central a análise da infância imaginada e representada por meio
das personagens. Os caminhos investigativos do estudo são norteados por duas questões principais:
a) Como se representa a infância – através dos personagens infantis – em narrativas de livros
3
disponíveis para crianças de anos iniciais nos espaços escolares?; b) Como grupos (turmas) de
crianças de escolas públicas de anos iniciais, em situações de leitura interativa, negociam
significados de infância, a partir do acesso a alguns livros (previamente escolhidos por sua
adequação e pela diversidade de representações4 de criança) e em articulação com suas
experiências prévias na família, na escola, nos espaços midiáticos?
Com o objetivo de responder às questões, foi definido um desenho metodológico que
compreende uma seleção de livros entre títulos distribuídos pelos programas governamentais
(PNBE, PNAIC) e outros que, embora não constem de tais listas, são reconhecidos por suas
qualidades literárias, para trabalho com as turmas de crianças. Após o planejamento das sessões
de trabalho com os títulos escolhidos, são realizadas as sessões de leitura - gravadas em áudio e
vídeo e registradas em um diário de campo. Os encontros com os alunos de quarto e quinto anos
do Ensino Fundamental das escolas públicas de Porto Alegre-RS são conduzidos pelos
pesquisadores (juntamente com a professora de classe), sendo que as produções das crianças são
recolhidas e catalogadas. 5
3.1 Sobre as obras que originaram trabalhos com referências midiáticas
Aqui, busco contextualizar as duas obras de literatura infantil selecionadas pelo projeto que
ensejaram a realização de trabalhos pelos alunos nos quais estão presentes, de maneira mais
acentuada, citações e desenhos com referências à mídia, ou que suscitaram falas ou referências a
ela. São elas: “A Caminho de Casa” (Buitrago, 2012) e “Os Invisíveis” (Moriconi, 2013).
A Caminho de Casa
“A Caminho de Casa”6 é uma obra infantil de ficção escrita por Jairo Buitrago e ilustrada
por Rafael Yockteng. Em linhas gerais o livro mostra traços da rotina de uma menina pobre que
mora na periferia de uma grande cidade. Ela estuda longe da escola e, buscando companhia e
proteção, faz um pedido a um leão (imaginário?): “Na volta para casa, venha comigo...”. A obra,
4 Representações, no presente contexto, é utilizado no sentido de “representações culturais”, conceito caro aos Estudos
Culturais de inspiração pós-estruturalista - conforme os quais as representações se constroem discursivamente, em
jogos de poder, integrando sistemas e políticas de representação, em relação aos quais não se questiona, como em
outras tradições filosóficas, o valor de verdade. Ver, a esse respeito, Hall (1997) e Szurmuk e Irwin (2009). 5 No momento de produção deste artigo, foi realizado apenas um dos dois conjuntos de sessões previstas. 6 Obra selecionada para integrar o acervo do PNBE 2012 na categoria Anos Finais do Ensino Fundamental.
4
com um texto enxuto, é escrita em 1ª pessoa pela voz da menina, personagem protagonista que
vive com a mãe e o irmãozinho. Apesar de ser uma criança pequena, ela precisa lidar com uma
série de problemas de adultos: a ausência do pai, a falta de dinheiro, o cuidado com o irmão bebê
e as lides domésticas enquanto a mãe trabalha na fábrica. Contudo, junto ao leão - um guardião
imaginário, a volta para casa se torna uma aventura e a menina parece ganhar coragem e força para
enfrentar as dificuldades cotidianas. A narrativa termina indicando que a figura do leão pode ser a
representação do pai da menina, um provável desaparecido político. Um porta-retrato com uma
foto da família mostra todos sendo abraçados/protegidos pela figura paterna, que possui
caraterísticas físicas semelhantes ao leão. Uma imagem de pegadas, que no início da história são
da menina e do leão, ao final são da menina e de uma pessoa – provavelmente o pai. Trata-se de
uma obra sensível e rica em ilustrações que mostra como uma menina pobre enfrenta problemas
de adulto sem deixar de ser criança, apoiada na imaginação da existência de uma figura forte e
paternal que a protege.
A ideia do livro, segundo Buitrago (2013), foi esboçar a sua visão sobre uma realidade que
é muito presente entre as jovens da América Latina – a infância/adolescência pobre em um
contexto familiar e social de adversidades. Portanto, é uma obra contemporânea, conectada com
as vivências de inúmeras crianças e adolescentes dos países latino-americanos. De acordo com
Eco (1995, p. 100), “espera-se que os autores não só tomem o mundo real por pano de fundo de
sua história, como ainda intervenham constantemente para informar aos leitores os vários aspectos
do mundo real que eles talvez desconheçam”. No caso de “A Caminho de Casa”, se pensarmos em
uma parte de seus leitores - alunos das escolas públicas que acessam o livro através do PNBE no
Brasil - acredito que a narrativa potencializa um processo de maior identificação e empatia por
parte desse público em função de ter adotado como pano de fundo essa realidade social específica
e adversa.
Ainda sobre o tema, vale ressaltar que, na contemporaneidade, onde a cultura escolar
impregna a experiência de vida de crianças e adolescentes desde os primeiros anos de vida e onde
a educação ocupa boa parte da trajetória infanto-juvenil, não parece lugar comum explorar na
literatura infantil a temática da infância pobre e suburbana que assume responsabilidades adultas.
Apoio minha afirmação com base nos resultados da pesquisa de Colomer (2003) sobre a novidade
temática na literatura infanto-juvenil espanhola: segundo a autora, as temáticas que envolvem
5
problemas sociais ou conflitos aos quais não se encontra solução são trabalhadas de forma escassa
nas narrativas infantis e juvenis da atualidade (idem, p.258), o que torna “A Caminho de Casa”
uma obra interessante, entre outros aspectos, pela abordagem temática que propõe.
Os invisíveis
“Os Invisíveis”7 é uma obra brasileira de ficção com inspiração realista, escrita por Tino
Freitas e ilustrada por Renato Moriconi. De forma sensível, com um texto sucinto e elementos
visuais marcantes, o livro trata da invisibilidade social - uma questão complexa no contexto da
sociedade brasileira. A narrativa conta a história de um menino (personagem protagonista) descrito
como tendo superpoderes pois enxergava pessoas que seus familiares não viam: “Era uma vez um
menino com um superpoder: na sua infância, só ele via os invisíveis...” O garoto enxergava os
invisíveis em diferentes lugares: nas esquinas, na saída do mercado, no meio da rua. E em alguns
momentos, também se sentia um deles: “Ás vezes, ele tinha impressão de que também era
invisível”, quando o pai ou a mãe ficavam focados em tarefas no computador ou em frente à TV.
Com o passar do tempo, à medida em que cresceu e tornou-se adulto, o menino passa a não
perceber o carteiro, o lixeiro, o varredor de rua, o artista de rua e outras figuras que estão à margem
da sociedade, excluídas: “E assim o tempo passou... ele entrou para a faculdade... conseguiu um
emprego...e se casou... E o menino envelheceu esquecendo que um dia teve um superpoder”. No
livro, a cor laranja representa o ângulo de visão do menino, sendo que a presença inicial (e posterior
ausência) dessa cor ao longo das páginas marca a passagem da infância para a vida adulta, ou seja:
a sensibilidade, pureza e humanidade da infância vão dando lugar à frieza e insensibilidade da vida
adulta, quando a indiferença de "estar acostumado" torna as pessoas invisíveis em meio à vida
cotidiana.
Em relação ao tema, o autor afirma que as questões sociais são uma preocupação em seus
livros e que, no caso de “Os Invisíveis”, o livro mostra que a vida não é só alegria mas tem tristeza
também, pois perder é algo que faz parte do cotidiano. Ele acredita que a fantasia seja importante,
mas que trabalhar com a realidade é um outro caminho possível para a literatura infantil, “para que
a criança enxergue o que leu em seu cotidiano e se relacione com isso” (FREITAS, 2013). Portanto,
apesar de ser uma obra de ficção o livro possui essa nítida inspiração realista que incorpora
7 Obra selecionada para integrar o acervo do PNBE 2014 na categoria Anos Iniciais do Educação Fundamental.
6
elementos fantásticos na narrativa (através dos superpoderes do protagonista) - o que Colomer
classificaria como uma “fantasia moderna”. Segundo a autora, um dos temas da ficção realista
infanto-juvenil (proposta por Huck et al) é a construção da própria identidade - o processo de
crescimento pessoal, da infância à vida adulta que se subdivide na vida em família, a vida com os
demais e amadurecimento pessoal (COLOMER, 2003, p. 196).
4. Desenhos, relatos, marcas: um olhar sobre o aparecimento da mídia
Ao lançar meus olhos e ouvidos para identificar o aparecimento da mídia nas produções e
relatos, é necessário esclarecer que compreendo por “referências midiáticas”, nesse trabalho, as
falas, os desenhos e os registros escritos que envolvem a mídia. Nesse sentido, serão consideradas
como referências midiáticas, tanto as menções feitas à chamada “velha mídia”, ou seja, aos
produtos midiáticos dos meios tradicionais de comunicação (TV, rádio, impresso) quanto as
menções à “nova mídia” (internet e redes sociais). A seguir, descrevo brevemente as atividades
realizadas pelos alunos nas sessões de trabalho sobre os livros “A Caminho de Casa” e “Os
Invisíveis”, e proponho uma abordagem de caráter interpretativo-qualitativo, a partir da amostra
de alguns trabalhos previamente selecionados.
A Caminho de Casa
A proposta de trabalho com o livro “A Caminho de Casa” envolveu basicamente a
produção de desenhos que buscavam relacionar a rotina da personagem protagonista do livro com
o cotidiano das crianças. Na parte 1, pediu-se que os alunos desenhassem o que fazem quando
chegam em casa (poderiam ser várias atividades, assim como as da personagem do livro), e as
descrevessem brevemente. Na parte 2, foi solicitado que desenhassem o caminho que eles fazem
a pé da escola até suas casas, colocando detalhes e pontos de referência. Por fim, pedia-se que os
alunos pensassem em uma figura protetora que pudesse acompanhá-los nesse caminho de volta
para casa, desenhassem e escrevessem de quem se trata.
As referências midiáticas estão mais presentes na parte 1, quando os alunos desenhavam o
que fazem quando chegam em casa. Em linhas gerais, na grande maioria dos desenhos as rotinas
em casa compreendem brincar, tomar banho, tomar café e assistir televisão (não necessariamente
nessa ordem). É importante assinalar que, nas ilustrações originais da obra, não havia nenhuma
7
representação de TV. Assistir televisão (e aqui refiro-me especificamente aos canais de TV
aberta8) revelou-se como uma prática que faz parte do cotidiano dessas crianças dentro de casa,
sendo incorporado como um hábito de lazer entre as demais atividades.
Fig. 1: A TV na rotina das crianças
Não à toa a Pesquisa9 Brasileira de Mídia 2016, que divulga hábitos de consumo de mídia
pela população, revela que a TV é o meio preferido de 63% dos brasileiros para se informar. No
Rio Grande do Sul, 59% da população também utiliza a TV como o principal meio de
comunicação. Considerando o recorte proposto para o texto e a singela amostra de trabalhos
selecionados, posso dizer que aqui nesse caso não é diferente, pois a TV aparece como prática
cotidiana de lazer na maior parte das produções observadas.
Para além da televisão como meio preferencial, outro aspecto chama a atenção: a referência
a telenovelas brasileiras disponíveis nos canais de TV aberta, como por exemplo, “Cheias de
Charme” (Globo) e “Cúmplices de um Resgate”10 (SBT). O destaque fica por conta da telenovela
8 TV aberta é um serviço oferecido gratuitamente à população pelas emissoras de televisão abertas (Band, Globo,
Record, Record News, Rede TV, Rede Vida, SBT, TV Aparecida, TV Brasil, TV Cultura, TV Gazeta, etc.). 9 Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (IBOPE) e divulgada em 24 de janeiro de 2017
pela Secretaria de Comunicação Social (SECOM) do Governo Federal. Disponível em:
http://www.pesquisademidia.gov.br/#/Geral/details-917. 10 Telenovela produzida e exibida originalmente pelo SBT, entre agosto de 2015 e dezembro de 2016, com 357
capítulos. É uma adaptação da telenovela mexicana Cómplices al rescate, que também fora exibida pelo SBT. A
exibição do remake infantojuvenil buscou manter o sucesso obtido pela emissora nas antecessoras, Carrossel e
Chiquititas. A atriz Larissa Manoela interpreta as personagens principais Manuela e Isabela, numa trama que narra o
cotidiano de duas irmãs gêmeas que trocam de lugar. “Cúmplices” foi sucesso de audiência no SBT e nas redes sociais,
8
“Cheias de Charme”, que foi bastante referida (através de dizeres nas telas da TV) e somente por
meninas (Fig.1). Vale observar que, quando as crianças produziram os trabalhos, essa novela -
originalmente produzida e exibida pela Rede Globo em 2012 - estava sendo reprisada no chamado
“Vale a pena ver de novo11”, sendo que o horário do término das aulas e o da reprise eram próximos
- o que sugere que as meninas assistiam a “Cheias de Charme” assim que chegavam em casa.
A telenovela, enquanto um programa de audiência compartilhado por milhões de
brasileiros em suas vidas cotidianas, é definida por Barbero como um “relato de uma modernidade
tardia”, que “mistura a sagacidade do mercado – no momento de contar histórias que envolvem as
maiorias – com a persistência de sua matriz popular, ativadora de competências culturais inerentes
a ela” (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 15).
Lembro Barbero para salientar que “Cheias de Charme” foi uma telenovela que obteve
sucesso de audiência dando protagonismo às classes populares em uma época em que o Brasil
vivia um momento econômico de ascensão da classe C, mais conhecida como “classe média”. A
trama conta a história de três empregadas domésticas que se aproximam para lutar por seus direitos,
ficam amigas e formam um trio musical de sucesso. Um ponto marcante da novela foi ter
conseguido produzir no mundo real o sucesso do grupo ficcional “As Empreguetes” por meio da
utilização de estratégias transmidiáticas. Atenta ao contexto da convergência de mídias no qual
vivemos, os produtores de “Cheias de Charme” fizeram fluir os conteúdos de uma mídia para a
outra, no que Jenkins (2009) denomina “narrativa transmídia”, permitindo assim que o universo
ficcional da novela ganhasse continuidade em outras mídias (BIEGING, 2012, p. 61).
Fig.2: “Cheias de Charme” nos desenhos das telas dos aparelhos de TV.
com o seu canal de vídeos no Youtube tendo obtido mais de 1,2 bilhão de visualizações. Também teve mais de 100
produtos licenciados e originou um musical com o elenco da novela. 11 Sessão de reprises de telenovelas, transmitida pela Rede Globo desde maio de 1980, sendo o primeiro programa
de reprises nas tardes da emissora, de segunda a sexta-feira.
9
Outras produções televisivas que também foram registradas nos trabalhos das crianças
foram os seriados Chaves (SBT) e Detetives do Prédio Azul (TV Brasil), porém em número ínfimo
em comparação às telenovelas. Se as meninas revelaram em sua maioria a preferência por assistir
à televisão e suas telenovelas, os meninos, por sua vez, mostraram hábitos um pouco diferentes:
além de alguns jogarem bola quando chegam em casa, eles também costumam utilizar outros
artefatos midiáticos e tecnológicos – tais como videogame, celular e tablet. Aqui, considero esses
três artefatos tecnológicos como referências midiáticas, porque na contemporaneidade são
considerados e utilizados como mídia de entretenimento e conhecimento. Aliás, os jogos
eletrônicos tem sido objeto de estudo com aproximação ao campo da comunicação pelas
características midiáticas de linguagem, narrativa e interatividade dos games (PINHEIRO, 2004).
Fig. 3: Videogame, tablet e celular nas referências dos meninos.
10
Na Fig. 5, na imagem da esquerda um dos meninos se desenhou jogando videogame,
assistindo televisão, jogando bola e tomando banho. Já na imagem da direita, vemos outro desenho
que mostra o menino tomando banho, depois deitado no quarto mexendo no celular e olhando
televisão, tomando café e dormindo. O aparecimento de tais mídias na rotina das crianças e a
habilidade e intimidade dos pequenos com essas novas tecnologias nos diz algo sobre como a
cultura da mídia está inscrita nas suas vidas, produzindo e refletindo um determinado tipo de
infância midiatizada, que emerge atravessada por diferentes processos midiáticos e, em alguma
medida, independe das diferentes capacidades econômicas das famílias. O uso de dispositivos
móveis como os aparelhos de celular e tablets permitem através da internet que essas crianças
tenham acesso a todo um universo que passa por aplicativos, vídeos, games, sites de
compartilhamento e redes sociais - um ambiente comunicacional que é tão múltiplo quanto
complexo.
Os Invisíveis
Como vimos, a temática da invisibilidade social é a marca deste livro; por isso a proposta
de atividade com os alunos girou em torno desse ponto. A ideia, neste caso, foi articular as
vivências do personagem menino, o protagonista que via os invisíveis, com as experiências
cotidianas das crianças - tanto no sentido de elas retratarem cenas com pessoas invisíveis quanto
de revelarem situações em que elas mesmas sentiram-se dessa forma. Na parte 1, os alunos
deveriam desenhar duas cenas, em dois lugares diferentes, onde existissem pessoas “invisíveis” ou
“quase invisíveis”. Na parte 2, o pedido foi para que narrassem, por escrito, alguma vez em que se
sentiram invisíveis; na parte 3, solicitou-se desenhassem uma pessoa quando criança e quando
adulta, escrevendo o que a pessoa perdeu e ganhou ao ter passado da infância para a vida adulta.
Durante a sessão de leitura, ao serem provocados a falar sobre alguma ocasião em que se
sentiram invisíveis, as crianças deram inúmeros relatos, entre eles alguns que se destacaram pela
inconformidade com a falta de atenção dos pais. Os motivos foram diversos, por exemplo: um dos
meninos falou sobre o pai, afirmando que “ele fica conversando com os adultos, quando se junta
com os amigos dele ele não dá atenção nunca mais pra mim...”. Outra menina revelou que a mãe
em uma ocasião ficou conversando com uma amiga “fofocando da vida dos outros... aí eu chamei
ela: - Mãe, vamos brincar? E ela não me ouvia, continuou conversando”. Já nos registros da
11
atividade realizada por escrito, surgiu um relato incomodado com o tempo em que a mãe fica
conectada no celular. Uma das crianças escreve assim: “Olha, quase todo o dia minha mãe fica no
celular, quando eu chamo ela diz que já vai aí eu espero e ela não vem. Chego de um passeio ou
da escola com ela, e ela vai direto para o celular. Eu vivo assim”. A riqueza de um relato como
esse é representativa de um cenário que nos indica o quanto a cultura digital está impregnada na
vida das famílias, e o quanto essa realidade parece interferir no convívio familiar e na rotina de
uma criança em relação às suas necessidades/expectativas por atenção.
Jenkins (2009) ajuda a pensar nessa questão quando enfatiza que estamos vivendo a cultura
da convergência e da conexão, numa profunda transição no panorama da comunicação que não se
resume a aspectos tecnológicos de evolução dos suportes e meios de comunicação. Segundo ele,
esse novo contexto comunicacional representa uma transformação cultural “à medida que
consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a
conteúdos midiáticos dispersos” (27-28). Ou seja: temos uma nova configuração que acontece a
partir de fluxos de comunicação e num ambiente onde as novas mídias (internet e redes sociais) e
as mídias tradicionais (rádio, TV, jornal) se complementam e muitas vezes se chocam. E como
foi possível perceber, as crianças não estão à parte desse contexto de transformações, pelo contrário
- estão imersas nele e dele não escapam.
5. Dizeres finais
Este se configurou como um primeiro movimento de aproximação e exploração de uma
parte dos dados capturados preliminarmente através da pesquisa de literatura infantil em curso.
Também destaco que este texto não ofereceu respostas prontas e conclusivas sobre as propriedades
ou características de uma infância pós-moderna; tampouco pretendeu revelar o papel das mídias
nesse processo - que é um tanto complexo. A proposta aqui foi apresentar e discutir alguns aspectos
da presença das mídias em um determinado tipo de infância escolarizada de crianças de classes
populares, para propor reflexões e lançar questões que talvez possam contribuir para pensarmos
além.
Após a análise dos materiais selecionados para este trabalho, é possível traçar referências
recorrentes que podem ser representativas de uma infância pós-moderna – neste recorte específico.
Assim, ficou evidente que a TV aberta é uma referência midiática ainda muito presente na vida
12
das crianças que fazem parte da pesquisa. Para as meninas, as telenovelas são grandes
companheiras. Para os meninos, além de algumas séries de TV, também ganha destaque o uso do
celular e do tablet como preferências midiáticas. Em relação aos pais, identificaram-se alguns
relatos sobre a necessidade de atenção frente ao tempo que eles passam usando o celular e as redes
sociais. É nesse sentido que penso na potencialidade e na produtividade de uma experiência de
literatura infantil para manifestar indícios que permitem pensar na hipótese de que estaria em
constituição aquilo que estou denominando de “infância midiatizada”.
Referências
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